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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Estudos Sociais e Políticos Pedro Vieira Abramovay Sistemas deliberativos e processo decisório congressual: um estudo sobre a aprovação do Marco civil da internet Rio de Janeiro 2017

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Page 1: Sistemas deliberativos e processo decisório congressual ...€¦ · do Marco Civil da Internet. A partir da perspectiva sistêmica da teoria deliberativa, estuda-se três distintos

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais

Instituto de Estudos Sociais e Políticos

Pedro Vieira Abramovay

Sistemas deliberativos e processo decisório congressual: um estudo sobre a

aprovação do Marco civil da internet

Rio de Janeiro

2017

Page 2: Sistemas deliberativos e processo decisório congressual ...€¦ · do Marco Civil da Internet. A partir da perspectiva sistêmica da teoria deliberativa, estuda-se três distintos

Pedro Vieira Abramovay

Sistemas deliberativos e processo decisório congressual: um estudo sobre a aprovação do

Marco civil da internet

Tese apresentada, como requisito parcial para a

obtenção do título de doutor, ao Programa de

Pós-Graduação em Ciência Politica, da

Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Orientador: Fabiano Guilherme Mendes dos Santos

Rio de Janeiro

2017

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CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA IESP

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese,

desde que citada a fonte.

_____________________________________________ _____________________

Assinatura Data

A158 Abramovay, Pedro Vieira.

Sistemas deliberativos e processo decisório congressual: um estudo

sobre a aprovação do marco civil da Internet / Pedro Vieira

Abramovay. – 2017.

166 f.

Orientador: Fabiano Guilherme Mendes Santos.

Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos.

1. Democracia - Teses. 2. Ciência Política – Teses. I. Santos,

Fabiano. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de

Estudos Sociais e Políticos. III. Título.

CDU 378.245

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Pedro Vieira Abramovay

Sistemas deliberativos e processo decisório congressual: um estudo sobre a aprovação do

Marco civil da internet

Tese apresentada, como requisito parcial para

obtenção do título de doutor, ao Programa de

Pós-Graduação em Ciência Politica, da

Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Aprovada em 31 de julho de 2017.

Banca examinadora:

___________________________________________

Prof. Dr. Fabiano Gulherme Mendes Santos (Orientador)

Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

_____________________________________________

Prof. Dr. Fernando Henrique Eduardo Guarnieri

Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

_____________________________________________

Prof. Dr. Ronaldo Lemos

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

____________________________________________

Profa. Dra. Thamy Pogrebinschi

Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung, WZB, Alemanha

______________________________________________

Prof. Dr. Ricardo Fabrino Mendonça

Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro

2017

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DEDICATÓRIA

Para Joaquim e Isabel, para quem resolvi trasmitir o legado da minha esperança.

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AGRADECIMENTOS

Uma tese sempre é, de alguma forma um ato de resistência. Contra o tempo, contra a

literatura já consagrada, até contra o orientador, eventualmente. Entregar uma tese na

Universidade Estadual do Rio de Janeiro em 2017, representa outro tipo de resistência. Não

uma resistência do orientando, mas a de um corpo de funcionários e professores que permitem

que a Universidade continue funcionando e produzindo, apesar dos esforços deliberados para

seu desmonte. No momento em que eu entrego essa tese, professores e funcionários estão com

seus salários atrasados (padrão que vem se mantendo há algum tempo) e, mesmo assim,

conseguem resistir e manter a alta qualidade da produção e reprodução do conhecimento pelo

qual a UERJ é conhecida.

Começo, portanto, a agradecer todos os professores e funcionários do IESP-UERJ,

que, tanto no início do meu curso, no momento em que ainda se sentiam os efeitos da recente

transição da incorporação do instituto pela UERJ, quanto no momento da entrega, durante a

crise brutal da Universidade, propiciaram um curso e um ambiente para a pesquisa

absolutamente extraordinários.

Mais especificamente, agradeço, porque decisivos para esta tese, os participantes

(colegas e professores) dos Seminários de Projeto (coordenado pelo professor João Feres) e de

Tese (coordenado pela professora Cristina Buarque). Nessa toada, não posso deixar de

agradecer a professora Thamy Progebinschi, não apenas pelo estímulo para que eu não

desistisse da tese, mas pela acolhida no WZB em Berlim, em um momento em que pude

definir os primeiros contornos deste trabalho.

Thamy, assim como Fernando Guarnieri também participaram da banca de defesa do

projeto, motivo pelo qual sou grato a ambos. Aquele foi um momento decisivo para que eu

percebesse os nós a desatar para dar solidez à pesquisa.

Agradeço também aos entrevistados para a realização deste trabalho, Ivo Correa,

Alessandro Molon, Ronaldo Lemos, Eduardo Levy, Demi Getshko e Sergio Amadeu, que

disponibilizaram seu tempo para a realização desta pesquisa.

Uma das grandes sortes que tive neste processo foi encontrar a generosidade de San

Romanelli. Em apenas dois encontros, San me deu o caminho das pedras para a construção da

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base teórica da tese. Sempre que algúem me disser que vai escrever uma tese, meu desejo, a

partir de agora, vai ser que a pessoa encontre uma San Romanelli pelo caminho.

Ainda no campo acadêmico, é claro que meu principal agradecimento vai para meu

orientador Fabiano Santos. Fabiano me incentivou constantemente, esteve sempre disponível

e emprestou seu olhar rigoroso a todos os momentos deste processo. Não apenas era capaz de

indicar sempre literatura pertinente para o trabalho, como também indicava outras pessoas

para que eu tirasse dúvidas quando elas não se referiam a sua àrea direta de pesquisa.

Mas uma tese não é tarefa que se restrinja à nossa vida acadêmica. Eu tenho vivas as

memórias do meu pai trancado no escritório escrevendo sua tese de doutorado e, sabia, que

essa ia ser uma tarefa que exigiria um esforço bem mais do que individual.

Algumas pessoas foram essenciais para que eu não desistisse de escrever a tese.

Manoela Miklos, que me inspira diariamente com sua teimosia doce contra as injustiças do

mundo, insistiu muito para que eu visse que era possível. Meu pai, Ricardo, que se

certamente, pelo exemplo de acadêmico rigoroso e preocupado com a construção de uma

ciência eticamente comprometida, tem responsabilidade central na minha relação com a

academia, também foi crucial, com sua insistência sutil, para que esta tese chegasse a

termo. Além de ter contribuído com uma leitura atenta nos momentos finais.

E, claro, Carolina. A minha parceira de cada passo é, mais uma vez, co-responsável

por mais essa etapa da minha vida. Carolina nunca permitiu que eu desistisse e foi muito

generosa para que, mesmo com Isabel ainda pequena, eu conseguisse encontrar tempo para

escrever. Mas Carolina fez muito mais que isso. Essa aliança, forjada no amor, que a gente

construiu, se consolida no desejo mútuo de lutar, juntos, por um mundo mais justo e solidário.

Este compromisso permeia nossa vida profissional, passando pela acadêmica e, por fim, na

forma que criamos Joaquim e Isabel.

E temino agradecendo, justamente, a essas crianças lindas, a quem também dedico este

trabalho. Agradeço pela paciência com o pai absorto pela tese. Mas agradeço, sobretudo, por

me propiciarem, todos os dias um reencantamento com o mundo, que dá sentido a todo resto.

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“E, assim, das profundezas do desespero, por toda parte, surgiram um

sonho e um projeto: reinventar a democracia, encontrar maneiras que

possibilitem aos seres humanos administrar coletivamente suas vidas

de acordo com os princípios amplamente compartilhados em suas

mentes e em geral negligenciados em sua experiência diária.”

(Manuel Castells, Redes de Indignação e Esperança: Movimentos

sociais na era da Internet)

“Tá legal/Eu aceito o argumento/Mas não me altere o samba tanto

assim/olha que a rapaziada está sentindo a falta/de um cavaco, um

pandeiro e um tamborim”

(Paulinho da Viola, Argumento)

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RESUMO

ABRAMOVAY, Pedro Vieira. Sistemas deliberativos e processo decisório congressual: um

estudo sobre a aprovação do marco civil da internet. 2017. 163 f. Tese (Doutorado) -

Instituto de Estudos Sociais, Universidade de Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,

2017.

Esta tese realiza uma análise empírica do processo decisório que resultou na aprovação

do Marco Civil da Internet. A partir da perspectiva sistêmica da teoria deliberativa, estuda-se

três distintos espaços deliberativos, que se acoplam por meio de indutores de conectividade

específicos: o debate polarizado em torno do projeto de crimes cibernéticos, a consulta on line

realizada pelo Executivo e o processo legislativo no Congresso. A análise feita, utilizando o

método de process tracing, mostra que esse sistema deliberativo foi decisivo na aprovação da

lei mesmo contra interesses poderosos das empresas de telecomunicações.

Palavras-chave: Deliberação. Democracia. Participação. Sistemas deliberativos. E-

democracia. Democracia on line. Internet. Neo-institucionalismo. Organização

informacional. Marco Civil da Internet. Consulta on line. Congresso Nacional. Process

Tracing.

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ABSTRACT

ABRAMOVAY, Pedro Vieira. Deliberative systems and congressional decision making: a

study about the brazilian internet legal framework approval. 2017. 163 f. Tese (Doutorado)

- Instituto de Estudos Sociais, Universidade de Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,

2017.

This thesis produces an empirical analysis of the Brazilian Internet Legal Framework

approval decision process. Using the deliberative theory systemic approach, three different

delibaritive spaces are studied: the polarized debate on the cibercrimes bill, the on-line

consultation organized by the Executive Branch and the legislative process in Congress. The

analysis, using the process tracing method, shows that this deliberative system was decisive

for the Bill’s approval, even against powerful interests from telecommunications companies.

Keywords: Deliberation. Democracy. Participation. E-democracy. On-line democracy.

Deliberative systems. Internet. Neo-institutionalism. Informational organization. Marco

Civil da Internet. On-line consultation. Congress. Process tracing.

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LISTA DE DIAGRAMAS E FIGURAS

Diagrama 1 - Sistema deliberativo ............................................................................ 24

Figura 1 - Reação dos usuários ao agendamento inicial do governo por artigos .. 98

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………….…………………………………………………... 10

1 DELIBERAÇÃO E INFORMAÇÃO EM PROCESSOS DECISÓRIOS

DEMOCRÁTICOS........................................................................................ 17

1.1 Introdução....................................................................................................... 17

1.2 A Abordagem Sistêmica da Teoria Deliberativa........................................... 20

1.3 Representação Discursiva.............................................................................. 25

1.4 A formação de Acordos, Colhendo as Ferramentas do Debate entre Neo-

institucionalistas e deliberativos……………………………………………….. 30

1.5 O Impacto da Internet na deliberação pública…..…………………………… 35

1.6 Internet e a Inteligência Coletiva………………….…………………………... 41

1.7 Diminuição da Assimetria da Informação e Perspectiva Informacional……. 43

1.8 Conclusão………………………………………...……………………………... 46

2 DA MOBILIZAÇÃO À CONSULTA……………..…………………………... 49

2.1 Introdução……………………………………………..……………………...… 49

2.2 A Demanda por Criminalização de Condutas na Internet……..……………. 50

2.3 O Nascimento do Projeto Azeredo………………..…………………………… 51

2.4 A Mobilização Contrária ao Projeto……………………..……………………. 53

2.5 A Mobilização Atinge o Governo…………….………………………………... 58

2.6 O Presidente se pronuncia………….………………………………………….. 59

2.7 Conclusão……………….………………………………………………………. 62

3 A CONSULTA COLABORATIVA ON LINE………………………………. 64

3.1 Do Forum Internacional de Software Livre (FISL) à Consulta Pública……. 65

3.2 A Construção da Consulta Pública…………………………………..…….. 73

3.3 Elementos que Possibilitaram uma Consulta Argumentativa…………..…… 79

3.4 O Debate Durante a Consulta……………………………………………..…… 93

3.5 O Resultado Durante a Consulta……………………………………………... 100

3.6 Conclusão…………………………………………….…………………………. 102

4 A TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA DO MARCO CIVIL DA INTERNET... 103

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4.1 Introdução………………………………………………………………………. 103

4.2 O Método de Process-Tracing…………………………………………………. 106

4.3 Os Atores da discussão no Congresso e a Perspectiva Informacional………. 109

4.4 A Recepção pelo Congresso……………………………………………………. 111

4.5 O Ínicio do Debate no Congresso e a Perspectiva Informacional…………… 116

4.6 O Debate Legislativo após a Consulta Pública Feita pela Câmara dos

Deputados……………………………………………………………………….. 122

4.7 Primeiro Fator Exógeno: a Lei Carolina Dieckman…………………………. 128

4.8 Da Quebra de Acordo à Volta ao Compromisso Forjado na Consulta

Pública…………………………………………………………………………... 129

4.9 Segundo Fator Exógeno: Snowden e o terremoto no debate………………… 135

4.10 O Blocão formado por Eduardo Cunha………………………………………. 143

4.11 Conclusão……………………………………………………………………….. 147

CONCLUSÃO………………………………………………………………….. 150

REFERÊNCIAS ………………………………………... 155

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INTRODUÇÃO

a) Deliberação a uma hora dessas?

A morte da deliberação. Este é o título do livro de James Wallner1 que tem sido alvo

de amplos debates nos Estados Unidos. O argumento central do livro, publicado em 2013, é o

de que o aumento da polarização na política americana, ao contrário do que se diz, não

inviabiliza a tomada de decisão pelo Congresso2, mas transfere as decisões, antes públicas,

para debates a portas fechadas nos gabinetes das lideranças. Assim, a polarização seria a

responsável pela morte da deliberação.

O argumento de Wallner tem ganhado força no debate atual, não apenas pela visão

sofisticada que ele apresenta, mas pela ideia de que a política atualmente não comporta a

deliberação baseada em um debate argumentativo, em função do ambiente polarizado que tem

se consolidado.

No caso brasileiro, a polarização política também vem sendo estudada. Esther Solano,

Pablo Ortellado e Marcio Soretto3 realizaram uma série de pesquisas sobre as mobilizações

que desembocaram no impeachment de Dilma Rousseff. Os autores mostram o efeito

importante que o Facebook desempenhou na construção das identidades de polarização que

marcaram o debate público em 2016. Um polo claramente antipetista e outro, que eles

chamam de anti-antipetista, opunham-se frontalmente, elevando o nível de polarização da

política brasileira a uma situação inédita.

Curiosamente, um dos artigos mais importantes para se compreender 2016 chama-se O

Fim da Polarização. É o já célebre texto de Marcos Nobre, escrito na Revista Piauí, que

consolida a expressão peemedebismo4. Nobre desconstrói, em 2010, a ideia de que a força

imperante no Brasil seja a da polarização entre PT (Partido dos Trabalhadores) X PSDB

(Partido da Social Democracia Brasileira). No final do governo Lula, para esse autor, o Brasil

1 WALLNER, James I. The Death of Deliberation – Partisanship and Polarization in the United States Senate.

Lexington Books, Lanham, 2013.

2 O livro foca especificamente no Senado, que é conhecido pelos mecanismos que permitem à minoria paralisar

o processo decisório

3 SOLANO, Esther; ORTELLADO, Pablo; SORETTO, Marcio. 2016: O Ano da Polarização. Análise no 22,

Friedrich Ebert Siftung 2017. disponível em: <http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/13249.pdf>.

4 NOBRE, Marcos. O Fim da Polarização. Revista Piaui, Edição 51, dez 2010, disponível em:

<http://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-fim-da-polarizacao/>.

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estava completamente conquistado pelo peemedebismo. Peemedebismo seria uma lógica que

“pretende, no limite, engolir e administrar todos os interesses e ideias presentes na sociedade.

E (...) garante a quem entrar que, caso consiga se organizar como grupo de pressão, ganhará o

direito de vetar qualquer deliberação ou decisão que diga respeito a seus interesses.”5. Nobre

afirma que “quanto mais se radicalizou a polarização entre PT e PSDB, tanto mais o

peemedebismo se impôs”6. Não há como escapar do tom profético do texto de Nobre, sabendo

que essa afirmação ocorreu seis anos antes do impeachment pelo qual, a partir da polarização

em torno do antipetismo (na qual o PSDB teve papel fundamental), o PMDB (Partido do

Movimento Democrático Brasileiro) passou a governar - agora oficialmente - o país.

Mas, menos interessados em profecias e mais em explicações sobre o estado atual das

coisas, devemos compreender o texto de Nobre como um alerta sobre a força do

peemedebismo e sua capacidade de capturar polarizações para a manutenção do status quo

através de seu elaborado mecanismo de vetos explicado em seu texto.

Assim, no caso brasileiro, a polarização também afeta a possibilidade de processos

deliberativos, talvez por mecanismos não idênticos aos descritos por Wallner para o caso

norte-americano, mas em função do fortalecimento de um ator com tamanho poder de veto

que não sobra espaço para a construção de um processo decisório baseado em argumentos.

Considerando este contexto, não seria um pouco ingênuo ou até uma desconexão com

a realidade atual estudar um processo de aprovação de uma lei que foi baseada em um sistema

deliberativo no qual houve ponderação pública de argumentos?

A leitura desta tese indica que não. Ao contrário, o estudo empírico do processo

decisório da aprovação da lei que ficou conhecida como Marco Civil da Internet mostra que a

construção de um sistema deliberativo eficiente pode ser uma forma de valorizar o debate

político que surge em um espaço polarizado, e de levá-lo a um espaço de discussão

argumentativa e, a partir disso, derrotar o peemedebismo no Congresso.

b) Marco Civil é fruto de um sistema deliberativo

Este trabalho não pretende apontar para um modelo completo, a ser replicado, de

sistema deliberativo, mas a análise desse processo certamente será útil para contrapor a ideia

de que a polarização política atual significa o fim da deliberação. Ao contrário, este estudo

5 NOBRE, Marcos. O Fim da Polarização. Revista Piaui, Edição 51, dez 2010, disponível em:

<http://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-fim-da-polarizacao/>. 6 Idem

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mostra que a deliberação pode ser um caminho para tornar a polarização um elemento que

impulsiona um sistema deliberativo, que resulta na aprovação de uma legislação baseada em

um processo argumentativo.

Do ponto de vista teórico, é central para a compreensão da tese, como se verá, a ideia

de que a teoria deliberativa se enriquece ao abandonar o foco em espaços restritos de

deliberação para olhar para sistemas deliberativos. Os sistemas deliberativos são compostos

de distintos espaços de deliberação. E esses sistemas se tornam eficientes quando os

acoplamentos entre os espaços conseguem, de um lado, manter a independência entre eles,

mas de outro, conectar as discussões ocorridas, como se fizessem parte de uma só conversa.

Esta ideia, que transfere o objeto de análise da teoria deliberativa de um único espaço

para um sistema de espaços deliberativos, tem sido muito útil para incorporar a esta teoria as

críticas de que a necessidade de se criar espaços propícios para consensos ou acordos,

sufocariam os antagonismos existentes na sociedade, particularmente as vozes subalternas de

tais antagonismos. Na visão sistêmica, as polarizações possuem um papel relevante para a

consolidação dos argumentos a serem ponderados e na conquista do direito, principalmente

das vozes subalternas, de terem seus argumentos seriamente considerados na construção da

decisão coletiva.

No caso do sistema deliberativo do Marco Civil, o primeiro espaço de deliberação é a

discussão sobre um projeto que criminaliza condutas praticadas na internet. Neste espaço,

impera a polarização entre os atores envolvidos. O segundo espaço é o processo de consulta

on-line instaurado pelo Ministério da Justiça – já com o foco na elaboração de um Marco

Civil da Internet - que claramente parte do debate realizado no espaço anterior, mas agora se

dá em um ambiente propício para a formação de um acordo argumentativo entre os atores,

que antes estavam polarizados. Acordo, esse, que efetivamente ocorre em torno de alguns

pontos específicos e se mantém fundamental durante a discussão no terceiro e último espaço

deliberativo: o Congresso Nacional. No parlamento, o acordo sofre vários ataques,

principalmente das empresas de telefonia – o único grupo de interesse relevante que não

participou do acordo formado na consulta -, defendidas pelo então deputado peemedebista

Eduardo Cunha. Mas a descrição detalhada da tramitação legislativa do Projeto de Lei do

Marco CIvil mostra que o acordo argumentativo forjado na consulta on-line foi fundamental

para derrotar as empresas de telefonia e Eduardo Cunha.

A hipótese central desta tese é a de que o acordo formado pela contraposição pública

dos argumentos presentes na sociedade durante o processo de consulta on-line criou uma

aliança improvável que teve uma forte influência na tramitação legislativa do Marco Civil a

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ponto de ter sido um fator determinante da derrota de interesses poderosos contrários ao

projeto.

c) Estrutura da tese

A tese é composta por quatro capítulos. O primeiro capítulo desenvolve o arcabouço

teórico que sustenta a análise empírica realizada nos três capítulos seguintes. Além da

conceituação de “sistemas deliberativos”, referida acima, alguns outros elementos teóricos são

apresentados. O conceito de “representação discursiva” de Dryzek é chave para compreender

a importância de um processo que, de fato, mobilizou a constelação dos discursos presentes

na sociedade. Elementos da “economia da barganha” a partir de autores como Buchanan são

indicados para compreender como foi possível a criação de um ambiente propício para a

formação de um acordo argumentativo. O olhar para teóricos da internet, como Yochai

Benkler e Pierre Levy, permite a análise sobre como uma nova lógica de produção de

conhecimento na Internet impactque o debate público tivesse alta qualidade técnica. E, por

fim, a teoria informacional de Krehbiel é essencial para a explicação sobre os efeitos que a

diminuição da assimetria de informação entre parlamentares gerada por um debate público

pela internet tem no desenrolar do processo legislativo.

Os três capítulos seguintes são o desenvolvimento do estudo empírico realizado na

tese. Para o estudo empírico, foram usados distintos tipos de fonte. Material realmente

fundamental foram os diversos trabalhos científicos já realizados sobre a elaboração e

tramitação do Marco Civil. Realmente, considerando o quão recente é este processo, é

impressionante o número de trabalhos já publicados sobre o tema. No direito, na sociologia,

na antropologia, na administração pública e na ciência política, vários artigos, dissertações ou

teses forneceram não apenas visões distintas sobre o processo, mas uma descrição detalhada

de cada etapa dos debates e do papel de cada ator nessas etapas.

Também foi essencial para a construção da descrição do caso, uma cobertura

jornalística bastante detalhada realizada, principalmente, pelo caderno Link do jornal O

Estado de S. Paulo. Essa cobertura bastante completa do processo em conjunto, é claro, com

matérias jornalísticas de outros veículos também ajudaram a reconstituir o panorama do

caso com precisão. A consulta aos documentos públicos da Câmara dos Deputados e do

Senado Federal também constituíram fonte importante para reconstituir cada etapa, tanto do

Projeto de Lei do Marco Civil, como do chamado Projeto de Lei (PL) Azeredo, que

trazia a

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criminalização de condutas na internet e representou o início da discussão que gerou o Marco

Civil.

Finalmente, foram feitas seis entrevistas com atores chave deste processo. As

entrevistas seguiram um roteiro semiestruturado e buscaram compreender, a partir da visão

dos próprios atores, os detalhes da influência do debate on-line no processo legislativo. Assim

foram entrevistados: Sergio Amadeu da Silveira (sociólogo, importante ativista do movimento

pela internet livre), Demi Getshko (engenheiro, membro mais antigo do Comitê Gestor da

Internet), Ronaldo Lemos (advogado, à época diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da

FGV Direito Rio), Ivo Correa (advogado, durante a primeira parte do processo era diretor de

políticas públicas do Google e, posteriormente, durante a tramitação do PL no Congresso,

subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil da Presidência da República), Eduardo Levy

(engenheiro, diretor-executivo do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço

Móvel Celular e Pessoal – SindiTeleBrasil) e, finalmente, o deputado federal Alessandro

Molon (advogado, relator do Projeto de Lei do Marco Civil da Internet na Câmara dos

Deputados). A partir do uso destas distintas fontes, foi possível reconstituir o percurso de

elaboração e aprovação do Marco Civil.

O segundo capítulo contextualiza as tensões que a regulação da internet apresentava

no Brasil e no mundo e descreve o processo de disputa em torno do chamado PL Azeredo,

que previa a criminalização de condutas praticadas pela Internet. Em um ambiente bastante

polarizado, vão se consolidando os grupos de interesse que serão os protagonistas de todo este

debate.

O terceiro capítulo parte da ordem dada pelo Presidente Lula de se elaborar um Marco

Civil da internet antes da aprovação de um projeto de natureza penal e segue pela descrição

do processo de consulta pública. Neste capítulo, analisam-se quais os elementos presentes

nesta consulta que propiciaram o ambiente responsável pelo acordo central entre os atores

envolvidos no debate argumentativo que ocorreu ali. Este acordo, como explicitado nesse

capítulo, foi forjado pela contraposição pública da constelação de discursos presentes na

sociedade sobre os temas em discussão e formou, em torno dele, uma aliança improvável

entre os participantes da consulta.

O quarto capítulo representa o principal elemento da tese para testar sua hipótese

central. A partir da utilização do método de process tracing, a tramitação do projeto na

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Câmara dos Deputados7 é descrita de forma bastante detalhada, mostrando, a partir de cada

passo de um processo bem pouco linear, como o acordo argumentativo formando durante a

consulta pública balizou todo o processo. Na descrição realizada nesse capítulo, fica claro que

o acordo, por ser baseado no debate argumentativo, consegue unir atores que não estariam

unidos em processos normais de barganha. A cada momento que algum ator tenta se afastar

do acordo, gera-se um impasse. Quando o acordo é reestabelecido – sem desconsiderar fatores

exógenos que também contribuíram para o avanço do projeto - ele se torna um elemento

essencial para que o projeto seja aprovado, derrotando os poderosos interesses das empresas

de telefonia, defendidos com afinco pelo então deputado Eduardo Cunha.

d) O caso do Marco Civil como uma contribuição para a compreensão do alcance de

uma visão sistêmica da teoria deliberativa

O caso do Marco Civil é sem dúvida intrigante. Talvez, por isso, tenha despertado, em

um espaço relativamente curto de tempo, tanto interesse de estudiosos como já referido.

Trata-se de um caso no qual o texto final aprovado representa o fruto de um debate

argumentativo entre atores tão distintos como o movimento pela internet livre, os setores de

segurança, os produtores de conteúdo de direito autoral e os provedores de internet. Acordo

este que derrotou uma força extremamente poderosa no Congresso, liderada por Eduardo

Cunha e ancorada no apoio das gigantes da telefonia. Há poucos casos semelhantes, ainda

mais aprovados a partir de 2014, quando a força do blocão articulado por Cunha impunha

derrotas em série ao governo Dilma Rousseff.

Esta tese se esforça para, mesmo trabalhando com pressupostos teóricos que possuem

uma forte carga normativa, como é o caso da teoria deliberativa, utilizar as diversas

ferramentas teóricas, apresentadas nos capítulos a seguir, como elementos de explicação sobre

as razões pelas quais o resultado do sistema deliberativo em torno do Marco Civil foi este

descrito acima.

Não há como negar que há um aspecto normativo latente na ideia de que um processo

capaz de derrotar esses interesses a partir da deliberação pública e baseada em argumentos se

conecta com toda a defesa feita pelos teóricos deliberativos de que este tipo de processo

fortalece democracias. Nem caberia negar a importância de se estudar casos que possam

7 A tramitação no Senado ocorre de maneira tão rápida e sem qualquer alteração no texto de forma que, embora

mencionada, não é relevante para este estudo.

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fornecer argumentos relevantes para se pensar no fortalecimento democrático em um contexto

onde muitos afirmam que a instituições democráticas estão em perigo.

Mas o esforço central realizado na tese não é este. Nos capítulos que se seguem, o

estudo empírico que é desenvolvido tem uma força muito maior pelo caráter explicativo das

razões que levaram à aprovação do texto final do Marco Civil da Internet do que de buscar

inferir elementos normativos deste processo.

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17

1. DELIBERAÇÃO E INFORMAÇÃO EM PROCESSOS DECISÓRIOS

DEMOCRÁTICOS

1.1 Introdução

A ideia de democracia que emerge como dominante na segunda metade do século XX

tem em Schumpeter o seu principal formulador8. Para Schumpeter, a democracia é o sistema

no qual o poder é adquirido pelas elites políticas “mediante uma luta competitiva pelo voto do

eleitor”9, em que o papel do cidadão se restringe à formação do governo.

Essa visão da democracia é desenvolvida posteriormente por uma série de autores10

que vão consolidando o elitismo democrático e atribuindo ao cidadão-eleitor um papel ínfimo

na decisão de políticas, a não ser pela possibilidade de trocar as elites políticas que estão no

poder.

A partir dos anos 1970, essa visão competitiva da democracia passa a sofrer uma forte

crítica de teóricos que tentam resgatar um conteúdo para democracia que amplie o espaço da

participação pública dos cidadãos na tomada de decisões. Sobretudo com John Rawls e Jurgen

Habermas, ganha força a ideia de democracia deliberativa, na qual não basta a competição

pelo voto do eleitor, mas também uma construção das decisões a partir da ideia de razão

pública e de argumentação.

Essa visão passa a ser muito criticada pelos teóricos competitivos como sendo por

demais normativa e sem âncora na realidade. A partir disso, vários esforços de teóricos

deliberativos mais recentes tentam demonstrar a factibilidade de experiências democráticas

baseadas na deliberação e na razão pública.

Não caberia fazer aqui uma genealogia deste debate. Porém, como esta tese trabalha a

influência de um processo deliberativo na decisão tomada pelo parlamento, julgamos

8 Leonardo Avritzer volta a Weber para a origem do elitismo democrátivo, o que faz sentido, mas a ideia de

competição eleitoral, que se torna o centro do debate no pós Segunda Guerra, certamente ganha seu contorno

mais sólido com Schumpeter, como afirma boa parte da literatura, por exemplo Luis Felipe Miguel.

(AVRIZER, Leonardo. Teoria Democrática e Deliberação Política. Lua nova no 49 26-42, 2000, p. 26 e

MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e Representação – Territórios em Disputa. Ed. Unesp: Sao Paulo, 2014,

p. 48).

9 SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. trad Ruy Jungmann, Editora Fundo de

Cultura: 1961, p. 321.

10 Giovanni Sartori, Robert Dahl, Anthony Downs, entre outros.

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18

importante deixar claro quais as ferramentas teóricas que nos ajudam a compreender o caso

estudado.

No exame das teorias competitivas, principalmente na versão mais contemporânea

neo-institucionalista, buscamos aproveitar ferramentas explicativas que enriqueçam a análise

feita neste trabalho.

É claro que há também elementos normativos (nas duas teorias, como se verá) que

serão também aproveitados para discutir o caso concreto do Marco Civil. O elemento

normativo inicial que, vale reconhecer desde logo, orienta esta tese é a ideia de que a visão

unicamente instrumental da democracia competitiva não nos parece suficiente para fornecer a

legitimidade que a realidade contemporânea exige dos sistemas democráticos.

Manuel Castells oferece uma análise bastante arguta para o problema de uma visão de

democracia cujo elemento essencial é o voto, sobretudo, como mecanismo para, por meio da

punição ao mau governante, trocar a política pública:

the vote to punish incumbent politicians , rather than hoping for the future,

may correct the mismanagement of politicians by sending a powerful

warning that their power and their careers depend on listening to their

constituents. Yet, when repeated warnings have limited effect, and when the

parties brought to power by the protest vote reproduce the same neglect of

public decency, a downward spiral develops, adding negativity and cynicism

to a fatigued citizenry.11

Entretanto, mesmo partindo desta visão normativa, é inegável que as teorias neo-

institucionalistas oferecem explicações bastante convincentes para os fenômenos ligados à

tomada de decisões públicas, principalmente, como é o objeto de estudo desta tese, dentro do

parlamento. Explicações que, muitas vezes, são negligenciadas pelos teóricos deliberativos

em função da incompatibilidade teórica das duas visões normativas.

Esta tese não segue essa tendência. Mesmo se aproximando, do ponto de vista

normativo dos teóricos deliberativos, este trabalho busca ferramentas teóricas explicativas

nas teorias neo-institucionalistas para compreender vários fenômenos relevantes para a análise

feita aqui.

Seguindo este caminho, o item 1.2 do presente capítulo apresenta a ideia de sistemas

deliberativos. Esta inovação teórica, trazida pela teoria deliberativa mais recente, permite um

olhar para a deliberação que foge da busca do espaço deliberativo perfeito, para tentar

11 CASTELLS, Manuel. Communication Power., Oxford University Press: 2009, p. 297.

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19

encontrar a formação da razão pública em um sistema composto por distintos espaços

acoplados. Este é um conceito bastante útil para este trabalho, que justamente reconstrói o

processo de formação do Marco Civil da internet desde os primeiros embates públicos em

torno das propostas de criminalização do usuário, passando pela criação da consulta on-line,

até a descrição dos debates na Câmara dos Deputados. A ideia de um sistema deliberativo

permite compreender que faz sentido buscar as conexões entre cada um desses momentos e as

influências de cada espaço de deliberação na decisão final.

O item 1.3 do capítulo explora o conceito de representação discursiva, que dá ênfase a

um debate público composto por todos os argumentos existentes na sociedade como o

elemento chave para a garantia da legitimidade de um processo democrático. Como se verá ao

longo do trabalho, trata-se de um conceito fundamental para análise do debate em torno do

Marco Civil, particularmente para a forma como o debate da consulta on-line é recebido no

parlamento.

O argumento central desta tese, como explicitado na introdução, é a de que um acordo

formado por atores que antes estavam polarizados, baseado na força do melhor argumento12,

foi capaz de exercer uma influência determinante na aprovação do projeto no Congresso,

derrotando interesses econômicos poderosos. Assim, a compreensão dos mecanismos para a

formação de um acordo no processo de decisão coletiva é chave para a comprovação desta

hipótese.

O item 1.4 articula elementos das teorias deliberativas com explicações de autores

neo-institucionalista para compreender as possibilidades de formação de um acordo público,

em favor de uma política pública como a que será objeto da análise empírica nos capítulos

seguintes.

Mesmo havendo já uma literatura importante vinculada à teoria deliberativa que

estuda processos on-line13, há debates sobre os impactos da internet na democracia e, de

forma mais ampla, na organização de informação pública para a produção de conhecimento,

que são fundamentais para compreender o tipo de enriquecimento a um processo deliberativo

12 O conceito de “melhor argumento” usado nesta tese provém de Jurgen Habermas e está detalhado no item 1.4

deste capítulo.

13 Por exemplo: FISHKIN, James. When the People Speaks – Deliberative Democracy & Public Consultation.

Oxford: 2009; COLEMAN, Stephen e GOTZE, John. Bowling Together-Online Public Engagement in Public

Deliberation. Hansard Society, London: 2001; DAVIES, Todd; REID, Chandler. Online Deliberation Design:

Choices Criteria and Evidences. In: NABATCHI, T.; GASTIL, J.; WEIKSNER, M. G. e LEIGHNINGER. M.

Democracy In Motion: Evaluating the Practice and impact of deliberative civic engagement . Oxford

University Press: 2011, pp. 103-131.

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20

– principalmente dentro do conceito de sistemas deliberativos - promovido por um debate

aberto realizado na internet. Por isso, no item 1.5, serão analisadas quais as ferramentas deste

debate (e com quais ressalvas) são úteis para a compreensão de um processo, como o do

Marco Civil, no qual o uso da internet teve um papel tão relevante.

No item 1.6, debate-se o surgimento da ideia de inteligência coletiva na produção de

conhecimento on-line e como esse conceito favorece a ideia de que um debate aberto

realizado pela internet tem condições de gerar uma decisão mais bem informada do que os

tradicionais processos restritos a debates dentro de gabinetes.

Finalmente, essas discussões sobre a diminuição na assimetria de informação entre

agentes mobilizada pelo uso da internet fornecem elementos para aceitar o desafio formulado

por Marta Mendes da Rocha14 que chama a atenção “para a ausência de enfoques, no campo

dos estudos legislativos, que tomem a deliberação como uma dimensão relevante da política

parlamentar ao lado dos processos de negociação e de agregação de preferências.”, sobretudo

reforçando a ideia de que “as teorias informacionais de organização legislativa apresentam

interessantes pontos de encontro com o tema da deliberação e que, por essa razão, devem ser

consideradas um ponto de partida para abordagens que visem explorar o elemento da

argumentação, do debate e da discussão no processo legislativo”.

Assim, no item 1.7, debate-se a utilização de uma nova lógica de produção de

informação e conhecimento que permite fazer a ponte entre as teorias deliberativas e

informacionais nos termos propostos por Rocha, ao se perceber que o relator, no caso do

Marco Civil, assume um duplo papel: o papel de indutor de conectividade entre espaços

deliberativos (algo fundamental, como veremos para a teoria deliberativa) e o papel de agente

informacional (papel chave para a perspectiva informacional).

1.2 A abordagem sistêmica da teoria deliberativa

O estudo de experiências deliberativas ganhou novo fôlego a partir de uma abordagem

original trazida por um texto escrito coletivamente por alguns dos principais teóricos

contemporâneos sobre o tema: Jane Mansbridge, James Bohman, Simone Chambers, Thomas

14 ROCHA, Marta, M. Representação, Deliberação e Estudos Legislativos. Revista Brasiliera de Ciências

Sociais vol. 25 no 74, out-2010.

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Cristiano, Archor Fung, John Parkinson, Dennis f. Thompson e Mark E. Warren15. A

abordagem parte da premissa que a teoria deliberativa tem buscado responder às críticas sobre

sua pouca aplicação prática com estudos sobre experiências específicas e restritas de

deliberação.

Essas experiências, por mais que possam demonstrar a viabilidade da tomada de

decisão por meio de processos deliberativos informados pela contestação de argumentos,

possuem, entretanto, pouca capacidade de justificar o aumento da legitimidade das

instituições democráticas como um todo (pretendido pelos defensores da deliberação),

justamente pela sua falta de escala.

A proposta feita pelos autores é a de que: “it is necessary to go beyond the study of

individual institutions and processes to examine their interaction in the system as a whole”16.

E, a partir desta premissa, propõem uma abordagem sistêmica da teoria deliberativa.

Uma abordagem sistêmica não pretende simplesmente exigir que o espaço decisório

de uma nação se transforme em um fórum deliberativo. Ao contrário, a abordagem reconhece

que isso é impossível e aceita as críticas sobre a inviabilidade de se realizar processos

deliberativos únicos que deem conta da escala necessária para a inclusão de todos os cidadãos.

A partir disso, os autores propõem que o objeto de análise deve ser todo o sistema deliberativo

composto por diversos espaços de deliberação que interagem entre si, podendo gerar um

processo deliberativo saudável.

Olhando para todo o sistema, seria possível que, individualmente, espaços de

deliberação não cumpram todos os requisitos para uma deliberação adequada (provavelmente

não cumprirão), mas pode-se analisar o sistema a partir de uma lógica de divisão de trabalho.

Cada espaço pode agregar elementos que, analisados sistemicamente, incrementam a

capacidade de deliberação democrática.

Ou seja, um espaço muito partidarizado ou com posições mais radicais, claramente

não cumpre os requisitos para uma deliberação argumentativa e não coercitiva, entretanto, ele

pode ser útil, apontam os autores, para a inclusão de determinados setores da sociedade. E

esse espaço pode se conectar com outro espaço deliberativo no qual os argumentos ali

produzidos podem ser ponderados com outros, de maneira que o sistema cumpra tanto o

15 MANSBRIDGE et all. A systemic approach to deliberative democracy. In: PAKINSON, J. e MANSBRIDGE

J. Deliberative Systems – Deliberative democracy at the large scale. Cambridge University Press, 2012.

16 MANSBRIDGE et all. A systemic approach to deliberative democracy. In: PAKINSON, J. e MANSBRIDGE

J. Deliberative Systems – Deliberative democracy at the large scale. Cambridge University Press, 2012.

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22

requisito de aumento da inclusão, quanto o requisito da capacidade de deliberação

argumentativa não coercitiva.

Essa abordagem ajuda a responder muitas das críticas feitas à teoria deliberativa. Há

um tipo de crítica a essa teoria que vê na necessidade de formação de consenso, ou mesmo de

acordos argumentativos, proposta pelos deliberativos, uma supressão de vozes dissonantes na

sociedade.

Chantal Mouffe17, por exemplo, defende que a teoria habermasiana do discurso e

outras vertentes deliberativas seriam problemáticas por tentarem retirar o antagonismo da

política (o que para Mouffe seria anular a própria política) e, portanto, anular-se-ia a paixão

da política em detrimento da razão. Já Nancy Fraser18 coloca ênfase na necessidade de criação

de espaços de contestação por parte dos subalternos. Para essas críticas, a ideia de um sistema

deliberativo abre caminho para que o antagonismo e a contestação possam ser elementos

fundamentais de determinados espaços deliberativos, possibilitando que os subalternos sejam

ouvidos, mobilizando paixões, mas integrando um sistema que, observado na sua totalidade,

representará a confrontação de argumentos, permitindo uma decisão justificada neste debate

argumentativo.

Um tema essencial para o bom funcionamento do sistema deliberativo, como apontam

os próprios autores, é a questão da acoplamento (coupling) entre os distintos sistemas. Eles

apontam que tanto um acoplamento próximo demais (abrindo o espaço para a cooptação e

impedindo a criação de mecanismos de freios e contrapesos entre os espaços deliberativos),

quanto à inexistência de acoplamento (desconstituindo a confrontação entre os argumentos

produzido nos distintos espaços) tornam o sistema deliberativo falho.

A partir desta reflexão, Carolyn Hendriks19 propõe um debate sobre a importância de

um desenho institucional que dê conta de, ativamente, produzir acoplamentos entre os espaços

de deliberação que melhorem a qualidade do sistema deliberativo.

Antes de debater, especificamente, quais os desenhos institucionais que podem

favorecer acoplamentos eficientes para a produção de um bom sistema deliberativo, Hendriks

17 MOUFFE, C. Deliberative Democracy or Agonistic Pluralism. Political Science Series 72, 2000. Disponível

em: <http://www.ssoar.info/ssoar/bitstream/handle/document/24654/ssoar-2000-mouffe-

deliberative_democracy_or_agonistic_pluralism.pdf?sequence=1>.

18 FRASER, N. Rethinking the Public Sphere: A contribution to the critique of actually existing democracy. In

CALHOUN, C. (ed) Habermas and the Public Sphere. Cambridge, pp. 109-142. 1992

19 HENDRIKS, Carolyn M. Coupling Citizens and Elites in Deliberative Systems: the Role of Institutional

Deisgn. European Journal of Political Research, 2015. Disponível em:

<https://crawford.anu.edu.au/files/uploads/crawford01_cap_anu_edu_au/2015-11/coupling_12oct2015.pdf>.

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23

analisa o avanço que o conceito de acoplamento traz à teoria deliberativa. Se em Habermas o

conceito central era o de transmissão, no qual havia um fluxo claro iniciado na formação da

opinião pública, refletido nas eleições e, a partir daí, gerando decisões legislativas no

parlamento20 (ou, na versão de Dryzek, a transmissão entre os espaços de deliberação e os

espações de poder), já em Hendriks o conceito de acoplamento complexifica esse fluxo. Não

mais uma transmissão unilateral de um espaço emissor para um espaço receptor. Há diversos

acoplamentos entre espaços que permitem que os argumentos se confrontem e façam o debate

avançar21.

Analisando um caso específico de um processo deliberativo em um mini público e sua

influência no parlamento na Austrália em 2011, Hendriks conclui que é necessário um esforço

ativo para a construção de um desenho institucional de mecanismos de acoplamento que

permitam que processos deliberativos se influenciem mutuamente e de maneira

multidirecional. Em particular, isso deve ser feito para permitir que o jogo de influências

dentro do sistema crie a oportunidade para que vozes dos cidadãos possam influenciar as

elites.

Mendonça aprofunda esse debate sobre acoplamentos22. Para ele, a análise de

Hendriks é limitada por não se focar em quais podem ser os indutores de conectividade que

fazem com que estes acoplamentos ocorram em maior ou menor intensidade. Mendonça

aponta, sem a pretensão de ser exaustivo, quatro possíveis indutores de conectividade: a

mídia, a burocracia, a circulação de participantes entre os espaços de deliberação e o desenho

e as normas que constituem as instituições participativas.

O conceito de um sistema deliberativo é bastante útil para se analisar o caso discutido

neste trabalho. Nos três próximos capítulos serão debatidos momentos e espaços deliberativos

bastantes distintos pelo qual a discussão, que culminou na decisão de aprovação do Marco

Civil da internet, passou. O debate se inicia no legislativo, recebe a influência e pressão de

20 HABERMAS, J. Between Fact and Norms: Contributions to a discourse Theory of Law and Democracy trans

William Rehg. MIT Press: Cambdridge, 1998, p. 299.

21 Iris Young em De-Centering Deliberative Democracy, publicado originalmente em 2006 apontava para a

necessidade da existência de uma ligação (linkage) entre espaços fragmentados de deliberação para dar

sentido à democratização da deliberação por meio de sua descentralização. YOUNG, Iris M. De-centering

Deliberative Democracy. In: BARKER, Derek W. M.; MCAFEE, Noelle e MCIVOR, David (ed)

Democratizing Deliberation – A Political Theory Anthology. Kettering Foundation Press: New York, 2012,

pp. 113-125.

22 MENDONÇA, Ricardo F. The Conditions and Dilemmas of Deliberative Systems. Paper prepared for the

2013 APSA Annual Meeting. Chicago, August 29th – September 1st. Panel: Discursive Politics and

Deliberative Systems: Exploring Empirical Research and Theoretical Concepts (Critical Policy Studies

Network). Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2303025>.

Page 28: Sistemas deliberativos e processo decisório congressual ...€¦ · do Marco Civil da Internet. A partir da perspectiva sistêmica da teoria deliberativa, estuda-se três distintos

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movimentos da sociedade civil (que debatem o tema por meio de redes periféricas ao

parlamento), é transferido para um espaço de debate argumentativo e público pela internet,

passa pelo debate no Poder Executivo e volta ao Congresso na forma de um projeto de lei.

