informacao e