O sistema deliberativo descrito na análise empírica presente nos próximos capítulos

pode ser visualizado no diagrama abaixo:

Diagrama 1. Sistema deliberativo

SISTEMA DELIBERATIVO

ESPAÇO

DELIBERATIVO

1

ESPAÇO

DELIBERATIVO

2

ESPAÇO

DELIBERATIVO

3

INDUTORES:

- SAL

- DESENHO DA

CONSULTA

- PARTICIPANTES

Fonte: elaborado pelo autor.

INDUTORES:

- MOLON

- SAL

- PARTICIPANTES

Só é possível compreender a influência de cada etapa deste processo na seguinte e o

resultado final alcançando, utilizando-se o conceito de um sistema deliberativo que permite

que espaços distintos desempenhem funções distintas, mas produzam, ao final, um resultado

que é claramente produto de um processo deliberativo. Também é importante olhar quais

foram os indutores de conectividade que fizeram com que o processo do Marco Civil, desde

os primeiros debates sobre a criminalização dos usuários até a aprovação da lei, se

constituísse em uma única conversa com momentos distintos.

As teorias neo-institucionais teriam dificuldade em compreender como a repetição do

debate com atores muito parecidos em arenas distintas poderia produzir resultados tão

diferentes. A teoria deliberativa, sem incorporar a noção de sistema deliberativo, não teria as

ferramentas necessárias para compreender a função distinta de cada etapa do processo para a

ACOPLAMENTO

CONSULTA

ON-LINE ACOPLAMENTO

DEBATE

PÚBLICO

PL

AZEREDO

CÂMARA

DOS

DEPUTADOS

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construção de um processo de contestação pública de argumentos e decisão informada por

essa contestação.

Assim, a utilidade central da utilização do conceito de sistema deliberativo para essa

análise é de fornecer uma ferramenta explicativa para o caso estudado. Entretanto, não é

possível desconsiderar que há um debate sobre a qualidade do sistema deliberativo que é

basicamente normativo, mas que será fundamental para a discussão sobre quais elementos do

desenho institucional do mecanismo de participação permitiram o sucesso do caso do Marco

Civil.

1.3 Representação discursiva

Dryzek e Niemeyer23 afirmam que há três soluções clássicas para o problema da

deliberação em ampla escala: (i) limitar a frequência com que se convoca a deliberação, (ii)

limitar a deliberação a representantes e (iii) limitar a deliberação aos mais aptos a discernir o

interesse público.

No primeiro caso, a deliberação acontece em momentos específicos e, em geral, com

uma pergunta específica. Um plebiscito bem informado poderia ser um exemplo de

deliberação. Contudo, Dryzek e Niemeyer reconhecem que é muito difícil imaginar que a

deliberação em um caso como esse seja ampla o suficiente em termos do acesso de todos ao

debate que forma a opinião geral.

O segundo caso, parte da ideia com a qual nossas instituições estão mais

familiarizadas: a escolha de representantes por meio de eleições. A deliberação acontece entre

os representantes. O problema aqui é que o processo eleitoral é, na verdade, pouco

deliberativo. O acesso desigual a financiamento de campanhas, o uso de propagandas

negativas, a manipulação de dados, a maior vantagem aos incumbentes, são alguns exemplos

trazidos pelo autor como problemas na legitimidade da escolha de representantes, o que

afetaria a legitimidade da própria deliberação.

No terceiro caso, há a criação de espaços de deliberação que não buscam sua

legitimidade na ideia de representação ou mesmo no vínculo prévio com a população. A

legitimidade, neste caso, deriva da qualidade da discussão. Supremas cortes seriam exemplos

23 DRYZEK, J. S.; NIEMEYER, S. Foundations and Frontiers of Deliberative Governance. Oxford University

Press: Oxford, 2013, pp. 24-30.

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deste modelo. E, caso indivíduos compreendam e aceitem as justificativas de um processo

deliberativo com tais características, ele até pode ter legitimidade (no sentido de ser aceito

pelo conjunto da população), mas certamente não será um processo democrático, ao contrário

do que sugerem Dryzek e Niemeyer.

Analisando essas três formas, Dryzek e Niemeyer afirmam que a segunda

(representação), de fato, é a única que pode merecer uma legitimidade democrática,

entretanto, ele afirma que os defensores da representação encontram-se, em geral, distantes

da ideia de uma democracia deliberativa e, por isso, a ideia de representação deve ser

repensada para que faça sentido dentro da teoria deliberativa.

Para Dryzek, a legitimidade da representação não advém do fato da totalidade dos

indivíduos estarem representados. Dryzek e Niemeyer constroem uma visão de esfera

pública que representaria a constelação de discursos existentes na sociedade. Assim,

pessoas que subscrevem esses discursos podem se reconhecer neles e construir suas

posições de forma intersubjetiva, a partir deles24.

Ou seja, Dryzek e Niemeyer explicitamente enfrentam o problema básico da

representação, bem formulado por Pitkin, que advém do “próprio significado da

representação: tornar presente de alguma forma o que apesar disso não está literalmente

presente”25, substituindo indivíduos por discursos. Dryzek e Niemeyer deixam claro que não

estabelece uma hierarquia entre a representação individual e a representação de discursos,

mas aponta que, do ponto de vista da deliberação, a representação de discursos é mais

importante, pois coloca a fala e a comunicação no centro da democracia.26

Essa visão de Dryzek e Niemeyer, no fundo, se aproxima muito da ideia de

deliberação, originalmente trazida por John Stewart Mill, de um Congresso de Opiniões.

Mill fala que o Parlamento deveria funcionar como um

24 DRYZEK, J. S.; NIEMEYER, S. Foundations and Frontiers of Deliberative Governance. Oxford University

Press: Oxford, 2013, p. 31.

25 PITKIN, Hanna. Representação: Palavras Instituições, Ideias. Lua Nova 67, São Paulo, 2000, pp. 15-47.

26 DRYZEK, J. S.; NIEMEYER, S. Op. Cit., p. 44.

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27

Congress of Opinions; an arena in which not only the general opinion of the

nation, but that of every section of it, and as far as possible of every eminent

individual whom it contains, can produce itself in full light and challenge

discussion; where every person in the country may count upon finding

somebody who speaks his mind, as well or better than he could speak it

himself — not to friends and partisans exclusively, but in the face of

opponents, to be tested by adverse controversy; where those whose opinion

is overruled, feel satisfied that it is heard, and set aside not by a mere act of

will, but for what are thought superior reasons, and commend themselves as

such to the representatives of the majority of the nation; where every party or

opinion in the country can muster its strength, and be cured of any illusion

concerning the number or power of its adherents.27

Claro que, para Mill, a vitória de uma opinião sobre outra, se dá pela regra da maioria

e, nas teorias deliberativas contemporâneas, há muito mais debate sobre as formas legítimas

de escolha coletiva, como se verá adiante.

Dryzek e Niemeyer, inclusive, deixa claro, ao se diferenciar de Mill, que a

representação argumentativa não deve ser proporcional à sua presença na sociedade. Ou

seja, um discurso que seja subscrito por 5% da sociedade não deve ter apenas 5% das vozes

em um espaço de representação discursiva, pois a força da deliberação está na possibilidade

de ponderação de argumentos em condição de igualdade. Para a racionalidade de uma

política, dizem Dryzek e Niemeyer, é importante que todos os discursos contrapostos

possam estar representados, independentemente da quantidade de pessoas que o subscrevam,

às vezes, até um discurso que não é subscrito por ninguém pode ser útil, dizem eles, como

“advogado do diabo”.28

Dryzek e Niemeyer também trazem um elemento que permite à representação

discursiva lidar com fatos que são difíceis de serem enfrentados pela representação

individual. Indivíduos são complexos e têm múltiplas preferências, por isso, a representação

individual dificilmente pode dar conta da complexidade de um indivíduo. A possibilidade de

uma representação de discursos permite que indivíduos possam se reconhecer em discursos

articulados a partir de origens muito distintas.

De fato, esse ponto traz uma reflexão tanto para teorias neo-institucionais quanto para

teoria deliberativas, pois, em ambas, o voto é o canal central de transmissão de preferências

(ou opiniões) aos espaços decisórios. E o voto não permite ao indivíduo que manifeste suas

27 MILL, John S. On Representative government. Cap. 5 disponível em:

<https://ebooks.adelaide.edu.au/m/mill/john_stuart/m645r/chapter5.html>.

28 DRYZEK, J. S.; NIEMEYER, S. Foundations and Frontiers of Deliberative Governance. Oxford University

Press: Oxford, 2013, p. 46.

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preferências em toda sua complexidade. A ideia de uma representação discursiva abre espaço

para a introdução dessa dimensão da complexidade das preferências individuais.

Mas Dryzek e Niemeyer apontam um problema central nessa abordagem (mesmo

que ele não pareça apresentar a questão como um problema). A ideia de uma representação

discursiva dá conta de produzir decisões coletivas a partir da constelação de discursos

existentes na sociedade, mas leva o tema a uma radicalidade na qual, em última análise, o

povo se torna dispensável. A resposta de Dryzek e Niemeyer para esse ponto é a de que, ao

contrário, a representação discursiva permite lidar com um conceito de povo mais amplo,

que inclua não apenas os cidadãos aptos a votar, mas todos que possam estar sujeitos à

decisão tomada.

No entanto, essa visão abre espaço para as críticas já tradicionais (e já citadas acima)

sobre a despolitização que a teoria do discurso pode trazer a processos decisórios. Reconhecer

a força do melhor argumento em um processo deliberativo não pode ser ignorar

completamente a maneira como os diversos grupos na sociedade se articulam politicamente e

os jogos de força entre eles.

Luis Felipe Miguel explicita bem essas críticas em sua resenha a Deliberative

Democracy and Beyond ao apontar uma ingenuidade na formulação de uma teoria que

pressupõe condições tão perfeitas para que possa fazer sentido (Miguel menciona

“participação de todos, argumentação racional, publicidade, ausência de coerção e igualdade”

29).

De fato, a ideia da construção de um espaço que reúna, em condições de igualdade, a

constelação de discursos existentes na sociedade, parece desconsiderar que não apenas esta é

uma tarefa difícil, mas que há interesses, principalmente interesses dos dominados ou

subalternos, que não chegam nem a se manifestar em um discurso. Ou seja, a legitimidade

construída pela representação discursiva é uma legitimidade válida entre aqueles que têm a

possibilidade de ver os discursos com os quais se identificam, acessando o debate.

É por isso que o conceito de sistemas deliberativos é tão importante para que se possa

utilizar a ideia de representação discursiva. Com a ideia de sistema, é possível reconhecer a

importância de um espaço que não procure representar os indivíduos, mas que esteja

preocupado em representar os discursos presentes na sociedade. Este espaço pode oferecer

legitimidade ao garantir que se busque uma decisão coletiva baseada na contraposição de cada

um dos argumentos presentes na constelação de discursos da sociedade. Mas, é claro, que este

29 MIGUEL, Luis Felipe. Promessas e Limites da Democracia Deliberativa. Revista Brasilieira de Ciências

Sociais vol. 16 no 46, jun 2001.

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espaço, isolado, não terá a legitimidade democrática da incorporação dos antagonismos

políticos existentes na sociedade para além dos discursos dissociados dos indivíduos. Então, a

representação discursiva faz sentido se conectada com outros espaços de deliberação que

abram caminho para esses antagonismos, por exemplo.

Joshua Cohen, ao analisar o tema, em diálogo com Rawls, afirma que a ideia de

democracia deliberativa, como complementar a representação eleitoral, só faz sentido se ela

for capaz de aumentar a presença de discursos que não se fazem ouvir no sistema eleitoral no

qual a decisão coletiva se dá por meio de barganha.30

O caso da consulta do Marco Civil demonstra bem essa tensão. O espaço da consulta

pública on-line conseguiu se tornar, como se verá adiante, uma verdadeira “Câmara de

Discursos” na forma proposta por Dryzek31, conseguindo ser permeável aos discursos

existentes na sociedade e, assim, trazendo para o debate discursos que, normalmente, não

seriam ouvidos pelo parlamento, contrapondo esses discursos uns contra os outros de maneira

pública e abrindo espaço para uma decisão coletiva baseada na força do melhor argumento.

Mas o processo poderia ser considerado elitista ou como uma tentativa de dispensar as

forças políticas existentes na sociedade se ele não estivesse inserido em um sistema

deliberativo no qual, como se verá, houve espaço para a mobilização de ativistas e a

polarização, além do debate com os representantes eleitos pelo voto no parlamento. A questão

que será analisada nos próximos capítulos é justamente como cada uma das fases desse

sistema deliberativo influenciou a outra.

O que é importante perceber, no caso analisado, é que a existência de fortes

mecanismos de acoplamento entre os espaços deliberativos realmente fez com que cada etapa

do processo pudessem se influenciar e a representação discursiva pôde influenciar e ser

influenciada por espaços de deliberação baseados em um antagonismo político e na lógica de

representação eleitoral. Ou seja, a ideia de legitimidade construída pela representação

discursiva que será trabalhada na tese não pretende atribuir um valor positivo ao processo,

mas ela é um elemento explicativo da incidência que o espaço de deliberação da consulta on-

line obteve no processo legislativo.

30 COHEN, Joshua. Deliberation and Democratic Legitimacy. Disponível em:

<http://philosophyfaculty.ucsd.edu/faculty/rarneson/JCOHENDELIBERATIVE%20DEM.pdf >.

31 DRYZEK, J. S.; NIEMEYER, S. Foundations and Frontiers of Deliberative Governance. Oxford University

Press: Oxford, 2013, pp. 50-65.

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1.4 A formação de acordos, colhendo as ferramentas do debate entre neo-

institucionalistas e deliberativos

Para compreender o que seria um sistema deliberativo composto por uma série de

espaços deliberativos e a maneira como esses espaços se conectam é necessário mergulhar nas

dinâmicas desses espaços de tomada de decisão.

A capacidade de se tomar decisões coletivas é um dos temas que talvez gere mais

debates teóricos nos estudos sobre democracia no século XX32. Entre os teóricos neo-

institucionalistas33 e os teóricos deliberativos, o debate se a tomada de decisões coletivas é

mera acumulação de preferências ou se há espaço para a transformação de opiniões durante a

tomada de decisões, transita, muitas vezes, de visões normativas para visões analíticas sem

necessariamente deixar isso claro de início.

É mais comum que se aponte as teorias deliberativas como sendo normativas e as

teorias neo-institucionalistas como sendo explicativas da realidade. A distinção não é tão

clara. Há evidentes elementos normativos entre os neo-institucionalistas, quando se utiliza o

modelo do individualismo metodológico para inferir não apenas desenhos institucionais, mas

também modelos sobre o tamanho do Estado ou o papel das instituições públicas. Assim

como há elementos explicativos nas teorias deliberativas, sobretudo em autores mais recentes.

Nosso objetivo é buscar os elementos que possam ajudar a compreender o processo do Marco

Civil analisado neste trabalho a partir das duas teorias.

As teorias neo-institucionalistas sobre as maneiras de se tomar decisões coletivas,

sobretudo a partir do ganhador do Nobel de economia Kenneth Arrow34, insistem na

impossibilidade da tomada de decisão coletiva racional ou de uma decisão que, de fato,

represente a vontade coletiva.

32 MACKIE, Gerry Democracy Defended (Conteporary Politica Theory) Cambridge Universty Press, 2003;

ELSTER, Jon. La Democracia Deliberativa, Introducción. Trad. José maria Lebrón. Gedisa Editorial:

Barcelona, 2001, p. 13.

33 Há muitas formas de nomear as teorias que estudam a agregação de preferências como o elemento central da

política. Teorias da escolha racional, teorias competitivas, teorias decisionistas, entre outros. Opto aqui pelo

uso do termo neo-institucionalista para dar ênfase à escola que traz uma influência clara da economia para

compreender o comportamente dos agentes políticos. O individualismo metodológico da economia aplicado à

política pode levar a visões normativas bastante questionáveis, entretanto traz análises fundamentais para a

compreensão real do fenômeno político.

34 ARROW, Kenneth. Social Choice and Individual Values, Cowles Foundation 2 ed: New York, 1963.

disponível em http: <//cowles.yale.edu/sites/default/files/files/pub/mon/m12-2-all.pdf>

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William Riker, analisando Arrow, deixa claro que, por ser impossível aferir se o

resultado de uma votação realmente representa a vontade dos eleitores (seja pela

impossibilidade de agregar genuinamente preferências, seja em função da possibilidade da

manipulação da agregação de preferências), não faz sentido contar com a possibilidade de

tomada de decisões coletivas para a formulação de políticas. A crença nesta possibilidade,

para Riker, é chamada de populismo. Assim, no liberalismo, a única função do voto seria a de

rechaçar políticas mal sucedidas.35

Essa visão é um exemplo de uma articulação pouco explícita entre uma visão

normativa sobre o que deve ser a democracia e uma análise de como a democracia funciona,

como bem desvela Gerry Mackie36 em sua detalhada crítica ao trabalho de Riker.

As visões neo-institucionalistas muitas vezes sugerem que o custo da decisão coletiva

(tanto pelo processo de tomada de decisão, como pelo risco de uma decisão que não maximize

benefícios a todos) é tão alto que, na verdade, uma ditadura seria a melhor maneira de tomar

decisões que afetem a coletividade.37

Entretanto, há um esforço inegável entre os neo-institucionalistas de compreender

processos de tomada de decisão coletiva que, sem dúvida, pode ser útil para o debate. O

esforço detalhado de James Buchanan e Gordon Tullock para explicar o modelo de barganha

política é sem dúvida uma importante ferramenta para compreender a negociação. Claro que

há aspectos normativos também no texto de Buchanan e Tullock, mas a descrição do processo

de barganha traz insights importantes para qualquer pessoa que queira compreender a tomada

de decisão coletiva.

Bucahan e Tullock deixam claro que a lógica do mercado não pode se aplicar à

política, pois no caso do livre mercado, o que faz os preços se ajustarem é a existência de

alternativa. Se o vendedor não quiser vender por um preço justo, o comprador procura outro

vendedor. No caso da política, a lógica se altera, pois não há alternativas. Os acordos devem

ser atingidos entre aqueles membros da negociação. E é justamente por isso que sempre

haverá um espaço para a barganha nos espaços de tomada de decisão coletiva.

35 RIKER, William. Liberalism Against Populism : A confrotation between the Theory of Democracy and te

Theory of Social Choice. Wavelan Press: Long Grove, 1988, pp. 236-238, 243.

36 MACKIE, Gerry Democracy Defended (Conteporary Politica Theory) Cambridge Universty Press, 2003

37 ARROW, Kenneth. Social Choice and Individual Values, Cowles Foundation 2 ed: New York, 1963.

disponível em http: <//cowles.yale.edu/sites/default/files/files/pub/mon/m12-2-all.pdf> e BUCHANAN,

James e TULLOCK, Gordon. The Calculus of Consent:Logical Foundations of Constitutional Democracies.

Disponível em: <http://files.libertyfund.org/files/1063/Buchanan_0102-03_EBk_v6.0.pdf>.

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Buchanan e e Tullock38 começam mostrando que, no caso de uma barganha entre duas

pessoas, haverá sempre um espaço no qual ambos estarão ganhando, mas um ganhará mais do

que o outro. A negociação se estabelece justamente pela ausência de informação que uma das

partes tem sobre até onde a outra aceita barganhar. Até existe um ponto ótimo no qual as duas

partes ganham a mesma coisa, mas como nenhuma das partes conhece os limites de

negociação do outro, é impossível saber qual é esse ponto ótimo.

Finalmente, Buchanan e Tullock explicam que o aumento de indivíduos negociando

levará a um aumento do custo de negociação. E, se o custo de negociação for alto demais, será

necessário construir regras para diminuir esse custo. Esta ideia é muito importante para a

análise de um processo deliberativo. Um sistema deliberativo pode ter estímulos para que se

chegue a uma decisão boa e legítima, mas se o custo do processo decisório for alto demais, os

participantes perderão os incentivos para participar.

Esse ponto tem sido muito usado por teóricos contemporâneos da deliberação para

justificar a ideia de que não é possível se construir sistemas ideais habermasianos que buscam

o consenso, pois o custo de tais sistemas seria desestimulante para os participantes.

James Fishkin, por exemplo, afirma que: “If the ideal of deliberative theory were a

Habermasian ‘ideal speech situation’ where we are to imagine that there is no limit to the

possible time spent to reach consensus, then the decision costs would be truly unlimited”39

Outro ponto fundamental para a explicação neo-institucionalista da política é a ideia

de assimetria de informação. A barganha só faz sentido porque os atores não têm informação

sobre os limites dos outros para a negociação. Assim, para Buchanan e Tullock, o grande

sentido das regras sobre qual o método para tomar uma decisão política é o de diminuir a

assimetria de informação entre as partes e, consequentemente, diminuir o custo da decisão,

para justificar a ideia de uma decisão coletiva40.

Mas Gerry Mackie, que tem sido um importante crítico do neo-institucionalismo mais

cético (“escola de Rochester”, como ele se refere), a partir dos argumentos da escolha

racional, traz um ponto importante para o debate41. Não é possível igualar o comportamento

38 BUCHANAN, James e TULLOCK, Gordon. The Calculus of Consent:Logical Foundations of Constitutional

Democracies. pp 78-79. Disponível em: <http://files.libertyfund.org/files/1063/Buchanan_0102-

03_EBk_v6.0.pdf>.

39 FISHKIN, James. When the People Speaks – Deliberative Democracy & Public Consultation. Oxford, 2009.

40 BUCHANAN, James e TULLOCK, Gordon. Op. Cit., p. 85.

41 MACKIE, Gerry. All Men Are Liars: Is Democracy Meaningless. In: ELSTER, Jon (org.). Deliberative

Democracy. Cambridge University Press, 1998, pp. 69-95.

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dos indivíduos no âmbito privado e no âmbito público. É absolutamente natural que um

vendedor não queira ser explícito sobre o preço limite que ele estaria disposto a pagar. Mas no

debate público, o custo reputacional é muito maior. Nos debates deliberativos existe uma

força maior dos argumentos que, de um lado, são mais transparentes, pois aumenta a

reputação positiva de quem o subscreve, mas, do outro, também dos argumentos que se

dirigem ao todo e não dizem claramente que querem apenas maximizar seus interesses. Ou, na

fórmula de Jon Elster, são as forças civilizatórias da hipocrisia que impedem que alguém diga

em público que está tomando uma decisão apenas para maximizar seus interesses.42 Para

Elster, é positivo que seja necessário encontrar um argumento que vincule a decisão ao bem

comum, mesmo que o objetivo de quem argumenta seja, na verdade, o de maximizar seus

interesses.

Ora, mas para os neo-institucionalistas, não dizer que se quer maximizar seus

interesses é o mesmo que manipular, pois a negociação, sob essa lente, tem o objetivo central

de maximizar seus interesses. Essa tensão entre a ação estratégica visando maximizar os seus

interesses, a necessidade pública de se vincular a argumentos de bem comum e o custo

reputacional da mentira, gera uma situação em que, na repetição da negociação pública entre

determinados atores, haja uma tendência para que ganhe força o argumento baseado no

interesse público.

Essa ideia vai ao encontro do que demonstra Robert Axelrod em The Evolution of

Cooperation. Axelrod demonstra que, no caso de interações repetidas e indeterminadas, há

uma tendência à cooperação entre os agentes, mesmo sem a necessidade de uma confiança

moral.43

Assim, é possível utilizar a teoria da escolha racional para perceber que há momentos

nos quais faz sentido para o individuo cooperar. A cooperação é um elemento central para

transformar um processo de tomada de decisão baseado na agregação de preferências, no qual

não há incentivos para o compartilhamento de informação, em um processo inspirado na

razão pública na qual os agentes buscam no processo de deliberação benefícios para todos os

participantes.

42 ELSTER, Jon. Deliberation and Constitution Making. In: ELSTER, Jon (ed). Deliberative Democracy.

Cambridge University Press, 1998, p. 111.

43 AXELROD, Robert. The Evolution of Cooperation. Basic Books: New York, Revised Edition, 2006.

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Dentro desta perspectiva, é possível se utilizar de argumentos neo-institucionalistas

para compreender que é viável que determinados incentivos gerem espaços de cooperação e

produzam uma deliberação não manipulada.

Um último ponto importante, que é possível trazer do neo-institucionalismo para

melhor compreender as possibilidades da deliberação, é a ideia de racionalidade limitada.

James Fearon44, a partir De Herbert Simon e de Bernard Manin, aponta como, considerando-

se a ideia de que a capacidade individual de chegar a uma solução é menor do que a

capacidade e as informações detidas por um número maior de pessoas, não se pode dizer que

seja verdade que a escolha de um ditador para solucionar problemas públicos traria melhores

soluções. Claro que o custo de tomada de decisão diminuiria, mas a qualidade da decisão pode

aumentar se houver mais informação e se os argumentos forem testados com outras pessoas.

Esse argumento é fundamental, pois a contestação pública nas teorias deliberativas

(certamente em Habermas e em Dryzek), está muito mais vinculada à legitimidade da decisão

do que à qualidade da decisão.

Mas a explicação de Habermas sobre a legitimidade (aceitação da validade) de uma

decisão pública que passou pelo processo público de debate racional (razão pública) é também

menos normativa do que explicativa e, certamente, traz uma contribuição importante para a

compreensão de como pode funcionar um sistema deliberativo. Para Habermas, a aceitação de

validade de uma norma baseada na razão pública advém da força do melhor argumento.45

A expressão “melhor argumento” para Habermas não significa a decisão

intrinsicamente melhor do que qualquer outra possível. A força do melhor argumento provém

do fato de ele ter emergido de um debate público não coercitivo, no qual as razões e

informações disponíveis em um determinado momento não foram suprimidos. Quando isso

ocorre, há, para Habermas, uma força inerente da decisão em função da motivação racional.

Ou seja, trata-se do melhor argumento não como a resposta correta para uma questão, mas em

função do procedimento de tomada de decisão que foi racionalmente motivado, fruto do

debate discursivo46. A expressão “melhor argumento”, quando empregada nesta tese, se refere

a este conceito habermasiano.

44 FEARON, James. Deliberation as Discussion. In: ELSTER, Jon (ed). Deliberative Democracy. Cambridge

University Press, 1998, pp. 49-50.

45 HABERMAS, Jurgen. Theory of Communicative Action – “Reason and the rationalization of society”.

Beacon Press, 1984, p. 25.

46 HABERMAS, Jurgen. Between Fact and Norms: Contributions to a discourse Theory of Law and Democracy.

Trans. William Rehg. MIT Press: Cambdridge, 1998, p. 227.

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Habermas diferencia explicitamente a decisão que é fruto de barganha, da decisão que

representa o melhor argumento (no sentido descrito acima). O poder da barganha, para

Habermas, não constitui uma linguagem comum e gera um efeito menos vinculante do que o

poder de um acordo racionalmente motivado (melhor argumento). Ou seja, Habermas atribui

uma força maior a esse acordo formado em torno do que ele chama de melhor argumento do

que a força atribuída à barganha. Esta visão não é meramente normativa, atribuindo maior

qualidade ao argumento fruto do processo discursivo, é uma visão que propõe uma hipótese

que nos ajuda a compreender porque um acordo formado no contexto de um debate

argumentativo pode ter mais força do que acordos formados por barganha.

É uma explicação convincente a ideia de que há uma maior propensão de se aceitar

uma decisão, caso ela tenha sido feita por concordância de várias partes e tenha sido tomada

com base no melhor argumento. Se a força do melhor argumento não é apenas um elemento

normativo da teoria habermasiana, mas uma explicação para a legitimidade de uma decisão,

este pode ser um conceito útil para compreender, na lógica dos sistemas deliberativos, o que

faz com que uma decisão tomada em um espaço deliberativo não vinculante, possa ser

comunicada a outro espaço com uma força que influencie a decisão a ser tomada ali.

Essas ferramentas, trazidas tanto pelos teóricos deliberativos quanto pelos neo-

institucionalistas, serão essenciais para compreender o processo do Marco Civil. Os próximos

capítulos vão tratar da relação entre os distintos momentos (e espaços) deliberativos que

culminaram na aprovação da Lei. O que será apresentado é justamente a influência que o

processo de consulta pública on-line gerou no debate do projeto no Congresso. Utilizando as

proposições explicativas, descrias acima, é possível compreender os motivos pelos quais a

deliberação racional e transparente ocorreu na consulta, bem como a razão desta deliberação

ter criado uma aliança entre atores improváveis, baseada na força do melhor argumento, que

resultou na aprovação do texto final.

1.5 O Impacto da internet na deliberação pública

É inegável que a literatura sobre processos deliberativos sofreu um impacto importante

com as mudanças ocorridas a partir do surgimento da internet. Várias das questões pensadas

pelos teóricos da deliberação (na verdade, pelos teóricos da democracia em geral) são

profundamente afetadas pela ideia de que as pessoas podem se conectar e trocar ideias de

maneiras e em uma escala que eram absolutamente impensáveis antes da internet.

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Yochai Benkler identifica como mudança fundamental trazida pela internet, no bojo da

ideia de esfera pública, a diminuição no custo de falar e ser ouvido. Para Benkler, dois

elementos são responsáveis por isso: (i) a mudança de uma forma unidirecional de

comunicação, como são os meios tradicionais de comunicação de massa, para conexão

multidimensional dos distintos nós da rede; e (ii) a diminuição dos custos de se atingir um

grande público. Assim, existe hoje uma esfera pública conectada que não depende da

tradicional mediação dos meios de comunicação de massa, como já dependeu.47

Para Benkler, essa mudança altera completamente a auto-percepção dos cidadãos, que

deixam de ser meros ouvintes, para terem a possibilidade de serem partícipes na formação dos

discursos públicos. Segundo o autor,

the easy possibility of communicating effectively into the public sphere

allows individuals to reorient themselves from passive readers and listeners

to potential speakers and participants in a conversation. The way we listen to

what we hear changes because of this; as does, perhaps most fundamentally,

the way we observe and process daily events in our lives. We no longer need

to take these as merely private observations, but as potential subjects for

public communication.48

Essa é uma mudança central na possibilidade de imaginar que espaços deliberativos

possam ser realmente ocupados por cidadãos que se sintam aptos a contribuir com uma

decisão coletiva. O custo de participação efetiva é muito menor.

Para Benkler, “The Internet does restructure public discourse in ways that give

individuals a greater say in their governance than the mass media made possible. The Internet

does provide avenues of discourse around the bottlenecks of older media, whether these are

held by authoritarian governments or by media owners.”.49

Essa visão não é pacífica, Matthew Hindman, em The Myth of Digital Democracy,

aponta que a internet claramente aumentou as possibilidades de fala, mas não ampliou as

possibilidades de ser ouvido50. Para Hindman, apesar da concentração de difusores de

conteúdo na internet continuar muito alta e haver a sensação de que se está falando para o

mundo, a realidade é que poucos detêm grande audiência.

47 BEKLER, Yochai. The wealth of Networks: how social production transforms markets and freedom. p. 212.

Disponível em: <http://benkler.org/Benkler_Wealth_Of_Networks.pdf>.

48 Ibid. p 213 49 Ibid. p. 271.

50 HINDMAN, Matthew. The Myth of Digital Democracy. Princeton University Press, 2008, p. 142.

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A visão de Hindman certamente é uma boa resposta para a ideia um tanto ingênua de

que a internet poderia trazer automaticamente uma nova esfera pública conectada da qual

emergiria o espaço deliberativo perfeito. Mas ela não atinge a ideia de que a internet abre a

possibilidade real de um novo tipo de comunicação muito mais produtivo entre cidadãos e

grupos de interesses, que afeta a maneira como se pensa processos deliberativos em uma

democracia.

São muitas as alterações trazidas pela internet na forma de debater. Há alterações no

próprio comportamento dos indivíduos na passagem de um processo de diálogo presencial ou

virtual. Arthur Lupia traz uma abordagem bastante interessante. Para ele, a deliberação on-

line, não apenas é promissora por trazer a possibilidade de diálogos entre pessoas fisicamente

distantes, mas ele analisa os impactos que a internet traz para as mudanças nas capacidades

cognitivas dos participantes na deliberação. O autor, utilizando conceitos da psicologia

comportamental, afirma que espaços de deliberação presencial, tem uma baixa capacidade de

prender a atenção dos participantes com a intensidade necessária para que eles realmente

possam apreender o argumento contrário e mudar de opinião. A internet, segundo Lupia, pode

criar espaços de engajamento que sejam muito mais efetivos na capacidade real de fazer as

pessoas mudarem de posição com base em argumentos, algo fundamental para a teoria

deliberativa.51

Mas é claro que a internet não transforma comportamentos apenas de forma positiva.

A promessa inicial de uma grande esfera pública conectada, onde indivíduos estariam

expostos a argumentos diferentes todo o tempo, falando e ouvindo vozes antes abafadas pela

estrutura unidirecional da comunicação, não se confirmou de maneira tão óbvia.

Um dos grandes efeitos observados nas interações pela internet atualmente é a ideia da

criação de bolhas de afinidade nas quais as pessoas ficam cada vez mais expostas a

argumentos que reforcem suas posições iniciais.

Este fenômeno foi muito bem descrito por Cass Sustein em seu livro #Republic52. Para

Sunstein, um dos fenômenos fundamentais da internet nos últimos dez anos foi a capacidade

de filtrar a enorme quantidade de informação disponível a seus usuários de acordo com os

interesses de cada um. Isso é, evidentemente, algo positivo. Ninguém deseja ficar exposto

constantemente às informações que não são de seu interesse.

51 LUPIA, Arthur. Can Online Deliberation Improve Politics? Scientific Foundations for Success. Disponível

em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1154649>.

52 SUNSTEIN, Cass. #Republic – Divided Democracy in the Age of Social Media. Princeton University Press:

Princeton, 2017.

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Entretanto, vale notar que a atual arquitetura da rede, na qual algoritmos escolhem

quais as experiências pelas quais as pessoas vão passar, tira destas pessoas a oportunidade de

se deparar com experiências não necessariamente desejadas, mas que poderiam ser

extremamente significativas para a vida dessas pessoas.

Do ponto de vista do debate da democracia deliberativa, esta arquitetura diminui a

possibilidade de indivíduos entrarem em contato com opiniões e argumentos contrários aos

seus. Sunstein traz, inclusive, uma doutrina já consolidada na Suprema Corte Americana, a

doutrina do Public Forum, pela qual existe um direito geral à exposição a cidadãos

heterogêneos e a necessidade de exposição compartilhada a uma diversidade de vozes, visões

e queixas53.

Para Sunstein, a internet evidentemente aproxima as pessoas, mas ela concretiza essa

aproximação por meio de nichos. E, nesses nichos, há muito debate baseado em argumentos,

mas apenas argumentos que favoreçam uma visão pré-estabelecida, fazendo com que as

pessoas estejam ouvindo “more and louder echoes of their own voices” 54

Este processo tem criado o aumento da polarização entre os grupos na sociedade,

estabelecendo, à primeira vista, uma dificuldade enorme de se formar algum tipo de acordo

entre os determinados grupos, gerando um fenômeno que Sunstein chama de

ciberpolarização.

Para Sunstein a ciberpolarização ocorre por três motivos: (i) informação e argumentos

persuasivos: os integrantes de nicho específico são expostos (muito mais do que antes) a uma

enorme quantidade de argumentos e informações persuasivos que reforçam suas convicções;

(ii) considerações reputacionais: as pessoas sentem a necessidade de manter sua reputação no

grupo e têm medo de serem vistas como outsiders se expressarem visões conflitantes com as

do grupo; (iii) confiança, extremismo e corroboração: a exposição a argumentos em um

determinado sentido diminui o medo de assumir posições extremas, criando um círculo que

vai autorizando essas posições, em geral, desautorizadas em debates mais amplos.

Mas o próprio Sunstein nota a importância que essa polarização traz para a formação

de identidade política, algo que também pode ser fundamental para a democracia. A confiança

para que grupos, antes minoritários, possam fazer suas ideias terem repercussão pública e não

53 SUNSTEIN, Cass. #Republic – Divided Democracy in the Age of Social Media. Princeton University Press:

Princeton, 2017, p. 38.

54 Ibid. p. 64.

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39

terem suas visões abafadas por quem tradicionalmente domina o debate público é algo

positivo.

Movimentos considerados extremistas foram fundamentais para fazer avançar pautas

antes sufocadas. O movimento dos direitos civis, o movimento LGBT ou o movimento

feminista são alguns dos exemplos que merecem ser reconhecidos.

Sunstein introduz um conceito que é extremamente útil para o debate feito nesta tese: a

ideia de “enclaves de deliberação”55. As bolhas de afinidade (ou enclaves) podem criar

espaços de desenvolvimento de argumentos e ideias entre grupos que não poderiam ter acesso

à voz no espaço público.

É claro que, se elas permanecerem isoladas, não há espaço para um debate discursivo

com a exposição a argumentos contrários. Mas a questão que se coloca, do ponto de vista

normativo, ou seja, do ponto de vista de se aprimorar a qualidade do debate democrático na

sociedade, que pressupõe a exposição à diversidade, é a capacidade de se construir conexões

entre esses enclaves para informar as deliberações públicas.

Sunstein afirma: “In democratic societies, a possible response is suggested by the

public forum doctrine, whose most fundamental goal is to increase the likelihood that at

certain point, there is an exchange of views between enclave members and those who disagree

with them”.56

É muito interessante como essa análise descritiva de como a arquitetura da internet

contemporânea com seus filtros, bolhas e algoritmos, que gerou enclaves deliberativos, pode

ser extremamente útil para reforçar a necessidade de se pensar a deliberação pública a partir

da ideia de sistemas deliberativos, descritos acima.

Com esse panorama, fica clara a necessidade de se fugir da ideia da construção de um

grande espaço de debate público que contenha as condições ideias para a deliberação a partir

da razão pública, para se pensar em como criar um sistema deliberativo que produza

acoplamentos fortes entre os espaços deliberativos múltiplos que já existem na sociedade.

Esses acoplamentos, caso convirjam ao espaço de deliberação oficial, que é o

parlamento, podem ter a capacidade de informar o debate legislativo a partir de um verdadeiro

processo de contraposição pública de argumentos.

55 SUNSTEIN, Cass. #Republic – Divided Democracy in the Age of Social Media. Princeton University Press:

Princeton, 2017, p. 86.

56 Ibid. p. 88.

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40

Estas ferramentas teóricas são fundamentais para compreender o processo do Marco

Civil que, como veremos, consegue transitar do debate encapsulado e polarizado, por meio de

acoplamentos ativados por indutores de conectividade, para a formação de um acordo possível

entre os diversos grupos envolvidos baseado na força do melhor argumento.

Essa concepção de Sunstein que, como defendo, sustenta de maneira mais profunda a

ideia de que, em um contexto de deliberação on-line, utilize-se o conceito de sistemas

deliberativos, reforça a visão de Ricardo Fabrino Mendonça sobre a maneira pela qual devem

ser analisados os espaços de deliberação na internet.

Para Mendonça57, as críticas à teoria deliberativa no sentido de seu pouco

pragmatismo, fizeram com que se fortalecesse uma tendência de desenvolvimento de critérios

de qualidade de deliberação. Esses critérios geraram uma séria de análises minuciosas de

processos de deliberação e, particularmente, de processos de deliberação on-line, como

consultas públicas, por exemplo. Um dos métodos que Mendonça analisa é o Discourse

Qualitative Index, proposto por Steiner e que, segundo o autor, foi muito elogiado por

Habermas.

Porém Mendonça aponta a fragilidade de análises que pretendem aferir a qualidade da

deliberação focando apenas em um espaço deliberativo e buscando as condições ideais de fala

que possa produzir a decisão a partir da razão pública em um espaço específico. Para

Mendonça:

Micro approaches to online deliberation seem fascinated by detailed coding

schemes that often lead to classifications, which do not deepen our

knowledge of the topic. Excessive quantification directs investigations to

fallacies that lack theoretical grounds. Within the obsessive exploration of

exhaustive analytical matrices, the purpose of many distinctions is not only

unclear, but also misleading. This often puts the broader comprehension of

the process in jeopardy.58

Mendonça explica que a maioria dos estudos empíricos sobre deliberação on-line

desconsideram os avanços para a teoria trazidos pelo conceito de sistemas deliberativos:

57 MENDONÇA, Ricardo F. Assessing Some Measures of Online Deliberation. Brazilian Political Science

Review 9 (3), 2015, pp. 88-115.

58 Ibid. p. 97.

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41

The notion of a deliberative system advances the understanding of

deliberation as a broader process, spread throughout time and space. By

utilizing this perspective, deliberation may not involve a direct give-and-take

of reasons, but may occur through broader discursive clashes. Therefore, to

comprehend deliberation, attention must be given to the connections and

relationships that exist among several discursive arenas. 59

É por esse motivo que este trabalho não tenta estabelecer critérios para medir a

qualidade da deliberação no espaço deliberativo on-line criado pela consulta do Marco Civil

da internet. Ao contrário, o esforço aqui é o de descrever o sistema deliberativo complexo que

culminou na aprovação da lei. Foram espaços deliberativos diversos, ligados por

acoplamentos, que se influenciaram reciprocamente gerando um acordo entre atores

relevantes, alterando o resultado do processo legislativo.

1.6 Internet e a inteligência coletiva

Quando se pensa na relação entre internet e processos deliberativos, logo vem à mente

a capacidade de criar canais de comunicação que atraiam um grande número de pessoas para

um diálogo público. Esse ponto foi discutido no item acima e, como vimos, com uma análise

que inclua a complexidade presente na ideia de sistemas deliberativos, é possível

compreender a utilidade da internet para o bom funcionamento desses sistemas.

Mas há outra revolução potencializada pela internet, que também pode ter impactos

em uma análise sobre os efeitos de processos deliberativos on-line: o surgimento da

possibilidade da construção coletiva de conhecimento em larga escala.

Pierre Levy foi um dos primeiros a trabalhar a ideia de “inteligência coletiva” a partir

da internet. Seu livro Collective Intelligence foi escrito ainda nos primórdios da internet, mas

Levy já vislumbrava que a intensidade das comunicações diretas entre indivíduos iria causar

uma revolução na maneira de produzir conhecimento. Levy aponta que, da mesma forma que

neurônios são capazes de se relacionar de maneira transversal, sem a necessidade da

hierarquia para transcender o resultado das interações, indivíduos, com a internet, passariam a

poder interagir diretamente sem que fossem desperdiçados os custos de transação envolvidos

na comunicação existente até então.60

59 Ibid p. 101. 60 LÉVY, Pierre. Collective Intelligence- mankind’s emerging world in cyberspace. trad Robert Bononno. Helix

Books: Cambridge, 1997, p. 57.

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42

A inteligência coletiva proporcionada pela internet permitiria identificar habilidades

humanas, antes represadas justamente por esses custos de transação, e abrir a possibilidade de

avançar a produção de conhecimento em função desta nova interação.

O livro de Lévy foi escrito cerca de 10 anos antes da criação da Wikipédia. A

Wikipédia é um excelente exemplo desta capacidade, trazida pela internet, de construir - e

difundir conhecimento - a partir de uma lógica descentralizada. Esta que é a maior

enciclopédia já feita, com um nível de precisão bastante confiável, funciona em uma lógica de

construção e controle colaborativos que só se tornou possível a partir da internet.

A lógica por traz da Wikipédia foi inspirada no movimento de software livre, no qual

pessoas diferentes, dentro de uma dinâmica de cooperação, criam e melhoram programas de

computador, a partir do fato de seus códigos serem abertos.

Benkler afirma que a internet proporcionou uma revolução nos custos de transações

informacionais, alterando completamente a maneira como a economia olha para a lógica da

firma. Firmas são estruturas burocráticas, que compensam custos de transação da organização

das habilidades humanas e, para Benkler, a relação peer to peer trazida pela arquitetura da

internet, tem uma vantagem sistemática frente às firmas na capacidade de encontrar o melhor

capital humano disponível e a melhor informação disponível para a criação de

conhecimento.61 Mas, para isso, é necessário que esse conhecimento seja aberto, que essas

conversas sejam públicas e todos possam acessar e produzir melhoras incrementais nos

avanços trazidos anteriormente.

Partindo-se da ideia de que as interações pela internet, quando abertas, podem reduzir

o custo de informação e produzir conhecimento de forma mais eficiente do que nas lógicas

tradicionais de acesso à informação, é interessante discutir qual o impacto que isso pode ter

nas análises sobre a qualidade das decisões tomadas em deliberações on-line.

Em Democracy and Disagreement, livro fundamental da teoria deliberativa

contemporânea, Amy Gutmann e Dennis Thompson assumem que as decisões tomadas em

processos deliberativos, por eles analisados, não necessariamente são as melhores decisões

possíveis. Esses autores defendem os referidos processos dizendo que nada indica que outros

processos decisórios gerem decisões melhores, mas, ao menos, as decisões fruto de

deliberação pública se justificariam por aumentar o entendimento do público sobre as

decisões tomadas e, portanto sua legitimidade.

61 BENKLER, Yochai. Coase’s Peguin, or, Linux and The Nature of the Firm. The Yale Law Journal vol. 112,

2002, p. 79.

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43

Essa ideia de que processos deliberativos podem se justificar, mesmo que produzam

soluções piores, não é incomum no debate. E, até mesmo um autor que aposta na deliberação

com participação de cidadãos como forma de aumentar a qualidade do processo decisório,

como Thomas Christiano62, relega aos especialistas, as definições sobre os meios para atingi-

las.

O debate sobre a revolução na forma de se produzir conhecimento trazida pela internet

traz um elemento novo. Um debate on-line, público, aberto a qualquer participante, que traga

argumentos novos para contestar ideias ou para trazer ângulos desconhecidos, pode melhorar

o processo decisório.

A lógica de produção de conhecimento fechada e hierárquica, contestada pela

arquitetura da internet, é a lógica que impera também nas produções de políticas públicas e de

legislação. Mecanismos de consulta pública aberta, que de fato abram espaço para a

contestação de ideias presentes na sociedade, podem gerar decisões mais maduras do que os

mecanismos tradicionais. Principalmente, se esses debates ocorrerem em um espaço

deliberativo conectado com outros espaços que continuarão incorporando ideias e

experiências até que se chegue à decisão final. E não se trata apenas de criar uma divisão de

tarefas entre os especialistas e os cidadãos, como propõe Christiano, mas de compreender o

papel da inteligência coletiva acionada pela arquitetura da internet.

1.7 Diminuição da assimetria da informação e perspectiva informacional

Se a internet provoca uma revolução tão grande a partir da redução do custo do acesso

à informação, é necessário refletir sobre o impacto dessa redução no processo decisório.

Uma das correntes do neo-institucionalismo que será importante para esse estudo é a

teoria da organização informacional. Esta teoria tem na incerteza e na assimetria de

informações dentro do espaço decisório no parlamento a sua premissa básica. Diferentemente

dos neo-institucionalistas distributivos, focados na assimetria de informação entre os grupos

de interesses (ou indivíduos) que estão em um processo de negociação, a teoria informacional

se preocupa com a assimetria de informação entre a política formulada e seus resultados63.

62 CHRISTIANO, T. Rational deliberation among expert and citizens. In: PAKINSON, J. e MANSBRIDGE J .

Deliberative Systems – Deliberative democracy at the large scale. Cambridge University Press, 2012 63 KREHBIEL, Keith. Information and Legislative Organization, Michigan Studies in political analysis, 1992

Paradoxes of Parties in Congress. Legislative Studies Quarterly vol. XXIV, no 1, University of Iowa, fevereiro

1999, p. 21.

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44

Essa incerteza não é distribuída igualmente. Krehbiel parte da premissa de que há

agentes (dentro e fora do parlamento) que possuem um nível de especialização muito maior

do que o do legislador mediano. E, portanto, uma capacidade de prever os resultados das

políticas de maneira muito mais precisa do que esse legislador mediano.

Assim, é necessário que esse legislador mediano confie em agentes informacionais que

possuam maior especialização e possam compartilhar essa informações. Mas essa confiança

não é automática. Existe a chance de os especialistas não quererem compartilhar toda a sua

informação privada64. A partir dessa ideia, Krehbiel explica a organização do Congresso

como um mecanismo para diminuir a incerteza do legislador mediano, criando caminhos

institucionais para que ele confie nos especialistas do Congresso. O principal mecanismo para

isso são as comissões parlamentares. Para Krehbiel, toda a estrutura organizacional do

Congresso Norte-Americano tem como foco essa diminuição de incertezas para o legislador

mediano.

Santos e Almeida, olhando para o parlamento brasileiro, registram o fato de: “haver

um consenso quanto à ausência de incentivo institucional para a aquisição e distribuição de

informação no interior do legislativo brasileiro. Em outras palavras não existiria o

componente informacional no modo pelo qual o Congresso se encontra institucionalmente

estruturado.”65

Para os autores, no Brasil, a figura do relator assume o papel de um agente

informacional, cuja função consiste na coleta e divulgação sobre as consequências de uma

política específica. Esse papel informacional do relator é acompanhado de “riscos de o relator

não se esforçar o suficiente na produção de informação e de usar estrategicamente a

informação produzida em detrimento do mediano”66

É interessante questionar qual o efeito da mudança na lógica de produção de

informação trazida pela internet, na perspectiva informacional no Congresso. Processos de

consulta pública on-line, que produzem um debate público sobre uma política a ser definida

por lei, pode produzir um tipo de informação pública acessível a todos e, portanto, diminuindo

a incerteza do legislador mediano.

64 Ibid. p. 69.

65 SANTOS, F.; ALMEIDA, Acir. Fundamentos Informacionais do Presidencialismo de Coalizão. Appris:

Curitiba, 2011.

66 KREHBIEL, Keith. Op. cit., p. 119.

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45

Ou seja, se a internet afetou profundamente a forma como a informação pode estar

disponibilizada para todas as pessoas, inclusive para os legisladores, isso provavelmente tem

um impacto nas decisões tomadas pelo Congresso, quando se pensa que a assimetria de

informações é o elemento central para a organização congressual.

Na discussão do Marco Civil, como se verá no capítulo quatro, o papel do relator é

profundamente alterado em função da exposição pública do processo de consulta. O relator

não precisa se estabelecer como o agente informacional clássico, que possui informações que

o legislador mediano não possui. As informações produzidas pelo processo de consulta são

públicas. O debate exaustivo sobre os objetivos das políticas e seus efeitos foi realizado pelos

principais especialistas no tema e estavam públicos, de modo que o custo de acesso a essa

informação pelo legislador desinformado (ou mesmo pelo líder partidário) é muito menor do

que seria se não houvesse a consulta pela internet.

Mas o fato das informações serem públicas e o custo de acesso a elas ser menor, não

significa que os parlamentares constantemente acessem a consulta para tomar as decisões. O

que ocorre é que o relator se remete à consulta constantemente para trazer informações a

público. Ou seja, a consulta transforma o seu papel informacional. Esse papel não advém

apenas de uma expertise construída pelo seu histórico profissional, nasce do fato de ele

utilizar a consulta como elemento de convencimento dos outros legisladores, como se verá na

descrição do capítulo 4.

No fundo, é seu papel como indutor de conectividade entre o espaço deliberativo da

consulta e o parlamento que modifica seu papel informacional. Essa fusão dos dois papéis

(indutor de conectividade e agente informacional) cria, em nossa visão, um ambiente mais

propício para que a decisão tomada ressoe o acordo formado com base na força do melhor

argumento. Afinal, quando a justificativa da legitimidade do relator como agente

informacional está fundamentada em um processo público, que pode ser verificado a qualquer

momento, diminuem as chances do uso estratégico dessa informação, que certamente dificulta

o debate baseado em argumentos.

Essa fusão de papéis do relator, que une a teoria informacional com a teoria de

sistemas deliberativos, ajuda a aprofundar a reflexão trazida por Marta Rocha sobre a

necessidade de se utilizar ferramentas de teorias neo-institucionalistas, particularmente na

perspectiva informacional, para compreender mais especificamente como a deliberação pode

ocorrer.

Rocha aponta que há um elemento importante de troca de informações no processo

deliberativo e, portanto “a preocupação com a crescente complexidade envolvendo a

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46

elaboração e a implementação de políticas públicas pode levar os legisladores a atribuírem

maior valor à troca de informação no processo decisório”.67

Segundo Rocha, a teoria informacional, na verdade, admite a ideia de que, nas

comissões onde a assimetria de informação é menor, exista espaço para a deliberação. Para a

autora, é possível, dentro da perspectiva informacional, enxergar as comissões como:

Uma arena onde os representantes podem avaliar os diversos aspectos de

uma proposta, levantando seus prós e contras, estimando seus custos e

benefícios e seus possíveis efeitos colaterais a partir de uma matriz plural de

preferências e informações e do saber especializado de membros e não

membros. resumindo, um espaço no qual os legisladores podem deliberar em

vez de simplesmente votar ou barganhar. Acredita-se que o processo político

sob uma organização informacional é perfeitamente compatível com o

conceito de deliberação aqui exposto. trata-se, entretanto, como já afirmado,

de um ponto pouco explorado pela literatura.68

O ponto que será demonstrado nesta tese é de que essa capacidade de se articular a

perspectiva informacional com a teoria deliberativa ganha força quando se inclui a visão de

sistemas deliberativos e quando se incorpora o debate pela internet. A ideia de sistema é

importante porque abre um novo papel para o relator que, além de agente informacional,

passa a ser indutor de conectividade entre os sistemas. O debate on-line, também, é uma

novidade dentro desse tópico pela importância que a internet têm, por meio de seus debates

públicos, na redução da assimetria de informações, elemento chave para a perspectiva

informacional.

1.8 Conclusão

Ao longo deste capítulo foi possível articular elementos de teorias distintas para deixar

claro quais ferramentas teóricas de análise serão importantes para comprovar a hipótese desta

tese.

A ideia central que será desenvolvida nos próximos capítulos é a de que a consulta

pública on-line realizada pelo Ministério da Justiça, baseada na contraposição pública dos

argumentos presentes na sociedade, impactou de forma decisiva a deliberação no Congresso

acerca do Marco Civil.

67 ROCHA, Marta M.. Representação, Deliberação e Estudos Legislativos. Revista Brasiliera de Ciências

Sociais vol 25 no 74, out-2010, p. 128.

68 Ibid. p 129

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Para poder comprovar esta hipótese, foi importante analisar o processo a partir da

perspectiva dos sistemas deliberativos, só assim pode ser compreendida a influência de cada

etapa deste processo na etapa seguinte, desde o início do debate do projeto de lei de crimes

cibernéticos até o debate no Congresso, passando pela própria consulta on-line.

Também foi necessário incorporar a visão de representação discursiva de Dryzek e

Niemeyer, pois permite compreender como um processo com uma participação

relativamente pequena, na casa das centenas de participantes individuais, pode ter ganhado a

legitimidade e a influência que ganhou. Isso só ocorreu, pois a consulta pública conseguiu

mimetizar uma esfera pública, trazendo para si a constelação de discursos presentes na

sociedade.

Posteriormente, foi discutido neste capítulo quais os elementos necessários para a

formação de acordos em processos de decisão coletiva e, articulando elementos das teorias

neo-institucionalista e deliberativa, foi possível chegar à conclusão de que, presentes os

incentivos necessários, é possível construir um acordo baseado na força do melhor argumento.

Este ponto é fundamental para compreender o processo de formação de acordo durante a

consulta e seu impacto posterior no processo legislativo.

Como boa parte da literatura sobre o legislativo e sobre processos deliberativos

desconsidera as importantes contribuições feitas pelos teóricos sobre o impacto da internet nas

democracias, foi importante, ao olhar para um processo no qual a internet teve um papel tão

fundamental, buscar compreender qual a importância deste debate sobre a internet nas teorias

que se está utilizando para compreender este processo.

E o impacto é muito grande. Em primeiro lugar, para reforçar a necessidade de se

utilizar a ideia de sistemas deliberativos como única forma de transitar em um mundo

formado por enclaves políticos. E, aliás, com a ajuda de Sunstein, percebe-se como é falsa a

ideia que começa a se cristalizar de que a polarização existente na internet inviabiliza a

possibilidade de deliberação. Ao contrário, ela permite, na lógica dos sistemas deliberativos,

uma deliberação que pode ser muito mais inclusiva do que o modelo de deliberação pensado

pelos primeiros teóricos deliberativos.

Mas o impacto da internet não se reflete apenas na capacidade de aproximar os

distintos enclaves políticos. Há um impacto profundo na diminuição do custo de acesso à

informação. Isso transforma o processo deliberativo, que pode ser, em si mesmo, um elemento

para garantir que as ideias públicas sejam testadas e se chegue a uma decisão coletiva de

melhor qualidade com um custo muito menor do que quando se pensava em processos

deliberativos antes da internet. Contudo, isso transforma também as teorias que enxergam que

a assimetria de informação existente entre os parlamentares é um elemento decisivo na forma

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como eles se conduzem no processo decisório. Com a diminuição do custo do acesso à

informação e a existência de um duplo papel para o relator (tanto de indutor de conectividade

quanto de agente informacional), diminui o espaço para uma atuação estratégica desse sujeito,

reforçando-se a possibilidade de um acordo baseado na força do melhor argumento.

Esses pontos teóricos serão desenvolvidos a partir do caso concreto estudado nos

próximos capítulos, mas devem ser vistos como ferramentas explicativas de um processo que

certamente não poderia ser compreendido à luz de um único marco teórico.

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2. DA MOBILIZAÇÃO À CONSULTA

2.1 Introdução

Este capítulo descreve o processo que levou o ministério da Justiça a criar uma

consulta colaborativa on-line para a elaboração do Marco Civil da Internet. A consulta em si

será descrita no próximo capítulo. Aqui, será descrito o processo que culminou na consulta.

A consulta surge a partir de uma disputa acirrada entre grupos que representam uma

visão diametralmente oposta do que a internet deve ser e como o Estado deve regulá-la. Este

capítulo mostra como a disputa em torno de um substitutivo do Senador Eduardo Azeredo

sobre um projeto de lei acerca de crimes cibernéticos gerou a consulta pública colaborativa

on-line do Marco Civil da Internet.

Dentro da perspectiva de um sistema deliberativo, a inclusão deste período é

fundamental. Como se verá, o debate descrito neste capítulo é um típico debate de disputa de

grupos de interesse que fazem muito pouco para se engajar em um diálogo argumentativo.

Em uma visão mais tradicional da teoria deliberativa, os movimentos presentes aqui,

que muito mais geram uma polarização do que buscam a formação de algum tipo de acordo

razoável, talvez nem merecessem ser incluídos na análise. Mas, ao incorporar a visão

sistêmica, percebe-se que este momento é crucial para o processo de deliberação. A formação

dos argumentos a favor de mais segurança na rede e a criação de um movimento de

resistência à criminalização dos usuários de internet, provavelmente, não teria ocorrido em

um espaço deliberativo controlado. O processo aqui descrito envolveu forte mobilização de

atores que resultou, sim, em uma polarização entre os grupos envolvidos. Porém, na lógica

sistêmica, não apenas isso é visto como parte do processo deliberativo, mas é um elemento

que o enriquece.

As críticas, que discutimos, no capítulo anterior, feitas por Chantal Mouffe, Iris

Young ou Nancy Fraser, de que a teoria deliberativa não dá espaço para a vocalização dos

conflitos, particularmente das vozes subalternas, perde força quando se pensa na deliberação

dentro de um sistema deliberativo que, justamente, abre espaço para o conflito e o

antagonismo como parte do processo.

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2.2 A demanda por criminalização de condutas na internet

Na metade da primeira década do século, cerca de 10 anos após a massificação da

internet, medos e esperanças compunham o cenário de debate público na relação sobre

política e internet como já discutimos no capítulo anterior. Alguns setores exigiam que a

internet fosse controlada. Ou melhor, que os usuários da internet fossem, de alguma forma,

controlados. A massificação da internet possibilitava, diziam os defensores dessa tese, uma

explosão do crime organizado. De fraudes bancárias à massificação da pedofilia, de

terrorismo à venda de drogas para crianças, a internet era vista como uma porta para o

submundo do crime.

Para setores progressistas, a massificação da internet representava o oposto disso: a

ampliação do acesso à informação e à cultura em níveis inimagináveis combinados à

possibilidade de conexão de indivíduos e da criação de novas redes de colaboração com

custos de transação muito mais baixos do que antes69, impulsionando uma verdadeira cultura

da cooperação e colaboração que inspirou a criação da internet e os movimentos de software

livre70,71, o que abria uma possibilidade de repensar profundamente as democracias e buscar

um novo modelo de distribuição de poder. Na verdade, muitos autores viam na capacidade de

se conectar concretamente milhões de pessoas a possibilidade de se superar o paradoxo de

Pitkin, no qual o conceito de representação contemporâneo nasce da ideia de se fazer presente

algo que está ausente72. A internet daria uma possibilidade física de reunir todos os

representados, eliminando um dos papéis centrais da representação.73

O impacto da massificação da internet sobre a indústria fonográfica adicionou outro

ator nessa disputa. Esta indústria rapidamente buscou formas de criminalizar o download ou o

69 CASTELLS, Manuell. Redes De Indignação e Esperança. trad. Carlos Alberto Medeiros. Zahar: São Paulo,

2014.

70 BEKLER, Yochai. The wealth of Networks: hoe social production transforms markets and freedom.

Disponível em: <http://benkler.org/Benkler_Wealth_Of_Networks.pdf>.

71 LÉVY, Pierre. Collective Intelligence- mankind’s emerging world in cyberspace. trad Robert Bononno. Helix

Books: Cambridge, 1997.

72 Pitkin, Hannah, Representação: Palavras, Instituições e Ideias, trad. Wagner Mancuso e Pablo Ortellado, Lua

Nova, São Paulo, 67: 15-47, 2006

73 É curioso notar como, há 10 anos, a internet representava esperanças para os setores progressistas e medos

para os setores conservadores e, atualmente, ocorre o inverso. A eleição de Trump e a radicalização de

movimenos de direita na internet, a utilização da internet para crimes de ódio e violações de direitos humanos

fizeram com que alguns setores progressistas começassem a questionar se não é o caso de se pensar em

formas de controle na internet.

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compartilhamento de músicas e se conectou aos setores que procuravam criminalizar usuários

de internet.

Essa aliança entre alguns setores da segurança pública - preocupados com o novo tipo

de criminalidade de internet -, o setor bancário - preocupados com o crescimento de fraudes

pela internet -, e o setor fonográfico conseguiu, em diversos países do mundo, aprovar

legislações que criminalizavam novas condutas praticadas por usuários da internet e criavam

um amplo sistema de vigilância sobre os usuários em diversos países .

O principal marco jurídico-político sob o qual isso ocorre é a Convenção de

Budapeste, firmada no âmbito do Conselho da Europa em 2001, que entra em vigor em 2004

e é aberta a países não europeus. A Convenção determina condutas que devem ser tipificadas,

processos de vigilância de usuários e possibilidades de cooperação internacional na matéria. O

foco da Convenção não é apenas a segurança das redes, criminaliza-se a violação à

propriedade intelectual, pornografia infantil, terrorismo e outras atividades criminosas na

internet.74

2.3 O Nascimento do Projeto Azeredo

No Brasil, o crescimento do número de usuários gerou um movimento parecido. Em

1999, o deputado Luiz Piauhylino (PSDB-PE) apresentou projeto estabelecendo uma série de

novos tipos penais para condutas praticadas pro meio da internet75. Após uma tramitação

relativamente lenta na Câmara, o projeto foi aprovado por aquela Casa em 2003, mas foi em

meados de 2006, com um substitutivo apresentado pelo Senador Eduardo Azeredo (PSDB-

MG)76, que o Brasil entra na rota da avalanche global que tem por agenda a utilização do

direito penal para o controle de usuários da internet.

É importante frisar que, assim como em diversos lugares do mundo, a ideia de controle

gera resistência por parte de setores da sociedade civil, e também no Brasil isso ocorreu. Mas,

nesse ponto, a resistência ocorria por um movimento social com uma tradição de resistência

mais acentuada do que em outros lugares. Daniel O’Maley expõe uma genealogia interessante

do movimento de internet livre no Brasil. Para O’Maley, mais do que em outros países, os

74 O’MALEY, Daniel P. Networking Democracy : Brazilian Internet Freedom Activism and the Influence of

Participatory Democracy. Tese (doutorado) na Universidade de Vanderbilt, 2015, p. 49. Disponível em:

<https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2757853>.

75 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=15028

76 http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=24607&tp=1

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primeiros anos da internet do Brasil fortaleceram uma ética de liberdade que fez com que esse

movimento reagisse de maneira particularmente pesada contra as tentativas de controle e

vigilância na internet.77

O projeto de crimes cibernéticos, na forma que ganhou do Senador Azeredo, tinha

claramente inspiração tanto na Convenção de Budapeste, quanto no Digital Millenium

Copyright Act (DCMA), lei americana de 1998 feita para proteger a indústria cultural daquele

país. A lei americana criminalizava não apenas a pirataria, mas o desenvolvimento de

tecnologia que pudesse favorecer a pirataria.78 O substitutivo não apenas cria uma miríade de

novos tipos penais relativos a condutas praticadas por meio da internet, como cria um cadastro

de usuários e obriga que sejam armazenados dados de usuários.79

O substitutivo do Senador Azeredo foi apresentado pela primeira vez perante a

Comissão de Educação do Senado. É interessante notar que a polarização política que o

parlamento testemunhou em torno deste tema, pouco tempo depois, claramente ainda não

estava presente no Congresso. O projeto foi aprovado na Comissão em 20 de junho de 2006,

contando com votos de senadores do PFL, PT, PSDB e PMDB.

Quando o projeto chega à Comissão de Constituição e Justiça do Senado, em

novembro de 2006, já havia acontecido alguma articulação pública contra o projeto. Matéria

da Folha de São Paulo de 6 de Novembro de 200680 já traz críticas pesadas ao projeto por

parte de organizações da sociedade civil e também da Associação que representa os

provedores de Internet: Abranet. “O texto é defendido pelos bancos e criticado por ONGs

(Organizações Não-Governamentais), por provedores de acesso à internet e por advogados”,

diz a matéria.

Como resposta a esse processo, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da

Câmara, presidida por Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), realiza na mesma semana um

seminário convidando vários setores envolvidos, inclusive o próprio Senador Azeredo, para

77 O’MALEY, Daniel P. Networking Democracy : Brazilian Internet Freedom Activism and the Influence of

Participatory Democracy. Tese (doutorado) na Universidade de Vanderbilt, 2015, pp. 44-45. Disponível em:

<https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2757853>.

78 Ibid. p. 49.

79 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/63967

80 LOBATO, E. Projeto quer controlar acesso à internet. Folha de São Paulo, 06/11/2006 . Disponível em

http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u20908.shtml Acesso em 26/06/2017

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debater o projeto. Na audiência fica claro que o clima de consenso aparente se dissolvera e

novos atores polarizavam contra o interesse dos bancos e da polícia federal. 81

Paulo Rená Santarém descreve a audiência:

Na oportunidade, o Senador insistiu na defesa de seu substitutivo. Afirmou

que o cadastramento de usuários seria necessário, porque benéfico para a

segurança dos próprios usuários, e que seria natural que houvesse cada vez

mais restrições ao uso da Internet, assim como havia restrições ao acesso

bancário. Sustentou ainda que o projeto estaria em sintonia com as propostas

legislativas em debate em todo o mundo, em especial com a Convenção de

Budapeste. Mas as manifestações dos expositores foram convergentes em

relação aos problemas nas exigências previstas, bem como em aspectos

redacionais do projeto. Foram criticadas a contraposição da exigência de

identificação à liberdade característica da Internet e os custos de certificação

digital como fonte de exclusão digital, a exposição da privacidade e o

cerceamento do direito à informação. Além disso, a expressão ‘acesso

indevido’ poderia abarcar uma infinidade de condutas, de forma que a

definição pelo poder jurisdicional poderia violar direitos fundamentais.82

O projeto, a partir da exposição clara da falta de consenso, é adiado. Um novo

substitutivo é apresentado pelo Senador Azeredo apenas no final de abril de 2007 e incluído

na pauta de 24 de maio.

2.4 A mobilização contrária ao projeto

O mês de maio de 2007 é fundamental para compreender a mobilização contra o

substitutivo de Azeredo, pois é em maio de 2007 que a expressão Marco Civil da Internet

surge pela primeira vez.

Em 22 de maio de 2007, Ronaldo Lemos, à época professor e diretor do recém criado

Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio, escreveu um artigo intitulado

“Internet Brasileira precisa de um marco regulatório civil”83. O artigo terminava da seguinte

forma:

81 SANTARÉM, Paulo R. S.. O Direito Achado na Rede: A Emergência do Acesso à Internet como Direito

Fundamental no Brasil. dissertação (mestrado), 2010. Disponível em:

<http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/8828/1/2010_PauloRen%C3%A1daSilvaSantar%C3%A9m.pdf>.

82 SANTARÉM, Paulo R. S.. O Direito Achado na Rede: A Emergência do Acesso à Internet como Direito

Fundamental no Brasil. dissertação (mestrado), 2010. p. 46 Disponível em:

<http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/8828/1/2010_PauloRen%C3%A1daSilvaSantar%C3%A9m.pdf>. 83 LEMOS, R. Internet brasileira precisa de um marco regulatório civil. UOL. 22/05/2007. Disponível em

https://tecnologia.uol.com.br/ultnot/2007/05/22/ult4213u98.jhtm Acesso em 25/06/2007.

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54

Dessa forma, o projeto em questão afeta a vida da maioria dos brasileiros,

sejam aqueles que possuem telefones celulares, sejam aqueles que acessam a

Internet por computadores, ou aqueles que serão futuros espectadores da

televisão digital. Por essa razão, é inconcebível que um projeto como esse

não seja debatido de forma mais ampla com a sociedade civil e com os

representantes dos interesses diretamente afetados. O rol destes é grande e

inclui: provedores de acesso, empresas de tecnologia de modo geral,

consumidores, universidades, organizações não-governamentais, empresas

de telecomunicação, apenas para elencar alguns.

E uma vez mais, todo o esforço de debate público em torno de um tal projeto

de lei, que tem por objetivo regulamentar a Internet do ponto de vista

criminal, deveria se voltar à regulamentação civil da rede, definindo

claramente o seu marco regulatório e privilegiando a inovação, tal qual foi

nos países desenvolvidos. Privilegiar a regulamentação criminal da Internet

antes de sua regulamentação civil tem como consequência o aumento de

custos públicos e privados, o desincentivo à inovação e sobretudo, a

ineficácia. Nesse sentido, é preciso primeiro que se aprenda com a

regulamentação civil, para a partir de então propor medidas criminais que

possam alcançar sua efetividade, sem onerar a sociedade como um todo,

como faz o atual projeto de lei do senador Eduardo Azeredo.

Ou seja, Lemos não apenas apontava claramente a oposição ao substitutivo de forma

bastante fundamentada, mas também criava um caminho novo para a resistência ao projeto

seguir: é necessário um marco civil antes do marco penal proposto por Azeredo.

A resistência começava a tomar corpo e alguns senadores, mobilizados por essa

resistência, conseguiram que fossem apresentados requerimentos para que o projeto fosse

apreciado também por outras comissões do Senado (Ciência e Tecnologia e Assuntos

Econômicos). Esse processo atrasou em um ano a tramitação do projeto, mas pouco alterou

seu conteúdo. Em junho de 2008, o projeto foi aprovado na Comissão de Assuntos

Econômicos, com parecer do Senador Aloizio Mercadante (PT-SP). O Senador apresentou

diversas modificações, mas manteve a direção geral do projeto, chegando a afirmar a

“necessidade de harmonizar nossa Lei de Crimes Cibernéticos com a Convenção sobre

Cibercrime da Europa”84. A posição do ex-líder - e ainda muito próximo ao governo no tema -

mostra como não havia uma posição do governo alinhada com a posição trazida pelo

movimento de internet livre.

84 https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4807974&disposition=inline

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De fato, no mesmo mês, o ministro da Justiça Tarso Genro foi palestrar em evento da

Federação dos Bancos do Brasil (Febraban) e fez alusão à necessidade do Brasil aderir à

Convenção de Budapeste e de criar uma legislação moderna de crimes cibernéticos.85

No dia 5 de julho, o ativista e blogueiro João Caribé, que desde 2006 mantinha um

blog com o nome de Xô Censura, com o intuito de denunciar esforços para restringir a

liberdade na internet, convocou outros blogueiros para fazerem uma Blogagem Política86, ou

seja, para fazerem posts contra o projeto Azeredo, prestes a ser aprovado. No dia seguinte,

Sergio Amadeu publica um “Manifesto em defesa da liberdade e do progresso do

conhecimento na Internet Brasileira” que encerra dizendo:

Projetos como esses prestam um desserviço à sociedade e à cultura

brasileiras, travam o desenvolvimento humano e colocam o país

definitivamente para debaixo do tapete da história da sociedade da

informação no século XXI. Por estas razões nós, abaixo assinados,

pesquisadores e professores universitários apelamos aos congressistas

brasileiros que rejeitem o projeto Substitutivo do Senador Eduardo Azeredo

ao projeto de Lei da Câmara 89/2003, e Projetos de Lei do Senado n.

137/2000, e n. 76/2000, pois atenta contra a liberdade, a criatividade, a

privacidade e a disseminação de conhecimento na Internet brasileira.87

O Manifesto se inicia como algo mais restrito, com assinaturas de intelectuais ligados

ao movimento de internet livre e consegue, em um primeiro momento, algumas centenas de

assinaturas de peso.

Nesse processo, Sergio Amadeu conheceu Caribé, que pede autorização para

transformar o manifesto feito para coletar assinaturas de intelectuais em uma petição on-

line.88 Em entrevista para esta tese, Amadeu afirma: “a gente queria pegar umas 100

assinaturas on-line. Aí eu conheci o Caribé que falou: ‘vocês ficam coletando por e-mail?

Vamos fazer um sistema de petition on-line.’ E aí no segundo dia já tinha umas 10.000

85 SANTARÉM, Paulo R. S.. O Direito Achado na Rede: A Emergência do Acesso à Internet como Direito

Fundamental no Brasil. dissertação (mestrado), 2010, p. 92. Disponível em:

<http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/8828/1/2010_PauloRen%C3%A1daSilvaSantar%C3%A9m.pdf>.

86 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014. p. 24. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/em_

nome_da_internet>.

87 MANIFESTO em defesa da liberdade e do progresso do conhecimento na internet brasileira. Blog do Sergio

Amadeu. 06/07/2008. Disponível em http://samadeu.blogspot.de/2008/07/manifesto-em-defesa-da-liberdade-e-

do.html. Acesso em 27/06/2017. 88 Ibid. p. 25 e O’MALEY, Daniel P. Networking Democracy : Brazilian Internet Freedom Activism and the

Influence of Participatory Democracy. Tese (doutorado) na Universidade de Vanderbilt, 2015, p. 63.

Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2757853>.

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assinaturas.”. No entanto, segundo Amadeu, a propagação em massa só acontece quando a

petição chega a comunidades de fan fix (comunidades que recontam histórias de filmes ou

séries) e de fan subber (comunidades que fazem legendas para filmes e séries). “Aí, em menos

de 30 dias foi pra mais de 100 mil pessoas”.

Esse relato é interessante porque ele mostra que o grosso da mobilização não veio de

um grupo de intelectuais ou ativistas, mas de um grupo de pessoas que se sentiu atingido pela

possíveis implicações da lei. Usuários de internet que realmente tinham medo de ser

criminalizados. Essa é uma dinâmica importante, porque, em 2008, grades sites de petição on-

line como Avaaz ou Change.org não existiam no Brasil (e mesmo nos EUA ainda eram

incipientes, estamos falando justamente do momento em que os EUA começam a

compreender o papel das mobilizações de internet para a política com a campanha de Barack

Obama para a Presidência). As ferramentas de petição on-line à disposição dos brasileiros na

época, não contavam com as sofisticadas técnicas de viralização por trás de petições que

chegam a milhões de assinaturas. O processo de coleta de assinatura aqui trazia algo de

realmente novo para o debate.

Esses acontecimentos não conseguiu evitar a aprovação do texto no plenário do

Senado, pois a votação ocorreu antes da viralização maciça. Entretanto, em meados de julho,

quando o projeto chega à Câmara, já há um tipo de resistência que altera profundamente sua

recepção pelos deputados. E, logo que o projeto volta à Câmara, os deputados Jorge Bittar

(PT-RJ) e Paulo Teixeira (PT-SP) pedem que seja realizada uma audiência pública sobre o

tema.89 Mais do que resistência, há a consolidação de um movimento pela liberdade da

internet que, como já dito, é herdeiro de uma tradição militante importante do movimento de

software livre no Brasil.

A audiência ocorre em 13 de novembro. Paulo Rená Santarem descreve que

89 SANTARÉM, Paulo R. S.. O Direito Achado na Rede: A Emergência do Acesso à Internet como Direito

Fundamental no Brasil. dissertação (mestrado), 2010, p. 48. Disponível em:

<http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/8828/1/2010_PauloRen%C3%A1daSilvaSantar%C3%A9m.pdf>. e

PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, pp. 26-27. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/em_

nome_da_internet>.

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Esta audiê ncia, no entanto, anotaria no â mbito do Congresso Nacional o

inıcio da efetiva transic ao no histó rico do projeto de lei de cibercrimes. Isso porque nesse dia o evento era objeto da atenc ao nao apenas da imprensa e de

especialistas interessados, mas de diversos internautas, mobilizados pela pró pria Internet em torno das objec oes à proposta. Foram organizadas manifestac oes coletivas, tanto presenciais quanto na rede, para marcar essa

atenc ao .90

Carolina Frassão e Livia Enomoto debateram justamente esse momento quando a

discussão sobre a criação de tipos penais na internet passa a incorporar questões de direitos.

Em 2008, nova audiência pública no âmbito do Poder Legislativo marca o

início da ruptura com a imagem de criminalização da internet nas arenas de

participação pública e nota-se o fortalecimento da imagem do acesso à rede

como um direito fundamental. Novos interesses são contemplados nesta

audiência, representados por grupos de interesse da sociedade civil ou

mesmo do governo, com a mudança de postura do Ministério da Justiça, que

focou seu discurso na necessidade de preservação da liberdade de expressão

na rede.91

Em janeiro de 2009, durante a Campus Party Brasil92, um importante evento sobre a

internet que ocorre anualmente no país, a discussão em torno do já conhecido PL Azeredo

estava absolutamente presente. É neste momento que, em uma entrevista, Sergio Amadeu

batiza o projeto de Azeredo de AI-5 digital.93

A alcunha, ao se remeter ao Ato Institucional 5, peça jurídica que marca a completa

ruptura do então regime brasileiro com a garantia de direitos individuais, poderia ser vista

como exagerada, mas conseguiu transformar a discussão sobre o projeto (que se inicia falando

de fraudes bancárias e pirataria) em uma discussão sobre direitos.

Este é um bom exemplo do tipo de radicalização do debate que foi fundamental para

dar força à mobilização do movimento de internet livre que, provavelmente, não seria

90 Ibid. p. 50 91 FRASSÃO, Caroline S.; ENOMOTO, Livia Y. Q.. A Atuação de grupos de interesse como parte do processo

democrático: o caso do projeto de lei de crimes cibernéticos. Revista Agenda Política vol. 4 nO 1, jan-abril

2016, p 168

92 Campus Party Brasil, segundo a Wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Campus_Party_Brasil ), é o principal

acontecimento tecnológico realizado anualmente no Brasil. Nele são tratados os mais diversos temas

relacionados à Internet, reunindo um grande número de comunidades e usuários da rede mundial de

computadores envolvidos com tecnologia e cultura digital.

93 SANTARÉM, Paulo R. S.. O Direito Achado na Rede: A Emergência do Acesso à Internet como Direito

Fundamental no Brasil. dissertação (mestrado), 2010, p. 86. Disponível em:

<http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/8828/1/2010_PauloRen%C3%A1daSilvaSantar%C3%A9m.pdf>.

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considerado adequado em uma visão mais estreita do processo deliberativo, mas que teve uma

grande importância no processo deliberativo aqui descrito.

Em maio de 2009, Sergio Amadeu convoca, em seu blog, a resistência ao PL para um

Ato Público contra o AI-5 digital – contra o projeto do Senador Azeredo, em defesa da

privacidade e liberdade na Internet a ser realizado na semana seguinte. E este chamado é

também o primeiro post do blog recém criado por Caribé, MegaNão.

Para Santarém, “O Mega Não tornou-se então um movimento social, organizado pela

Internet e que adotou como objetivo a oposição ao que define como vigilantismo”94.

Francisco Brito Cruz questiona a ideia de que o MegaNão seria um “movimento social”, mas

para ele “O Mega Não foi o vetor escolhido justamente por movimentos mais tradicionais”.95

No dia 6 de maio, esse novo movimento articula uma carta ao ministro da Justiça

Tarso Genro. Na carta, os signatários afirmam que o substitutivo do Senador Azeredo

(...) representará na prática um AI-5 digital. A Lei Azeredo irá criminalizar

em massa práticas comuns na Internet; irá tornar mais caros nossos projetos

de Inclusão Digital; proibirá Redes Abertas; piorará a legislação referente à

propriedade intelectual; legalizará o vigilantismo; inviabilizará sites de

conteúdo colaborativo; atacará frontalmente a privacidade individual e

oferecerá mecanismos digitais para que ressurjam perseguições políticas

como houve no tempo da ditadura.96

2.5 A mobilização atinge o governo

Tarso Genro responde com outra carta, que marca a consolidação da inflexão na

posição do Ministério da Justiça. Em 2008, o mesmo Genro vai à Febraban e defende a

adequação da legislação brasileira à Convenção de Budapeste, mostrando que ele estava

diretamente influenciado pela Polícia Federal. Mas, a partir da pressão recebida, o ministro

via a necessidade de acenar positivamente ao movimento de resistência à Lei que havia

surgido e ganhado força no último ano.

Ao comentar o projeto aprovado no Senado, o então ministro afirma:

94 Ibid. p 85

95 CRUZ, Francisco C. B.. Direito, Democracia e Cultura Digital: A experiência de elaboração legislativa do

Marco Civil da Internet. Dissertação (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2016

p. 50. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-08042016-154010/en.php>.

96 A íntegra da carta está disponível em: http://fndc.org.br/clipping/projeto-de-lei-sobre-cybercrimes-em-debate-

374698/

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Felizmente, vieram em tempo as críticas da sociedade da sociedade civil à

regulamentação penal da Internet e aos problemas trazidos pelos tipos penais

e pelos mecanismos de controle do projeto de lei. (...) Pela carta que recebi,

estamos claramente do mesmo lado na discussão sobre a Internet no

Brasil.(...) A aprovação do projeto de lei no Senado demonstrou o perigo de

uma legislação com esses problemas ser aprovada caso não haja reação forte

e decidida dos setores democráticos da sociedade.97

O cenário dentro no Ministério havia mudado. A movimentação da sociedade civil

tinha conseguido trazer o Ministério da Justiça para a resistência ao projeto Azeredo. Mas não

havia ainda uma posição de governo consolidada. Aliás, o tema não tinha uma “casa” certa no

governo. Setores da presidência, comandados pelo Assessor Especial da Presidência Cesar

Alvarez, que mantinham uma relação com a comunidade de Software Livre, simpatizam com

o movimento. O Ministério da Cultura, à época comandado por Juca Ferreira também

(mantendo a linha de apoio à cultura digital trazida ao Ministério da Cultura pelo Ministro

anterior, Gilberto Gil). Porém, com exceção do tema de direitos autorais, era difícil dizer que

esse era um assunto a ser coordenado pela Cultura. O Ministério da Justiça havia, até o

momento, sido a principal voz pública do tema pelo fato do projeto tratar de direito penal. Ou

seja, não cabia a esse Ministério se posicionar sobre a regulação da internet.

Sobre a internet, o principal ator deveria ser o Ministério das Comunicações e sua

agência reguladora, a ANATEL. Mas esse Ministério não vinha participando dos debates e o

movimento social mobilizado tinha receio de que o tema fosse conduzido, justamente, por

aquele Ministério, pois seu Ministro à época era o senador peemedebista Helio Costa, sem

qualquer proximidade com organizações da sociedade civil.

2.6 O Presidente se pronuncia

Faltava um pronunciamento que direcionasse o caminho que o governo iria tomar. E

esse pronunciamento veio, de maneira um tanto surpreendente, do então Presidente Luiz

Inácio Lula da Silva.

97 SANTARÉM, Paulo R. S.. O Direito Achado na Rede: A Emergência do Acesso à Internet como Direito

Fundamental no Brasil. dissertação (mestrado), 2010, p. 88. Disponível em:

<http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/8828/1/2010_PauloRen%C3%A1daSilvaSantar%C3%A9m.pdf>.

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Anna Carolina Papp descreve com detalhes o momento no qual Lula anuncia a posição

do governo sobre o tema. Em 26 de junho de 2009, Lula foi o primeiro presidente a participar

do concorrido Forum Internacional do Software Livre (FISL), que ocorria em Porto Alegre.

No fórum havia cerca de 6 mil pessoas e era grande a mobilização contra o PL

Azeredo.

O Lula chegou ao Fisl muito surpreendido ao ver 5, 6 mil pessoas jovens

empunhando o lema daquele Forum, que era “a liberdade da internet” diz

Branco98

‘Aí ele me chamou em particular, na sala preparada para ele se

recompor dos apertos da multidão e se preparar para seu discurso aos

ativistas e membros da comunidade de software livre ali reunidos’ Naquela

pequena sala (...) Marcelo Branco rapidamente expôs ao presidente o que era

a Lei Azeredo, por que era perigosa e como feria direitos dos usuários da

internet. Falou, ainda, sobre a necessidade de uma lei civil de princípios para

a rede, no lugar de uma legislação que se propunha a ser exclusivamente

criminal.99

A partir dos jovens ativistas e da conversa com Marcelo Branco, Lula fez o discurso

que consolidaria a posição do governo sobre o tema e abriria definitivamente o caminho para

a elaboração do Marco Civil da Internet. No final de um discurso de improviso, no qual

abordou os mais diversos temas, Lula avista uma faixa que pede o veto ao projeto Azeredo e

ele diz: “Depois eu vou falar da lei do Azeredo, que eu vi o pessoal com uma faixa pedindo

para eu vetar a lei antes da lei ser aprovada. Primeiro, temos que batalhar bastante.”.

E como prometido ele volta ao assunto da Lei Azeredo:

Nesse governo é proibido proibir. No nosso governo o que nós queremos é

discutir, sem rancor, sem mágoa, sem querer abater o concorrente. É debater,

é querer fortalecer a democracia e levá-la às suas últimas consequências (...)

Essa Lei não visa corrigir abusos de internet. Ela, na verdade, quer fazer

censura. O que nós precisamos, companheiro Tarso Genro, quem sabe seja

mudar o Código Civil, quem sabe seja mudar qualquer coisa. O que nós

precisamos é responsabilizar as pessoas que trabalham com a questão digital,

com a internet, mas não proibir ou condenar. Esse projeto é o interesse

policialesco de fazer uma lei que permite que as pessoas adentrem a casa das

pessoas para saber o que as pessoas estão fazendo, até sequestrando

computadores. Não é possível, não é possível!100

98 Marcelo Branco, ativista gaucho da internet livre. Uma das principais figuras de resistência ao PL Azeredo.

99 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p. 32. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/

docs/em_nome_da_internet>.

100 O discurso integral do Presidente Lula no Forum Internacional de Software Livre pode ser visto em:

https://www.youtube.com/watch?v=QBE1Ux-saqA Acesso em 27/06/2017

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Para Juliana Nolasco, “Com a fala de Lula na abertura do fórum, concretizou-se a

atenção do presidente para o tema da regulação da internet e a conexão feita entre a Lei

Azeredo e a censura”.101

Lula não apenas definia claramente a posição do governo contra o projeto Azeredo e

anunciava que o tema deveria ser tratado numa perspectiva civil, como pediu ao ministro da

Justiça, Tarso Genro, que coordenasse o processo de elaboração desta nova lei.

O’Maley nota a importância dessa decisão nada óbvia de definir que o Ministério da

Justiça seria o responsável pelo tema:

Lula tasked his Minister of justice Tarso Genro (PT), the former mayor of

Porto Alegre who was also in attendance, to work on changing the civil

code. Tasking Genro to deal with this issue, as opposed to his Minister of

Communications who had close corporate ties, was important because it now

became clear which Ministry had jurisdiction over this topic.102

Se o Ministério da Justiça recebesse esta incumbência um ano antes, momento em que

o Ministro Tarso Genro fez o discurso na Febraban se alinhando à Convenção de Budapeste, é

bem possível que o projeto enviado pelo governo fosse inspirado pelas necessidades da

polícia federal e do setor bancário. As mobilizações da sociedade civil trouxeram outras vozes

para o debate e criaram uma tensão que chegava próxima a um impasse na Câmara dos

Deputados.

Frassão e Enomoto descrevem como, no debate sobre crimes cibernéticos, a entrada de

novos grupos de interesse trouxe um foco diferente para o debate que estava posto. O projeto

inicia sua vida legislativa a partir da agenda construída pelo setor bancário, pelo setor de

segurança e pela indústria do direito autoral e, sobretudo em 2008, passa a incorporar as

pautas trazidas por grupos da sociedade civil, por setores distintos do governo e pelos

provedores de internet:

101 NOLASCO, Juliana. Acessando a Rede: um olhar para a formação da rede para a regulamentação da

Internet no Brasil. dissertação (mestrado) na EAESP-FGV, 2014, p. 64. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/11572/disserta%C3%A7%C3%A3o_final.pdf?

sequence=9>.

102 O’MALEY, Daniel P. Networking Democracy : Brazilian Internet Freedom Activism and the Influence of

Participatory Democracy. Tese (doutorado) na Universidade de Vanderbilt, 2015, p.59. Disponível em:

<https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2757853>.

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O ano de 2008 é o momento da ruptura, onde a policy image adotada passa a

ser majoritariamente de direitos fundamentais na internet e não mais de

crimes cibernéticos. Esta virada é possível pela nova combinação de

posicionamentos dentro do governo e pela ampliação da participação dos

grupos de interesse organizados pela internet.103

Assim, o Ministério da Justiça recebe a incumbência de elaborar o texto de uma nova

lei que regule a internet dentro de uma perspectiva de direitos, uma perspectiva civil e não

penal. Essa incumbência chega a um contexto que, se era mais favorável à sociedade civil -

em função da recente tomada de posição do governo contra o PL Azeredo -, encontrava um

cenário com uma ampla diversidade de atores e um alto nível de polarização entre eles. Setor

bancário, setor de segurança, indústria de direitos autorais, sociedade civil e provedores de

internet, todos esses participaram do debate na Câmara e agora se voltariam para o Ministério

da Justiça, tentando influenciar o projeto de lei a ser elaborado pelo governo.

É nesse contexto que foi pensada a consulta pública realizada pelo Ministério da

Justiça descrita no próximo capítulo.

2.7 Conclusão

Para compreender esse contexto, foi necessário descrever o processo que culminou na

demanda pública pelo Marco Civil. O movimento surge como uma reação à tentativa de trazer

ao Brasil o tipo de legislação criminalizadora que existia já em vários países e possuía, como

modelo central, a Convenção de Budapeste sobre Crimes Cibernéticos.

Esta reação se faz a partir de uma mobilização social que envolve não apenas figuras

expressivas da sociedade civil, mas também uma das primeiras mobilizações de massa da

internet, chegando a públicos não acostumados a participar de mobilizações políticas. Esse

movimento não foi capaz de barrar o projeto no Senado, mas conseguiu se fazer ouvir durante

o debate na Câmara, até o momento em que chega ao Presidente da República e este toma

uma posição de governo.

A consulta pública vai se dar, portanto, não a partir de uma política já pré-definida

pelo governo e, posteriormente, submetida ao escrutínio do debate público. A consulta se dá

103 Frassão e Enomoto op cit. P 20

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em um contexto no qual a mobilização pública conquistou espaço para a formulação que não

existia anteriormente. Não fazia parte da agenda de governo pensar um marco regulatório da

internet, o governo iniciará estes debates em função da pressão externa feita pela mobilização.

A análise feita por Juliana Nolasco, a partir das referências teóricas de John Kingdon,

mostra a importância do movimento em torno do Mega Não tanto para a inserção do tema na

agenda governamental, quanto para a criação de uma alternativa de política (o próprio Marco

Civil).104

A consulta se inicia em um contexto extremamente polarizado. O processo legislativo

não aproximou os grupos de interesse de um acordo. Ao contrário, as técnicas da mobilização

da sociedade civil envolveram a radicalização do processo. A alcunha de AI-5 da Internet

dada ao substitutivo do Senador Azeredo é exemplo disso.

Esses três elementos (inexistência de agenda prévia, grande mobilização pública e

grupos de interesses polarizados) são essenciais para compreender a maneira como a consulta

pública irá funcionar.

Para a compreensão da importância da mobilização descrita neste capítulo na análise

feita a partir da perspectiva dos sistemas deliberativos é necessário compreender qual a

influência deste processo nas próximas etapas deste sistema que culmina com a aprovação da

lei. E, dentro do que foi discutido no capítulo anterior, é importante compreender qual o

acoplamento que permitiu que esta discussão, estes argumentos e pontos de vista, pudessem

ser incorporados ao sistema de deliberação.

O próximo capítulo tratará da consulta pública on-line que é resultado direto do

processo descrito neste capítulo. Ali, buscaremos compreender a construção do acoplamento

entres esses espaços e quais os indutores de conectividade que tornaram este acoplamento

possível e eficiente.

104 NOLASCO, Juliana. Acessando a Rede: um olhar para a formação da rede para a regulamentação da

Internet no Brasil. dissertação (mestrado) na EAESP-FGV, 2014. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/11572/disserta%C3%A7%C3%A3o_final.pdf?

sequence=9>.

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3. A CONSULTA COLABORATIVA ON-LINE

Este capítulo analisa o processo de elaboração, dentro do Executivo, do projeto de lei

do Marco Civil da Internet, enviado ao Congresso pela Presidenta Dilma Rousseff em agosto

de 2011. Esse processo se inicia com uma consulta pública aberta on-line realizada pela

Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça entre outubro de 2009 e maio de

2010.

Este trabalho, como já anunciado, tem por objetivo mostrar como o acordo, formado

no ambiente discursivo gerado por essa consulta, foi um elemento fundamental para a

consolidação de uma aliança improvável que derrotou as empresas de telecomunicação, que

contavam com o apoio do deputado Eduardo Cunha, no debate legislativo.

Dentro da ideia de olhar para o processo que gerou a aprovação do Marco Civil no

Congresso como um sistema deliberativo, este capítulo mostra a passagem do debate

polarizado, descrito no capítulo anterior, para um espaço no qual havia incentivos para se

construir um acordo baseado na força do melhor argumento.

Se, no capítulo 4, será testada a hipótese da influência do processo de consulta no

processo legislativo, aqui, faremos uma descrição dessa consulta. O que houve de especial

nesse espaço de discussão on-line que acabou impactando de maneira crucial o processo

legislativo? Como foi possível sair de um momento de alta polarização sobre o tema – como é

o caso do debate do PL Azeredo até o momento em que o Presidente Lula vai ao Forum

Internacional de Software Livre (FISL) - para a formação de um acordo dos participantes em

torno de alguns pontos centrais?

Também será debatido como a burocracia do Ministério da Justiça, particularmente a

Secretaria de Assuntos Legislativos, serviu como um indutor de conectividade para a

construção de um acoplamento adequado entre o debate em torno do projeto Azeredo e a

construção do Marco Civil.105

105 Vale ressaltar, como já debatido na introdução, que eu participei ativamente do processo de elaboração do

Marco Civil, pois ocupei a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL) entre 2007 e

2010. Esse período inclui uma parte da tramitação do PL Azeredo, no qual a Secretaria teve um papel que, se

não foi central, também não foi desprezível. Mas não há dúvidas de que, no processo descrito neste capítulo, a

SAL teve um papel bem mais relevante. Reconheço que há um viés natural de enxergar como positivo um

processo do qual fui parte. Também acredito que algum tipo de viés sempre existe em uma pesquisa deste

tipo. De qualquer forma, para mitigar este viés, optei por evitar recorrer à minha memória para descrever os

fatos da época. Principalmente os fatos descritos neste capítulo. Escrevo este trabalho oito anos depois do

momento em que o Presidente Lula pediu ao Ministro Tarso Genro (e este delegou a tarefa à SAL) que

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65

Este capítulo se inicia (item 3.1) explicando o caminho percorrido do momento em

que o Presidente Lula anuncia, no Fórum Internacional de Software Livre (FISL), o

compromisso com o Marco Civil até a ideia da consulta pública, em seguida (3.2), discute-se

a construção da consulta. No item 3.3, coloca-se em questão quais os elementos que

possibilitaram o debate argumentativo. Já no item 3.4,o debate ocorrido no âmbito da consulta

é analisado, mirando nos temas mais discutidos e nas reações dos participantes. No item 3.5,

analisa-se o resultado do debate que consistiu em um acordo em torno de três pontos, formado

a partir da força do melhor argumento e, por fim, a conclusão.

3.1 Do Forum Internacional de Software Livre (FISL) à consulta pública

Como visto no capítulo anterior, após o FISL, em junho de 2009, o Presidente da

República determinou que caberia ao Ministério da Justiça propor um Marco Civil da Internet

em resposta às tentativas de criminalização presentes no Congresso e, particularmente, ao

chamado PL Azeredo.

A decisão do Presidente provocou imediato impacto na tramitação do PL Azeredo no

Congresso. Anna Carolina Papp106 descreve uma longa reunião ocorrida no dia 1º de julho de

2009, cinco dias, portanto, após o FISL, que selou o destino do Projeto Azeredo. Matéria

jornalística da época corrobora essa ideia:

Assim, depois de uma longa tramitação nas duas Casas legislativas, o

polêmico projeto, especialmente a partir do substitutivo apresentado pelo

senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) - deve ser descartado. Afinal um dos

acertos é a elaboração de um novo projeto, previsto para ser apresentado em

agosto, depois do recesso parlamentar. Resta, somente, encontrar, agora,

uma solução para um embaraço político: convencer Azeredo a desistir do

projeto, que definha na Câmara.107

elaborasse um Marco Civil da Internet. Oito anos seria tempo suficiente para que minha memória procurasse

preencher lacunas com descrições que favorecessem o ponto que quero defender na tese. É, por reconhecer

isto, que procuro descrever este processo a partir de trabalhos já escritos sobre o período (tenho a sorte de que

são vários), matérias de jornal e, até mesmo, textos meus escritos em outro contexto e sem a pretensão de

buscar validação para uma hipótese, como é o caso desta tese. Talvez, por isso, serão muitos os trechos de

citação de outros trabalhos ao longo do capítulo.

106 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p. 36. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/

docs/em_nome_da_internet>.

107 CRIMES cibernéticos: projeto Eduardo Azeredo será ‘enterrado’ na Câmara. Software Livre. 02/07/2009.

Disponível em http://softwarelivre.org/portal/noticias/crimes-ciberneticos-projeto-eduardo-azeredo-sera-

enterrado-na-camara Acesso em 27/06/2017.

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66

Uma vez definido que o Ministério da Justiça seria o responsável pela formulação do

projeto, caberia à Secretaria de Assuntos Legislativos daquele ministério redigir a proposta.

Dentro da perspectiva dos sistemas deliberativos, deve-se notar a importância dos

indutores de conectividade entre o processo descrito no capítulo anterior e a consulta. Como

vimos no capítulo inicial, um sistema deliberativo pode ser entendido como tal quando

existem mecanismos de acoplamento entre os distintos espaços deliberativos que compõem

este sistema. E, para a criação de acoplamentos eficientes, é necessário que haja indutores de

conectividade entre estes espaços. Mendonça, como já vimos no primeiro capítulo, aponta

quatro possíveis indutores de conectividade: a burocracia, a mídia, a circulação de

participantes e de seus representantes; e o desenho e normas das instituições

participatórias.108

Neste caso, pelo menos três destes elementos estiveram presentes como indutores de

conectividade para gerar um acoplamento eficiente: a burocracia (no papel da Secretaria de

Assuntos Legislativos); a circulação de participantes (os atores presentes no debate do Projeto

Azeredo foram ativamente chamados para participar da consulta); e o desenho e normas da

consulta (que favoreceram que os temas e debates do processo anterior fossem retomados na

consulta).

Guilherme de Almeida, em artigo sobre o Marco Civil, define o papel da Secretaria e

as especificidades que ajudam a compreender os passos que geraram a consulta:

Merece destaque, por sua transversalidade, a Secretaria de Assuntos

Legislativos - SAL, responsável pelo acompanhamento do processo

legislativo e pelos processos de elaboração normativa no âmbito do

Ministério. Em articulação com outros órgãos do Ministério, como a

Consultoria Jurídica e a Assessoria Parlamentar, e em diálogo direto com as

demais secretarias finalísticas e entidades vinculadas (como a Fundação

Nacional do Índio – FUNAI ou o Conselho Administrativo de Defesa

Econômica – CADE), cabe à SAL elaborar a política legislativa do

Ministério, com o objetivo de propor textos normativos que contribuam para

a implementação das políticas públicas pretendidas. Esta atividade é

realizada tanto pela produção de projetos de lei, de decretos e de medidas

provisórias, quanto pelo acompanhamento diuturno das atividades do

Congresso Nacional. As ações são complementadas pela interlocução com

os demais órgãos do Poder Executivo (em particular com a Secretaria de

Relações Institucionais da Presidência da República, que coordena a relação

do governo com o Poder Legislativo), com a sociedade civil e com o Poder

Legislativo.

108 MENDONÇA, Ricardo F. The Conditions and Dilemmas of Deliberative Systems. Paper prepared for the

2013 APSA Annual Meeting. Chicago, August 29th – September 1st. Panel: Discursive, 2013, p. 10.

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67

A SAL tem a democratização do processo de elaboração normativa como

diretriz para sua atuação. Esta diretriz tem por base a ideia de que o processo

legislativo pode – e deve – ser melhorado pelo acompanhamento das

atividades parlamentares pela sociedade. Que a redução de assimetrias – de

informação, de participação, de acesso – contribui para a elaboração de leis

mais justas e de maior qualidade. E de que tanto a academia quanto os

cidadãos e a sociedade civil organizada têm muito a contribuir na

qualificação dos debates legislativos e de seus resultados – ou seja, das leis

que compõem nosso ordenamento jurídico.109

À época, a SAL era ocupada por um grupo de jovens advogados bastante

comprometidos com a pauta da democratização do processo legislativo e que, também,

vinham acompanhando de perto o processo do debate sobre a criminalização da Internet110,111.

Esse grupo toma uma decisão pouco usual. O projeto não seria elaborado no gabinete, como

os outros tantos que a Secretaria elaborava, mas a partir de um processo de consulta pública

aberta a comentários públicos.

Jessica Voigt explica a diferença entre o tipo de consulta que a SAL decidiu fazer e o

que já havia, de consultas públicas pela internet, até então:

Consultas realizadas pela Internet não eram necessariamente novidade em

2009. O que foi inovador na concepção do MCI foi a forma por meio da qual

essa consulta se realizou. Até então, o modelo de consultas públicas

conhecido, e que legalmente pode ser denominado dessa maneira, era o

modelo da Casa Civil, que pedia contribuições sobre determinado tema via

e-mail e não oferecia nenhum feedback nem para a discussão com a

sociedade civil ou setores interessados, nem em relação à utilização dessas

contribuições. Queria-se no caso do MCI (Marco Civil da Internet) realizar

um procedimento diferente, inovador e aberto, que contasse com ampla

participação de todos os setores envolvidos na regulação da internet.112

Almeida explica mais detalhadamente a diferença entre as consultas existentes até

então e o Marco Civil da Internet:

109 ALMEIDA, G. A. A. Marco Civil da Internet - Antecedentes, formulação colaborativa e

resultados alcançados. In: ARTESE, G. Marco Civil da Internet: análise jurídica sob uma

perspectiva empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2015, 110 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, pp. 44-47. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/

em_nome_da_internet>.

111 O’MALEY, Daniel P. Networking Democracy : Brazilian Internet Freedom Activism and the Influence of

Participatory Democracy. Tese (doutorado) na Universidade de Vanderbilt, 2015, p. 69. Disponível em:

<https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2757853>.

112 VOIGT, J. É para Valer? Experiências da democracia digital brasileira: um estudo de caso do Marco Civil da

Internet. Dissertação (mestrado em Ciência Política) – FFLCH-USP, São Paulo, 2015. P 86

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a regulamentação do processo de elaboração de projetos normativos pelo

Poder Executivo já apresentava um mecanismo de abertura à participação

social para a qualificação das propostas; além disso, a norma correspondente

já autorizava expressamente o recurso à internet como ferramenta para tal.

No entanto, o uso da internet para tal finalidade ocorria de forma bastante

estática para os padrões da internet do fim da primeira década do século

XXI. O texto do projeto de lei ou decreto apresentado para consulta era

publicado no Diário Oficial da União e em uma página estática no portal da

Presidência da República, sem qualquer espaço para comentários ou

divulgação de contribuições recebidas. O texto do preâmbulo da consulta

delimitava a data-limite para envio dos comentários, bem como as formas

disponíveis para a participação de interessados: o encaminhamento de

correspondência ao endereço físico da Casa Civil ou o envio de uma

mensagem a um endereço de correio eletrônico criado especificamente para

receber contribuições àquela consulta.113

Esse modelo praticamente “analógico” de realização de consultas produzia

ineficiências para todos os lados: na perspectiva do gerenciador da consulta,

aumentavam os trabalhos relativos à organização e sistematização das

contribuições recebidas (as quais poderiam ser automatizadas, com a

utilização de mecanismos tecnológicos mais avançados); na perspectiva do

participante da consulta, instituíam-se barreiras de acesso, pela limitação nos

meios disponíveis para sua participação; para a sociedade, o modelo

diminuía a intensidade dos debates públicos em relação à proposta – uma

vez que os argumentos apresentados pelos participantes não eram

necessariamente públicos ou publicados, a sociedade deixava de aprofundar

debates sobre pontos específicos da proposta, e o agente público deixava de

ter um efetivo confronto de ideias para melhor fundamentar sua decisão. A

ausência de publicação das contribuições recebidas (ou ao menos dos

fundamentos correspondentes utilizados para o aperfeiçoamento da minuta)

também podia ensejar questionamentos quanto à legitimidade do processo,

bem como quanto à sua transparência e accountability.114

Assim, é importante deixar claro que a inovação não estava na ideia de consulta pela

internet, mas na interatividade da consulta. Essa interatividade transcende a responsividade.

Ou seja, não apenas espera-se que as mensagens tenham algum tipo de resposta (o que já era

um avanço com relação ao modelo anterior), como - e essa é a grande inovação - as

mensagens deixam de ser endereçadas ao Estado, pois a comunicação, na consulta, seria entre

113 Vide, a título exemplificativo, a última consulta oficial realizada antes dos debates do Marco Civil:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consulta_publica/programa_fomento.htm. Interessante notar que a

primeira consulta realizada após o processo de debates do Marco Civil – a consulta relativa à reforma da Lei

de Direitos Autorais – passou a contar também com um website específico para recepção de comentários

(vide http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consulta_publica/DireitosAutorais.htm).

114 ALMEIDA, G. A. A. Marco Civil da Internet - Antecedentes, formulação colaborativa e

resultados alcançados. In: ARTESE, G. Marco Civil da Internet: análise jurídica sob uma

perspectiva empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 11.

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os participantes. O público para quem o comentário é dirigido não é apenas o Estado, mas

todos os outros indivíduos e grupos que participam do processo.

Não era uma decisão simples. O tema da construção colaborativa pela internet vinha

ganhando força desde o início dos anos 2000, a cultura do software livre existia com mais

força desde o princípio dos anos 1990 e, desde o princípio dos anos 2000, assistia-se o

interessante fenômeno da emergência de uma enciclopédia construída de maneira pública,

aberta e coletiva: a Wikipédia115. Em 2009, também já havia algum debate teórico sobre as

possibilidades de uso desta colaboração para a participação política e o governo Obama

acabara de começar prometendo trazer inovações para a política por meio da internet116. Mas

nenhum outro experimento de construção colaborativa de um projeto de lei por parte de um

órgão governamental havia sido tentado.117 Era natural, portanto, que houvesse resistências.

Raphael de Souza Silveiras descreve essas dificuldades e questões iniciais:

No período próximo ao surgimento da consulta, o secretário de assuntos

legislativos do Ministério da Justiça era Pedro Abramovay. Na secretaria

defendia que as novas tecnologias permitiriam a realização de consultas

colaborativas, e com a incorporação de uma cultura “wiki” poder-se-ia

melhorar o Processo Legislativo(...): ‘o que não seria bom apenas do ponto

de vista democrático, como também da qualidade do processo. Isso poderia

trazer argumentos que não teriam aparecido no debate ainda. E eu queria

fazer isso já há algum tempo, tinha pedido para a área técnica de o

Ministério elaborar isso. Eles... isso nunca... eles não conseguiam entender,

eram contra, a área de tecnologia da informação... Porque, assim: ‘Uma

coisa que vai ficar aberta, as pessoas falando, isso pode ter vulnerabilidades

para o ministério’, que é um Ministério que lida com questoes de segurança

e tal... Então eu nunca consegui fazer, a área técnica sempre implicava... Sei

lá, eu acho que há mais de um ano e meio eu já tinha pedido e isso não

avançava’ (Abramovay, 2013: [entrevista])118

O jornal Sul 21 publicou um depoimento meu também sobre esse momento específico:

115 A wikipedia é lançada em 2001, mas é em 2007 que alcança a marca de maior enciclopédia já escrita.

ttps://en.wikipedia.org/wiki/Wikipedia

116 Em 2009, no início do governo Obama, é lançada a ferramenta “We the People”, pela qual o governo

americano se obrigava a responder, de forma pública, perguntas que recebessem a adesão de 100.000 pessoas.

117 O’MALEY, Daniel P. Networking Democracy : Brazilian Internet Freedom Activism and the Influence of

Participatory Democracy. Tese (doutorado) na Universidade de Vanderbilt, 2015, p. 61. Disponível em:

<https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2757853>.

118 SILVEIRAS, Raphael S. Consultas Públicas para o Marco Civil da Internete Reforma da Kei de Direito

Autoral: A relação entre direito, internet e estado na contemporaneidade. Dissertação (Mestrado) - Instituto

de Filosofia e Direitos Humanos, Unicamp, 2014.

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Era possível construir uma legislação moderna, que rompesse com a onda

criminalizante da internet que varria o mundo na época. Uma onda que só se

compreenderia minimamente com as revelações feitas por Edward Snowden.

A internet, criada justamente numa lógica de liberdade profunda das pessoas

perante os Estados, passa a ser um instrumento dos Estados para restringir a

liberdade e a privacidade dos cidadãos.

Agarramos a oportunidade com unhas e dentes. E resolvemos que o processo

de construção dessa lei seria inovador. Algo que, até então, nunca tinha sido

tentado no mundo.

Faríamos uma construção colaborativa do projeto de lei, pela internet.

Essa era uma ideia que eu vinha tentando emplacar fazia algum tempo. Eu

tinha pedido à área de TI do Ministério da Justiça que criasse uma

plataforma para que pudéssemos fazer um debate público dos projetos de lei

que elaborávamos. A ideia não era uma consulta pública, na qual as pessoas

mandam as sugestões para o governo.

O que eu queria era um verdadeiro debate público, no qual cada pessoa

pudesse ver o argumento do outro. Contestar e gerar um aprendizado

coletivo que produzisse uma lei melhor.

A burocracia do ministério disse que isso não era possível. Assim procurei a

Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV, na pessoa do professor Ronaldo

Lemos, e eles desenvolveram a parte técnica da plataforma. O Ministério da

Cultura nos abrigou na rede social culturadigital.br e conseguimos levar o

projeto adiante.119

Ou seja, havia uma disposição na Secretaria de dialogar com essas inovações

tecnológicas e, particularmente, com as possibilidades trazidas pelas reflexões sobre novos

usos da internet na construção colaborativa de conhecimento. Isso fica evidente na decisão de

se realizar o processo de discussão por meio de uma consulta pública e aberta.

Contudo, O’Maley traz à tona um ponto contrastante e interessante para compreender

o processo. Para ele, o processo de consulta do Marco Civil representou “one of the most high

profile experiments worldwide” de “open source government”. Isso se assentava na crença de

que

collective intelligence employed in this process improved the final product

and resulted in one that was less beholden to powerful corporate lobbies.

Because the process of Marco Civil da Internet was transparent and

markedly different than the traditional method of drafting bills ‘behind

closed doors’, activists proudly referred to this as the hacking of the

legislative process.120

119 ABRAMOVAY, Pedro V. O Marco Civil e A Política dos Netos. Sul 21, 7/05/2014. Disponível em:

<http://www.sul21.com.br/jornal/o-marco-civil-e-a-politica-dos-netos-por-pedro-abramovay>.

120 O’MALEY, Daniel P. Networking Democracy : Brazilian Internet Freedom Activism and the Influence of

Participatory Democracy. Tese (doutorado) na Universidade de Vanderbilt, 2015, p. 45-47. Disponível em:

<https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2757853>.

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71

Assim, O’Maley confirma a ideia de que um dos objetivos da decisão de se fazer um

processo de elaboração da legislação de maneira distinta, pela internet e de forma aberta, era

promover uma inovação democrática, que pudesse testar o que alguns teóricos sobre

democracia na internet começavam a dizer.

Francisco Cruz, em dissertação de mestrado que analisa o processo de consulta do

Marco Civil, afirma que a Secretaria, ao optar pela consulta pública, tinha uma dupla

finalidade: “de estratégia política de inversão de pauta e de construção de uma pré-elaboração

normativa de ordem responsiva”121. Para Cruz, é importante perceber que não se tratava

apenas de um esforço para construir uma maneira democrática de se fazer a elaboração

legislativa. Este elemento, como já visto, estava presente. Já era parte da agenda que a

Secretaria de Assuntos Legislativos vinha construindo. Mas há esse outro elemento. Era uma

estratégia política da secretaria a construção de uma forma aberta e pública de debate, que

pudesse abrir espaço para atores não tradicionais participarem do processo.

A estratégia política consistiu em abrigar e organizar, em um arranjo

institucional dentro do Executivo, os grupos que pressionavam contra o PL

de Cibercrimes, a fim de aproveitar essa energia política latente em setores

acadêmicos (notadamente o CTS-FGV), técnicos (CGI.br) e no movimento

‘Mega Não’. A inclusão desses setores significou a agregação de apoio e

legitimidade à substituição da pauta criminal por uma pauta civil e a

pavimentação da construção pactuada de consensos em torno dessa

legislação civil, com vistas à força política que aqueles atores poderiam

oferecer a um possível futuro projeto. Com os consensos construídos de

antemão, teria maiores chances a aprovação no Congresso, ainda que ali

houvesse resistências dos deputados comprometidos com o PL Azeredo.122

Ou seja, para Cruz, não se tratava de uma estratégia que sabia de antemão qual o tipo

de projeto de Marco Civil que se queria construir. Mas, é preciso lembrar, que o engajamento

da Secretaria com o tema se deu na tentativa de barrar ou, pelo menos, “desidratar” o PL de

crimes cibernéticos, assim, a construção de um consenso em torno de um projeto que

priorizasse os elementos civis frente aos elementos penais era algo que fortalecia a posição da

Secretaria. E o estabelecimento de um processo que pudesse gerar esse consenso e aumentar a

legitimidade dessa posição era útil para a SAL naquele momento.

121 CRUZ, Francisco C. B.. Direito, Democracia e Cultura Digital: A experiência de elaboração legislativa do

Marco Civil da Internet. Dissertação (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2016 p.

59. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-08042016-154010/en.php>. 122 Ibid. p. 59

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Esse ponto é importante de ser notado. Não se trata de uma acusação de um uso

maquiavélico do processo. É fundamental compreender que o Estado tem um poder inicial ao

estabelecer a consulta: o poder de agenda. Quando o Presidente afirma que é necessário

começar pelo Marco Civil e não pela criminalização e delega esse poder ao ministério, está se

delimitando a agenda de debate. Quando a SAL abre uma consulta focada no Marco Civil (e

não na regulação mais ampla da internet, que poderia envolver aspectos civis e penais), a SAL

está fazendo um uso estratégico do seu poder de agenda e o processo passa a ser útil para

fortalecer essa decisão123.

Além disso, a consulta tinha também um caráter estratégico, pois permitia à Secretaria

construir a interlocução com atores antagônicos sem romper com eles. O processo de debate

da Lei de Cibercrimes havia sido complexo em função da pressão natural interna que a

Secretaria recebia da Polícia Federal para aumentar sua capacidade de vigilância na rede e da

pressão externa que faziam os movimentos sociais ligados à internet livre. A abertura da

consulta permitia que a Secretaria se engajasse com esses distintos grupos de interesse. E,

mais do que isso, como afirma Cruz, é a possibilidade de construção de um acordo entre os

distintos grupos que torna o processo atrativo para a Secretaria.

Ou seja, a Secretaria de Assuntos Legislativos, que coordenava o processo, tem um

interesse direto que a construção pública de um projeto de lei por meio da internet se fizesse

através de um acordo que legitimasse o texto final. O resultado do texto final era menos

importante. A necessidade de construir o acordo entre grupos de pressão que possuíam

influência no Ministério e no governo era mais importante para quem conduzia a consulta do

que o conteúdo do texto final. Esse vínculo, que pode ser chamado de não desinteressado, da

secretaria com a necessidade de se ter um processo que gerasse um acordo, certamente

influenciou a maneira como o processo foi conduzido.

Este papel da SAL, aqui descrito, é justamente o que faz com que ela seja um indutor

de conectividade entre os dois sistemas deliberativos. Ou seja, entre o espaço de debate que

permitiu a polarização e a mobilização dos movimentos sociais e o espaço da consulta pública

desenhado para a formação do acordo. Havia uma intenção clara de fazer com que a consulta

fosse a continuação da conversa. Mas, desse momento em diante, como se verá, com mais

incentivos para a formação de um acordo formado a partir da força do melhor argumento.

123 Para uma análise do proceso de elaboração do Marco Civil a partir da teoria de John Kingdon sobre Poder de

agenda, vale a leitura das dissertação de mestrado de Juliana Nolasco Ferreira, Acessando a Rede... , já citada.

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3.2 A construção da consulta pública

Como já mencionado, a decisão de realizar a consulta não foi bem recebida pela área

de tecnologia de informação do Ministério da Justiça. Almeida explica:

O primeiro problema enfrentado foi a dificuldade de contratação de serviços

de desenvolvimento de software no âmbito da Administração Pública

Federal. O processo exigia uma quantidade de documentação e de

procedimentos incompatível com o tempo político desejado para o

desenvolvimento de uma consulta pública. Além disso, a própria estrutura

proposta para o site de debate, fundada em princípios da Web 2.0 (como a

possibilidade de interação e participação dos usuários) sofria resistências de

setores internos, sob a alegação de que a abertura para que qualquer cidadão

publicasse comentários sem moderação prévia, em um site gerenciado pelo

Ministério, poderia ensejar problemas relacionados à segurança da

informação e à responsabilização do Estado com relação a eventuais danos

causados a terceiros.124

Em entrevista a Francisco Cruz, Guilherme de Almeida, assessor da Secretaria à

época, afirma que a área de tecnologia da informação do Ministério da Justiça deu uma

previsão de dois anos e meio para desenvolver a ferramenta, o que era, evidentemente,

inaceitável diante da necessidade política de se produzir um texto. A decisão, então, foi criar

um blog em uma plataforma pública recentemente criada pelo Ministério da Cultura: o

Culturadigital.br.

Para O’Maley, essa parceria com o Ministério da Cultura foi importante, considerando

o contexto daquele Ministério, o qual, desde o princípio do primeiro governo Lula, com o

ministro Gilberto Gil, incorporou ativistas digitais:

124 ALMEIDA, G. A. A. Marco Civil da Internet - Antecedentes, formulação colaborativa e

resultados alcançados. In: ARTESE, G. Marco Civil da Internet: análise jurídica sob uma

perspectiva empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2015,

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An agreement was reached between the Ministry of Justice and the Ministry

of Culture to use the CulturaDigital.br plataform for the consultation. The

website already had hundreds of users who were interested in these topics

and the interactive technologies that interested the lawyers at SAL. A team

from the Ministry of Culture that included programmers Yasodara Cordova

and Lincoln Clarete, quickly created a section of the website dedicated to

debate about the Marco Civil. Thus, the fact that Internet freedom activists

had gained foothold in the Ministry of Culture was essential to the ability of

the government to technically undertake this collaborative process and to

frame it in a participatory way.125

A parceria com o Ministério da Cultura era fundamental, mas não era suficiente. O

ineditismo do processo fazia com que fosse necessário ampliar a capacidade da equipe que

iria pensar a arquitetura da consulta e construir conjuntamente as maneiras de responder. A

saída foi trazer o Centro Tecnologia e Sociedade-FGV como parceiro do processo. Para Anna

Carolina Papp:

Além de um posicionalmento claro e ativo na reação contrária ao projeto de

lei do Azeredo, do CTS havia partido o batismo e a primeira menção pública

ao Marco Civil da Internet. ‘A meta era fazer o debate mais aberto, legítimo

e participativo possível. Não existia um think tank tão ligado à questão de

tecnologia e sociedade como eles.’, diz Guilherme de Almeida. ‘Eles tinham

tanto a visão profissional da academia como a atividade política de fazer

disso uma causa. Por questões de legitimidade era essencial. Não era o MJ

tirando algo da cartola. As pessoas que de fato estudavam e debatiam o tema

estavam do nosso lado. Não tinha como não ser com a FGV.126

O CTS trazia não apenas maior capacidade e flexibilidade para construir a ferramenta,

mas, também, dois tipos de legitimidade. A legitimidade com o movimento social que brigou

pelo Marco Civil, afinal, havia sido Ronaldo Lemos, diretor do CTS, o propositor original da

ideia de se construir um Marco Civil. E, também, a legitimidade técnica de especialistas com

o reconhecimento público da FGV, considerando que a Secretaria tinha técnicos especialistas

nos temas relacionados ao Ministério da Justiça e, telecomunicações, não estava entre eles.

Esses dois elementos vão se mostrar essenciais para o processo. A credibilidade que o

Ministério construiu com os participantes do Ministério da Cultura foi vital para a

125O’MALEY, Daniel P. Networking Democracy : Brazilian Internet Freedom Activism and the Influence of

Participatory Democracy. Tese (doutorado) na Universidade de Vanderbilt, 2015, p. Disponível em:

<https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2757853>.

126 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, pp. 48. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/

em_nome_da_internet>.

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75

possibilidade de construção do acordo. E a legitimidade técnica foi fundamental para que se

consolidasse o caráter informacional da consulta que será mais debatido no capítulo 4.

O arranjo para lidar com a polarização anterior estava dado. O Ministério não

elaboraria um projeto a portas fechadas: uma consulta pública colaborativa seria feita, na qual

os grupos debateriam entre si qual o melhor modelo. E a Secretaria atuaria como órgão

mediador desse debate em um primeiro momento e, também, como o consolidador do texto

final. Mas, dada a polarização existente, este processo de consolidação só seria bem recebido

caso o processo diminuísse as divergências existentes anteriormente. Se o texto pendesse

demais para as reivindicações dos movimentos sociais, seria muito difícil aprovar o texto em

um Congresso tão sensível a interesses corporativos e, se o texto pendesse demais para

interesses das empresas de internet, do setor bancário ou das polícias, a Secretaria seria

acusada de não cumprir com a determinação do Presidente no FISL.

Entre julho e outubro, a Secretaria de Assuntos Legislativos fechou as parcerias com o

Ministério da Cultura para a hospedagem do Blog e com o CTS-FGV para fazer a consulta.

Igualmente, nesse período, estabeleceu-se o formato da consulta.

O formato da consulta precisa ser compreendido no contexto em que foi pensado.

Muitas consultas públicas existentes (e os modelos já citados, acima, são exemplos disso)

abrem espaço para o público comentar uma ideia já existente. Trata-se de um esforço que

pode apenas buscar legitimidade ou genuinamente melhorar uma proposta já feita. Não era o

caso do Marco Civil. A Secretaria (e o governo de forma geral) não possuía uma proposta do

que deveria ser o Marco Civil. Assim, o processo seria mais do que uma consulta, seria um

processo de construção do projeto de lei de forma aberta e pública.

Francisco Cruz questiona o uso da expressão “colaborativo” para definir o processo do

Marco Civil. Para ele, o Ministério sempre deixou claro que o governo teria a última palavra

no projeto a ser enviado ao Congresso. Cruz apresenta uma entrevista com Guilherme de

Almeida que corrobora essa afirmação:

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76

A gente queria que o texto inteiro fosse debatido, e não que uma pessoa

achasse que tinha a palavra final. Mais que isso, o que a gente tentou deixar

claro é que não era uma estrutura colaborativa de um projeto de lei, mas que

o MJ, o qual tinha a prerrogativa de escrever por conta própria o texto,

estava abrindo as suas portas para ouvir a sociedade e captar os melhores

argumentos para escrever um texto melhor, coerente e adequado para a

Internet e para a sociedade (...) Mas em momento algum renunciamos à

nossa prerrogativa de escrever.127

Para Cruz, o termo colaborativo ganhou força, sobretudo, em função da plataforma

utilizada. A plataforma Wordpress. “Esse tipo de tecnologia utilizada para a publicação de

conteúdo na Web é identificada com a retórica da colaboração.”128 Essa é uma plataforma

utilizada para a construção colaborativa na internet e isso poderia dar a impressão de que o

processo também seria colaborativo, quando, na verdade, ele seria apenas um processo de

consulta.

Há alguns elementos que contradizem essa ideia. É claro que o Ministério nunca abriu

mão da prerrogativa de escrever o texto, porém o processo do Marco Civil contou com a

participação para a construção do texto do projeto de lei desde seu início. Não havia texto

pronto que foi submetido à consulta. A participação é o elemento central para a redação do

texto e isso é fundamental para compreender esse processo.

O primeiro elemento são as próprias falas à época do lançamento da consulta.

O’Maley cita os pronunciamentos no lançamento, ocorrido em outubro de 2009, e afirma:

127 CRUZ, Francisco C. B.. Direito, Democracia e Cultura Digital: A experiência de elaboração legislativa do

Marco Civil da Internet. Dissertação (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2016

p. 63. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-08042016-154010/en.php>.

128 Idem p. 64

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At the open ceremony, Abramovay demonstrated how this digital form of

participation was perceived as being part of a larger movement to promote

forms of participatory democracy: ‘A gente sempre teve o sonho na

Secretaria, muito inspirado pelo Ministro Tarso Genro de romper essa

barreira unilateral entre o Estado e o cidadão no momento da construção de

marcos normativos. Nosso trabalho do dia a dia na secretaria é fazer projetos

de leis, e a gente sabia que a gente precisava encontrar instrumentos de fazer

isso, não dessa maneira unilateral, não dessa maneira como sempre vem

sendo feito. A gente sabia que as novas tecnologias nos davam

possibilidades infinitas para repensar a democracia. A democracia

representativa desde o século XVII, desde que foi construída da maneira

como ela é hoje, que a gente escuta o mantra de que ela foi pensada dessa

forma porque que era impossível voltar à Grécia Antiga pra colocar todo

mundo numa praça. Hoje é possível colocar todo mundo numa praça. Agora,

como a gente vai lidar com esse monte de opiniões e valorar isso, é um

desafio que a nossa sociedade vai ter que entender. A gente está dando o

primeiro passo. A construção deste projeto de lei não vai ser feita dentro de

um gabinete, ela vai ser feita a partir das ideias de todos os cidadãos, todos

os usuários de internet, nesse site que vai ficar hospedado num espaço

público de debate que é o Cultura digital.’ (Marco Civil da Internet, Evento

de Abertura 2009).129

Ou seja, a disposição de se fazer algo novo, que representasse uma construção coletiva

do projeto de lei estava presente no discurso púbico da iniciativa desde o princípio.

Outro elemento que reforça o papel de construção do Marco Civil a partir da

participação, e não apenas controlado por ela, é o próprio formato escolhido para se iniciar o

debate. A consulta não se inicia com um espaço absolutamente aberto (que, na verdade,

poderia gerar tantos argumentos e disputas que, certamente, aumentariam a polarização no

processo), mas também não se inicia com um texto pronto que demarcaria uma posição do

Ministério a favor de um dos lados em questões polarizadas e, inegavelmente, diminuiria a

confiança no papel mediador que a Secretaria desempenhava no início. A consulta se inicia

com um rol de princípios extraídos do decálogo do Comitê Gestor da Internet130. Essa

129 O’MALEY, Daniel P. Networking Democracy : Brazilian Internet Freedom Activism and the Influence of

Participatory Democracy. Tese (doutorado) na Universidade de Vanderbilt, 2015, p71 Disponível em:

<https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2757853>.

130 O Comitê Gestor da Internet tem, segundo o decreto 4829 de 2003, as seguintes atribuições : Art. 1° Fica

criado o Comitê Gestor da Internet no Brasil - CGI.br, que terá as seguintes atribuições:

I - estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no Brasil;

II - estabelecer diretrizes para a organização das relações entre o Governo e a sociedade, na execução do registro

de Nomes de Domínio, na alocação de Endereço IP ( Internet Protocol ) e na administração pertinente ao

Domínio de Primeiro Nível (ccTLD - country code Top Level Domain), " .br ", no interesse do

desenvolvimento da Internet no País;

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decisão, de delimitar, de alguma maneira os temas, de buscar a legitimidade dessa limitação

em algo externo ao Ministério, além de abrir completamente o debate a partir dos princípios,

permitindo que o debate de fato instruísse e informasse a elaboração do texto, mostra que não

se tratava de uma consulta como as outras já realizadas, que tinham por objetivo colher

comentários sobre algo já construído. É por esse motivo que optamos por chamar o processo

de uma consulta pública colaborativa.

E é, justamente, por ser um espaço de construção conjunta, que cria-se a necessidade

de negociação entre as partes. Em geral, o momento de elaboração legislativa por parte do

Executivo consiste em uma série de negociações bilaterais conduzido pela burocracia do

Executivo com os atores que, eventualmente, têm acesso a essa burocracia. Com a ideia da

consulta colaborativa, o Executivo forçava as partes a debaterem publicamente entre elas.

Esse debate, como vimos na introdução, poderia se dar na forma de barganha, nos termos

apresentados por Buchanan. Seria, então, apenas uma antecipação do tipo de barganha que

ocorre no Congresso. No entanto, uma série de estímulos específicos propiciaram que a

consulta se desse a partir de argumentos, gerando uma aliança baseada na força do melhor

argumento. E é essa força que, sustentamos ao longo deste trabalho, permite que a aliança se

mantenha mesmo durante o debate no Congresso.

III - propor programas de pesquisa e desenvolvimento relacionados à Internet, que permitam a manutenção do

nível de qualidade técnica e inovação no uso, bem como estimular a sua disseminação em todo o território

nacional, buscando oportunidades constantes de agregação de valor aos bens e serviços a ela vinculados;

IV - promover estudos e recomendar procedimentos, normas e padrões técnicos e operacionais, para a segurança

das redes e serviços de Internet, bem assim para a sua crescente e adequada utilização pela sociedade;

V - articular as ações relativas à proposição de normas e procedimentos relativos à regulamentação das

atividades inerentes à Internet;

VI - ser representado nos fóruns técnicos nacionais e internacionais relativos à Internet;

VII - adotar os procedimentos administrativos e operacionais necessários para que a gestão da Internet no Brasil

se dê segundo os padrões internacionais aceitos pelos órgãos de cúpula da Internet, podendo, para tanto,

celebrar acordo, convênio, ajuste ou instrumento congênere;

VIII - deliberar sobre quaisquer questões a ele encaminhadas, relativamente aos serviços de Internet no País; e

IX - aprovar o seu regimento interno

E por ter ampla participação da sociedade civil, tem sido considerado um espaço bastante próximo às posições

da sociedade civil com relação à liberdade da internet. Em julho de 2009, no auge do debate sobre o PL

Azeredo, o CGI lança um decálogo com princípios do que deveria ser a regulamentação da internet no Brasil.

E é esse o documento que serve de base para a primeira fase da consulta pública do Marco Civil.

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3.3 Elementos que possibilitaram uma consulta argumentativa

Antes de analisar a dinâmica de debate na consulta a partir do seu primeiro dia, 29 de

outubro de 2009, vale compreender que houve uma série de ações tomadas pela Secretaria de

Assuntos Legislativos que claramente influenciaram o tipo de debate que se seguiu. A

Secretaria assumiu um papel de valorizar a consulta e, também, como se verá, de incentivo a

um debate argumentativo no processo. Nossa hipótese é de que o processo de consulta

conseguiu reunir virtualmente a constelação dos argumentos presentes na sociedade sobre o

debate e a arquitetura na qual ele se inseriu fez com que esses argumentos se confrontassem

de forma próxima à ética discursiva. Assim, formou-se um processo deliberativo que abriu

espaço para a formação de uma representação argumentativa, nos moldes da visão de Dryzek

e Niemeyer, conforme debatido no primeiro capítulo. Esse processo possuía incentivos

específicos para que as diversas partes cooperassem e encontrassem um acordo baseado no

melhor argumento. No próximo capítulo, será discutido como este acordo baseado na

força do melhor argumento, que emergiu do processo de consulta, conseguiu influenciar o

debate legislativo.

Agora, queremos compreender quais foram os elementos que geraram o ambiente que

propiciou esse acordo.

Alguns pontos foram cruciais para a criação de um ambiente que transformasse a

consulta em um espaço claramente argumentativo, representativo dos argumentos na

sociedade e que possibilitasse a cooperação para este acordo baseado na força do melhor

argumento: (i) força política que o Ministério emprestou ao processo; (ii) confiança no

processo de facilitação (iii) clareza das regras (iv) não existência de processos de votação (v)

busca ativa de atores que pudessem enriquecer o debate (vi) publicidade dos debates (vii)

especificidade dos tópicos debatidos (vii) existência de várias fases de debate.

A força política que o Ministério emprestou ao processo ficou clara no lançamento da

consulta, feito com a presença de autoridades e amplo chamamento de imprensa. Esta força

foi fundamental para que os atores reconhecessem que aquele espaço teria a capacidade

política de influenciar o resultado da política.

Olhando-se para o lançamento, pode-se perceber vários sinais emitidos pelo Ministério

sobre o que se queria comunicar naquele momento. Em primeiro lugar, o lançamento ocorreu

na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, e não no Ministério da Justiça ou em

qualquer outro prédio público de Brasília. Ao mesmo tempo, a presença de autoridades

públicas afirmava o caráter oficial da consulta. Estavam presentes, ao lado dos anfitriões da

FGV (Carlos Ivan Simonsen –presidente da FGV, Joaquim Falcão – diretor da FGV

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DireitoRio e Ronaldo Lemos do CTS-FGV), o Ministro da Justiça (Tarso Genro), o Secretário

Executivo do Ministério da Cultura (Alfredo Manevy) e o Secretário de Assuntos Legislativos

(Pedro Abramovay) e um membro do Comitê Gestor da Internet (CGI) (Rogerio Santanna).

Além das autoridades do Poder Executivo, a mesa de lançamento contou com os

deputados Julio Semeghini (PSDB-SP), que era do mesmo partido do Senador Azeredo e o

principal defensor do projeto Azeredo na Câmara, Otavio Leite (PSDB-RJ) e Paulo Teixeira

(PT-SP), naquele momento o principal interlocutor da sociedade civil no Congresso sobre o

tema da internet. Essa presença, com bastante representatividade do Congresso Nacional em

um evento no Rio de Janeiro para lançar a consulta, mostra que ela nasce em um contexto de

receptividade por parte do parlamento, o que ajuda a explicar a forma como a consulta foi de

fato recebida no parlamento, como se verá no capítulo 4.

Feito o lançamento, estava aberta a primeira fase da consulta. Como já dito, o

processo foi anunciado, desde o princípio, como tendo duas fases. Na primeira, eram

apresentados princípios, temas gerais para que o público comentasse. Esses comentários

seriam sistematizados e avaliados pelas equipes do Ministério e do CTS e, posteriormente,

seria apresentado um anteprojeto de lei a ser também comentado e avaliado pelo debate

público.

A preocupação na construção da confiança na facilitação pode ser percebida em

vários elementos. Claro que foi importante trazer atores externos como o CTS-FGV, mas,

mais do que isso, percebe-se um esforço da Secretaria de buscar essa validação externa para

muitos pontos do processo, desde as regras de uso do site até o ponto de partida da consulta.

A questão do ponto de partida é crucial. Estabelecer o ponto inicial de uma consulta é um dos

principais poderes que o órgão que dirige uma consulta tem. No caso do Marco Civil, para se

fazer o texto inicial, escolheu-se como base131 o chamado Decálogo do Comitê Gestor da

Internet (o CGI). O documento do CGI foi elaborado após três anos de debates e estabelecia

dez princípios norteadores para a internet brasileira: liberdade, privacidade e direitos

humanos, governança democrática e colaborativa, universalidade, diversidade, inovação,

neutralidade da rede, inimputabilidade da rede, funcionalidade, segurança e estabilidade,

padronização e interoperabilidade, ambiente legal e regulatório. Reorganizou-se o texto do

131 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p.53 Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/

em_nome_da_internet>. e CRUZ, Francisco C. B.. Direito, Democracia e Cultura Digital: A experiência de

elaboração legislativa do Marco Civil da Internet. Dissertação (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito

da USP, São Paulo, 2016, p. 68. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-

08042016-154010/en.php>.

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decálogo, estruturando-o em três eixos: 1) Direitos Individuais e Coletivos; 2)

Responsabilidade dos atores; e 3) Diretrizes governamentais. Cada eixo era organizado em

subitens, de forma que o texto inicial se apresentava da seguinte forma:

Direitos Individuais e coletivos (Eixo 1)

1.1 Privacidade

1.1.1 Intimidade e vida privada, direitos fundamentais

1.1.2 Inviolabilidade do sigilo de correspondência e comunicações

1.1.3 Guarda de logs

1.1.4 Como garantir a privacidade?

Liberdade de Expressão

1.2.1 Constituição Federal e declaração Universal dos Direitos Humanos

1.2.2 Conflitos com outros direitos fundamentais. Anonimato

1.2.3 Liberdade de Expressão na Internet

1.2.4 O direito de receber e acessar Informações

1.2.5 Acesso Anônimo

Direito de Acesso

1.3.1 Relações com a liberdade de expressão

1.3.2 Acesso à internet e desenvolvimento social

1.3.3 Facilidade de acesso

Responsabilidade dos Atores (Eixo 2)

2.1 Definição clara de responsabilidade dos intermediários

2.1.1 Ausência de legislação específica

2.1.2 Um regime de responsabilidade compatível com a natureza dinâmica

da Internet

2.1.3 Procedimentos Administrativos e extrajudiciais prévios

2.2 Não discriminação de conteúdos (neutralidade)

2.2.1 O princípio end-to-end

2.2.2 Filtragem indevida

Diretrizes governamentais (Eixo 3)

3.1 Abertura

3.1.1 Interoperabilidade plena

3.1.2 Padrões e formatos abertos

3.1.3 Acesso a dados e informações públicos

3.2 Infraestrutura

3.2.1 Conectividade

3.2.2 Ampliação das redes de banda larga e inclusão digital

3.3 Capacitação

3.3.1 Cultura digital para o desenvolvimento social

3.3.2 Iniciativas públicas e privadas.

Ao escolher não colocar um texto inicial já bem formulado, mas apenas tópicos para a

discussão, a SAL opta por concentrar o uso do seu poder de formatação da consulta, no

primeiro momento, em um poder de agenda. Ou seja, o mais importante, nesse momento, foi

delimitar o que estava - e o que não estava - aberto para discussão, do que pautar o conteúdo

do projeto de lei.

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A exclusão do tema do direito autoral, por exemplo, é uma decisão que não era óbvia

quando se via o tipo de debate, durante o PL Azeredo, que originou o processo de consulta.

Mas se mostrou absolutamente fundamental para o sucesso da empreitada.

A inclusão do tema da neutralidade da rede132 também não era óbvia, afinal, ele

apareceu muito pouco no debate de resistência ao PL Azeredo, mas representava algo de

afirmativo sobre o modelo de internet livre que era defendido pela sociedade civil.

Nesse sentido, a possibilidade de se usar o decálogo foi fundamental, pois deu

legitimidade a escolhas de temas para essa primeira fase, por ter sido construído por um órgão

composto por uma pluralidade de agentes133. Não se podia acusar o Ministério de utilizar seu

poder de agenda de forma arbitrária. E essa legitimidade ajudou a construir o espaço de

confiança para o debate que veio em seguida.

Cruz chama a atenção para a importância que se deu ao estabelecimento de regras

claras de participação. Ou seja, o Ministério havia escolhido o Culturadigital.br para hospedar

a plataforma, havia escolhido construir a plataforma em Wordpress, mas qual seriam as regras

de participação? Para Cruz

132 O tema da neutralidade da rede, como se verá, será um dos pontos centrais do debate na Câmara dos

Deputados. Vale, portanto, explicar o seu significado. A neutralidade da rede é um princípio que garante que

as operadoras de internet não possam tratar de forma diferenciada os usuários ou conteúdo que eles

consomem. Uma operadora não poderia oferecer uma velocidade maior para um tipo de conteúdo e menor

para outro, por exemplo. A rede, segundo este princípio, deve ser neutra, sem privilegiar usuários ou

conteúdos. Este debate é muito importante, pois uma rede que não respeite o princípio da neutralidade pode

permitir que as telefônicas, que fornecem a internet, favoreçam uma empresa de conteúdo em detrimento de

outra. Isso afeta, segundo os movimentos de internet livre, tanto o direito à livre concorrência como a

liberdade de expressão. As empresas de telefonia, por outro lado, argumentam que a neutralidade da rede as

impede de explorar comercialmente algo que é intrínseco ao negócio de fornecimento de internet.

133 O CGI é composto por representantes dos seguintes órgãos e esferas: Ministério da Ciência e Tecnologia,

Casa Civil da Presidência da República; Ministério das Comunicações; Ministério da Defesa; Ministério do

Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; Agência

Nacional de Telecomunicações; Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; Fórum

Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de Ciência e Tecnologia; um representante de notório saber

em assuntos de Internet; quatro representantes do setor empresarial; quatro representantes do terceiro setor; e

três representantes da comunidade científica e tecnológica.

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podemos definir duas fontes de regras: as diretrizes e termos de uso da

própria consulta e os Termos de Uso da página CulturaDigital.BR, site onde

a consulta foi hospedada (...) Quanto às diretrizes da consulta, percebemos

um texto resumido – sem vedações ou proibições vistas de imediato (...) com

vistas a facilitar o trabalho de sistematização posterior, bem como a

incentivar a qualidade argumentativa da discussão. Em primeiro lugar, as

diretrizes dispõem que aplicam-se os Termos de Uso do CulturaDigital.br, o

que significa dizer que a discussão é aberta. Segundo o documento, a ideia é

que o processo de discussão não seja um chat, ou seja, uma sala de bate-

papo, ou mesmo um fórum de debates. Essa diretriz tem como objetivo

explicar que as opiniões manifestadas deveriam ser qualificadas. Quanto

maior a qualidade e fundamentação dos argumentos, maiores as

possibilidades de serem levados em consideração. (...)

Os Termos de Uso da página CulturaDigital.br são mais longos e apresentam

regras mais específicas, próprias de um fórum de discussões. Fica

explicitado no texto que o aceite ao documento é requisito para participação

nos debates da página, e que, ao aceitar os Termos, o usuário reconhece que

‘todas as contribuiçoes são bem-vindas nos debates. Basicamente, o texto

estabelece que: (i) não há presunção de anonimato (...) (ii) deve haver

pertinência temática e de linguagem com o objetivo do portal (...) (iii) a

permanência das contribuições não é direito dos usuários, pois os

mantenedores do site devem ter autonomia para aplicação dos termos de uso

(iv) o conteúdo inserido pelos usuários será automaticamente licenciado, no

mesmo regime que o do conteúdo do site (v) o conteúdo inserido deverá

estar em conformidade com a legislação em vigor; (vi) a plataforma buscará

evitar o spam e que (vii) os usuários não podem escolher logins considerados

inadequados.134

Perceber a distinção entre as regras enxutas da consulta e as regras mais detalhadas do

CulturaDigital.br é muito importante. Afinal, nota-se que aquilo que poderia dar ensejo às

críticas sobre eventual cerceamento à participação, eram regras dadas e os autores da consulta

não tinham ingerência sobre ela. A questão do anonimato, por exemplo, poderia gerar uma

grande polêmica com uma comunidade muito preocupada com o tema da privacidade. Mas

esse tema estava pré-estabelecido pela escolha da plataforma. Isso ajudou muito para que o

início do debate não se concentrasse na discussão sobre as regras do jogo135. Mas ao mesmo

tempo, as regras e os papéis estavam absolutamente claros desde o princípio.

134 CRUZ, Francisco C. B.. Direito, Democracia e Cultura Digital: A experiência de elaboração legislativa do

Marco Civil da Internet. Dissertação (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2016 pp.

68-69. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-08042016-154010/en.php>. 135 Guilherme de almeida (op. cit p 14, também reforça a ideia de que a escolha de uma plataforma com regras já

estabelecidas ajudou a não criar uma polarização ainda maior do que a já existente no início do processo. “O

portal já contava também com suas regras próprias de conduta, consubstanciadas em Termos de Uso e

Políticas de Privacidade, dispensando, portanto, a necessidade de redigir documentos específicos a esse

respeito (o que poderia ensejar críticas e suspeitas de direcionamento preliminar quanto às premissas a

serem adotadas pelo projeto de marco civil da internet, ainda mais no ambiente polarizado de debates

resultante da tramitação avançada do projeto de cibercrimes).” ALMEIDA, G. A. A. Marco Civil da Internet

- Antecedentes, formulação colaborativa e resultados alcançados. In: ARTESE, G. Marco Civil da Internet:

análise jurídica sob uma perspectiva empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p.14.

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Stephen Coleman insiste muito nesse ponto de que a clareza das regras e dos papéis é

um dos pontos essenciais para que processos de participação, principalmente processos de

participação que incluem atores não acostumados a participar de mecanismos formais de

participação, atinjam sucesso: “A key to the success of online consultations is the clarification

of actors’ rights and responsibilities and the honest management of their expectations.” 136.

Outro ponto importante, válido para as duas fases da consulta, é perceber que a

consulta foi inteiramente estabelecida com a lógica de comentários e não de votação. Não

havia espaços para likes em comentários específicos ou mesmo votação sobre qual posição

deveria prevalecer. A consulta foi completamente argumentativa. Esse, talvez, seja o principal

elemento que mostre que a determinação da Secretaria era a de ouvir as melhores soluções e

buscar um consenso público possível em torno do texto a ser enviado ao Congresso.

Nicolás, Sampaio e Bragatto entrevistaram Guilherme de Almeida para a pesquisa e

ele deixa bem clara a intenção do debate argumentativo e escolha por não se fazer nem um

tipo de votação no processo:

Como afirmou Almeida (2013, [s. p.]), um dos coordenadores do processo, o

desenho da consulta teve como foco privilegiar o debate e a troca de

argumentos e não apenas levantar ou votar posições; afinal, uma iniciativa

destas, [...] de alcance relativamente limitado, e com um escopo

relativamente especializado, não conseguiria fazer uma análise estatística

adequada. Além disso, se o formato fosse esse, isso poderia levar a

campanhas por este ou aquele posicionamento, ou a distorções derivadas de

uma suposta votação [...] Assim, a consulta teve por objetivo sobretudo

buscar a qualificação do debate, a partir da confrontação de variados

argumentos. Assim, mais do que contribuições unilaterais e monolíticas

(como nos modelos unilaterais de consulta), buscamos algo mais dialético,

no qual os diferentes argumentos possam ser confrontados e contestados

pelos próprios usuários.”137

Essa decisão não era simples. Um dos temas centrais no debate sobre participação

pública é o tema da responsividade138. A responsividade tem sido tratada como um elemento

136 COLEMAN, Stephen. Connecting Parliament do the Public via Internet: two case studies of online

consultations. Information, Communication and Society, March 2004. Disponível em:

<http://ccce.com.washington.edu/projects/assets/working_papers/coleman1.pdf>.

137 BRAGATTO, Rachel C.; SAMPAIO, Rafael C.; NICOLAS, Maria A. Inovadora e Democrática. Mas e daí?

Uma análise da primeira fase da consulta on-line sobre o Marco Civil da Internet. Política & Sociedade vol.

14 nº 29: Florianópolis, Jan./Abr. de 2015, p. 131.

138 Sobre o tema da responsividade em processos de participação social: ALMEIDA, Debora R. Pluralização da

Representação Política e Legitimidade Democrática: lições das instituições participativas no Brasil . Opinião

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chave para a legitimidade dos processos participativos. O que parece óbvio. Por que alguém

se engajaria em um processo se o sentimento é o de que sua voz não será ouvida?

Recolocando a questão para o debate do Marco civil: como garantir para quem participa da

consulta com o envio de ideias e comentários o sentimento de que sua participação está sendo

levada em consideração? A participação pela internet muitas vezes resolve isso por meio de

processos de votação ou estabelecimento de prioridade. Entretanto, nesses casos, o estímulo

do participante é o de se mobilizar para conseguir votos para que uma determinada ideia possa

ser acolhida. Consultas públicas on-line ou Conferências Nacionais com participação pela

internet, muito frequentemente se baseiam na ideia de escolha, por maioria, de prioridades.

Um exemplo disso foi a consulta pública do projeto sobre mudança na regulação dos

direitos autorais. Aquele processo, lançado alguns meses depois do lançamento da consulta do

Marco Civil, tinha uma arquitetura para a participação completamente diferente. Cada

comentário feito não podia ser comentado novamente por outra pessoa. A maneira de interagir

com o comentário era optando por apertar um botão que expressava a opinião das pessoas

sobre o comentário: “concordo”, “concordo com ressalvas” e “não concordo”.139

Raphael Silveiras comenta a consulta sobre Direitos Autorais justamente fazendo a

comparação coma consulta do Marco Civil:

A estrutura arquitetada para a contribuição do site dificultou o

estabelecimento do diálogo entre os participantes, ao contrário da consulta

para o Marco Civil. Isto porque as contribuições para a reforma da LDA não

poderiam ser comentadas abaixo. Cada contribuição possuía as informações

apontadas acima e adquiria uma estrutura mais formal e menos dinâmica. Já

a estrutura do Marco Civil se assemelhava a de um blog, como dito, com

menor quantidade de informações referentes ao comentário e possibilitava

comentar o comentário do outro – algo muito utilizado pelos participantes da

consulta.140

Este é um ponto crucial, na minha avaliação, para que se possa compreender o efeito

que a arquitetura da consulta teve na construção de um acordo argumentativo que forjou a

aliança improvável, que foi tão importante, como se verá, para a aprovação do Marco Civil.

As consultas que são baseadas em votações ou priorizações tendem a gerar uma ação

Pública v. 20 no 1, Campinas, Jan/Abr 2014. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-62762014000100005>.

139 SILVEIRAS, Raphael S. Consultas Públicas para o Marco Civil da Internete Reforma da Kei de Direito

Autoral: A relação entre direito, internet e estado na contemporaneidade. Dissertação (Mestrado) - Instituto

de Filosofia e Direitos Humanos, Unicamp, 2014, p. 147.

140 Ibid. p 148.

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estratégica por parte dos atores, pois os incentivos funcionam no sentido de buscar adeptos

para a sua posição. Inclusive, como ocorreu no caso do processo da Lei de Direitos Autorais,

os participantes acabam buscando agregar novos participantes com o intuito de construir

maioria.

A busca do engajamento com o outro, de forma verdadeiramente deliberativa. tem

poucos incentivos para acontecer no caso de um desenho institucional baseado na votação ou

priorização, que seja aberto para o público em geral como em processos on-line deste tipo.

Essas votações, na verdade, mimetizam um processo de escolha por maioria, que faz todo

sentido quando os participantes, de alguma maneira, representam uma totalidade mais ampla,

como no parlamento. Mas perde completamente o sentido quando essa participação é aberta e

não se tem controle para saber se o público que participa está sobrerrepresentando um

determinado setor.

O processo de decisão por maioria pode ser conciliado com um processo deliberativo,

como explica Joshua Cohen:

ideal deliberation aims to arrive at a rationally motivated consensus - to find

reasons that are persuasive to all who are committed to acting on the results

of a free and reasoned assessment of alternatives by equals. Even under ideal

conditions there is no promise that consensual reasons will be forthcoming.

If they are not, then deliberation concludes with voting, subject to some form

of majority rule. The fact that it may so conclude does not, however,

eliminate the distinction between deliberative forms of collective choice and

forms that aggregate non-deliberative preferences. The institutional

consequences are likely to be different in the two cases, and the results of

voting among those who are committed to finding reasons that are

persuasive to all are likely to differ from the results of an aggregation that

proceeds in the absence of this commitment.141

Assim, não é a decisão por maioria em si que descaracteriza a possibilidade de um

processo deliberativo, mas é a falta de incentivos para o debate argumentativo, para o

estabelecimento da ética discursiva. Essa visão de aceitação da regra da maioria para a teoria

deliberativa tem que ser compreendida na aceitação da possibilidade para a existência de

deliberação, caso os incentivos existam, dentro de um parlamento, que ainda é o espaço de

decisão fundamental na elaboração legislativa. Mas isso não quer dizer que a existência de

decisão por maioria sempre possa ser acolhida na lógica discursiva. Ao contrário, sem

141Cohen, Joshua, Deliberation and Democratic Legitimacy, disponível em

http://philosophyfaculty.ucsd.edu/faculty/rarneson/JCOHENDELIBERATIVE%20DEM.pdf

Page 91: Sistemas deliberativos e processo decisório congressual ...€¦ · do Marco Civil da Internet. A partir da perspectiva sistêmica da teoria deliberativa, estuda-se três distintos

87

mecanismos muito específicos para que o debate seja argumentativo, a regra da maioria

provavelmente tenderá a agregação de preferências por meio de uma ação estratégica.

Em processos no qual as pessoas envolvidas no debate são representantes de um

coletivo maior e no qual há a necessidade de se chegar a uma decisão, a regra da maioria

(desde que aberto o espaço para a falibilidade dessa maioria142) pode ser necessária. Mas em

espaços com um número indeterminado e aberto de participantes, a existência da regra da

maioria não tem razão de ser e apenas afasta os participantes da possibilidade de se engajar

em um processo deliberativo. Espaços como esses podem se tornar em espaços de

representação da esfera pública. A legitimidade desses espaços não é a legitimidade da

representação de grupos por indivíduos, trata-se da legitimidade discursiva apontada por

Dryzek e Niemeyer. Para o autor, como visto no primeiro capítulo, a legitimidade

discursiva é atingida quando uma decisão coletiva é consistente com a constelação de

discursos presente na esfera pública.143

Ou seja, é a presença de todos os argumentos existentes na sociedade e o confronto

público ente eles que conferem o status de espaço representativo da esfera pública a um

processo deliberativo. E se Dryzek e Niemeyer se afastam da ideia habermasiana de

consenso, ele deixa claro que a legitimidade discursiva do acordo ao que se chega ao

final de um processo deliberativo será tanto maior quanto maior sua ressonância com essa

constelação de discursos. Assim, a escolha de um processo e de uma arquitetura para a

discussão que não valorize a legitimidade da decisão a partir da regra da maioria, mas sim a

partir do confronto de argumentos é fundamental para que o resultado final seja o de gerar

um acordo discursivo e não uma vitória de determinados grupos de interesses sobre outros.

No caso de haver claramente grupos vencedores e vencidos, dificilmente o projeto chegaria

ao Congresso com o

tipo de acolhimento que chegou.

A decisão de criar um debate argumentativo, baseado em comentários e sem espaço

para votações, criava a necessidade de se investir em outras formas de responsividade. O

participante não veria sua contribuição, automaticamente, levando à vitória ou derrota de uma

ideia. Como estimular o debate? Como fazer com que cada participante sentisse que ele estava

sendo ouvido e não apenas falando?

142 HABERMAS, J. Between Fact and Norms: Contributions to a discourse Theory of Law and Democracy trans

William Rehg. MIT Press: Cambdridge, 1998, pp 304-308.

143 DRYZEK, J. S.; NIEMEYER, S. Foundations and Frontiers of Deliberative Governance. Oxford University

Press: Oxford, 2013, p. 35.

Page 92: Sistemas deliberativos e processo decisório congressual ...€¦ · do Marco Civil da Internet. A partir da perspectiva sistêmica da teoria deliberativa, estuda-se três distintos

88

Uma das soluções dadas foi ter um investimento em capacidade humana e,

particularmente, em pessoas com credibilidade no debate. Cruz afirma que “a equipe da SAL

teve de montar sua equipe para receber a gestão da consulta, o que se imaginou resolvido pela

aproximação de Paulo Rená da Silva Santarém, ciberativista e mestrando na área, que foi o

responsável pelo dia a dia da plataforma e do convênio com o CTS-FG.” Cruz também

reafirma o papel central da equipe do CTS, em colaboração com a SAL-MJ na análise dos

comentários: “as duas equipes tiveram reunioes frequentes para sistematizar os conteúdos

inseridos e organizar os argumentos apresentados”. Mas o próprio Cruz ressalta que havia

uma divisão de autoridade entre o CTS e a SAL: “as decisoes finais mais polêmicas sobre o

texto não foram realizadas em conjunto, mas exclusivamente pela SAL/MJ”144

Este aumento da capacidade para lidar com a demanda de comentários mostra uma

preocupação da Secretaria em compensar o eventual déficit de responsividade que a

arquitetura proposta trazia (apenas interação de comentários e não votação).

Além disso, a Secretaria assumiu um papel ativo de buscar atores que não estavam no

debate e trazer para o debate. O esforço era justamente o de capturar os argumentos

existentes na sociedade, mesmo que eles não aparecessem na consulta de forma endógena.

Raphael Silveiras explica que: “Durante o processo da consulta, o site foi alimentado não

apenas com contribuições dos participantes e notificações dos organizadores como também

com links para notícias sobre o Marco Civil presentes nas mais diversas mídias e com os

últimos 110 comentários no Twitter contendo “#marcocivil”.145 Ou seja, mesmo comentários

na Internet feitos fora do espaço institucional, apenas utilizando a hashtag #MarcoCivil,

também eram incorporados ao debate. Papp também comenta esse processo: “A pequena

equipe gestora do projeto então se desdobrou para divulgar a consulta em debates, eventos e

seminários em várias cidades do país”.146

A Secretaria enviou ofícios para órgãos estatais e organizações da sociedade civil,

pedindo a participação no processo:

144 CRUZ, Francisco C. B.. Direito, Democracia e Cultura Digital: A experiência de elaboração legislativa do

Marco Civil da Internet. Dissertação (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2016

p. 67. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-08042016-154010/en.php>.

145 SILVEIRAS, Raphael S. Consultas Públicas para o Marco Civil da Internete Reforma da Kei de Direito

Autoral: A relação entre direito, internet e estado na contemporaneidade. Dissertação (Mestrado) - Instituto

de Filosofia e Direitos Humanos, Unicamp, 2014, p. 112.

146 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p. 53. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/

docs/em_nome_da_internet>.

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89

Para convidar o próprio Estado a participar, nos primeiros dias do debate

foram enviados ofícios ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, aos

órgãos de Defensoria e Advocacia Pública e à Ordem dos Advogados do

Brasil, na figura de seus respectivos presidentes ou chefes, em nível federal e

estadual convidando-os para participar do debate.

A colaboração da sociedade civil foi pedida, primeiro, por meio de um ofício

aberto denominado ‘Convite à sociedade civil”, publicado em 19 de

novembro de 2009. Nesse documento, o então Secretário de Assuntos

Legislativos, Pedro Abramovay, apresentava a proposta do Marco Civil e

solicitava às entidades que contribuíssem diretamente para o debate e que

ajudassem na divulgação junto a seus membros e associados.147

Finalmente, a Secretaria pediu ao Ministério de Relações Exteriores que

enviasse pedidos às embaixadas para que informassem como era a regulação

da internet em seus países. 34 países responderam e essas contribuições

foram agregadas ao debate. 148

Esses vários esforços mostram que a Secretaria se preocupou em levantar toda a

informação que o Poder Executivo tem, normalmente, à disposição e utilizá-la para informar a

discussão. Além disso, procurou também, ativamente, trazer todos os argumentos presentes na

esfera pública para a consulta, de forma a criar o embate entre esses argumentos como

subsídio central para a elaboração da proposta.

Além disso, o fato de garantir que os atores presentes no espaço deliberativo anterior

estivessem presentes na consulta permitiu que a conversa fosse a mesma. Como já exposto

anteriormente, a presença dos mesmos atores em espaços diferentes é um dos elementos que

funciona como indutor de conectividade entre espaços, fortalecendo o sistema deliberativo.

Raphael Silveiras também comenta um ponto muito importante para compreender o

processo: a abertura e transparência radical do processo, sobretudo em contraponto à forma

como a elaboração legislativa se dá usualmente no Brasil.

147 SANTARÉM, Paulo R. S.. O Direito Achado na Rede: A Emergência do Acesso à Internet como Direito

Fundamental no Brasil. dissertação (mestrado), 2010, pp.99-100. Disponível em:

<http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/8828/1/2010_PauloRen%C3%A1daSilvaSantar%C3%A9m.pdf>.

148 CRUZ, Francisco C. B.. Direito, Democracia e Cultura Digital: A experiência de elaboração legislativa do

Marco Civil da Internet. Dissertação (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2016,

p. 75. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-08042016-154010/en.php>.

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90

O Marco Civil seguiu a política de realizar um processo aberto. Aberto não

apenas para receber e concentrar informações dos outros participantes, mas

um processo transparente na medida em que as contribuições depositadas no

portal da consulta poderiam ser problematizadas e questionadas por outros

participantes. Além disso, havia a preocupação de saber se os diversos atores

que compõem a sociedade brasileira se sentiam contemplados com o Marco

Civil. O fato de utilizarem um portal para captar informações também

facilitou na sistematização dos dados, no gerenciamento das informações dos

participantes, o que seria muito mais complexo se a SAL adotasse o

procedimento de receber e-mails individuais. “Não só sobre o ponto de vista

democrático seria melhor porque as coisas se tornariam mais públicas, mas

do ponto de vista da qualidade do processo. Isso poderia trazer argumentos

que não teriam aparecido no debate ainda” (Abramovay, 2013: [entrevista]).

O próprio embate entre os diversos, a argumentação e contra argumentação,

poderia gerar o novo, alcançando outro patamar na discussão acerca de um

Marco Civil da Internet. Somado a isso há também a temporalidade relativa,

a possibilidade de os participantes poderem se relacionar com um intervalo

temporal entre uma colocação e outra, de modo a haver tempo suficiente

para um participante ponderar e responder a colocação de outro – ao

contrário do que pode acontecer em diálogos instantâneos. Percebem-se

diversas vantagens que se apresentam no exercício de um processo

elaborado pela rede mundial de computadores de maneira colaborativa e

aberta para a constituição de dispositivos jurídicos. Todavia, o que parece ser

uma prática de democratização do acesso ao âmbito jurídico, uma

democracia direta, não agrada a todos. Às vezes a ABRANET, os

provedores, eles têm razão. Só que se eles se reunissem com a gente a portas

fechadas e a gente falasse: “A gente atendeu ao pedido da ABRANET”, a

desconfiança do processo ia ser gigantesca. Se fosse algo público que as

pessoas não conseguissem rebater o argumento da ABRANET é muito mais

simples. A mesma coisa uma demanda vinda do movimento social, não é?

Então, acho que no fundo eu estava acostumado a fazer esses tipos de

negociações e sabia das complicações que fazer em portas fechadas tinham.

E também reuniões com eles frente a frente, também tem vários problemas.

Porque ninguém vai para uma reunião dessas com a possibilidade de

negociar. Porque você já teve que definir os limites das negociações antes

(Abramovay, 2013: [entrevista]). Por exemplo, quando a gente ia ter a

primeira [...] da ABRANET, a ABRANET sentou e pediu uma reunião. A

gente falou: “Tá bom”. Tudo isso era para evitar que as reuniões a portas

fechadas [...][ABRANET:] “A gente achou ótimo esse processo de consulta,

construção de debate... Tudo é interessante, então a gente veio aqui trazer a

nossa posição”. [Consulta:] “Mas por que vocês vieram trazer aqui a

posição? Por que vocês não copiam no blog?”. [ABRANET:] “Não, porque a

gente é a ABRANET”. E aí a gente falou: “Não, tem que publicar no blog”.

E aí o que a gente fez foi que a gente publicou no blog a posição deles. E

depois eles passaram a [...]. Mas precisou desse empurrãozinho. A mesma

coisa com a polícia. A polícia também mandou para a gente oficialmente a

posição. Mas aí a gente foi e publicou a posição (Abramovay, 2013:

[entrevista]).149

149 SILVEIRAS, Raphael S. Consultas Públicas para o Marco Civil da Internete Reforma da Kei de Direito

Autoral: A relação entre direito, internet e estado na contemporaneidade. Dissertação (Mestrado) - Instituto

de Filosofia e Direitos Humanos, Unicamp, 2014, p. 103-104.

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Este trecho é muito importante para compreender o esforço ativo para que este

processo fosse realmente aberto, para que a consulta não fosse apenas um canal paralelo de

debate, enquanto se mantinham os canais tradicionais de acesso privilegiado aos gabinetes do

Ministério. Todas as contribuições enviadas, mesmo que por fora dos canais públicos da

consulta, eram levadas pelo Ministério ao espaço público e institucional de consulta, forçando

os atores a, de alguma maneira, se engajarem no debate. O exemplo da ABRANET citado

acima é bem claro. Uma associação como essa não teria incentivos a participar do debate se

tivesse acesso privilegiado àqueles que iriam escrever o projeto de lei. Porém, ao terem sua

contribuição postada no blog e receberem críticas e comentários públicos , foram obrigados a

se engajar no debate.

Esse estabelecimento de um único campo de debate reforça a ideia de

institucionalização da esfera pública por meio da consulta. Aquele espaço de debate era

permeável a todos os argumentos existentes na sociedade e criava os incentivos para que eles

pudessem se confrontar publicamente.

Há outro ponto que aparece na entrevista feita por Silveiras que também é digno de

nota: o tempo de resposta. Em uma arena pública presencial, no qual há indivíduos que são

representantes de outros, é muito difícil admitir, imediatamente, que o outro tem razão.

Transigir em sua posição sem consultar os representados acarreta um alto custo para o

representante. Ao passo que, se um comentário pode ser respondido dias depois, abre-se o

espaço para um reconhecimento menos custoso de que é possível mudar de opinião ou, de

alguma forma, reconhecer o peso do argumento contrário.

Não se pode desprezar também que foi fundamental organizar o debate de maneira a

gerar comentários específicos e não genéricos. A estrutura apresentada acima, de temas com

sub-tópicos, permitiu que, em um ambiente polarizado, os atores se concentrassem em temas

específicos e não em uma disputa mais ampla sobre o modelo de internet que queriam.

Mesmo que se tenha optado por iniciar por um debate mais principiológico, para, apenas

depois, apresentar um texto pronto, o debate era, como visto acima, estruturado de maneira a

gerar conversas sobre tópicos bastante concretos. Também, na segunda fase, quando se

apresentou um texto final, o debate era feito abaixo de cada artigo, permitindo que as

divergências ficassem claras em torno de tópicos concretos e pudessem ir se resolvendo a

partir do próprio debate.

Guilherme de Almeida comenta esse ponto:

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(...) foi implementada uma estratégia de enfoque que contribuiu para um

maior aprofundamento das discussões: a fragmentação dos debates em

unidades menores, com o objetivo de adensar o debate em torno de

elementos nucleares, capazes de aglutinar comentários mais específicos.

Buscou-se, assim, evitar a profusão de comentários demasiadamente

genéricos. A título exemplificativo: o texto-base, como já mencionado,

apresentava três eixos de discussão. O primeiro destes eixos, ao tratar de

direitos individuais e coletivos, apresentava também três tópicos:

privacidade, liberdade de expressão e direito de acesso. Já cada um destes

tópicos apresentava um conjunto de sub-tópicos – como “guarda de logs”, ou

“acesso anônimo”, dentre inúmeros outros. Os sub-tópicos – e não os eixos,

ou grandes tópicos – foram abertos para comentários. Desta forma, foi

possível coletar um conjunto bastante significativo de visões e opiniões

sobre temas-chave bastante específicos para a elaboração da minuta de

anteprojeto de lei.150

Também parece ter sido fundamental para a criação de um espaço de debate

argumentativo que possibilitou a formação de um consenso, a existência de várias fases de

debate. Não apenas o processo contou com as duas fases planejadas, a primeira, entre final de

outubro e início de dezembro, para debater os princípios e, a segunda, entre abril e maio de

2010, para debater o texto propriamente dito. Mas, também, ao final da segunda fase, em um

ponto específico que causava mais polêmica (a forma de retirada de conteúdo), o Ministério

propôs algumas redações alternativas, indicando que buscaria o consenso até que os

participantes pudessem aceitar uma redação em comum.

A repetição de fases foi uma estratégia importante para sair da lógica polarizada que

existia no início do processo, para uma lógica de cooperação construída ao longo da consulta.

E vale a pena trazer para essa reflexão o conceito de Axelrod sobre a evolução da cooperação.

Em The Evolution of Cooperation151, citado no primeiro capítulo, Axelrod estabelece

que a cooperação não necessita de uma ideia de altruísmo para acontecer. Apesar dos custos

de curto prazo para a cooperação, em casos onde se sabe que haverá mais encontros entre os

atores envolvidos e há suficiente incerteza sobre o futuro, a cooperação é a melhor estratégia.

E o interessante do que Axelrod coloca é que apesar de uma única defecção afetar a

possibilidade de cooperação (ou seja, há necessidade de reciprocidade), “once cooperation

based on reciprocity is established in a population, it can protect itself from invasion by

150 ALMEIDA, G. A. A. Marco Civil da Internet - Antecedentes, formulação colaborativa e

resultados alcançados. In: ARTESE, G. Marco Civil da Internet: análise jurídica sob uma

perspectiva empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 17.

151 AXELROD, Robert. The Evolution of Cooperation. Basic Books: New York, Revised Edition, 2006.

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uncooperative strategies”152. Para que haja a possibilidade do estabelecimento dessa lógica

cooperativa entre atores é necessário “an individual to be able to recognize another player

who has been deal with before. They also require that one’s prior history of interactions with

this player can be remembered, so that a player can be responsive.”153

E é interessante perceber que Axelrod deixa claro que não é necessária uma autoridade

central para garantir a cooperação: “cooperation based on reciprocity can be self-policing.”.

Porém, no caso do Marco Civil, parece evidente que a Secretaria teve um papel importante

para criar os incentivos para a cooperação, em um primeiro momento. Esses incentivos, em

um contexto no qual a cooperação era exigida repetidas vezes, pode ser um dos elementos

que nos permitam compreender a criação de uma aliança improvável que aceitasse manter a

cooperação durante o processo legislativo como se verá no próximo capítulo.

O que se pode perceber é que os elementos citados neste item, que compõem as

condições nas quais a consulta se deu, foram os elementos centrais para garantir: a) que a

conversa pública que aconteceu na consulta fosse uma continuação da conversa que se deu no

debate do PL Azeredo, ou seja, o desenho institucional desse espaço deliberativo funcionou

como indutor de conectividade para o bom acoplamento com o espaço anterior; b) que o

debate dentro da consulta incluísse a constelação de argumentos presentes na sociedade e se

desse por meio da contraposição desses argumentos, gerando, ao final, um acordo baseado na

força do melhor argumento.

3.4 O Debate Durante a Consulta

Há três trabalhos bastante completos que analisaram de forma detalhada os

comentários feitos na primeira e na segunda fase da consulta, realizados por Bragatto,

Sampaio e Nicolás, Francisco Britto Cruz e Raphael Silveiras. Logo, não faria sentido realizar

uma nova análise dos dados primários. Vamos trabalhar, neste item, com os dados que essas

três pesquisas computaram ao olhar de forma extensa a consulta.

Como afirmado acima, na primeira fase, os usuários da consulta podiam comentar em

cada um dos tópicos expostos, mas também havia um espaço em formato de blog, no qual a

152 Ibid. p 173

153 Ibid. p. 174

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equipe coordenadora podia postar documentos e informações, além de manter um canal aberto

de comunicação com o debate sem exercer um papel ativo de moderação das discussões.154

Nesta primeira fase da consulta, houve 686 comentários diretamente feitos no site e,

mais de 800, se forem incluídas as contribuições feitas em outros espaços e trazidas para o

debate.155

Nicolas, Sampaio e Bragatto realizam uma reflexão interessante, analisando as reações

dos usuários das consultas a manifestações feitas pelo governo (não apenas pelo MJ, mas de

qualquer órgão do governo que tenha se manifestado): 62,9% eram favoráveis às

manifestações do governo, 27,4% eram contra e 9,7% neutros. O maior dissenso ocorreu no

tema do direito à privacidade, que foi também, de longe, o tema (entre os três eixos da

primeira fase da consulta) que gerou mais comentários (69,98%, contra 17,34% em diretrizes

governamentais e 12,68% em responsabilidade dos atores). 156

Os autores não fazem essa análise, mas talvez essa preponderância do debate sobre

privacidade demonstre como a primeira fase da consulta ainda trazia muito da mobilização e

do debate que se criou a partir do PL Azeredo. O grande debate ali era sobre privacidade,

criminalização e vigilância. O tema da criminalização ficou explicitamente de fora. Então, o

tema importado do debate sobre o PL Azeredo para a consulta era o da vigilância,

especificamente o da guarda de logs157, que se refletiu no debate da privacidade. A

discordância quanto à posição dos órgãos governamentais, aqui, reflete o debate contra a

posição da Polícia Federal, que participou do processo justamente pedindo que fosse possível

exigir que os logs fossem guardados para permitir a eficiência de suas investigações.

Esta preponderância mostra claramente a continuação de uma mesma conversa que se

inicia no debate sobre o PL Azeredo e continua na consulta colaborativa. A continuidade da

conversa é uma demonstração da existência de um acoplamento adequado entre os dois

espaços de deliberação dentro de um sistema deliberativo.

154 SANTARÉM, Paulo R. S.. O Direito Achado na Rede: A Emergência do Acesso à Internet como Direito

Fundamental no Brasil. dissertação (mestrado), 2010, p. 99. Disponível em:

<http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/8828/1/2010_PauloRen%C3%A1daSilvaSantar%C3%A9m.pdf>.

155 BRAGATTO, Rachel C.; SAMPAIO, Rafael C.; NICOLAS, Maria A. Inovadora e Democrática. Mas e daí?

Uma análise da primeira fase da consulta on-line sobre o Marco Civil da Internet. Política & Sociedade vol.

14 nº 29: Florianópolis, Jan./Abr. de 2015, p.135.

156 Ibid. p. 137.

157 A guarda de logs é a guarda dos registros dos usuários da internet. Obrigando os provedores a guardar logs,

aumenta-se o poder de vigilância e diminui-se a privacidade dos usuários da internet.

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Cruz mostra que, apesar do total de comentários, na primeira fase, ser de 686, houve a

participação de apenas 133 participantes. Desses, 118 cidadãos e 15 entidades (empresas,

entidades de classe e ONGs). Tanto Cruz quanto Bragatto et al. mostram que houve uma

enorme concentração de comentários por determinados usuários. 67% das mensagens foram

enviadas por cerca de 10% dos participantes. Bragatto aponta que os cidadãos foram

responsáveis por 85,9% das mensagens, as empresas por 7,1% e as ONGs por 6,4%.

A participação das empresas e entidades de classe se deu, nesta primeira fase,

sobretudo por meio de e-mails ou de posicionamento enviado diretamente à Secretaria e, só

então, postados na consulta. Ou seja, houve grande engajamento entre indivíduos, os

indivíduos também foram responsivos aos posicionamentos das empresas, mas, nesta fase, as

empresas e entidades de classe foram pouco responsivas aos cidadãos.158

As duas análises coincidem em apontar para o ambiente de grande respeito e o alto

nível das discussões, com muitas referências a aspectos técnicos e operacionais da internet, à

Constituição e à legislação internacional.

Para Bragatto et al.,

A pesquisa evidencia que há diversos atributos de uma consulta online

bastante qualificada: tratou-se de um ambiente de grande respeito (sem uma

moderação ativa), no qual os participantes preocuparam-se em responder uns

aos outros e justificar seus argumentos, usando diversas fontes de

informação. Além disso, as entrevistas com os gestores da consulta

demonstram o cuidado que houve com as sugestões dos cidadãos. A análise

comprova que mais da metade das contribuições foi efetivamente

contemplada no documento resultante da primeira fase. Considerando-se

ainda que boa parte das sugestões que não foi contemplada tratava-se de

posições contrárias a qualquer legislação. Pode-se, então, afirmar que a

consulta teve um alto grau de empowerment, ou seja, em grande medida, a

consulta pública parece atender a todos os principais requisitos para ser

considerada democraticamente relevante.159

Raphael Silveiras, faz também uma análise interessante do debate, nesta primeira fase,

inclusive trazendo exemplos de interação entre os participantes:

158 Isso é corroborado pela análise de Raphael Silveiras (SILVEIRAS, Raphael S. Consultas Públicas para o

Marco Civil da Internete Reforma da Kei de Direito Autoral: A relação entre direito, internet e estado na

contemporaneidade. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Filosofia e Direitos Humanos, Unicamp, 2014,

p.114.)

159 BRAGATTO, Rachel C.; SAMPAIO, Rafael C.; NICOLAS, Maria A. Inovadora e Democrática. Mas e daí?

Uma análise da primeira fase da consulta on-line sobre o Marco Civil da Internet. Política & Sociedade vol.

14 nº 29: Florianópolis, Jan./Abr. de 2015, p.145

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96

(...) havia a possibilidade de comentar o comentário do outro na consulta

pública, o que contribuiu para o estabelecimento do diálogo entre os

participantes. Entre esses diálogos, um que em nossa leitura é importante

ressaltar justamente por refletir essa dificuldade de intermediação entre

direito e Internet foi o que se estabeleceu entre Mario Marino e Frederico

Pandolfo. Marino se posicionou a favor de uma relação robusta entre direito

e Internet, defendendo a identificação do usuário para acessar a rede de redes

e a concentração de informação nas mãos do Estado – algo que se relaciona

com a eficácia do exercício do poder; Pandolfo se mostrou favorável aos

princípios que consolidaram a rede mundial de computadores e receoso em

relação ao Estado na Internet.

Marino: Se pudermos unificar toda a informação em um banco de dados só,

(do Estado) e cuidar para que ele protocole nossa autenticidade quando

necessário, sequer um banco precisaria mais de nossos dados reais, bastaria o

tal “ok” do sistema Estatal. Pandolfo: Mas, resumindo, a coisa seria tão

grande, mas tão grande, que não haveria como controlar (exemplo? A

própria internet) e ele seria tão visado, tanto para quem quer roubar dados,

quanto para quem quer causar prejuízos financeiros, que custaria

absurdamente caro proteger ele de forma adequada (ele tornaria-se um alvo

de alta prioridade – seria um ponto único de falha na internet brazuca)160

A primeira fase das consultas terminou no dia 17 de dezembro. A partir daí, o

Ministério da Justiça, com o auxílio do CTS-FGV, devia apresentar um texto e propor para a

consulta.

As ferramentas de análise de comentários eram muito menos desenvolvidas do que as

que hoje se tem acesso. E as análises estavam sendo feitas de maneira bastante manual. Mas

Anna Carolina Papp relata que, em janeiro de 2010, em um debate na Campus Party161,

membros do Partido Pirata e do coletivo Transparência Hacker, propuseram um mutirão para

a análise de comentários. A partir disso, o Ministério abriu a base de dados dos comentários

da primeira fase da consulta para que ela pudesse ser manejada por todos. O resultado foi que

os grupos de ativistas usaram técnicas muito mais avançadas de visualização de dados do que

o Ministério teria condições de usar naquele início de 2010.

160 SILVEIRAS, Raphael S. Consultas Públicas para o Marco Civil da Internete Reforma da Kei de Direito

Autoral: A relação entre direito, internet e estado na contemporaneidade. Dissertação (Mestrado) - Instituto de

Filosofia e Direitos Humanos, Unicamp, 2014, p. 113 161 Campus Party é um evento anual, considerado um dos principais do Brasil sobre tecnologia e internet, que

reúne os mais importantes atores do tema.

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97

Ao inserir as informações no MyEyes, programa da IBM que cria

interpretações visuais em flash, criou gráficos e nuvens de tags que

mostravam os tópicos mais comentados na consulta, os maiores

comentadores e o que era dito sobre cada tema Além disso, uma árvore de

palavras permitia que, ao digitar uma palavra ou expressão, o usuário tivesse

acesso à visualização simultânea e comparada dos principais contextos em

que aquele termo havia sido utilizado.162

De posse de boas ferramentas de visualização, as equipes começaram a trabalhar no

texto do anteprojeto de lei propriamente dito. Se a primeira fase da consulta pública, baseada

em princípios mais gerais, dava uma ampla liberdade para a equipe do Ministério de propor

um texto inicial, a segunda fase já exigia um cuidado maior. O texto que se colocaria em

consulta pública na segunda fase era uma tomada de posição por parte do governo. Portanto,

necessitava um aval maior de outros setores do governo. No início de 2010, foram

consultados sobre o texto (antes que ele fosse submetido à consulta) os Ministérios da Casa

Civil, das Comunicações, da Cultura, das Relações Exteriores, da Ciência e Tecnologia, do

Planejamento e da Educação163. Em um processo que era menos de escuta dos outros

ministérios e mais, segundo Paulo Rená - na época trabalhando na SAL - em entrevista à

Anna Carolina Papp, “um processo de catequização” do resto do governo164.

O espaço de consulta sofreu várias alterações entre a primeira e a segunda fase.

Guilherme de Almeida explica:

162 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p. 56. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/

docs/em_nome_da_internet>.

163 Ibid. p. 57.

164 Ibid. p. 57.

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98

Entre a primeira e a segunda etapa do debate, a plataforma de consulta

passou tanto por mudanças cosméticas quanto por alterações estruturais. O

portal passou a contar com um novo visual decorrente da implementação de

um novo tema165

, com melhor organização espacial das informações. Ainda,

foi desenvolvido e implementado pela equipe do culturadigital.br um plugin

específico, denominado dialogue, com o intuito de facilitar o processo de

criação da consulta, bem como o de inserção de comentários e elaboração de

relatórios. Essa mudança permitiu que a consulta da íntegra do anteprojeto

de lei fosse realizada em um único post, ao invés de em uma sequência de

posts. Para isso, o plugin facultava a marcação (ou seja, a inserção de tags)

para delimitar o início e o fim do trecho comentável. Esta marcação, no

código fonte da postagem, ensejava o aparecimento de janelas de

comentários imediatamente após cada trecho marcado, permitindo várias

janelas de comentários em uma única postagem. O plugin, que serviria

posteriormente de base para processos de consulta e debate subsequentes, e o

tema do website foram colocados à disposição do público em geral sob uma

licença livre, contribuindo para a replicação de iniciativas semelhantes,166

Todas essas mudanças representam avanços, valorizando o debate responsivo e

argumentativo entre os participantes.

A dinâmica do debate na segunda fase apresentou algumas diferenças com relação à

primeira. Houve quase o dobro de comentários na segunda fase (1295 contra 686, da primeira

fase)167, um maior número de comentários por usuários e também uma menor concentração de

comentários entre os mesmos usuários. Na segunda fase, houve participação muito maior de

entidades (35) do que na primeira (15), sendo que apenas duas empresas participaram da

primeira fase e mais de dez na segunda.168

O respeito na interação entre os usuários, existente na primeira fase, foi mantido,

mesmo com o aumento do número de entidades, o que poderia gerar um aumento da

polarização: “Praticamente a totalidade das mensagens analisadas foi respeitosa, havendo

menos de dez mensagens com tom rude. É importante ter em mente que o processo não

165 Um tema é um conjunto de arquivos que funciona em conjunto para criar o design e a funcionalidade de um

website, permitindo que as modificações visuais e funcionais sejam implementadas de uma só vez no sítio

como um todo.

166 ALMEIDA, G. A. A. Marco Civil da Internet - Antecedentes, formulação colaborativa e

resultados alcançados. In: ARTESE, G. Marco Civil da Internet: análise jurídica sob uma

perspectiva empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 24.

167 SILVEIRAS, Raphael S. Consultas Públicas para o Marco Civil da Internete Reforma da Kei de Direito

Autoral: A relação entre direito, internet e estado na contemporaneidade. Dissertação (Mestrado) - Instituto

de Filosofia e Direitos Humanos, Unicamp, 2014, p. 118.

168 CRUZ, Francisco C. B.. Direito, Democracia e Cultura Digital: A experiência de elaboração legislativa do

Marco Civil da Internet. Dissertação (mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2016

p. 77. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-08042016-154010/en.php>.

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contou com uma moderação ativa, o que demonstra que o diálogo cordial entre os usuários

prevaleceu, mesmo quando houve discordâncias.”169

Bragatto et al. também mostram que na segunda fase houve ainda mais discordância

dos posicionamentos iniciais do governo: 54,1% discordaram e 33,1% concordaram com as

propostas inicialmente apresentadas. Isso ganha relevância quando se confronta com o dado,

também trazido pelos autores, de que 49,2% dos comentários foram contemplados e 21,3%

foram parcialmente contemplados, mostrando que, mesmo a visão que divergia da posição

inicial do governo tinha poder de influência no debate.

Houve um episódio que foi peculiar no processo. Um dos pontos que mais gerou

polêmica (como se vê no gráfico produzido por Bragatto Sampaio e Nicolás) foi o artigo 20

do anteprojeto apresentado do governo.

Figura 1. Reação dos usuários ao agendamento inicial do governo por artigos

Fonte: Bragatto, Sampaio e Nicolás147

O artigo disciplinava a forma de retirada de conteúdo. A proposta inicial do governo

trazia aquilo que ficou conhecido como notice and take down, modelo pelo qual o servidor

apenas pode ser responsabilizado por não retirar o conteúdo após ter sido notificado. Essa

redação era considerada prejudicial à liberdade de expressão, pois gerava um incentivo à

retirada do conteúdo para que não se gerasse a responsabilização.170

169 BRAGATTO, Rachel C.; SAMPAIO, Rafael C.; NICOLAS, Maria A. A segunda fase da consulta do Marco

Civil da Internet: Como foi construída, quem participou e quais os impactos, Revista Eptic, vol 17 vol. 1, jan-

abril 2015.

170 A primeira redação para o artigo 20 era:

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100

Após as críticas, durante o processo de consulta, o governo propôs uma nova redação,

garantindo que apenas após uma ordem judicial o conteúdo deveria ser retirado.

Essa intervenção durante o processo mostra, de um lado, uma disposição do governo

de garantir a responsividade ao processo. Mas mostra, também, mais uma vez, a tentativa do

governo de buscar transformar o processo em um espaço de criação de um texto mais

consensual, que pudesse ter o apoio de todos os envolvidos.

3.5 O Resultado da Consulta

No final de maio de 2010, a consulta foi encerrada, contando com uma participação

relativamente pequena em números absolutos, mas com uma participação que incluiu a

constelação dos argumentos existentes na sociedade. Esses argumentos foram expostos uns

aos outros e um grande esforço para a criação de um acordo baseado na força do melhor

argumento foi realizado.

Os atores, antes polarizados ao longo do debate do PL Azeredo, terminavam a

consulta com um alto grau de concordância sobre qual deveria ser o texto do projeto. Ou, pelo

menos, um acordo sobre 3 pontos essenciais que, como se verá no próximo capítulo, nortearão

todo o debate no legislativo. Esses três pontos foram: 1) garantia de liberdade e privacidade

para os usuários de internet (mantendo alguma guarda de logs para permitir a investigação

policial); 2) exclusão de temas de propriedade intelectual do texto e 3) neutralidade da rede.

Esses três pontos representavam um acordo que incorporava pontos importantes para

todos os setores envolvidos na consulta. Mas o ponto que defendemos aqui é o de que o

acordo não foi uma mera barganha típica na qual cada um dos grupos de interesse esconde seu

espaço de negociação para obter a maior vantagem possível. O engajamento argumentativo

O provedor de serviço de Internet somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo

gerado por terceiros se for notificado pelo ofendido e não tomar as providências para, no âmbito do seu

serviço e dentro de prazo razoável, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.

§ 1º. Os provedores de serviços de Internet devem oferecer de forma ostensiva ao menos um canal eletrônico

dedicado ao recebimento de notificações e contranotificações.

§ 2º. É facultado ao provedor de serviços de internet criar mecanismo automatizado para atender aos

procedimentos dispostos nesta Seção.

A segunda redação: O provedor de serviço de internet somente poderá ser responsabilizado por danos

decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após intimado para cumprir ordem judicial a respeito, não

tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o

conteúdo apontado como infringente.

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101

que ocorreu na consulta, em função dos elementos que a constituíram (conforme visto neste

capítulo) propiciaram que este acordo fosse realizado a partir da força do melhor argumento.

Essa força, veremos no próximo capítulo, será decisiva para a manutenção destes

pontos no texto final aprovado no Congresso, mesmo contra forças muito grandes contrárias.

E o interessante é que a principal força contrária no legislativo, o setor de

telecomunicações, teve participação bastante restrita na consulta. A empresa Claro, por

exemplo, enviou uma manifestação, mas não houve uma ação conjunta do setor, até porque a

representação de classe do setor (Sinditelebrasil), como se verá adiante, não estava bem

estruturada.

Enquanto as empresas telefônicas se mantiveram distantes, o movimento social de

internet livre, o setor de segurança, o setor bancário, os provedores de internet (nacionais e

estrangeiros) e o setor de produção de conteúdo (direito autoral), participaram ativamente da

consulta, se engajaram no debate argumentativo e terminaram o processo com um alto grau de

compromisso com o projeto.

O texto foi revisto pela SAL-MJ, com a consultoria do CTS-FGV, buscando

incorporar os comentários feitos durante o debate e, em agosto de 2010, enviado, pelo então

ministro Luiz Paulo Barreto, aos outros Ministérios no início de agosto de 2010.

Segundo Guilherme Almeida:

A necessidade de sucessiva obtenção de pareceres técnicos e jurídicos de

todos os Ministérios envolvidos (e das chancelas dos respectivos Ministros

de Estado), além da necessidade de ajustes e da apresentação de

esclarecimentos para superar eventuais dissensos internos, faz com que a

tramitação de projetos de lei de iniciativa do Poder Executivo seja

naturalmente trabalhosa. Assim, o projeto de lei do marco civil da internet

acabou não sendo encaminhado ao Congresso Nacional ainda durante o

mandato do Presidente Lula.

Com a mudança de presidente, ministros, secretários e consultores jurídicos,

a proposta precisou reiniciar sua tramitação: novos pareceres, chancelas,

debates e ajustes foram necessários para o devido encaminhamento do texto

à Casa Civil da Presidência da República e à apreciação e encaminhamento

final pela Presidenta Dilma Rousseff ao Congresso Nacional em agosto de

2011. O texto foi recebido no Congresso como Projeto de Lei nº

2.126/2011.171

171 ALMEIDA, G. A. A. Marco Civil da Internet - Antecedentes, formulação colaborativa e

resultados alcançados. In: ARTESE, G. Marco Civil da Internet: análise jurídica sob uma

perspectiva empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 17.

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102

3.6 Conclusão

Olhando para o processo de aprovação do Marco Civil da Internet na perspectiva dos

sistemas deliberativos, é possível perceber o papel central que a consulta on-line realizada

pelo Ministério da Justiça teve no processo. A consulta constituiu um espaço deliberativo que

reuniu a constelação de argumentos na sociedade, contrapondo esses argumentos entre si e

gerando um acordo entre os participantes baseado na força do melhor argumento.

Para que isso ocorresse, em primeiro lugar, é preciso compreender que a consulta não

foi o início do processo deliberativo. Ela foi o segundo espaço deliberativo, dentro de um

sistema deliberativo, que contou com indutores de conectividade (burocracia, continuidade de

participantes e desenho institucional) para a existência de um acoplamento consistente com o

espaço anterior, no qual se deu o debate sobre o PL Azeredo.

Este segundo espaço, diferentemente do primeiro que terminou em um ambiente

polarizado, continha elementos que incentivaram que o acordo ali formado se desse de forma

argumentativa e não por mera barganha.

Listamos sete elementos que propiciaram este debate argumentativo: (i) força política

que o Ministério emprestou ao processo; (ii) confiança no processo de facilitação; (iii)

clareza das regras; (iv) não existência de processos de votação (v) busca ativa de atores que

pudessem enriquecer o debate; (vi) publicidade dos debates; (vii) especificidade dos tópicos

debatidos; (vii) existência de várias fases de debate .

É difícil imaginar que esse critérios possam ser extrapolados para outras consultas de

maneira imediata, mas o próximo capítulo aponta para um enorme impacto da maneira como

se deu o debate na consulta sobre o processo legislativo. Assim, o registro sobre quais os

elementos geraram este impacto é fundamental para que se analise a forma de se construir

consultas que tenham por objetivo influenciar o processo legislativo.

Por fim, vimos aqui que o debate argumentativo gerou um acordo, baseado na força do

melhor argumento, em tornos de três pontos. São estes três pontos que, veremos a seguir, se

manterão centrais no texto aprovado, mesmo com forças muito grandes trabalhando para

desestabilizar o acordo construído durante a consulta.

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4. A TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA DO MARCO CIVIL DA INTERNET

4.1 Introdução

Este capítulo discutirá a terceira etapa do sistema deliberativo que resultou na

aprovação do Marco Civil da Internet: a tramitação legislativa do Projeto de Lei 2126/11,

enviado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo.

O Projeto chegou ao Congresso após um pouco mais de um ano e meio de debate

público e aberto, por meio de plataforma colaborativa, e mais quase um ano de tramitação

entre os Ministérios do Poder Executivo.

A avaliação que será feita ao longo do capítulo discutirá o impacto da forma de

elaboração escolhida pelo Executivo para a formulação do Marco Civil da Internet, descrito

no capítulo anterior, durante a tramitação do projeto na Câmara.

A consulta pública colaborativa durante a elaboração afeta o comportamento dos

grupos de interesse envolvidos no processo legislativo? Como? Afeta a forma pela qual o

Legislativo debate o projeto? Os atores legislativos vão ter um comportamento distinto do

esperado em função de ter havido um debate colaborativo? Chega a afetar o resultado do

processo legislativo? Ou seja, o texto final do Marco Civil da Internet aprovado pelo

Congresso foi influenciado pela forma de deliberação escolhida para a sua formulação?

Como discutido no primeiro capítulo, autores da teoria da deliberação defendem que o

processo deliberativo público e argumentativo aumenta a legitimidade da decisão coletiva.

Dryzek e Niemeyer, por exemplo, argumentam que essa legitimidade advém da ressonância

da decisão coletiva com a opinião pública.172

Mas o aumento da legitimidade é suficiente para impactar a decisão tomada pelo

Congresso? Uma hipótese é a de que um processo que adquire tamanha legitimidade pública

gera um custo muito alto para sua alteração profunda por parte do Legislativo. Esse tipo de

172 DRYZEK, J. S.; NIEMEYER, S. Foundations and Frontiers of Deliberative Governance. Oxford University

Press: Oxford, 2013, p. 40.

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argumento é utilizado, por exemplo, para se referir ao custo de se rejeitar um projeto de lei de

iniciativa popular173. Mas não foi apenas a legitimidade que gerou impacto na tramitação.

Analisando o processo legislativo, por meio dos documentos públicos

disponibilizados, da literatura produzida sobre o tema e, sobretudo, por meio de entrevistas

com atores chave neste processo e, utilizando o método de process tracing174,175, foi possível

constatar que o processo de consulta colaborativa afetou de várias formas o processo

legislativo.

Em primeiro lugar, ele não afeta o processo no sentido de gerar um escudo de

legitimidade que impeça um debate real do legislativo sobre o tema. O parlamento, neste caso,

claramente aprofundou debates anteriores.

O Congresso, ao debater o Projeto de Lei do Marco Civil da Internet estava, como se

verá, continuando a conversa realizada na consulta (esta, por sua vez, era a continuação do

debate em torno do PL Azeredo). Da mesma forma que indutores de conectividade

permitiram, como visto, que a consulta incorporasse o debate do espaço deliberativo anterior,

três indutores de conectividade exercem este papel no acoplamento entre a consulta e o

Congresso. No primeiro caso, foram indutores a SAL, a repetição dos participantes e o

desenho da consulta. Neste segundo acoplamento, permanecem como indutores tanto a SAL

quando a repetição de participantes e adiciona-se o relator do PL na Câmara.

O processo provocou alterações na dinâmica informacional da tramitação. As

informações independentes, construídas durante um debate público argumentativo anterior,

afetaram positivamente a capacidade do legislativo de ter acesso a essas informações,

reforçando a autonomia do Legislativo diante do executivo e também de outros grupos de

interesse.

Talvez, o mais importante é o fato de que o debate anterior contribuiu decisivamente

para o resultado final do texto aprovado. A hipótese desenvolvida, aqui, é a de que o debate

173 Projetos de iniciativa popular muitas vezes criam uma legitimidade pública que restringe a possibilidade de

debate no Congresso. A aprovação do projeto conhecido como “Ficha Limpa” e das chamadas 10 medidas

contra a corrupção, propostas pela força tarefa do Ministério Público da Lava-Jato (esta última apenas na

Câmara dos deputados), são exemplos de projetos no qual a legitimidade da participação popular inibe a

discussão parlamentar. Esse fenômeno, evidentemente, afasta-se da ideia de representação discursiva

trabalhada por Dryzek e Niemeyer e se aproxima do tipo de fenômeno criticado por Riker.

174 COLLIER, D. Understanding Process Trancing. Political Science and Politics 44 nº 04 p. 823-830, 2011.

Disponível em: <http://polisci.berkeley.edu/sites/default/files/people/u3827/Understanding%

20Process%20Tracing.pdf>.

175 GEORGE, Alexander L.; BENNET, Andrew. Case Studies and Theory Development in the Social Sciences.

MIT Press: Cambridge, 2005.

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105

realizado no Executivo construiu uma aliança baseada na força do melhor argumento entre

grupos de interesses bastante distintos que norteou todo o processo legislativo, chegando

inclusive a derrotar interesses - e métodos - que tradicionalmente são vistos como forças

dominantes no Congresso Nacional.

Este capítulo mostra como essa aliança se faz em torno de um acordo básico formado

durante a consulta no âmbito do Executivo. O acordo envolveu (como explicitado no capítulo

anterior): garantia de liberdade e privacidade para os usuários de internet, exclusão de temas

de propriedade intelectual do texto e neutralidade da rede. Nos momentos em que algum dos

grupos de interesse - tendo ele participado ativamente ou não do processo de elaboração -

tentou romper o eixo central do acordo formado, esse grupo foi derrotado. No final, o texto

aprovado recebeu algumas alterações no Congresso. Todas elas reforçaram o conteúdo

pactuado no processo colaborativo. As alterações que foram no sentido contrário ao pactuado

não prosperaram.

Neste capítulo também se evidencia como fatores exógenos influenciaram o processo

de tramitação. A aprovação de um projeto de lei como resposta ao vazamento de fotos da atriz

Carolina Dieckmann e, mais fortemente, as revelações de Edward Snowden, foram elementos

exógenos que geraram reação dos atores durante a tramitação. Estes fatores trazem um ponto

importante: o processo deliberativo descrito nesta tese não foi a única razão para a aprovação

do texto da lei em sua forma final, mas ele foi um elemento necessário para essa aprovação.

A ideia de que um processo amplamente aberto e público é capaz de produzir uma

deliberação de alta qualidade e um acordo sólido que consiga se impor a mecanismos que

grupos de interesse tradicionalmente usam para fazer valer suas posições no parlamento é a

contribuição central que este trabalho pretende dar.

Assim, este capítulo se inicia com a apresentação do método de Process Tracing (4.2),

que será utilizado para testar a hipótese descrita acima. Em seguida serão expostos os atores

do debate no Congresso (4.3). No item 4.4, discute-se a tensão que poderia existir no

Congresso em função do projeto ter sido elaborado a partir de um consulta pública

colaborativa, mas a descrição mostra que o projeto foi bem recebido pelo parlamento. No item

4.5, debate-se como a consulta afetou a tramitação a partir da perspectiva informacional. Já no

item 4.6, inicia-se a descrição da tramitação do projeto e do debate legislativo, em que se pode

perceber que tentativas feitas pelos atores da tramitação legislativa de romper o acordo

realizado na consulta resultaram em inviabilização momentânea da aprovação do projeto. No

item 4.7, apresenta-se o primeiro fator exógeno ao debate no Congresso a influenciar o

processo legislativo: a aprovação do chamado PL Carolina Dieckmann, que rompe uma parte

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importante do acordo realizado no processo de consulta. No item 4.8, remonta-se a o processo

pelo qual o acordo entre as partes é rompido e como se volta ao acordo original, reforçando a

ideia, trabalhada no primeiro capítulo, de que existe uma força maior em um acordo formado

pelo melhor argumento. No item 4.9, explica-se como o aparecimento do chamado Blocão

criado pelo então deputado Eduardo Cunha teve impacto na tramitação do projeto.

4.2 O Método de Process-Tracing

O método de Process-Tracing, mencionado pela primeira vez por George e Bennet no

final dos anos 1970, tem sido desenvolvido como forma bastante interessante, nas ciências

sociais, para realizar uma análise qualitativa de um determinado processo histórico, quando se

tem por objetivo a confirmação ou o desenvolvimento de uma teoria. Nas palavras de George

e Bennet “The process-tracing method attempts to identify the intervening causal process—

the causal chain and causal mechanism—between an independent variable (or variables) and

the outcome of the dependent variable.”176

O método de process-tracing, explicam os autores, é interessante, porque a análise

rigorosa da observação das etapas de um processo deve estar vinculada de forma específica

com a explicação de um caso. Mais especificamente, o método exige que, a partir de uma

hipótese formulada, cada etapa prevista pela hipótese deva ser verificada, sob pena de se

necessitar ajustar a hipótese inicial.177

O método é particularmente interessante para atribuir causalidade em processos

complexos, no qual análises quantitativas podem deixar escapar relações entre atores e

eventos que acabam se demonstrando essenciais para a explicação de um fenômeno. Para os

autores

it is the very lack of independence among these observations that make them

a powerful tool for inference. The fact that the intervening variables, if truly

part of a causal process, should be connected in particular ways is what

allows process-tracing to reduce the problem of indeterminacy (the problem

often misidentified in case studies as the degrees of freedom problem).178

176 GEORGE, Alexander L.; BENNET, Andrew. Case Studies and Theory Development in the Social Sciences.

MIT Press: Cambridge, 2005, p. 206.

177 Ibid. p. 209

178 Ibid. p. 210

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George e Bennet expõe quatro modalidades de process tracing:

1) Narrativa detalhada. Nesta modalidade o autor do estudo de caso oferece

apenas uma narrativa detalhada que joga luz sobre um evento histórico

específico: “Such a narrative is highly specific and makes no explicit use of

theory or theory-related variables. It may be supportable to some extent by

explanatory hypothesis, but these remain tacit. Historical chronicles are a

familiar example of what is at best an implicit, a theoretical type of process

tracing.”179;

2) Uso de hipóteses e generalizações. “In a more analytical form of process-

tracing, at least parts of the narrative are accompanied with explicit causal

hypotheses highly specific to the case without, however, employing theoretical

variables for this purpose or attempting to extrapolate the cases’ explanation

into a generalization.” Em alguns casos, uma forma mais forte de explicação

aplicaria aqui um vínculo entre a especificidade e uma generalização já feita

anteriormente;

3) Explicação analítica. Esta forma de process-tracing pretende transformar,

explicitamente uma narrativa histórica em uma explicação causal analítica

embasada em teorias existentes. A narrativa pode tanto focar no que pode ser

uma parte importante de uma explicação da teoria ou pode demonstrar que a

teoria não se aplica, justamente, por ela não fornecer uma hipótese que pode

ser confirmada a partir das etapas da narrativa;

4) Explicação geral. No caso de falta de dados para se fazer a narrativa

detalhada mirando cada etapa do processo, ou por uma decisão consciente pelo

fato de a explicação buscada estar ancorada em altos níveis de abstração,

process-tracing é utilizado sem a necessidade de uma reconstituição detalhada

e causal de cada passo do evento histórico.

Neste trabalho, optamos pela terceira forma de process-tracing: explicação analítica.

A proposta levada adiante, neste capítulo, foi a de testar uma hipótese formulada com base em

teorias existentes a partir da descrição detalhada de um evento histórico.

179 GEORGE, Alexander L.; BENNET, Andrew. Case Studies and Theory Development in the Social Sciences.

MIT Press: Cambridge, 2005, p. 206.

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108

A principal hipótese a ser testada é a de que uma aliança improvável de atores,

baseada na força do melhor argumento, formada a partir de um processo deliberativo público,

foi um fator necessário para a aprovação do Marco Civil da Internet180. O processo

deliberativo é a variável independente que deve ser relacionada com o resultado da aprovação

da lei.

A aliança em torno de três itens principais (neutralidade, privacidade e exclusão dos

direitos autorais) norteou todo o processo. Nos momentos em que os atores tentaram se

afastar do acordo construído no processo legislativo, a aprovação do projeto ficou inviável.

Quando os atores voltaram a se reunir em torno do mesmo acordo, foi possível derrotar

interesses poderosos e bem articulados na Câmara dos Deputados. Como expusemos no

primeiro capítulo, reforçamos, com esta ideia, o ponto de que existe uma força maior em um

acordo formado pelo melhor argumento.

O método de process-tracing também permite descartar hipóteses alternativas como a

de que bastaria o apoio do Executivo para que o projeto fosse aprovado.

Finalmente, a narrativa analítica nos permite, também, confirmar a hipótese formulada

no capítulo inicial, de que processos deliberativos públicos, principalmente pela internet,

podem se constituir em importante elemento informacional para o legislativo, dando aos

processos não apenas um caráter de legitimação da lei, pelo procedimento deliberativo

estabelecido181, mas também conferindo mais eficiência ao processo e melhorando a

qualidade da decisão tomada pelo Congresso.

Assim, este capítulo fará a narrativa detalhada do processo legislativo do projeto de lei

do Marco Civil enviado pelo Executivo em 2011, a partir de informação coletada em

entrevistas semiestruturadas182, na bibliografia produzida sobre o tema e em material de

imprensa da época. Nesta narrativa, a cada momento do processo, estaremos testando as

180Como se verá, ao longo deste capítulo, não se trata de um fato suficiente. Há outros fatores que concorreram

para a aprovação do Marco Civil. Como, por exemplo, as revelações feitas pro Edward Snowden. Mas a

hipótese central, aqui, é a de que o Marco Civil não seria aprovado caso não houvesse o processo de consulta

pública.

181 HABERMAS, Jurgen. A Inclusão do Outro - estudos de teoria política. Trad. Paulo Astor Soethe. Edições

Loyola: São Paulo, 2007, p. 325 e HABERMAS, Jurgen. Between Facts and Norms: contribution to a

discourse theory of law and democracy. Trad.William Rehg. 1998, p. 135.

182 Como anunciado na Introdução, foram realizadas entrevistas para este trabalho com: Ivo Correa (Correa atuou

como diretor de relações institucionais do Google durante a fase da consulta pública e era sub-chefe de

assuntos jurídicos da Casa Civil a partir de 2011); Sergio Amadeu da Silveira (sociólogo, ativista bastante

representativo da posição do movimento pela internet livre); Demi Getshko (membro mais antigo do Comitê

Gestor da Internet); Alessandro Molon (deputado federal, relator do projeto do Marco Civil na Câmara);

Ronaldo Lemos (professor do Centro Tecnologia e Sociedade da FGV durante o debate e formulação do

projeto) e Eduardo Levy (Presidente do Sinditelebrasil, associação representativa das empresas de telefonia)

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109

hipóteses referidas, que se confirmam mesmo em um processo relativamente longo e com

tantos movimentos políticos ao seu redor.

4.3 Os atores da discussão no Congresso

O ambiente político e os atores neste debate, quando o projeto é enviado ao

Congresso, possuem semelhanças com o que existiam durante a consulta pública. Mas há,

também, diferenças fundamentais que são importantes de serem explicitadas. Os grupos de

interesse são basicamente os mesmos. A partir do mapeamento feito por Lemos, Steibel,

Souza e Nolasco183, encontramos empresas de telefonia, sociedade civil184, provedores de

internet nacionais e estrangeiros, setor de produção de conteúdo (direito do autor), setor de

segurança e governo185, presentes tanto na fase de consulta quanto no Congresso. Porém, a

forma de representação desses interesses muda radicalmente entre meados de 2010, quando a

consulta se encerra, e meados de 2012, quando o deputado Assendro Molon (então no PT-RJ),

que foi designado relator do projeto na Câmara, apresenta seu primeiro relatório.

Olhando apenas para os atores governamentais, já há mudanças significativas. Em

2010, a consulta é feita, sobretudo, pelo Ministério da Justiça e Ministério da Cultura. Os dois

órgãos ocupados por técnicos com fortes vínculos com o movimento social de internet

livre.186 A Casa Civil se mantém mais distante do debate na consulta. O Ministério das

Comunicações tinha um ministro do PMDB, Helio Costa, que havia sido expressamente

183 LEMOS, R. STEIBEL, F. SOUZA, C. A. P., NOLASCO, J. A Bill of Rights for the Brazilian Internet

(“Marco Civil”) – A Multistakeholder Policymaking Case. In Gasser, U., Budish, R. and West Myers, S.

(eds.) Multistakeholder as Governance Groups: Observations from Case Studies 2015. Boston,

Massachusetts: Berkman Center Research Publication 2015-001. Disponível

em: http://ssrn.com/abstract=2549270

184 Os autores aqui usam a expressão sociedade civil. Estamos preferindo usar movimento pea internet livre para

não criar uma confusão com a visão mais ampla de sociedade civil que poderia incluir atores do mercado, por

exemplo. Mas é verdade que a expressão sociedade civil aparecerá nas entrevistas, e com outros autores,

como sinônimo deste movimento pela internet livre que, como vimos anteriormente, não funcionava de

maneira orgânica, mas era composto por diversas entidades e ativistas e, de maneira geral, comportou-se de

forma bastante coesa ao longo desse processo.

185185 Os autores usam governo, mas eu não concordo que governo um grupo de interesse único, o governo

(desde a consulta pública, mas, sobretudo, na segunda fase) é colonizado por distintos grupos de interesse. A

entrevista com Ivo Correa corrobora essa ideia.

186 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/

docs/em_nome_da_internet> e NOLASCO, Juliana. Acessando a Rede: um olhar para a formação da rede

para a regulamentação da Internet no Brasil. dissertação (mestrado) na EAESP-FGV, 2014. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/11572/disserta%C3%A7%C3%A3o_final.pdf?

sequence=9>.

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110

excluído da coordenação deste debate por parte do Presidente Lula. A participação do

Ministério das Comunicações na consulta se dá, principalmente, pelo setor técnico da Anatel.

Esses atores mudaram significativamente entre 2010 e 2012. A começar pela troca de

Lula por Dilma Rousseff na presidência. E houve mudança de ministro em todos esses

ministérios, o que nos obriga a entender o que essas mudanças representaram.

No Ministério da Justiça, apesar da troca de Tarso Genro para José Eduardo Cardozo,

todas as entrevistas reconhecem que houve uma manutenção do mesmo grupo político e, em

geral, das posturas defendidas. A Justiça, principalmente a Secretaria de Assuntos

Legislativos, por se manter com a mesma linha política, manterá uma atuação presente no

debate parlamentar, defendendo o processo de consulta realizado pelo próprio Ministério.

Esse papel, presente até a aprovação final do texto, fez com que a Secretaria exercesse, mais

uma vez, o papel de indutor de conectividade. Já exercera esse papel para garantir que a

conversa pública na consulta representasse uma continuação do debate existente em torno do

PL Azeredo e, assim que o PL chega ao Congresso, exerceu o mesmo papel para garantir o

acoplamento entre o diálogo público da consulta e o debate parlamentar.

No Ministério da Cultura, a nomeação de Anna de Hollanda muda radicalmente a

posição do órgão187. O Ministério, que nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira questionou

a legislação brasileira de direito de autor e era visto como opositor dos setores mais

tradicionais de defesa do direito autoral, sofre uma virada brusca neste ponto e passa a ser

identificado como o grande defensor dos direitos autorais.

Na Casa Civil, que antes estava mais distante do processo, assume a subchefia de

Assuntos Jurídicos, Ivo Correa, que participou ativamente da primeira fase da consulta em seu

papel anterior, como diretor de políticas do Google no Brasil. Correa passa a ser um ator

muito mais presente nos debates do que a Casa Civil jamais havia sido anteriormente.

Mas a troca que mais impactou o processo, ao menos pelo que se depreende nas

entrevistas, foi a ocorrida no Ministério do Planejamento. O ministério passa a ser ocupado

pelo, então deputado, Paulo Bernardo (PT-PR). Nas entrevistas feitas para esse trabalho,

Paulo Bernardo é descrito como próximo às empresas de telefonia.

Eduardo Levy, presidente do Sinditelebrasil, por exemplo, entidade que representa as

empresas de telefonia, afirmou em entrevista que Paulo Bernardo compreendeu que o projeto

187 ALMEIDA, G. A. A. Marco Civil da Internet - Antecedentes, formulação colaborativa e

resultados alcançados. In: ARTESE, G. Marco Civil da Internet: análise jurídica sob uma

perspectiva empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2015

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111

estava muito complicado para o setor e que “se fossem atendidos os militantes da internet isso

causaria uma catástrofe econômica para o setor de telefonia”.188 Essa proximidade entre Paulo

Bernardo e as empresas de telefonia aparece também nas entrevistas de Ivo Correa,

Alessandro Molon, Demi Getshko, Sergio Amadeu e Ronaldo Lemos.

Do ponto de vista dos interlocutores externos, há pouca mudança que tenha aparecido

como relevante nesta pesquisa. A única, digna de nota, está relacionada com a representação

das empresas de telefonia. Há uma clara mudança na postura dessas empresas. É claro - e isso

será discutido mais adiante - que existe uma ameaça mais clara a interesses econômicos das

teles a partir do debate no Congresso. Mas houve uma mudança de representação que não

pode ser ignorada. A partir de 2011, assume a presidência do Sinditelebrasil, Eduardo Levy.

Ele passa a ser o grande articulador público dos interesses das telefônicas. Em entrevista, ele

afirma: “O Sinditelebrasil só existia no papel até abril de 2010. Em abril de 2010 as empresas

resolveram faze-lo funcionar. Passou a ser em Brasília (antes era no Rio) e a partir desse

momento é que ele passa a ter uma presença mais forte. E apenas em 2011 é que passa a

trabalhar mais forte no Congresso.” Assim, o início de um trabalho de incidência mais forte e

coordenado por parte das teles no Congresso coincide com o envio do projeto ao Congresso

Nacional.

Por fim, claro que os próprios parlamentares são atores novos que não estavam

presentes na fase da consulta. Entre os parlamentares, destaca-se o papel de Eduardo Cunha

(PMDB-RJ) que, a partir da segunda metade de 2012, aparece em todos os relatos como

figura central nas tentativas das empresas telefônicas de barrar o processo.

A existência de atores distintos não impediu que vários se repetissem. E esta repetição

funcionou, mais uma vez, como outro indutor de conectividade entre a consulta e o

parlamento.

4.4 A recepção pelo Congresso.

Em Agosto de 2011, dois anos após o Presidente Lula pedir ao ministro Tarso Genro

que elaborasse um Projeto de Lei que estabelecesse o Marco Civil da Internet, a Presidenta

Dilma Rousseff enviou ao Congresso projeto que passou a receber o número 2126/11 que,

188 Entrevista com Eduardo Levy.

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112

segundo sua ementa “estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet

no Brasil.”

Não era, como já vimos, apenas um projeto elaborado nos gabinetes fechados do

Poder Executivo. Era um projeto que representava dois anos de amplo debate público e aberto

por meio de plataforma colaborativa na internet. Qual o impacto que isso teria sobre o debate

legislativo? Como o Congresso Nacional receberia um texto enviado pelo Executivo que

chegava com a pressão de ter sido construído com diversos setores relevantes da sociedade

(provedores de Internet, movimento pela internet livre, academia, polícia federal, Febraban),

e, portanto, com uma ideia de que qualquer mudança feita pelo Congresso poderia ser vista

como um ataque ao processo construído em conjunto com todos esses setores, mas do qual o

próprio Congresso esteve excluído?

É verdade que Pogrebinschi e Santos189 já demonstraram que mecanismos de

participação conduzidos pelo Executivo, como as Conferências Nacionais, produzem mais

resultado no Legislativo do que no Executivo. Inúmeros projetos de lei apresentados por

parlamentares são originados em formulações das conferências. Mas não é possível, também,

ignorar a tensão existente entre esses espaços de participação e o Congresso Nacional. Dois

anos antes da apresentação do PL do Marco Civil, em 2010, houve uma grande controvérsia

entre o Poder Executivo e o Legislativo com a publicação do Programa Nacional de Direitos

Humanos 3 (PNDH 3)190, em que vários membros do Legislativo acusaram o Executivo de

interferência na esfera legislativa por meio da Conferência de Direitos Humanos e do Plano.

Três anos depois desse envio, essa tensão se radicaliza na tentativa do legislativo derrubar o

decreto 8243/14, que instituiu o Sistema Nacional de Participação Social.191

Era natural, portanto, que houvesse uma dúvida sobre como o Congresso receberia o

projeto. Alguns atores ouvidos em entrevista reforçaram essa preocupação192 e que não

sabiam se o processo colaborativo seria algo que seria valorizado pelo Congresso, impactando

189 POGREBINSCHI, Thamy; SANTOS, Fabiano. Participação como representação: o impacto das

conferências nacionais de políticas públicas no Congresso Nacional. Dados [online] vol. 54 no

3, 2011, pp.259-305.

190 RODRIGUES, A. e GONÇALVES, G. Garotinho pede revogação do PNDH3 para apoiar Dilma, O Estado de

São Paulo, 12/10/2010. Disponível em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,garotinho-pede-

revogacao-do-pndh-3-para-apoiar-dilma,623866 . Acesso em 26/06/2017

191 PLENÁRIO aprova projeto que cancela política de participação social, Câmara Notícias. Disponível em

http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/476676-PLENARIO-APROVA-PROJETO-

QUE-CANCELA-A-POLITICA-NACIONAL-DE-PARTICIPACAO-SOCIAL.html Acesso em 25/06/17

192 Entrevista com Ronaldo Lemos e entrevista com Ivo Correa.

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positivamente a forma como os parlamentares debateriam o projeto, ou se o Congresso se

sentiria desafiado em suas competências e tentaria deslegitimar o processo anterior.

A resposta do Congresso foi bastante positiva, tanto no sentido de dar prioridade à

tramitação, quanto na forma como o projeto foi debatido. Do ponto de vista da tramitação, o

projeto que havia sido distribuído, cinco dias após o seu recebimento para três comissões

(Consumidor, Constituição e Justiça e Ciência e Tecnologia), recebeu, menos de um mês

depois, um novo despacho o enviando também à Comissão de Segurança Pública. Essa é uma

demonstração de prioridade política, pois um projeto que passa por quatro comissões,

segundo o regimento da Câmara, pode fazer jus a uma Comissão Especial. A Comissão

Especial tende a produzir uma discussão mais célere e politicamente mais relevante do que o

debate isolado em comissões temáticas. Assim, requerer que o projeto seja examinado por

uma quarta comissão é um procedimento comum quando se deseja priorizar um projeto193.

A principal barreira para que comissão especial pudesse caminhar era a necessidade de

cada partido indicar seus membros, o que poderia levar tempo. A Comissão foi criada em

26/10/2011 e os partidos terminaram de indicar seus membros após o recesso, sendo a

comissão efetivamente instituída em março de 2012.

Do ponto de vista da forma, claramente, o Congresso recebe o projeto reconhecendo o

processo colaborativo anterior. O relator escolhido, o deputado Alessandro Molon (à época no

PT-RJ), imediatamente afirma que quer reproduzir o processo de consulta que foi feito pelo

Executivo, agora, no Legislativo. Já no início de abril, por meio do portal e-democracia da

Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei, na forma enviada pelo Executivo, estava aberto para

consulta colaborativa194 em termos muito próximos do que havia sido feito pelo Executivo.

Em entrevista, perguntei a Molon porque havia decidido realizar um processo

colaborativo também durante o debate na comissão. Ele deu dois argumentos. O primeiro,

claramente, prestigiando o processo e revelando a acolhida positiva do Legislativo ao fato de

o projeto ter sido debatido de forma colaborativa anteriormente. Seu segundo argumento

revela um engajamento com a ideia do debate público, demonstrando que o Legislativo não

estava pronto para simplesmente chancelar o processo do Executivo. Ele também buscava

uma fonte de informação independente do Executivo para validar sua posição. Ao ser

193 Há, claro, a urgência regimental, que é um mecanismo mais eficiente de priorização por parte do parlamento.

Mas ela suprime completamente o debate, enquanto que o estabelecimento de uma comissão especial, mesmo

que suprima alguns espaços de discussão, concentra o debate e impede que o projeto demore tempo demais

em uma comissão.

194 http://arquivo.edemocracia.camara.leg.br/web/marco-civil-da-internet#.WNQ111UrLiw

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perguntado por que ele resolveu repetir o processo colaborativo na Câmara, Molon respondeu:

“se no executivo esse processo foi participativo, não faria sentido que na casa do povo esse

processo também não fosse participativo. O Processo colaborativo do Executivo serviu de

exemplo, era uma experiência que nós víamos como virtuosa, portanto não tinha porque não

repeti-la”.

Aqui Molon reconhece a legitimidade do processo anterior e valora positivamente o

processo de consulta. E, em seguida, afirma: “mas também isso era um desdobramento da

primeira fase. (...) Porque o projeto foi colaborativo até a palavra final do Executivo, mas a

palavra final do Executivo não tinha sido avaliada.”195

Ou seja, Molon lembra que, se o debate realizado na consulta estava todo registrado e,

portanto, podia ser acessado pelos parlamentares, todo o texto final apresentado pelo

Executivo não havia sido debatido publicamente. Afinal, o Executivo recolheu a última leva

de comentários e consolidou o texto a partir do debate entre ministérios (debate esse que,

como dissemos, levou cerca de um ano). Mas, uma vez consolidado, não houve nova consulta,

e o texto foi enviado ao Congresso. Um dos aspectos centrais do acordo formado no processo

anterior havia, inclusive, sido fragilizado no texto apresentado pelo Executivo. O projeto

adicionou, a pedido da ANATEL e do Ministério das Comunicações196, a ideia de que a

neutralidade da rede valia como um princípio, mas “conforme regulamentação”. Ou seja, o

Poder Executivo teria o poder de, por meio de regulamentação, enfraquecer o princípio que

fazia parte do acordo central da consulta pública. Molon afirmou na entrevista: “existia uma

demanda muito forte na sociedade de que esse ‘conforme a regulamentação’ fosse retirado. E

foi, de fato.” Assim, não apenas o Congresso Nacional acolheu bem o processo anterior e o

viu como positivo, como resolveu se utilizar do mesmo método de consulta para questionar e

avaliar o texto apresentado pelo Executivo.

Além disso, outro sinal de que o processo anterior estava sendo reconhecido pelo

Legislativo foi o de que, quando o relator anuncia que fará a consulta colaborativa também no

legislativo, os deputados querem que consultas presenciais sejam feitas em distintos estados.

A tramitação do Projeto mostra que deputados membros da comissão especial, nas duas

primeiras semanas de trabalho, apresentam não apenas propostas de audiências públicas, o

que é normal, mas propostas de seminários locais em diversos estados, como Rio Grande do

Sul, Rio de Janeiro, Bahia, Paraíba, São Paulo entre outros.

195 Entrevista Alessandro Molon 196 Entrevista com Ivo Correa.

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Essa combinação entre o processo virtual, repetindo o Executivo, com o processo

presencial em diversos estados e, portanto, atendendo à base dos deputados, mostra que o

Congresso Nacional quis ampliar os espaços de escuta pública e não criaram resistência a que

se incorporassem vozes distintas na deliberação, como se poderia imaginar em função de uma

resistência natural a espaços de participação que possam parecer concorrentes ao processo

decisório do parlamento.

Esta reação é digna de nota e nos ajuda a entender que é absolutamente possível se

conciliar processos participativos com peso decisivo na formação do processo deliberativo

congressual sem que isso seja visto como uma tentativa de substituir o processo representativo

do Congresso.

Perguntei a Molon diretamente se ele acreditava que o processo deliberativo

conduzido no Executivo tinha influenciado a forma com o projeto tramitou no Congresso. Sua

resposta é afirmativa e, para além disso, revela muitas questões interessantes:

A participação no Executivo foi decisiva para a forma como o projeto

tramitou no legislativo. Não tenho nenhuma dúvida disso. A gente só fez do

jeito que fez porque o histórico era esse e a gente aprendeu com essa

história. E isso também fez com que a gente tivesse a todo momento gente

que estava preparada para procurar os líderes partidários, as bancadas,

explicar o que era o marco civil e dizer: ‘nós somos coautores desse projeto’.

E aí tem uma experiência de aprendizado interessante que, quando a gente

começou a ter que alterar o projeto para entender as bancadas, houve uma

reação da sociedade civil: ‘não, não, não, a gente já decidiu como é o projeto

e não dá mais para mexer nele.’ E eu disse olha: ‘eu não tenho como virar

para o parlamentar e dizer que o projeto não pode ser mexido porque a

sociedade já o fez. Porque ele vira para mim e diz: ‘tudo bem, quantas

pessoas já participaram do processo? Duas mil, três mil? Eu tenho 100.000

votos. Eu represento 100.000 pessoas e eu não vou poder mexer no projeto?’

Isso é inaceitável para o parlamentar. Então teve um aprendizado para a

sociedade civil que fez ela entender que o fato dela ter participado não

tornava o projeto impermeável à mudança no parlamento. Por outro lado, foi

um aprendizado pros parlamentares também que esse não era um projeto

qualquer. Que esse projeto tinha sido feito a milhares de mãos. Que não

dava para mexer sem uma razão muito forte porque isso geraria reação.

Então acho que foi um aprendizado de parte a parte. Que eu acho que é um

desafio para a democracia participativa e para a representativa, que no meu

entendimento não são alternativas, mas complementares. Minha experiência

é que o meu mandato ficou muito mais forte depois desse processo do que

antes. Ou seja, a minha representatividade aumentou e não diminuiu. Mas

para isso você não pode ter agenda oculta. Não pode já começar um processo

desse dizendo ‘isso aqui eu tenho que garantir’ porque aí você não tem a

liberdade para ouvir as pessoas e decidir pelo melhor. (grifo meu)

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Esta longa resposta do deputado Molon conecta pontos distintos do que estamos

discutindo aqui. Apesar de longa, quis mantê-la na íntegra, porque ajuda a compreender a

conexão entre esses aspectos.

Molon reforça aqui a ideia de que a proposta foi bem recebida pelo Congresso e, mais

do que isso, Molon detalha como, nesse processo, houve uma relação virtuosa entre o

processo deliberativo e a tramitação legislativa. Ele apresenta a tensão existente entre

representação e um espaço deliberativo fora do parlamento, mas ele mostra como ambos os

lados tiveram que compreender a importância do outro processo. Tanto os legisladores se

abriram para compreender que esse projeto envolvia a necessidade de escuta de atores, que

tradicionalmente não chegariam ao parlamento, como a sociedade civil precisou compreender

que um processo deliberativo externo ao parlamento não substitui o parlamento.

O que mais chama a atenção nesta fala é a parte grifada. Molon afirma que a grande

influência que um processo como esse gera no debate legislativo é a necessidade de se

justificar publicamente uma mudança: “não dava para mexer sem uma razão muito forte

porque isso geraria reação”. Isso reforça a ideia de representação discursiva de Dryzek e

Niemeyer abordada no capítulo inicial. A construção de um acordo, baseado na força do

melhor argumento, a partir do debate, por meio de contestações públicas, por pessoas

capazes de participar da discussão, só pode ser desconstituída pelo ator público mediante

uma forte justificativa, sob pena de gerar uma forte reação.

Esta ponte, presente no depoimento de Molon, que ele faz constantemente entre o

espaço deliberativo da consulta e o espaço deliberativo da Câmara é o que o caracteriza como

um dos principais indutores de conectividade para gerar um acoplamento consistente entre

estes dois espaços.197

Finalmente, o trecho em questão nos inicia no caráter informacional da consulta.

Molon admite, ali, o que reforçaremos no próximo item, que o processo deliberativo

melhorou sua capacidade de buscar fontes independentes de informação.

4.5 O Início do debate no Congresso e a perspectiva informacional.

197 O Relator de um projeto na Câmara não econtra-se entre um dos 4 possíveis indutores de conectividade

listados por Mendonça, como vimos no primeiro capítulo. Mas Mendonça deixa claro que aquela não é uma

lista exaustiva.

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Fabiano Santos e Acir Almeida trouxeram uma perspectiva fundamental para

compreender o papel do relator no processo legislativo198. Para os autores, em primeiro lugar,

é impressionante como a literatura de ciência política despreza a importância do relator para o

debate no Congresso. Essa importância chama ainda mais a atenção quando se percebe que os

poderes regimentais do relator, na verdade, nem são tão grandes quanto o poder de fato, que

ele ocupa. Afinal, todas as decisões podem ser revistas pela comissão.

A explicação fornecida pelos autores é de que o relator tem um papel de agente

informacional da comissão. Ou seja, adotando a perspectiva de Krehbiel199, pela qual o

desafio organizacional do legislativo é o de obter a maior quantidade possível de informações

independentes do executivo para poder tomar uma decisão relativamente autônoma, Santos e

Almeida mostram que um dos papéis centrais do relator seria o de reduzir as incertezas do

legislativo. Para os autores “a estrutura institucional do legislativo não gera incentivos para a

produção endógena e especializada de informação.”200 Explicam que essa falha institucional

é corrigida, atribuindo ao relator esse papel de agente informacional. Ou seja, o relator é o

responsável pela “coleta e divulgação de informação sobre as consequências de uma política

pública específica”201.

Santos e Almeida levantam os riscos deste modelo institucional que deposita tanta

relevância informacional em agentes individuais. O relator pode tanto não se esforçar

suficientemente para produzir informação independente (caso a informação disponível - às

vezes, pelo executivo ao qual ele é fiel - já seja suficiente para a vitória da sua posição

pessoal) ou ele pode usar estrategicamente a informação de forma a fazer valer sua posição.

Assim, para compreender o impacto de um processo colaborativo prévio na tramitação

legislativa de um projeto de lei, é fundamental entender como o relator recebeu esse projeto e

qual foi o uso que ele fez do debate anterior na construção do seu papel na comissão.

198 SANTOS, F.; ALMEIDA, Acir. Fundamentos Informacionais do Presidencialismo de Coalizão. Appris:

Curitiba, 2011, p. 112.

199 KREHBIEL, Keith. Information and Legislative Organization, Michigan Studies in political analysis, 1992

Paradoxes of Parties in Congress. Legislative Studies Quarterly vol. XXIV, no 1, University of Iowa, fevereiro

1999.

200 SANTOS, F.; ALMEIDA, Acir. Fundamentos Informacionais do Presidencialismo de Coalizão. Appris:

Curitiba, 2011, p 119 201 SANTOS, F.; ALMEIDA, Acir. Fundamentos Informacionais do Presidencialismo de Coalizão. Appris:

Curitiba, 2011, p 119

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Partindo da análise de Santos e Almeida, é interessante se perguntar se o processo

anterior teve impacto nesse papel do relator como agente informacional. A entrevista com

Alessandro Molon nos revela que esse impacto existiu.

Um elemento que aparece muito fortemente nas entrevistas, particularmente na

entrevista do deputado Molon, que nos ajuda a compreender como a dinâmica do processo

anterior afetou o processo legislativo, é o fato de que o debate chega à Câmara muito mais

maduro.

O processo no Executivo fez com que as contribuições na participação no

legislativo estivessem muito mais maduras, (...) porque já tinham sido

jogadas várias partidas nesse campo, os jogadores já estavam quentes. As

pessoas já sabiam o que estava em jogo, já sabiam o que estava em disputa e

quais eram os interesses em jogo. Não se começou do zero. (...) Isso em

comparação com qualquer outro projeto que a gente já tenha visto lá (na

Câmara).202

Este é um depoimento muito importante, porque mostra que o procedimento anterior

teve um efeito de transformar o ponto de partida das negociações. A assimetria de

informações entre os atores negociadores praticamente desaparece depois de um debate

exaustivo como o promovido no Executivo. Os distintos grupos de interesse conheciam muito

mais os limites de negociação dos outros grupos e a função do deputado relator que, muitas

vezes, é a de iniciar um processo de escuta de cada grupo de interesses, fica completamente

transformada por uma negociação que chega à Câmara após tanto tempo de debate público.

Ou seja, na perspectiva de Buchanan, debatida no primeiro capítulo, o espaço de

barganha diminui pelo fato de se ter mais informação sobre os limites de negociação dos

outros grupos de interesse. É claro que o elemento da publicidade do debate é central nesta

análise. Afinal, a negociação entre diversos grupos de interesse no âmbito do Poder

Executivo, ainda na fase de elaboração da legislação, é muito frequente. Mas ela não faz “os

jogadores chegarem aquecidos” ao legislativo, pois como essa é uma negociação na qual as

partes raramente conversam entre si, estas, em geral, falam apenas de maneira isolada com os

técnicos nos ministérios (ou com os próprios ministros) e, portanto, chegam ao legislativo

“desaquecidas” para o debate.

Cabe ao relator, nas comissões, estabelecer o tipo de negociação que será feito. Às

vezes, alguns atores são privilegiados, às vezes, os debates se dão nas sessões das comissões,

202 Entrevista Alessandro Molom

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muitas vezes, com audiências públicas. Mas os atores envolvidos utilizam o fato de suas

posições não serem públicas para tentar fazer avançar seus pontos na negociação. As partes

não sabem até onde o outro lado pode ir e isso afeta fortemente o resultado final. Em geral,

acabam sendo privilegiados aqueles que têm a melhor condição de acesso ao relator, seja

porque o relator procura apenas dar relevância às informações de um determinado setor,

porque ele já teria um viés e quer usar estrategicamente sua posição, seja porque o processo

legislativo é mesmo pouco permeável a setores que não têm condição de estar presente em

Brasília.

O fato de haver um debate anterior amplia a permeabilidade da disscussão na Câmara,

afinal já estão incorporados ao debate os atores que participaram da consulta pública. Seus

argumentos já se fizeram presentes e, muitas vezes, foram aproveitados por atores e grupos de

interesse com presença no Congresso. O debate colaborativo anterior teve uma ampla

permeabilidade de atores. A representatividade discursiva, que construiu um acordo a partir

da constelação de argumentos presentes na sociedade, é fundamental para transpor a

permeabilidade do debate na consulta para o Congresso.

Um exemplo da permeabilidade aparece quando Molon relata um caso específico de

negociação, nos momentos finais do debate, quando precisou ligar para “umas 20 pessoas” -

que ele afirma que não saberia nem quem eram se não houvesse o processo colaborativo -

para explicar uma mudança que ele iria fazer no texto. E completa: “mas elas também não

saberiam nem o que estava sendo votado. É um ganha ganha.”

É aqui que se compreende perfeitamente a relação feita entre a teoria informacional e a

teoria deliberativa proposta por Marta Rocha, conforme discutimos no primeiro capítulo. Para

Rocha, a troca pública de informações de um processo deliberativo diminui, também, a

assimetria de informação entre o legislador mediano e os agentes informacionais. Neste caso,

no qual o relator cumpriu este duplo papel de agente informacional e de indutor de

conectividade entre os dois processos, a troca pública de informações existentes na consulta

diminui a assimetria de informações entre o legislador mediano e o relator.

Assim, o debate público anterior também dificulta o papel do relator que queira usar

estrategicamente sua posição, pois, se é verdade que o processo colaborativo funciona como

uma estrutura informacional para o relator, ele funciona também para todos os atores

presentes (inclusive outros parlamentares) e o poder do relator, de manipular as informações e

funcionar como um agente informacional que distorça o acesso a informações para os seus

colegas, é muito menor.

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Molon reforça essa ideia ao dizer: “E acho que esse é um grande antídoto inclusive

para evitar agendas ocultas. Um processo participativo como esse acaba inviabilizando os

interesses ocultos. As coisas acabam aparecendo. As pessoas acabam tendo que defender suas

posições. Isso para a transparência e para a democracia é um ganho sem tamanho.”

Há outro ponto que apareceu na entrevista do deputado Molon que reforça o caráter

informacional da consulta pública consolidada. Eu perguntei a ele, especificamente, se

usavam a consolidação do debate como material de consulta. Ele respondeu: “Onde havia

pontos de divergência, nós procuramos saber o histórico da decisão. Em especial no que diz

respeito a direito autoral e notificação e retirada”. Ele explica que, nesse caso específico,

quando se decidiu voltar ao tema do direito autoral e da necessidade de ordem judicial para a

retirada de conteúdo, foi, justamente, retornando à consulta que ele conseguiu entender quais

as questões que estavam postas no debate. Segundo ele, “fazer essa arqueologia da coisa foi

importante para entender as discussoes”.

No Marco Civil as posições estavam mais claras (do que em outros projetos).

Quem estava de que lado, estava muito mais claro. Porque todo mundo já

tinha entendido o jogo do outro. As disputas, as tensões, os interesses. Esse

debate público serviu muito para isso. Para fazer com que as pessoas se

apresentassem na cena pública.

Depois de todas essas contribuições, eu soltei um primeiro relatório. E

coloquei três dias sob crítica na plataforma. E recebi outras reclamações e

sugestões e modifiquei o relatório. Tornei público de novo. Depois sentamos

para conversar com as bancadas dos partidos e aí veio uma última forma e

todas elas foram mostradas publicamente. E isso foi muito positivo porque

isso é uma vacina contra lobby para atender esse ou aquele interesse. E nesse

sentido a internet ajudou muito.

Então perguntei se a versão que incorporou o debate das bancadas também havia sido

levada ao público:

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121

Sim. Deixei ele público de novo. Mas não necessariamente foi essa a versão

que foi votada. Porque na negociação do processo legislativo, até o último

momento, alguém vai te dizer: ‘para minha bancada votar nisso daqui essa

palavra tem que mudar’. E você tem que saber o que é que você pode ceder e

o que é que você não pode ceder. Por exemplo, a guarda de dados por

provedores de aplicação por seis meses. Isso não estava no projeto original.

Só estava a guarda de dados por provedores de conexão.203

Só que essa foi uma exigência para gente ganhar o voto da bancada de

quatro ou cinco partidos que eram partidos que estavam votando

acompanhando a bancada da segurança. (...) Essa foi uma tensão que foi até

o último momento da votação. Porque no fundo, a pressão contrária era por

conta da neutralidade. A principal questão era a neutralidade. E foi o

processo anterior, o debate, a colaboração que ajuda a entender que isso era a

prioridade. E alguns atores ganharam legitimidade nesse processo para

acalmar os outros. O Demi (Demi Getshko, CGI) conseguiu explicar para as

pessoas que muitos dos dados já eram guardados por motivos comerciais.

Assim, a gente ia ganhar quatro ou cinco bancadas para incluir dados que já

eram guardados por interesse econômico. Esse processo de debate e

colaboração dá muito trabalho, mas ele te dá muita clareza de com quem

você pode contar para quê, quem vai entender sua posição. Mas é um

aprendizado também de comunicação, porque você tem que explicar tudo

que você está fazendo pras pessoas entenderem que você não está cedendo

ou rompendo uma confiança. Nessa questão da guarda de dados que quase

que deu problema sério, eu tive que ligar para umas 20 pessoas que se não

tivesse o processo anterior eu não saberia nem quem são. Elas também não

saberiam o que está sendo votado, é bom pra todo mundo. Ganha ganha.

Ou seja, o conteúdo do debate anterior era uma fonte ativa de informação para o

relator da proposta. E permitiu que ele aumentasse a sua independência do Executivo ao longo

do processo, e permitiu que a confiança do legislador mediano no fato de que o relator não

estava agindo de forma estratégica também aumentasse, garantindo, assim, que o seu papel de

indutor de conectividade dentro do sistema deliberativo fosse reforçado.

É importante que se diga que esse papel do relator como agente informacional com um

poder tão grande é reforçado pela fluidez partidária na tomada de decisão dos parlamentares

nesse processo. Por fluidez partidária, estou me referindo ao fato de que os parlamentares, no

caso do Marco Civil, não se comportaram na lógica de maioria e minoria, ou de governo e

oposição. Num primeiro momento, a negociação sempre inclui partidos de oposição

individualmente, muito mais em função dos grupos de interesse que influenciam os líderes

partidários (setor de segurança, setor produtor de conteúdo, movimentos sociais, etc.) do que

203 Provedores de aplicação são os provedores de conteúdo, aqueles que hospedam os sites de internet (google,

facebook, por exemplo), provedores de conexão são aqueles que fornecem a conexão de internet.

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em função do eixo governo/oposição. Com a entrada de Eduardo Cunha e do Blocão, como se

verá, mais ainda perde o sentido a lógica governo/oposição neste processo.

Esta ressalva, sobre a fluidez partidária é importante, pois Krehbiel204 já deixou claro

que a perspectiva informacional realmente funciona como explicação do comportamento

parlamentar em um contexto no qual a formação de preferência do parlamento se dá em

função da posição do legislador mediano do Congresso, enquanto a visão partidária parte da

premissa de que o ponto de referência é o legislador mediano do partido majoritário. Se no

caso de governos com maiorias consolidadas no Congresso, nos quais as votações operam

claramente na lógica maioria/minoria, esse debate se faz relevante. Não há dúvidas, no caso

da tramitação do Marco Civil, de que a fluidez partidária favoreceu a utilização da perspectiva

informacional como ferramenta de análise.

4.6 O debate legislativo após a consulta pública feita pela Câmara dos Deputados.

Após quatro meses de consultas na internet e de diversas audiências públicas no país,

Molon apresenta seu primeiro relatório. As principais mudanças do relatório atingem os três

pontos centrais de acordo no processo colaborativo. Ele aumenta o tempo de guarda de logs,

detalha a neutralidade e dá poder ao CGI e, mesmo que lateralmente, inclui de volta o tema

dos direitos autorais.

Com relação à guarda de logs, o projeto cede à pressão do lobby da segurança, como

dito acima. Molon, como relatado nas conversas com os partidos, nota que ao atender à

Polícia Federal nesse tema garantiria o apoio de várias bancadas que olham para esse projeto

com o foco único na segurança. A proposta, na fala de quase todos os entrevistados, gerou

desconfortos. Ivo Correa nota que a medida causou desconforto no governo, pois Molon

negociava, de alguma forma, diretamente com a Policia Federal, órgão subordinado ao

governo federal, para alterar a proposta enviada pelo próprio governo. Ronaldo Lemos fala

que a proposta trouxe uma frustração:

204 KREHBIEL, Keith. Paradoxes of Parties in Congress. Legislative Studies Quarterly, vol. XXIV, no 1,

University of Iowa, fevereiro 1999, pp. 31-64.

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na nossa visão, com relação à guarda de logs, a proposta era bem menos

avançada. Nossa proposta era de guarda de seis meses para guarda de logs de

conexão e de aplicação era facultativo. E isso foi um arranca-rabo

permanente. A polícia federal queria cinco anos de guarda. E a gente

puxando, fazendo a análise de quanto era o período na Europa. (...) Mas

quando apareceram essas mudanças, a gente ficou frustrado, mas a gente viu

que era parte do jogo, a gente queria que o marco civil fosse aprovado,

então, o nosso papel ali era um papel de academia com um componente de

ativismo, mas a gente não era ativista do tudo ou nada. A gente sabia da

necessidade de se fazer compromissos.

No que diz respeito ao direito autoral, a alteração é sutil, mas o impacto é grande, pois

o grande pacto realizado durante a consulta foi o de que não se tocaria no tema. E Molon abre

uma porteira que vai ter consequências fortes no jogo político em torno da lei. O Projeto

enviado pelo governo estabelecia uma regra bastante protetiva da liberdade de expressão de

qualquer pessoa que poste algo na internet. Ele dizia que o provedor apenas seria

responsabilizado por um conteúdo caso ele se recusasse a retirar esse conteúdo após ordem

judicial. Ou seja, se um terceiro pretendesse retirar algo postado na internet, precisaria de uma

ordem judicial. O relatório do deputado Molon abriu a possibilidade de que detentores de

direitos autorais negociassem diretamente com provedores de conteúdo a possibilidade de que

algo postado fosse retirado com a mera notificação do detentor do direito autoral, sem a

necessidade de ordem judicial.

Uma matéria da jornalista Tatiana Dias no caderno Link do Estado de S. Paulo

afirmava, sobre esse ponto, que:

Há ainda outro ponto que levantou críticas. O artigo dá a liberdade para as

empresas discutirem e fazerem acordos entre si para evitar o caminho

judicial. A sugestão, que veio de entidades como a Associação Brasileira de

Direitos Reprográficos (que representa a indústria fonográfica brasileira) e o

Facebook, pode abrir margem para a suspensão de conteúdos que infringem

direitos autorais sem nenhum tipo de controle judicial.205

Essa medida afetaria duramente a construção da consulta que pensou a ordem judicial

não como uma proteção apenas ao provedor, mas como uma proteção ao usuário. A

possibilidade do provedor negociar com o detentor do direito autoral inverte essa lógica.

205 DIAS, Tatiana, M. Marco Civil Deve Ser Votado Hoje, O Estado de São Paulo -Caderno Link, 10/07/2012.

Disponível em http://link.estadao.com.br/noticias/geral,marco-civil-deve-ser-votado-hoje,10000035293.

Acesso em 25/06/2017

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Molon, com essas duas alterações, sinaliza no sentido contrário ao lado com o qual é

mais identificado206. Estava claro para ele, até mesmo por ter consultado o processo

colaborativo anterior, que haveria resistência por parte do movimento pela internet livre a

esses pontos. E houve. As entrevistas de Ronaldo Lemos e de Sergio Amadeu demonstram

isso claramente.

Mas ele só faz isso, pois trouxe um avanço tremendo para esse movimento. No texto

original, a neutralidade da rede aparecia apenas de forma mais principiológica, não havia

definição clara de seus contornos e limites. A definição seria feita, dizia o texto, conforme

regulamentação. O texto tampouco especificava qual órgão, dentro do Poder Executivo, seria

o responsável por essa regulação. No relatório apresentado, Molon confere ao CGI o poder de

regulamentar a neutralidade e detalha mais claramente a definição legal de neutralidade. De

fato, este ponto agrada muito o CGI e o movimento pela internet livre, mas desperta a ira das

empresas de telefonia que, a partir desse momento, tratam o texto como seu principal alvo no

Congresso.

Na opinião de Ivo Correa, o processo de escuta e dos seminários teve um viés a favor

do movimento pela internet livre e do CGI. Mais especificamente, Correa, que era o membro

do governo no CGI, acredita que Molon se encantou com o CGI e deu a ele, sobretudo na

figura de Demi Getschko, um papel muito mais forte no Congresso, maior até do que teve na

consulta pública.

Para Ivo Correa, é o tratamento dado por Molon à neutralidade que desperta a

preocupação de teles neste processo e as transforma em um ator ativo na tentativa de barrar o

projeto. “Talvez isso tenha feito o tiro sair pela culatra”. Correa afirma que o governo mandou

o projeto sem detalhar a neutralidade e nem apontar quem era o responsável pela

regulamentação por, justamente, sentir que se fosse feito um detalhamento, isso aumentaria

muito a resistência dos setores do governo mais próximos às teles.

Ou seja, o relatório aprofundou o tema da neutralidade de forma pública. O governo,

em um debate que não era público (o debate entre ministérios que ocorreu entre o fim da

consulta e o envio do projeto de lei) havia decidido suavizar esse tema. Quando Molon reabre

o debate, esse tema volta com muito mais força, justamente porque o movimento pela internet

livre sentiu que esse era um dos pontos em que a consulta não foi completamente

206 Pelo menos quatro entrevistas o idenficam claramente como mais próximo da sociedade civil. Ronaldo Lemos

inclusive relata relação dele com o tema e com setores da sociedade civil antes de 2011, durante a consulta,

quando ele ainda era deputado estadual.

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contemplada. Mas, quando Molon aceita a radicalização proposta pelo movimento, isso gera

uma reação muito mais forte do outro lado, e as teles, em seguida, se tornam opositoras

centrais deste processo.

É difícil aferir se a decisão das teles de entrar mais fortemente no debate - e de

maneira agressivamente contrária ao Marco Civil - ocorre meramente como reação ao

relatório de Molon. Como relatamos, anteriormente, Eduardo Levy deixa claro que as teles,

antes, não tinham o mesmo tipo de estrutura em Brasília para enfrentar este tipo de debate. Na

entrevista Levy afirma que o Marco Civil foi prioritário desde o seu envio para o Congresso

“Desde o começo ele era central. Essa questão da neutralidade da rede é central para o

ambiente de investimento da rede”.

É curioso constatar que a percepção de Levy sobre como o projeto chega ao

Congresso, em função da consulta anterior, é muito distinta da percepção dos outros atores

entrevistados. Se Molon, como vimos (e também Ronaldo Lemos, Demi Getshko e Sergio

Amadeu) reforça muito o acordo obtido entre atores muito diferentes ao longo da consulta e o

reflexo permanente deste acordo no debate no Congresso, Eduardo Levy expressa visão

oposta. Para ele, o processo anterior fez com que o debate chegasse ao Congresso

extremamente polarizado. Levy afirma, sobre a consulta feita pelo Executivo que “Foi um

processo longo de consulta. E muito ativo. Que trouxe consequências para o debate no

Congresso. Quando o tema chega ao Congresso, já há muita atividade da sociedade civil.” E

ainda caracteriza Molon como sendo representante deste debate anterior.

O relatório do Molon para Ivo Correa “muda o eixo do marco civil” ao colocar a

neutralidade como o centro do debate. Fica claro que as duas grandes disputas são as disputas

com as teles e com o setor de direito autoral com a pressão da Globo. Correa afirma que, com

as mudanças feitas no relatório, e as reações, principalmente das teles, mas também de outros

setores, “foi escalando a tensão no Congresso e a tensão dentro do governo. Uma tensão entre

CGI e ANATEL e essa disputa foi dando tempo para as teles se organizarem em torno da

questão de neutralidade.”

Ronaldo Lemos lembra a conversa com um assessor da Liderança do PT que disse a

ele, em 2012, que seria possível votar o projeto imediatamente caso se determinasse que a

Anatel seria a responsável pela regulamentação. Mas os setores mais vocais do movimento

pela internet livre não aceitavam isso em hipótese alguma. Ronaldo avalia que esse ponto

quase fez o projeto deixar de ser aprovado e acredita que foi um erro do movimento não

aceitar o acordo naquele momento, pois isso teria feito o Brasil ter uma lei fixando a

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neutralidade de forma bastante pioneira. Os Estados Unidos, por exemplo, só aprovaram a

neutralidade em 2015.

De fato, Molon tentou acomodar as pressões e negociou outras versões do relatório

nos dias seguintes, mas não conseguiu evitar que o Congresso entrasse em recesso sem que o

projeto fosse votado na Comissão Especial. Matéria do caderno Link do jornal O Estado de

São Paulo do dia 16/07/ 2012, intitulada Marco Civil da Internet só deve voltar à votação na

Câmara em Agosto, descreve bem o momento em que a tensão entre os atores explode e

Molon é obrigado a adiar a votação.

A primeira versão do texto de Molon estabelecia a neutralidade e suas

exceções seriam em caso de emergência ou questões técnicas. A neutralidade

seguiria os princípios do CGI - e esse ponto preocupou o governo. A Casa

Civil e a Secretaria de Relações Institucionais mostraram a Molon a

preocupação de que o Marco estaria vinculando a regulamentação a um

órgão que não tem poder regulamentador. Foi esse encontro que provocou o

primeiro adiamento da votação de terça para quarta-feira e uma das

alterações no texto: Molon preservou o conceito de neutralidade, mas disse

que sua regulamentação ficaria a cargo da Presidência.

Não resolveu. A briga agora é com as teles. "O conceito de neutro é muito

difuso", diz Eduardo Levy, diretor do Sinditelebrasil, que representa a

indústria de telecomunicações no País. "Era preciso que ficassem mais

explícitos os critérios pelos quais empresas podem gerenciar as redes", diz.

Ele também critica o poder dado ao CGI. "O CGI é um comitê, suas decisões

nem sempre são consenso. Muitas vezes levam em consideração apenas a

noção, aquilo que acham que seja."

Quem regularia a neutralidade? "Se não for a Anatel, quem vai ser?",

pergunta Levy. "O CGI não tem poder nem capacidade. Uma agência como

a Anatel tem estrutura, corpo técnico. Gostando ou não, ela pode ir mais por

um lado do que por outro, mas ela tem a autoridade." A agência diz que

"aguarda aprovação para avaliar a necessidade de qualquer

regulamentação”.207

A compreensão deste momento, no qual Molon apresenta o relatório, é fundamental

para a questão central deste trabalho sobre a influência do processo de consulta colaborativa

realizada pelo Executivo na tramitação do projeto. O relatório de Molon desarticula o acordo

central realizado ao longo do processo. Molon não ignora o processo anterior. Ao contrário,

ele se utiliza do processo anterior para se informar sobre as posições de cada ator e sobre os

argumentos de defesa de cada ponto. Mas ele é percebido como tendo um viés para o lado de

um dos atores: o movimento pela internet livre. Para atender o pleito principal do movimento,

207 DIAS, Tatiana, M. Marco Civil da Internet só deve voltar à votação na Câmara em Agosto, O Estado de São

Paulo – Caderno Link, 16/07/2012. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/geral,marco-civil-da-

internet-so-deve-voltar-a-votacao-na-camara-em-agosto-imp-,900832 . Acesso em 25/06/2017

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Molon dá sinais a dois outros setores, segurança e produtores de conteúdo (direitos autorais).

Na sua visão, os pontos centrais do projeto estavam mantidos. Mas a visão geral é que as

alterações, nos três eixos centrais, desarrumaram o acordo formado a partir do debate público

na consulta pública.

Outra hipótese é de que a dificuldade de se fechar o acordo proposto por Molon

decorreu da entrada de um novo e poderoso ator neste jogo: as empresas de telefonia. Com

uma participação muito tímida no processo de consulta, elas agora tinham estrutura presente

em Brasília e tratavam o Marco Civil como projeto prioritário a ser acompanhado e, de

preferência, derrubado.

É difícil aferir se realmente seria possível votar o projeto em meados de 2012, caso

Molon não tivesse radicalizado tanto no sentido contrário às teles. Mas o fato é que, a partir

de agosto, quando o projeto volta a ser debatido, o ambiente era bem diferente e as teles

estavam agindo mais fortemente do que nunca. Matéria do jornalista André Barrocal na

revista Carta Capital publicada em fevereiro de 2013, traz uma análise de um autoridade do

governo sobre a possibilidade de votação do projeto à época:

Segundo uma autoridade do governo, certo preciosismo de Molon teria

impedido a votação do marco civil em 2012, quando os lobbies ainda não

estavam mobilizados com força. O projeto original previa a "preservação e

garantia da neutralidade da rede, conforme regulamentação". A militância

internauta teme que a "regulamentação" fique com a Anatel, que seria mais

permeável às telefônicas. E pediu a Molon que a lei definisse quem faria a

regulamentação. Consultada, Dilma defendeu a manutenção do texto na

versão enviada pelo governo ao Legislativo. "Perdemos a oportunidade de

votar. Agora, juntaram-se vários interesses contrários, novos lobbies estão

atuando no Congresso", diz a autoridade. Ao que parece, aprovar o marco

civil no País virou uma "missão impossível”.208

O início do segundo semestre de 2012 é marcado por inúmeras tentativas de se votar o

projeto. Ana Carolina Papp descreve esse momento:

208 BARROCAL, André, A caça à Internet, Carta Capital, 13/02/2013. Disponível

em http://fndc.org.br/clipping/a-caca-da-internet-872744/ . Acesso 25/06/2017

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A Comissao Especial se reuniria novamente em agosto. A votac ao ficou para

o dia 8, e foi adiada, mais uma vez, por falta de quó rum. A tentativa seguinte

foi no dia 19 de setembro, sendo cancelada novamente – desta fez, por

indicac ao do pro prio governo. Claramente, nao havia consenso para votar o

projeto, e novas propostas de redac ao

bastidores do Congresso.

para os artigos polê micos rondavam os

O fato é que, após o impasse gerado pelo relatório de Molon, não houve possibilidade

real de votação até novembro.

4.7 Primeiro fator exógeno: a Lei Carolina Dieckmann

Como descrito no segundo capítulo, a origem do Marco Civil foi uma reação do

movimento pela internet livre à possibilidade de se aprovar uma lei que criminalizasse o

usuário de internet, restringindo a liberdade nas redes. O acordo fundamental que embasa o

surgimento da consulta pública inicial foi o de que era necessário se aprovar uma carta de

direitos dos cidadãos na internet antes de se aprovar qualquer norma relacionada a direito

penal.

Esse acordo foi quebrado por um fato externo que atropelou os debates construídos

até então. Neste momento de paralisia e impasse na discussão do Marco Civil, o vazamento de

fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann209 faz com que o Congresso - e o governo -

queiram se aproveitar da comoção gerada para dar uma resposta pública. Como é comum

acontecer em momentos de comoção, a resposta era a aprovação de uma lei penal.

As atenções voltam-se aos projetos existentes no Congresso que poderiam representar

uma resposta ao caso da atriz. Dois deputados que tiveram papel muito importante na

resistência ao projeto Azeredo e na demanda por um marco civil, Paulo Teixeira (PT-SP) e

outros deputados contrários ao projeto Azeredo, haviam escrito um projeto alternativo, com

tipos penais menos abrangentes e um menor número de condutas criminalizadas, o PL

2793/11. Não se tratava de um projeto pelo qual seus autores batalhassem arduamente por sua

aprovação. Era um projeto que tinha por função fornecer uma alternativa para ser negociada

em caso de pressão pela aprovação do projeto mais grave, conhecido como projeto Azeredo.

209 LEI Carolina Dieckman, que pune invasão de PCS, entra em vigor, G1, 01/04/2013. Disponível em

http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2013/04/lei-carolina-dieckmann-que-pune-invasao-de-pcs-passa-valer-

amanha.html . Acesso em 25/06/2017

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E, para ambos os autores, a aprovação do projeto não poderia ocorrer, de forma alguma, antes

da aprovação do Marco Civil da Internet.210

Mas a força política que move certos projetos é, às vezes, muito maior do que a

vontade de seus autores. O projeto é escolhido como resposta à comoção causada pelo

vazamento das fotos, pois tornava crime a invasão de computadores e a divulgação de dados

sigilosos obtidos de dispositivos eletrônicos. E, em cinco minutos, o projeto foi votado,

mesmo com seus autores pedindo mais tempo para o debate. O projeto é aprovado no Senado

em novembro de 2012, sendo sancionado pela presidenta Dilma Rousseff em dezembro,

transformando-se na lei que ficou popularmente conhecida como Lei Carolina Dieckmann.

O sentimento dos atores, principalmente do movimento pela internet livre naquele

momento, era de que o acordo fundamental havia sido quebrado. Anna Carolina Papp

apresenta uma afirmação de Carlos Affonso, que à época trabalhava com Ronaldo Lemos no

CTS-FGV: “O Acordo é quebrado; saem as leis de crime antes da lei de direitos”.

4.8 Da quebra de acordo à volta ao compromisso forjado na consulta pública

A movimentação em torno da aprovação da Lei Carolina Dieckmann fez com que a

pressão para a votação do Marco Civil também crescesse. O sentimento de quebra do acordo

movimentou Molon e setores do governo comprometidos com o processo para levar o projeto

à votação antes da sanção da lei Carolina Dieckmann.

Mas os impasses ainda estavam presentes. Ao convencer as lideranças partidárias

sobre o texto votado, Molon enfrentou, no primeiro momento, várias dificuldades. Em

entrevista ao jornal O Estado de São Paulo publicada no dia 12/11/2012, Molon explica

porque a votação havia sido adiada:

210 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p. 75. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/

em_nome_da_internet>.

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Os Parlamentares tinham dúvidas e resistências em relação ao Marco Civil.

Era ali que estavam concentradas as preocupações. Em relação ao que

significa a neutralidade de rede, ao acesso aos dados dos usuários, se deveria

deixar os provedores de conexão terem acesso aos dados de navegação. Eu

demorei um tempo explicando porque não se poderia permitir isso para

garantir a privacidade (...) Eu lamento, eu queria que o Marco Civil fosse

aprovado antes, era um pedido meu e havia a concordância da presidência da

casa, mas as resistências parlamentares levaram a esse resultado.

Na verdade, os temas que realmente estavam tensionando a possibilidade de votação

eram os mesmos que, desde o relatório inicial de Molon, geraram reações e impediram a

votação do projeto: proteção da privacidade, como aparece na fala de Molon, acima, mas,

nesse momento, sobretudo, alterações relativas a direitos autorais e o debate sobre quem

regularia a neutralidade da rede.

No caso de direitos autorais, com a pressão para votar o projeto, o setor de produção

de conteúdo se movimentou com força. No dia 5/11, a Academia Brasileira de Letras realiza,

em conjunto com o jornal O Globo, um encontro intitulado “Criadores em defesa de seus

direitos autorais” no qual solta uma nota sobre o Marco Civil, assinada por sua presidenta Ana

Maria Machado, afirmando: “Uma sociedade que não admite o trabalho escravo não pode se

esquecer de que a utopia de distribuir bens gratuitamente a todos não deve se basear no

sacrifício de uma única categoria de trabalhadores”.211

Dois dias depois, o jornal O Globo solta editorial duríssimo contra o projeto intitulado

“Marco da Internet Ameaça Direitos Autorais”. Acho importante reproduzir o texto quase na

íntegra, pois ele explicita o tom que a Rede Globo assumiu quando o tema de direitos

autorais, diferentemente do que havia sido pactuado durante a consulta do Executivo, volta à

tona:

211 ABL defende inclusão do direito dos autores como premissa do Marco Civil da Internet, Academia Brasileira

de Letras, 06/11/2012. Disponível em http://www.academia.org.br/noticias/abl-defende-inclusao-dos-direitos-

dos-autores-como-premissa-do-marco-civil-da-internet acesso em 25/06/2017

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O debate que se trava há tempos, e não apenas no Brasil, sobre os direitos de

propriedade do criador sobre sua obra, neste novo mundo, passa por um

momento especial no país, devido ao projeto de lei do Marco Civil da

Internet, em tramitação no Congresso.

O projeto poderia muito bem passar ao largo da questão, mas o relator,

deputado Alessandro Molon (PT-RJ), ao tratar da postagem de qualquer

conteúdo de terceiros na rede — texto, som, imagem — resolveu mudar a

jurisprudência em vigor para os casos de reclamação por parte do autor.

Hoje, é aceito que o escritor, músico, cineasta, artista plástico e quem mais

for que se sinta lesado ao ter o produto do seu trabalho transportado para a

rede notifiquem extrajudicialmente o responsável pela veiculação não

autorizada. A partir deste momento, o site, o blogueiro, o Youtube, Google,

quem seja, notificado formalmente, mas à margem da Justiça, poderá ser

processado, aí, sim, judicialmente, se mantiver o conteúdo no ar.

Mesmo que esta não seja a intenção do relator, o novo mecanismo favorece a

pirataria, em prejuízo dos autores. Grandes organizações editoriais e de

comunicação podem mobilizar batalhões de advogados para despachar

incontáveis notificações judiciais diariamente. Mas não o criador autônomo

de conteúdos. Em encontro ocorrido segunda na Academia Brasileira de

Letras para se discutir o tema, Paulo Rosa, presidente da Associação

Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), deu um balanço das notificações

extrajudiciais encaminhadas apenas no ano passado devido à divulgação

ilegal na internet: 50 mil de livros, 18 mil de músicas e 15 mil de filmes.

Calcule-se o custo destas reclamações por via judicial. E o atravancamento

da Justiça, já angustiante, aumentaria ainda mais.

É claro que a grande maioria dos autores estará impedida, por razões

financeiras, de reclamar o direito sobre sua obra, para alegria dos piratas —

sejam grandes empresas globais de agregação de conteúdos ou sites de

aventureiros. É risível, ainda, o argumento a favor da flexibilização dos

direitos autorais baseado na “liberdade de expressão”. Equivale a se propor a

inimputabilidade dos ladrões de automóveis em nome do direito

constitucional de ir e vir.212

No tema da neutralidade, a movimentação das teles também se intensificou ao se

perceber a possibilidade de votação do projeto. Em entrevista ao Estado de S. Paulo no dia

12/11 a repórter pergunta a Molon: “Mas o que mais atrapalhou a votação foi a neutralidade,

não?”:

212 MARCO da Internet ameaça direitos autorais, Jornal O Globo 7/11/2012, Opinião p 22

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Molon: Sim. Na terça-feira (dia 6) à noite, depois das votação dos royalties,

eu tive uma reunião com o governo para fechar a redação do artigo 9, que

estava dando problema. O governo queria que o Comitê Gestor de Internet

no Brasil não fosse mencionado. E que se fizesse uma mudança, com a

previsão do decreto, porque não fazia sentido exigir que a regulamentação

das exceções técnicas fossem feitas pela presidência da República. Ficou

acertado que a regulamentação caberia ao poder executivo, mas à

administração direta, não à Anatel. E no dia seguinte eu fui surpreendido

com uma declaração do Ministério das Comunicações de que a regulação

caberia à Anatel. Percebendo que os termos de acordo não ficaram claros,

achei mais prudente voltar ao meu texto original, recolocando que a

neutralidade seria regulamentada por decreto da presidência. Na conversa

com os parlamentares, percebi que a maioria deles se sente mais segura com

o decreto.

Essa “surpresa” de Molon com relação ao Ministério das Comunicaçoes reflete a

posição bastante explícita do Ministro Paulo Bernardo em favor das empresas de telefonia.

Para compreender bem a pressão da Globo e dos defensores do direito do autor, vale perceber

que Marta Suplicy havia entrado, em substituição a Anna de Holanda, forte defensora do

direito autoral, com a promessa de retomar as discussões sobre direito autoral. Ou seja, além

do interesse natural em torno do tema, havia um teste de forças ao redor dessa questão que

dava um forte recado à nova ministra.

É por isso que, no mesmo dia em que O Globo publica o editorial transcrito acima,

Marta Suplicy, que aceitava retomar o debate sobre a lei de direitos autorais, mas certamente

não queria brigar com a Rede Globo, vai à Câmara e convence Molon a explicitar que a regra

que exige decisão judicial para a retirada de conteúdo não se aplica a direitos autorais.213

Ronaldo Lemos afirmou:

213DIAS, Tatiana, Marco Civil Recua para Conseguir Consenso, O Estado de S. Paulo – Caderno Link,

7/11/2012 disponível em http://link.estadao.com.br-/noticias/geral,marco-civil-recua-para-conseguir-

consenso,10000034640 Acesso em 20/06/2-13

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Acontece o seguinte, o projeto estava morto. E ele não tinha a menor chance

de ser ressuscitado. Ele estava na gaveta e ia permanecer na gaveta. Porque

existiam duas forças gigantescas que não iam deixar ele se reerguer. As teles

e a Globo. Então o que a gente precisava fazer? Realinhar o projeto. A gente

foi chamado para ver se era possível resolver a parte de direito autoral. E aí a

gente começou a propor redações alternativas. E a Marta nos chama para

propor uma redação. E aí gente propõe algo que tinha sido debatido na

consulta que era o notice and notice.214 Conseguimos um texto de consenso

entre a gente Globo e Molon.215

A forma como isso é feito, contemplando o pedido dos produtores de conteúdo,

especificamente da Rede Globo, não representava o acordo feito durante a consulta pública do

Executivo, que excluiu o tema de direito autoral do texto do Marco Civil. Ao explicitar que os

provedores não poderiam ser responsabilizados por conteúdo postados por terceiros,

excetuando-se violações de direitos autorais, o texto trazia o tema de direito autoral para

dentro do Marco Civil, pois ele tornava implícita a ideia de que, para a proteção de direito

autoral, os provedores poderiam ser responsabilizados, mesmo sem ordem judicial.

Isso causou reação não apenas do movimento pela internet livre, mas também dos

provedores de internet. A ABRANET, associação que representa os provedores de acesso,

divulgou no dia doze de novembro nota que dizia:

A Abranet entende que a retirada ou alteração do artigo 15 desfigura de

maneira indelével o Projeto de Lei do Marco Civil da Internet. Tal

dispositivo trata da garantia de que o usuário da Internet não sofrerá remoção

indiscriminada de conteúdos postados sem a apreciação pelo Poder

Judiciário(...). As modificações no artigo 15, sugeridas no apagar das luzes,

minutos antes da votação do projeto, impõem aos provedores a retirada de

conteúdos após a mera notificação de um terceiro, sob pena de tornar-se

responsável por um conteúdo que não produziu. É evidente que, pelo temor

de assumir ônus financeiro de terceiros, os provedores terão que remover

conteúdos em número muito maior do que fazem hoje. E, ainda assim,

passam a ser responsáveis por reclamações dos que tiverem seus conteúdos

removidos.216

214 Pelo mecanismo de notice and notice, se alguém crê que o seu direito de propriedade está sendo violado na

internet, deve notificar o provedor de conteúdo. Este, por sua vez, diferentemente do procedimento do notice

and take down , não deve retirar o conteúdo, mas apenas notificar o autor da postagem que, pretensamente

viola a propriedade intelectual. Com essa segunda notificaçao ele se isentaria de responsabilidade.

215 Entrevista com Ronaldo Lemos.

216 GROSSMAN, Luis O. Provedores: Mudança no Marco Civil abre brecha para censura no Brasil,

Convergência Digital, 12/11/2012. Disponível em

http://www.convergenciadigital.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=site&infoid=32349

&sid=4 Acesso em 20/06/2017.

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A Nota da Abranet foi rebatida no mesmo dia por uma nota da Abert, Associação

Brasileira de Emissoras de Rádio e TV:

Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão – ABERT vem a

público manifestar apoio à recente alteração de redação do projeto de lei

conhecido como Marco Civil da Internet, relatado pelo deputado Alessandro

Molon.

A redação anterior deste projeto isentava de responsabilidade os sites que

permitem a hospedagem de conteúdo pirata, mesmo depois de notificados da

violação de direito autoral em seu ambiente. Previa o texto alterado que

somente depois de receber ordem judicial determinando a retirada do

conteúdo pirata o site de postagem responderia pelos prejuízos que

causasse.

Não é necessária análise mais profunda para perceber o absurdo da situação.

Sites que lucram elevadas quantias com a postagem de conteúdo,

notadamente por meio da veiculação de publicidade (estando alguns deles

entre as maiores empresas do mundo), poderiam ignorar solenemente os

apelos dos titulares das obras ilegalmente utilizadas, sem responder por isso,

como se não lhes dissesse respeito. 217

Esse momento de impasse fez com que, no final de 2012, apesar de haver uma vontade

política acordada entre o governo, o relator e a presidência da Câmara para votar o projeto -

sobretudo em função do acordo para que a lei penal não fosse votada e o Marco Civil ficasse

parado-, não existia acordo possível em torno do texto. 2012 terminou sem que o projeto fosse

votado.

No início de 2013, acontece uma nova tentativa de se recuperar o projeto. A ABERT e

a Rede Globo, após as mudanças sugeridas no tema de Direito Autoral, mudam

completamente a sua posição. E de atores contrários ao Marco Civil, passam a fazer a defesa

pública da aprovação do projeto. Em função da aproximação ocorrida com o CTS-FGV, no

final de 2012, FGV e ABERT realizam um seminário em Brasília no dia 17 de abril de 2013.

Ana Carolina Papp relata que, neste seminário, o presidente da ABERT se refere ao Marco

Civil como “A Constituição da Internet”218. É uma mudança brutal de um setor que, poucos

meses antes, tratava o projeto como promotor da pirataria.

Ronaldo Lemos conta que o seminário foi um ponto de virada, até porque, no dia

seguinte, houve um seminário também em Brasília da Abranet, “E ali nós costuramos os

217 Nota publicada no sítio de internet da ABERT em 12/11/2012. Disponível em

https://www.abert.org.br/web/index.php/notmenu/item/18548-abert-se-manifesta-sobre-marco-civil-da-internet

Acesso em 20/06/2017 218 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p. 79. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/

em_nome_da_internet>.

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apoios que faltavam. Criando um grande bloco de apoio ao Marco Civil, que era o mesmo

bloco criado durante o debate inicial do Marco Civil e que foi o bloco que levou.”

Ou seja, no final de abril de 2013, os pontos nos quais Molon havia se afastado do

cerne do acordo central da consulta pública do executivo - guarda de logs, direito autoral e

neutralidade - haviam sido recompostos e foi possível recuperar a aliança improvável que foi

produto do processo deliberativo anterior.

Restava agora um inimigo do projeto. Justamente o inimigo que não participou

ativamente do debate no Executivo: as empresas de telefonia. As empresas de telefonia, que

entraram mais fortemente apenas no processo no Congresso, vinham trabalhando de forma

relativamente discreta, apostando na divisão dos outros atores. Quando as outras forças

voltam a convergir, as teles mudam de tática. Ivo Correa avalia que esse período de dissenso,

que sucede o relatório do Molon, “deu tempo para as teles se articularem e construírem apoio

parlamentar”. Nesse momento, as teles têm dois importantes aliados: Paulo Bernardo, o

ministro das comunicações, e o deputado Eduardo Cunha. Ivo Correa descreve esse momento,

de meados do primeiro semestre de 2013, como o momento de entrada “fulminante” de

Eduardo Cunha no processo.219 Um dos entrevistados – que pediu para ser identificado -

disse: “E aí em 2013 que Eduardo Cunha se torna o principal protagonista do Marco Civil e

Paulo Bernardo faz aquele jogo duplo de ‘estou no governo, mas também escuto o que as teles

tem a dizer’”.

Esses dois atores serão figuras centrais para o momento de disputa mais acentuada em

torno do Marco Civil que acontece, justamente, quando algo absolutamente inesperado afeta o

debate: as revelações de Edward Snowden.

4.9 Segundo fator exógeno: Snowden, o terremoto no debate

No dia 7 de julho de 2013, a manchete do jornal o Globo foi: “EUA espionaram

milhões de e-mails e ligaçoes de brasileiros”220. Era uma das maiores revelações sobre as

entranhas das novas formas de vigilância que a internet possibilitou aos Estados Unidos. A

divulgação dos dados vazados pelo analista de informações da National Security Agency

(NSA), Edward Snowden, são a verdadeira ferida narcísica da internet. A utopia da internet

livre como esfera pública virtual na qual a comunicação poderia fluir e os cidadãos

219 Entrevista com Ivo Correa. 220 Jornal O Globo 7/07/2013

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possuiriam o poder de se articular e controlar o Estado de forma muito mais eficiente, dava

lugar ao Estado orweliano, que tem o poder de vigiar cada passo dos seus cidadãos.

O choque global sobre as revelações foi brutal, e a reação do Estado brasileiro e,

particularmente, da presidenta Dilma, esteve entre as mais contundentes do mundo. Dilma

convoca o embaixador americano para explicações, cancelou a visita de Estado que faria aos

EUA e buscou respostas legislativas para responder à espionagem norte-americana. Entre

essas propostas, a principal acabou sendo o Marco Civil.

Em todas as entrevistas feitas para esta tese, assim como em qualquer trabalho ou

matéria jornalística escrita sobre o Marco Civil, há um consenso inequívoco de que as

revelações de Edward Snowden foram um evento fundamental para sua aprovação. Em

entrevista para esta tese, Molon afirma que o caso Snowden foi “decisivo, porque deu ao

projeto um peso político que ele não tinha. Um peso de uma reação a uma crise internacional.

E foi uma oportunidade da presidenta reagir a isso.”

Também em entrevista para a este trabalho, Ronaldo Lemos afirmou:

Quando teve o Snowden, teve um choque no país, mas começaram a

aparecer muitas propostas implausíveis. E a única proposta plausível era o

Marco Civil. Então o governo não tinha muita margem de resposta, mas

tinha o negócio ali pronto que era genial. Na época eu até escrevi um artigo

na Folha contra o cancelamento da viagem de Estado aos Estados Unidos.

Eu disse: ‘Vá lá e roube a bandeira dos Estados Unidos’. Porque até então os

EUA usavam isso como bandeira de soft power. A Hillary viajou o mundo

inteiro pregando liberdade na internet. Mas ela cancelou a visita de Estado.

Ora, mas se o Marco Civil foi aprovado em função das revelações do ex-analista da

NSA, isso não vai contra a ideia central desta tese de que o processo deliberativo de consulta

pública no Executivo foi decisivo para a aprovação do projeto pela aliança improvável que ele

criou em função do debate? Não. Há muitos elementos concorrentes para a aprovação do

projeto. As revelações da espionagem americana e a reação da Presidenta Dilma foram

essenciais, mas a descrição do que ocorre a partir dela, mostra que a aliança construída na

consulta pública foi fundamental para que se enfrentasse o poderoso interesse das teles que,

sem essa aliança, provavelmente teriam derrotado o governo neste processo.

Ivo Correa afirmou na entrevista:

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Após o caso do Snowden, a Presidenta colocou os ministros para cuidarem

(do Marco Civil). O Snowden foi um momento importante para dar

relevância para isso. Em que pese, se você olhar, diretamente, o Marco Civil

não trata das coisas reveladas pelo Snowden, apesar de tratar de privacidade.

Mas ele foi escolhido por que ele é uma reafirmação de uma visão de

internet que era diferente da visão americana da NSA. Que era uma visão

construída com a sociedade civil, mas também com os especialistas e era

uma visão equilibrada. Não é uma visão de controle estatal e fazia esse

contraponto ao uso da internet pelo Estado para espionar.

As falas dos entrevistados nos revelam algumas coisas fundamentais para

compreender este processo. Como já afirmado, não há dúvidas de que as revelações de

Snowden foram decisivas para que o processo caminhasse, já que, após esse evento, o

governo reforça a prioridade ao Marco Civil. Mas é interessante notar que o Marco Civil, pelo

seu conteúdo, não era uma resposta óbvia ao fato de brasileiros estarem sendo vigiados. Ele

tinha previsões de garantia da privacidade, mas ninguém de fato poderia dizer que ele

representava uma real proteção ao perigo que os EUA se revelavam naquele momento.

Por isso a fala de Ivo Correa é tão importante. A Presidenta escolhe o Marco Civil

menos pelo que ele concretamente oferecia como resposta institucional à crise, mas pelo fato

de ele representar um modelo de internet que estava sendo atacado pela forma como os EUA

estabeleciam seu programa de vigilância em massa. E o Marco Civil claramente representava

esse modelo pela forma como ele foi elaborado.

Os meses que antecederam as revelações de Snowden, como vimos acima, foram

marcados por dois movimentos importantes do arranjo de forças em torno do Marco Civil. De

um lado, estava recomposta a aliança que se formou a partir do processo deliberativo de

elaboração do Projeto. De outro, as empresas de telefonia, que passaram o último ano e meio

se esforçando para de, maneira relativamente discreta, barrar a forma como o projeto tratava a

neutralidade da rede, agora, estavam mais articuladas, possuíam o apoio da liderança

emergente de Eduardo Cunha: estavam prontas para a guerra.

O termo guerra aparece de fato em algumas entrevistas para definir esse momento da

tramitação após o Snowden. A virulência da estratégia adotada pelas teles em um contexto em

que o projeto ganhava relevância para o Executivo, justificava o termo. Ivo Correa descreve

esse momento: “Quando o projeto ficou pronto para ir para a pauta. Ficou já naquela tensão

de que toda semana podia ser votado. E aí começou a pressão mais pesada. Toda semana tinha

artigos das teles acusando o governo.” Para Correa, foi

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uma mudança total do que tinha sido o processo até então. Foi muito

impressionante porque Eduardo Cunha já era uma pessoa de muita

importância naquele momento. E ele entrou fulminantemente nesse

processo. Eu atribuo totalmente as várias confusões que se criavam em torno

do Marco Civil na imprensa, com denúncias e outros métodos, eu atribuo

isso 100% as teles. A partir desse momento vira outro tipo de debate.

Uma dessas denúncias foi dirigida diretamente contra Correa. Menos de dez dias após

as revelações de Snowden e, portanto, logo após o governo priorizar o Marco Civil da Internet

como resposta, o jornal Correio Braziliense traz longa matéria221 acusando Ivo Correa de ser o

representante do Google na Casa Civil. Correa havia trabalhado em diversos órgãos da

administração pública durante o governo Lula, inclusive como servidor público de carreira.

Havia sido diretor de relações governamentais do Google entre 2008 e 2010 e voltara ao

governo, agora como subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil, no início de 2011, com a

posse de Dilma Rousseff. Os movimentos profissionais de Correa eram públicos, conhecidos

de todos os agentes envolvidos no processo. A matéria do Correio Braziliense, portanto, não

traz nenhuma novidade, apenas dá à história o tom conspirativo necessário para atrapalhar o

andamento do projeto. O próprio título da matéria “Conexões Suspeitas Podem Influenciar o

Marco Regulatório da Internet” confirma esse caminho. E é nesse movimento de tensão,

entre a decisão da presidenta de priorizar o projeto como sua grande resposta internacional ao

escândalo e a escalada da atuação das teles, que vai se dar o processo até a sua aprovação em

2014.

A Presidenta cancela sua visita aos EUA, mas define que a resposta internacional, com

uma nova agenda para a internet, vai se dar na Assembleia-Geral da ONU em 24 de setembro.

Antes disso, se reúne com os Ministros Paulo Bernardo e José Eduardo Cardozo e com o

relator Alessandro Molon, no dia 11 de Setembro222, e define que o governo pedirá urgência

do PL do Marco Civil. Com o processo de urgência o texto deixa a comissão e já vai direto ao

plenário, podendo ser votado a qualquer momento. Sendo que, a partir de 28 de outubro, pelas

regras da urgência constitucional, ele passaria a travar a pauta da Câmara até que fosse

votado.

221 RIBAS, Silvio. Conexões Suspeitas Podem Influenciar o Marco Regulatório da Internet, Correio Braziliense,

15/07/2013. Disponível em

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2013/07/15/internas_economia,376991/conexoes-

suspeitas-podem-influenciar-o-marco-regulatorio-da-internet.shtml acesso em 20/06/2017

222 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p. 90. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/

em_nome_da_internet>.

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No dia 16 de setembro, Dilma, que claramente vinha se interessando mais pelo tema,

realiza uma reunião no CGI, justamente com os setores do movimento pela internet livre, dos

provedores de internet e das polícias, que estavam apoiando o processo. Paulo Bernardo, José

Eduardo Cardozo e Molon a acompanham nesta reunião.

Para Ivo Correa, Dilma só aceitou ir à reunião porque entendeu a natureza colaborativa

do processo e a importância de se reunir com a sociedade civil neste caso. Sergio Amadeu

descreve essa entrevista como o momento chave em que Dilma entende o lado do movimento

pela internet livre e percebe que Paulo Bernardo tinha uma ligação clara com as empresas de

telefonia.

Sergio Amadeu descreve o fato de que após a saída da presidenta, os ministros

continuaram na sala conversando com os presentes. E, segundo ele, foi nesse momento que o

setor de segurança, presente na reunião, propõe a ideia de que, como resposta às revelações de

Snowden, o governo deveria obrigar os provedores de conteúdo a armazenar dados de

brasileiros no Brasil.

A ideia era a medida que mais se relacionava de forma direta com a necessidade de se

dar uma resposta aos EUA, mas ela iria romper, mais uma vez, o acordo formado no processo

deliberativo do Executivo. Provedores de conteúdo e o movimento pela internet livre não

poderiam compactuar com esta ideia. Ela criava custos para os provedores e uma espécie de

nacionalização da internet que contraria toda a ideia de espaço livre e global em que se

baseiam os movimentos envolvidos no tema.

Tanto Correa como Amadeu afirmam que, após essa reunião, Paulo Bernardo fica

isolado e o tema é tratado diretamente por José Eduardo Cardozo. Apesar de José Eduardo

Cardozo não ser o ministro quando o processo de consulta se realizou no Ministério da

Justiça, havia uma continuidade política clara no Ministério, que era percebida pelos atores

envolvidos. Assim, a preponderância do Ministério da Justiça na negociação foi vista como

forma de fortalecer o processo de consulta.

Para Sergio Amadeu, o afastamento de Paulo Bernardo coincide com a entrada mais

violenta de Eduardo Cunha no jogo. De fato, todos os entrevistados, assim como a imprensa

da época, reforçam o papel fundamental de Eduardo Cunha, mas sua presença só aparece

publicamente vinculada a este tema a partir do momento em que o projeto passa a trancar a

pauta no final de outubro de 2013. É Eduardo Cunha quem apresenta, no dia 30/10/2013

requerimento para que o projeto seja debatido em Comissão Geral no plenário antes de ser

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votado223. Essa foi sua primeira manifestação visível neste processo. Mas, a partir deste dia,

seria impossível debater o tema sem mencionar seu nome.

Eduardo Levy, em entrevista para esta tese, afirmou que o trabalho que ele fazia no

Congresso ganhou um peso distinto a partir do momento em que Eduardo Cunha “entrou no

jogo”. Levy conta que conheceu Eduardo Cunha quando era empregado de carreira da Telerj e

Cunha era um indicado político como Diretor de Operaçoes da Telerj: “Ele entendia

perfeitamente do tema, pois já tinha trabalhado na área. (...) Ele me levou para fazer uma

apresentação para a bancada do PMDB e depois a bancada deliberou sobre o assunto.”

Essa reunião aconteceu em 6 de novembro. Felizmente, para este trabalho, a reunião

foi filmada e divulgada pela própria bancada do PMDB. Eduardo Cunha era líder da bancada

e senta-se A e na mesa principal (a reunião ocorreu em uma sala de comissões do congresso e

Cunha senta-se na posição em geral ocupada pelo presidente). Levy fez sua apresentação em

pé e, quando se abre para perguntas, Cunha responde as perguntas por Levy, como se fosse

ele o representante das empresas de telefonia.224 Anna Carolina Papp também narra esta

reunião em seu livro:

Quando já estava nos agradecimentos, um deputado pediu a palavra. Já fora

do microfone, Levy perguntou: “O que que você quer que eu fale?” Ele

respondeu: “Perdao , eu só acho que seria esclarecedor que você rapidamente

comente isso que esta aı proposto, que sao coisas pequenas, realmente, e que

resolvem as armadilhas que estão no texto”.

O representante do Sinditelebrasil se preparou para responder, mas o lıder interveio: “Isso, isso a gente depois divulga, eu vou mostrar para a bancada à medida do que a gente for fazer ou deixar de fazer; é uma decisão que a bancada vai tomar.”225

O relatório de Molon, apresentado um pouco antes da Comissão Geral, trazia como

principal novidade a obrigação, agora encampada pelo governo como grande resposta ao caso

de espionagem, de que todas as empresas que armazenassem dados de brasileiros o fizessem

em território brasileiro, com o intuito de manter os dados livres da cooperação das empresas

americanas com o governo daquele país. Como esperado esta medida recebeu críticas duras

de dois setores essenciais para a manutenção do acordo em torno do projeto. O próprio

223 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1172191&filename=Tramitacao-

PL+2126/2011

224 Video da reunião disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FmNVrrnvPdM

225 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p. 103. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/

em_nome_da_internet>.

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Molon tinha consciência de que era muito problemático incorporar a ideia dos datacenters,

mas justifica a inclusão em seu relatório como um respaldo à Chefe de Estado.

Foi uma resposta política da presidenta a um atentado contra a nossa

soberania. E aí era importante o parlamento brasileiro dar respaldo à chefe

de Estado. Mas ali não era o local ideal. E foi um aprendizado também para

o governo. O governo percebeu que não tinha condições de aprovar. Mas se

era apenas uma negociação política não fazia sentido botar tudo a perder por

causa disso. Mas foi importante na negociação. Tanto é que quando

anunciamos a retirada, quem era contra o Marco Civil ficou muito nervoso.

Porque estava usando esse argumento para derrotar o Marco Civil. E aí

quando isso cai volta a unidade.226

Ronaldo Lemos também lembra que a reação aos datacenters criou um atrito com o

papel internacional que Dilma estava desempenhando. Sua fala na ONU, defendendo o Marco

Civil e uma internet livre, havia sido amplamente elogiada. Contudo, a medida dos

datacenters criava um péssimo precedente para que ditaduras criassem internets paralelas.

Para Ronaldo, estava “traindo os próprios princípios do Marco Civil e isso deu muita

repercussão na imprensa internacional : ‘O Brasil quer se separar da internet’”.227 Para Ivo

Correa. “Quando vem essa preocupação dos datacenters tem um descolamento dos setores que

mais apoiaram o Marco Civil”.

No dia 05 de novembro, o jornal O Estado de S. Paulo traz uma matéria intitulada:

“Proposta de Guardar Dados tem oposição”228. A posição das empresas de internet é clara:

“As empresas alegam que o armazenamento de dados dentro do Brasil elevará custos e

erguerá barreiras desnecessárias na web, que deveria ser um espaço sem fronteiras”. E a

mesma crítica é repetida por Ronaldo Lemos na matéria.

No dia seguinte, acontece a Comissão Geral no plenário. Ela apresenta um bom mapa

do debate naquele momento229. Eduardo Cunha se coloca como a grande voz crítica ao projeto

226 Entrevista com Molon.

227 Entrevista com Ronaldo Lemos.

228 PROPOSTA de guardar dados tem oposição, O Estado de São Paulo, caderno Link, 05/11/2013, disponível

em http://link.estadao.com.br/noticias/geral,proposta-de-guardar-dados-tem-oposicao,10000032629 acesso em

20/06/2017

229 MARCO civil da Internet é criticado por especialistas, Revista Consultor Jurídico, 06/11/2013. Disponível

em http://www.conjur.com.br/2013-nov-06/marco-civil-internet-criticado-especialistas-debate-camara acesso

em 20/06/2017

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“nós não concordaremos em comunizar a internet”230. O governo envia os ministros José

Eduardo Cardozo e Ideli Salvatti, fato relevante, principalmente, pela ausência do ministro

das Comunicações, Paulo Bernardo, deixando claro o lado que o governo apoiava. O tema dos

datacenters recebe críticas profundas dos participantes.

Ao longo do mês de novembro, não havia consenso para se conseguir votar o

processo. Em dezembro, Molon apresenta novo relatório que, não apenas trazia os

datacenters, como atendia uma reinvindicação da Polícia Federal, apoiada por seis partidos,

para que fossem ampliados os poderes de coleta de dados por parte das polícias sem

autorização judicial231. Entidades do movimento pela internet livre reagiram. Mais uma vez o

consenso estava distante.

Entretanto, era muito difícil continuar adiando o projeto indefinidamente. Com o

pedido de urgência do Executivo o projeto travava a pauta. Nenhum outro projeto de lei

poderia ser votado enquanto não se votasse o Marco Civil. Em meados de dezembro chega o

recesso e o projeto ainda não havia sido votado. A ministra das Relações Institucionais, Ideli

Salvatti, dá entrevista ao Estado de São Paulo na qual esclarece as questões do momento.

A ministra-chefe da Secretaria de Relações Institucionais, Ideli Salvatti,

disse que o Marco Civil da Internet será o primeiro debate com o Congresso

em 2014 e que ele é fundamental por causa da questão da espionagem

realizada pelos Estados Unidos em relação ao Brasil. ‘Se não, a Câmara não

vota mais nada porque a presidenta deixou claro que não vai tirar a urgência

do projeto do Marco Civil’

(...)

Segundo a ministra, depois do recesso, se não houver novo entendimento

com os partidos, particularmente com o PMDB, a intenção do governo é por

o texto em votação mantendo os dois pontos fundamentais: neutralidade da

rede e armazenamento de dados no Brasil para fazer valer a lei brasileira.232

A fala de Salvatti demonstra que o governo continuava dando grande prioridade ao

assunto e, também, que o tema dos datacenters ganhara destaque tão grande quanto a

neutralidade na perspectiva do governo.

230 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p. 103. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/

em_nome_da_internet>.

231 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p. 110. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/

em_nome_da_internet>.

232 MONTEIRO, Tania e MOURA, Rafael M. Marco Civil Será o Primeiro Debate em 2014, O Estado de S.

Paulo, 17/12/2013. Disponível em http://link.estadao.com.br/noticias/geral,marco-civil-sera-o-primeiro-

debate-de-2014,10000032324 acesso em 20/06/2017

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4.10 O Blocão formado por Eduardo Cunha.

A volta do recesso acontece em um clima bem mais conturbado. Do ponto de vista do

Marco Civil, o ano acabara com sinais ambíguos. O governo mantinha-se firme na

sustentação da prioridade e urgência ao projeto. Sem isso, seria muito difícil avançar.

Entretanto, o acordo construído em anos de processo deliberativo parecia profundamente

abalado. A inclusão dos datacenters e a possibilidade de uma vigilância reforçada eram uma

clara ruptura deste acordo e a aliança que se formara em torno de seus pontos centrais estava

realmente frágil. O clima político na Câmara havia se tornado realmente conturbado, fazendo

do Marco Civil apenas mais uma peça dentro deste embate político233.

Este é um ponto fundamental para o argumento central deste trabalho. O Marco Civil,

que como discutimos, aqui, poderia ter sido votado antes, caso o acordo mantido no processo

deliberativo fosse mantido, foi sendo adiado até encontrar o início do furacão político que,

inclusive, resultou na queda da Presidenta Dilma, como veremos adiante. Ele foi uma das

últimas vitórias parlamentares relevantes do governo Dilma e acontece, como se verá, em um

momento de grande fragilidade política e erosão da base de apoio da Presidenta na Câmara,

que não se recompõe, nem mesmo com a eleição de 2014. Isto reforça a ideia de que, apesar

do projeto ter sido enviado pelo Executivo e ter sido considerado prioritário pela

Presidenta234, isso claramente não é suficiente para explicar sua aprovação, dado o momento

em que ele foi apresentado235. É por isso que ganha força a ideia de que foi a aliança

construída durante o processo deliberativo que ofereceu os elementos necessários para que,

mesmo em uma condição tão adversa para o governo e com interesses tão poderosos

articulados contra o projeto, o Marco Civil pudesse ser aprovado.

Em entrevista para este trabalho, Molon afirmou foi a partir do Marco Civil e da

relação que Eduardo Cunha constrói ali com as empresas de telefonia, que ele monta um

233 Em resposta ao jornalista Felipe Seligman no início de 2014 eu afirmei “Infelizmente, o Marco Civil virou

acessório. A questão agora é governo contra o PMDB” SELIGMAN, Felipe. Por Trás da Disputa Política a

Força das Teles, Agência Pública, 19/03/2014 disponível em http://apublica.org/2014/03/por-tras-da-disputa-

politica-forca-das-teles/

234 Essa diferenciação é importante como mostrou Simone Diniz em DINIZ, Simone. Interações entre os Poderes

Executivo e Legsilativo no Processo Decisório: Avaliando Sucesso e Fracasso Presidencial. DADOS – Revista

de Ciências Sociais vol. 48 no 1, Rio de Janeiro, 2005, pp. 333-369.

235 Me refiro aqui à literatura iniciada por Limongi e Figueiredo e reforçada pelos mesmos autores em

LIMONGI, F.; FIGUEIREDO, A. Instituições Políticas e governabilidade. In: RANULFO, Carlos (org.). A

Democracia Brasileira: Balanço e Perspectivas para o Século 21. Editora da UFMG, 2007, pp. 25-32.

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144

bloco de apoio de deputados que vai ser sua base até o processo de impeachment. Em matéria

de março de 2014, Felipe Seligman descreve o que estava ocorrendo.

“Insatisfeitos com o que consideram um pequeno espaço no governo, ao

menos 9 partidos da base (PMDB, PP, PSD, PDT, entre outros) formaram

informalmente o “blocão”, com mais de 250 deputados, pressionando por

novos Ministérios e pela liberação de emendas indicadas por eles referentes

ao ano de 2013.

A principal liderança do blocão é exatamente Eduardo Cunha, que de três

semanas para cá passou a atacar o PT e a presidente Dilma, ameaçando

inclusive romper a aliança entre os partidos. Disposto a promover derrotas

ao governo, começou a reunir colegas para derrubar o Marco Civil. Fatores

políticos, portanto, passaram a reforçar sua posição tecnicamente contrária

ao projeto.236

Del Bianco e Barbosa também atribuem à articulação de Cunha para derrotar o Marco

Civil a criação do chamado ‘Blocão’:

O movimento de resistência à proposta do Marco civil da Internet foi

liderado pelo deputado Eduardo Cunha que, na tentativa de rejeitar

integralmente o projeto de lei ou, no mínimo, excluir dele o princípio da

neutralidade de rede, chegou a organizar, em um movimento tido como

insurreição, uma união partidária, chamada ‘blocão’, contra os interesses do

Poder Executivo Federal. Eduardo Cunha, apesar de ser filiado ao PMDB –

principal partido da base aliada do governo federal -, fez forte campanha

para permitir às operadoras de telecomunicações a implantação de um

modelo de negócio baseado na contratação de pacotes com condições

especiais para quem quisesse conteúdo diferenciado, o que contraria o

princípio da neutralidade de rede.237

A Revista Brasileiros publicou uma matéria bastante consistente de Mauricio Puls

intitulada: “Centrão: pequena história do maior adversário de Dilma no Congresso”238, em

junho de 2016, na qual traça essa relação entre a formação deste bloco de insatisfeitos com o

governo Dilma, liderado por Eduardo Cunha, e o movimento congressual que culmina na sua

queda. Na matéria, o Marco Civil aparece como sendo o início do processo que opôs o bloco

ao governo. O texto salienta bem que o Marco Civil foi a única vitória no embate entre o

centrão e o governo. O governo foi derrotado na criação CPI da Petrobras, em convocações de

236 SELIGMAN, Felipe. Por Trás da Disputa Política a Força das Teles, Agência Pública, 19/03/2014 disponível

em http://apublica.org/2014/03/por-tras-da-disputa-politica-forca-das-teles/

237 DEL BIANCO, N. R.; BARBOSA, M. M.. O marco civil da internet e a neutralidade de rede: dilemas,

debates e impasses relacionados a este princípio na tramitação do projeto de lei. Revista Eptic Vol 17 no 1,

janeiro-abril 2015, p. 11.

238 PULS, Maurício. Centrão: pequena história do maior adversário de Dilma no Congresso , Revista Brasileiros,

05/06/2016 disponível em: http://brasileiros.com.br/2016/06/pequena-historia-centrao-o-bloco-que-derrubou-

dilma/ . Acesso em 20/06/2017

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ministros, na queda de Ideli Salvatti, na aprovação da PEC do orçamento impositivo e, claro,

na eleição de Eduardo Cunha em 2015.

No início de março, Eduardo Cunha vinha impondo derrotas sucessivas ao governo.

Ainda, na matéria de Seligman:

Semanalmente, o projeto (do Marco Civil) é pautado para ser votado, mas

sem a certeza de que irá passar o governo dá um passo atrás e adia. Na

semana passada, após uma reunião de líderes, Molon afirmou que “ambiente

político” não está propício para a análise do tema. Naquele mesmo dia, o

plenário da Câmara aprovou a criação de uma comissão interna para

investigar a Petrobrás, derrotando o Planalto. No dia seguinte, deputados

decidiram convocar ou convidar dez ministros, além de Graça Foster,

presidente da empresa, para prestarem esclarecimentos sobre mais diversos

assuntos, com a intenção de constranger o governo.239

A situação chega a meados de março com pressões de distintas ordens. O Presidente

da Câmara pressiona o governo para que o projeto seja votado, pois ele está travando a pauta

da Casa. O movimento pela internet livre se mobiliza fortemente: uma petição lançada pelo

ex-ministro da Cultura Gilberto Gil na Plataforma Avaaz alcançou mais de 300.000

assinaturas240. O governo havia anunciado um grande encontro mundial, NETmundial, sobre

a internet em SP em abril e fazia questão de ter o texto aprovado antes do evento.

Neste contexto, a virada ocorre entre 11 de março, quando Cunha afirma claramente

que o PMDB pretendia derrotar o Marco Civil241, e o dia 19 de março, quando o governo

aceita ceder na questão dos datacenters e se abre o caminho para a votação. A pressão pública

do movimento pela internet livre, das empresas de internet, das polícias e, até, da rede Globo

fizeram com que parte da bancada que tinha interesse em derrotar o governo mudasse de

opinião e passasse a apoiar o Marco Civil.

Em depoimento a Anna Carolina Papp, Bia Barbosa, do coletivo Intervozes,

organização chave na articulação do movimento pela internet livre, afirmou sobre o que

ocorreu em março: “Num determinado momento, o governo percebeu que se ele não

239 SELIGMAN, Felipe. Por Trás da Disputa Política a Força das Teles, Agência Pública, 19/03/2014 disponível

em http://apublica.org/2014/03/por-tras-da-disputa-politica-forca-das-teles/

240 https://secure.avaaz.org/po/o_fim_da_internet_livre_senado/?rc=fb

241 LÍDER do PMDB diz que bancada quer derrotar Marco Civil da Internet, Agência Câmara, disponível em:

http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/463450-LIDER-DO-PMDB-DIZ-QUE-

BAN%ADCADA-QUER-DERROTAR-MARCO-CIVIL-DA-INTER%ADNET.html . Acesso em 20/06/2017

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articulasse estratégia com a sociedade civil, não ia passar”242. As entrevistas de Ivo Correa,

Molon e Sergio Amadeu apontam para esta presença determinante da pressão do movimento

pela internet livre no momento final. O projeto não era apenas do governo, era de setores que

dialogavam também com a oposição. Se o governo insistisse na manutenção do datacenters, o

que representava uma ruptura do acordo forjado na consulta, não teria conseguido aprovar o

projeto.

É importante lembrar que, como vimos no capítulo 2, um dos elementos chave para a

construção da consulta pública no executivo, foi a mobilização anterior. O processo de

consulta não surge da vontade do executivo, mas de uma grande mobilização reativa ao

chamado AI-5 digital. Molon define bem na entrevista: “Para mim também ajudou entender

que tinha uma história anterior que era a luta contra o AI-5 digital. Aquilo era fruto de uma

história. Isso não nasceu da vontade da Presidenta. Isso nasceu da sociedade, de fora para

dentro.”

É verdade que essa mobilização sozinha claramente não seria capaz de aprovar o

projeto, como se viu analisando-se cada etapa deste processo, mas foi o sistema deliberativo

que combinou a mobilização com a aliança formada durante o processo deliberativo, além do

apoio do governo, o responsável por um projeto que, mesmo contrariando frontalmente

interesses tão poderosos, pudesse ser aprovado.

Mas vale a pena insistir que se o apoio do governo foi fundamental para que o projeto

voltasse à pauta de votações (Cunha vinha tendo sucesso em impedir isso), o governo não

estava em condições políticas de aprovar sua agenda legislativa naquele momento. A taxa de

sucesso parlamentar do governo Dilma Rousseff no último ano de governo (o ano em que o

Marco Civil foi aprovado) havia caído de 60% para apenas 16%243. Ou seja, o apoio do

governo certamente não explica, sozinho, a aprovação do projeto.

Pelo contrário, o tema que o governo tentou inserir (e que era o único que se

relacionava de fato com as revelações de Snowden), a questão dos datacenters, teve que ser

descartado, justamente porque violava o acordo argumentativo. O papel das revelações da

espionagem norte-americana foi muito mais importante para mobilizar o poder de agenda do

242 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p. 116. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/

em_nome_da_internet>. 243 SANTOS, Fabiano; GUARNIERI, Fernando. From Protest to Parliamentary Coup: An overview of Brazilian

Recent Story. Journal of Latin American Cultural Studies 25:4, 2016, p. 490. Disponível em:

<http://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/13569325.2016.1230940?needAccess=true>.

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governo e fazer com que o projeto fosse votado, do que para garantir uma maioria para o

conteúdo do texto. Essa maioria foi garantida pelo sistema deliberativo descrito nesta tese.

Finalmente, em 25 de março, o projeto é votado e aprovado de forma simbólica no

plenário. Eduardo Cunha, derrotado, afirma “Pessoalmente acho que não deveria haver

regulação (da internet), mas se é vontade da maioria o PMDB continuará acompanhando a

questão.”244.

A pressão feita pelo governo para que o projeto fosse aprovado a tempo da

NETmundial, que ocorreria em um mês, fez com que o projeto tivesse uma passagem

relâmpago pelo Senado. Em entrevista, Ronaldo Lemos afirmou “Por causa da NETmundial,

eles correram com o projeto. O Marco Civil é uma lei que nunca foi debatida no Senado.”

Em menos de um mês, o Marco Civil da Internet era sancionado pela Presidenta Dilma

Rousseff. Em um contexto político extremamente conturbado, com o executivo claramente

fragilizado na Câmara, com uma aliança improvável construída a partir de um processo

deliberativo, foi-se capaz de derrotar interesses poderosos e muito bem articulados no

Congresso.245

4.11 Conclusão

Como vimos ao longo deste capítulo, a análise detalhada da tramitação legislativa do

Marco Civil da Internet, nos mostra um processo complexo. Inúmeros atores e grupos de

interesse se articularam de formas distintas, formando alianças e oposições durante os quase

três anos de tramitação do projeto. A complexidade deste processo, os diferentes grupos e

articulações e as idas e vindas que aconteceram no período formaram uma material riquíssimo

para utilizar o método de process-tracing, testando a hipótese inicialmente formulada.

Podemos concluir que o acordo formado a partir do processo deliberativo realizado no

Ministério da Justiça, que criou uma aliança improvável entre atores que antes estavam em

244 PAPP, Ana Carolina. Em nome da Internet:Os bastidores da Construção Coletiva do Marco Civil. Livro

publicado na internet, 2014, p. 121. Disponível em: <https://issuu.com/annacarolinapapp/docs/

em_nome_da_internet>.

245Del Bianco e Barbosa afirmam: “Por fim, pode-se concluir que: a) contabilizando o saldo da batalha do Marco

Civil da Internet sob o viés da neutralidade de rede, ganharam governo, sociedade civil organizada e

provedores de aplicaçoes e conteúdos, e perderam as operadoras de banda larga;” (DEL BIANCO, N. R.;

BARBOSA, M. M.. O marco civil da internet e a neutralidade de rede: dilemas, debates e impasses

relacionados a este princípio na tramitação do projeto de lei. Revista Eptic Vol 17 no 1, janeiro-abril 2015, p.

16.)

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148

lados opostos, foi, por ser formado pela força do melhor argumento, determinante para a

aprovação do texto do Marco Civil.

Mais do que isso, essa aliança, baseada na construção de um acordo público, possuía

uma força específica que possibilitou, mesmo no contexto de um governo fragilizado, a

derrota de interesses poderosos e bem articulados das empresas de telefonia. Essa força, como

desenvolvemos no primeiro capítulo, é resultado da aliança ter sido forjada a partir do melhor

argumento e não em um mero processo de barganha.

A análise do processo nos mostra, também, que os atores que formaram o acordo não

possuíam especial apego por ele. Movimento pela internet livre, setores de segurança,

produtores de conteúdo, provedores de internet, cada um em seu momento, testou a

possibilidade de quebrar o acordo e apoiar um texto que fortaleceria sua posição para além do

consensuado no Executivo. E é verdade que o texto final aprovado não é idêntico ao

apresentado incialmente, mas o pacto em torno das três grandes questões acordadas no

processo colaborativo ficou resguardado. A cada momento em que algum dos atores tentou

romper este acordo, a votação tornou-se inviável. Quando o acordo foi realinhado, contando

também com o apoio do governo, foi possível derrotar uma das mais potentes forças que se

formaram no Congresso nos últimos anos, o “blocão” de Eduardo Cunha defendendo as

empresas de telefonia. Ronaldo Lemos define bem este processo de afastamento e volta ao

consenso inicial:

Criou um sistema que, de certa maneira. se autorregulou até o final. Você

criou um sistema de autorregulação que foi expelindo (o que violava o pacto

formado pela consulta). Isso é muito interessante. Na época da Anatel, ele

teria passado. Ali estava tudo pronto. Mas enrolou com a questão do CGI,

rompeu esse equilíbrio e era impossível. E acho que também teria passado

sem o Snowden. Ia demorar mais mas ia acabar passando.

Além da confirmação da hipótese inicial, a análise traz duas outras contribuições

importantes para o debate acadêmico sobre o legislativo. Em primeiro lugar, a análise do

processo legislativo do Marco Civil reforça a importância da visão sistêmica da teoria

deliberativa. O efeito que o debate construído nos dois espaços deliberativos anteriores

produziu, na discussão realizada no parlamento, é enorme. Isso ocorre justamente pela

presença de indutores de conectividade (SAL, Molon e repetição de participantes) que forjam

um acoplamento adequado entre os espaços. A visão sistêmica permite também compreender

a utilidade da ideia de representação discursiva apresentada por Dryzek e Niemeyer. O

debate da consulta não precisou ter uma ampla participação para ter o efeito no

processo legislativo. Sua

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149

influência vem do fato de estarem presentes, ali, a constelação de discursos existentes na

sociedade, além do processo ter permitido a confrontação entre esses argumentos.

Finalmente, aproveitando a discussão feita por Santos e Almeida sobre o papel

informacional do relator no parlamento brasileiro, bem como a importância das audiências

públicas neste processo, foi possível perceber o papel informacional que uma consulta pública

on-line aberta e deliberativa pode desempenhar, fortalecendo o acesso à informação

independente por parte do Congresso, principalmente do relator. É interessante notar como o

duplo papel do relator (de agente informacional e de indutor de conectividade entre os

espaços deliberativos) faz com que cada papel se retroalimente. Ele é um indutor de

conectividade eficiente, pois já traz a legitimidade de ser visto como agente informacional. E

ele é um agente informacional diferenciado, por representar o vínculo com a consulta (indutor

de conectividade), afinal este vínculo com um espaço, que expôs de forma pública

informações sobre o possível impacto das políticas, impede uma ação estratégica do relator e

aumenta a confiança do legislador mediano em suas propostas.

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150

CONCLUSÃO

O objetivo central desta tese, anunciado ao longo dos capítulos anteriores, foi o de

investigar se a consulta colaborativa on-line realizada pelo Ministério da Justiça, com o

intuito de elaborar o projeto de lei do Marco Civil da Internet, teve impacto na tramitação

legislativa deste projeto. O resultado é, sem dúvida, afirmativo. Ou seja, a consulta afetou

profundamente a interação dos atores no debate legislativo, bem como o seu resultado.

Este impacto foi aferido pela descrição detalhada da tramitação do projeto no

Legislativo, utilizando-se a metodologia de process tracing. A consulta afetou claramente o

comportamento tanto de parlamentares (especialmente do relator), quanto dos grupos de

interesse que exerciam pressão durante o processo legislativo.

Para compreender como a consulta afetou o processo legislativo, foi importante a

utilização do conceito teórico de sistemas deliberativos desenvolvido no primeiro capítulo.

Este conceito permitiu olhar as três fases do processo, fases completamente diferentes entre si,

como etapas distintas de um mesmo diálogo deliberativo.

A contraposição de argumentos de forma pública não ocorreu apenas no âmbito da

consulta on-line realizada pelo executivo. Ela se inicia, na verdade, em um ambiente bastante

polarizado, em torno do projeto sobre crimes de internet capitaneado pelo Senador Eduardo

Azeredo. O momento de disputa em torno do chamado PL Azeredo é marcado pela

intensidade do debate político. Petições públicas, manifestações mais radicalizadas (a alcunha

AI-5 digital dada ao projeto evidencia o tipo de radicalização ao qual nos referimos) e duros

embates no parlamento dão o tom da primeira fase do processo.

A decisão do Presidente Lula de se elaborar um Marco Civil da Internet antes da

legislação penal abriu espaço para a consulta realizada pelo Ministério da Justiça. No segundo

capítulo, foi visto como o papel da Secretaria de Assuntos Legislativos, o desenho

institucional da consulta e a presença de vários dos atores que participaram do debate sobre o

PL Azeredo, funcionaram como indutores de conectividade que possibilitaram um

acoplamento eficiente entre os dois espaços de deliberação. Este primeiro espaço permitiu um

debate profundo e técnico que avançou com base em argumentos e de maneira respeitosa.

Além disso, conseguiu representar a constelação de discursos existentes na sociedade.

A presença de argumentos tão diversos só ocorre, é importante que se diga, em função

da existência de um confronto entre atores tão distintos como o movimento de internet livre,

os provedores de internet e o setor de segurança. Em especial, a presença do movimento de

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151

internet livre, em condições de igualdade na consulta, só ocorre porque foi conquistada na

primeira fase.

Este ponto é fundamental para compreender como a análise sistêmica muda a maneira

de se pensar a teoria deliberativa. Críticas como as de Chatal Mouffe ou Iris Young, que

combatem uma perspectiva dos processos deliberativos que sufoca, quase domestica, as

visões subalternas na tentativa de se buscar acordos ou consensos, encontra em processos,

como o descrito nesta tese, uma alternativa concreta. A possibilidade de se incluir na

deliberação espaços de debate mais radicalizados e polarizados permite um uso da teoria

deliberativa que não descarta a incorporação de estratégias polarizadoras por movimentos

sociais. Ao contrário, no caso de acoplamentos eficientes, um espaço polarizado pode ser útil

para a conquista do direito de ter seu argumento seriamente ponderado ao longo do sistema,

de maneira a afetar concretamente a decisão final.

Esta perspectiva também ajuda a entender que a polarização não acaba com a

possibilidade da deliberação no Congresso, como defendem autores como James Wallner246,

justificando, na crescente polarização partidária dos EUA, a morte da deliberação

argumentativa. A questão trazida por essa tese é a de que se deve pensar em formas que

permitam que o sistema deliberativo acolha esta polarização, porém com acoplamentos

eficientes, utilizando esta disputa para a geração de espaços que possam ponderar os

argumentos advindos da polarização.

Olhar para a consulta compreendendo que ela representou a ponderação dos

argumentos que compõem a constelação de discursos existentes na sociedade, permite que se

utilize o conceito de representação discursiva de Dryzek e Niemeyer para compreender

como um processo, com um nível de participação relativamente baixo se comparado com a

população total do Brasil, conseguiu produzir a legitimidade verificada pelo seu efeito no

debate parlamentar.

Também foi visto como o fato do debate ter se dado pela internet permitiu incorporar

inovações na maneira de se produzir conhecimento que surgiram justamente pelo uso intenso

das redes que, de um lado, aprofundou a permeabilidade do processo a argumentos que

normalmente não acessariam o processo decisório em torno de um projeto de lei e, por outro

lado, permitiu que o acesso ao conhecimento que informou o debate fosse muito amplo,

diminuindo a assimetria de informação entre os participantes.

246 Wallner, James I. The Death of Deliberation – Partisanship and Polarization in the United States Senate,

Lexington Books, Lanham, 2013.

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152

Além disso, foi possível verificar que, não apenas os elementos listados acima em

função do uso da internet no processo, mas também o desenho institucional da consulta foram

essenciais para permitir que a conversa entre os diversos atores convergisse para um acordo

baseado na força do melhor argumento - no sentido explicitado no primeiro capítulo.

Entre os elementos do desenho institucional que favoreceram o debate argumentativo,

vale destacar a inexistência de qualquer ferramenta de votação no processo. O debate deveria

ser unicamente argumentativo. A ausência de ferramentas de votação diminuiu a polarização e

a atuação estratégica dos atores, abrindo a possibilidade para o acordo gerado naquele espaço.

Assim, a consulta pública termina com um acordo formado em torno de três pontos, que é

comunicado, mias uma vez, por meio de indutores de conectividade, gerando um acoplamento

eficiente entre este espaço de deliberação e o legislativo.

Durante o debate legislativo, o que se demonstrou, no quarto capítulo, foi que o

acordo, por ter sido formado a partir da força do melhor argumento e de forma pública, agiu

como elemento chave ao longo de todo o processo. Ao longo dos quase 3 anos de debate no

Legislativo, a cada vez que o texto a ser votado se distanciava do acordo formado na consulta,

as chances de aprovação diminuíam. Quando o texto se realinhava com o acordo, ele

avançava.

O acordo encontrou um ator muito poderoso na Câmara dos Deputados: o interesse

das empresas de telefonia, defendido pelo deputado Eduardo Cunha. O que a análise feita

nesta tese mostra é que nenhum fator sozinho consegue explicar a aprovação do texto que

derrotou essas empresas. Não há dúvidas que o peso que o governo deu ao projeto, após o

escândalo do Snowden, foi um ponto essencial para sua aprovação. Entretanto, como foi

explicitado, o governo não tinha forças para derrotar Eduardo Cunha naquele momento e só

consegue impor essa derrota porque, neste caso, o processo de elaboração do projeto tinha

gerado um acordo que possuía uma força política suficiente para permitir a aprovação do

Marco Civil na sua forma final.

Não é possível encerrar esta tese sem realizar uma análise que vá além dos objetivos

propostos, mas que se faz necessária, considerando a conjuntura política do país na qual ela

foi escrita. O objetivo específico da tese se encerra nos pontos expostos acima, mas não faria

sentido escrever, em 2017, uma tese, com um enfoque tão forte nas dinâmicas do Legislativo

no Brasil, sem refletir um pouco sobre o que os resultados da pesquisa apresentada, aqui,

representam para análise do que está ocorrendo no Brasil, um ano após um impeachment –

para alguns um verdadeiro golpe parlamentar – que derrubou a ex-Presidenta Dilma Roussef.

Ainda mais considerando-se que a descrição do processo legislativo do Marco Civil da

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153

Internet, encontra-se, quase que por acidente, com os primeiros movimentos de tensão entre a

base parlamentar formada pelo ex-deputado Eduardo Cunha e o governo da petista.

A forma de operação de Eduardo Cunha certamente não é o objeto deste estudo, mas é

importante notar que a pesquisa resvala com o modelo de incidência no parlamento então

exercida por ele. Trata-se da construção de uma bancada articulada a partir do próprio

parlamento, fugindo da lógica governo/oposição e mantida coesa a partir da relação do líder

informal desta bancada com empresas. Este tipo de atuação traz desafios claros para a

literatura do comportamento dos agentes no Congresso, mas não pode ser desconsiderado, sob

pena da literatura sobre o Legislativo no Brasil ignorar o “elefante na sala”. Mesmo que isso

seja objeto para outros estudos247, é evidente que existe uma relação entre este modelo de

atuação parlamentar e a perda de apoio no Congresso que desaguou no impeachment de

Dilma Rousseff.

O que esta tese traz de interessante para este debate certamente não é a discussão sobre

esse modelo manejado por Cunha, mas é o fato de que foi possível aprovar uma legislação

que derrotou este grupo parlamentar, dirigido por Cunha, em um tema no qual o ex-deputado

tinha enorme interesse. Na análise realizada ao longo da tese, mobilizamos ferramentas

teóricas que nos permitiram confirmar a relação entre o processo ocorrido no interior do

sistema deliberativo descrito com a decisão final do Congresso pelo texto que contrariava os

interesses das empresas de telefonia defendidas por Cunha. Agora, na conclusão, nos

permitimos fazer uma consideração de natureza mais normativa.

Não é possível saber se o processo que resultou no Marco Civil é passível de ser

repetido. Aliás, a complexidade de fatores descrita, aqui, favorece a ideia de que a repetição

do processo seria inviável. Entretanto, há que se buscar aprender com um processo que foi

capaz de produzir uma decisão contrária a um modelo de atuação parlamentar que se provou

tão nocivo às instituições democráticas.

A atuação do Executivo no presidencialismo de coalizão tem sido inspirada por uma

visão sobre a capacidade de incidência no Congresso, ancorada na perspectiva da escolha

racional, na qual as barganhas com parlamentares é que garantem a maioria parlamentar

necessária para se governar. A análise apresentada nesta tese permite, ao menos, colocar a

questão se não seria o caso de se adicionar elementos das teorias deliberativas mais

247 O artigo já citado de Fabiano Santos e Fernando Guarnieri (From Protests to Parliamentary Coup) é um dos

primeiros a desenvolver um olhar cuidadoso sobre as dinâmicas parlamentares que resultaram no

impeachment.

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154

contemporâneas para se pensar qual o tipo de estratégia pode ser mais eficiente para que uma

agenda contrária aos interesses com capacidade de criar bancadas próprias no Congresso não

dominem o debate.

Ou seja, a análise empírica aqui apresentada não buscou tanto se ancorar na ideia,

muito presente, de que um processo deliberativo argumentativo aumenta a legitimidade da

democracia (ideia da qual não discordamos), mas mais na ideia de que o processo

argumentativo e público, principalmente pela internet, pode também gerar acordos baseados

no melhor argumento que possuem uma força capaz de derrotar outros interesses poderosos.

Ou seja, processos de deliberação argumentativa podem, também, ser mais eficientes.

A perspectiva informacional utilizada também para compreender os efeitos da consulta

no Legislativo, certamente, reforça esta ideia. A diminuição da assimetria de informação entre

o agente informacional e o legislador mediano reduz o espaço para uma atuação estratégica do

agente informacional, aumentado a capacidade do legislador mediano de tomar decisões bem

informadas, o que pode diminuir o poder de grupos de interesses com capacidade de cooptar

relatores ou outros agentes informacionais.

Finalmente, a tese não pretendeu detalhar um modelo de deliberação que possa ser

repetido de maneira automática em outras situações. Tampouco a ideia deste trabalho foi a de

realizar uma avaliação do processo de consulta on-line realizado pelo Ministério da Justiça. O

que a análise detalhada do processo decisório do Marco Civil da Internet nos mostra é que

sistemas deliberativos podem ser capazes de gerar decisões coletivas que incorporem vozes

que, em geral, são excluídas do debate e, ao mesmo tempo, de derrotar interesses poderosos

que não operam na busca do bem comum.

Esta reflexão é muito importante de se levar em conta em um momento no qual a

crescente polarização política promove a ideia de que a deliberação com argumentos não é

mais possível ou só é possível se sufoca as vozes mais radicais. A análise sistêmica realizada

nesta tese mostra que é possível conciliar a polarização política com um debate argumentativo

que tenha efeito determinante na aprovação de um projeto de lei.

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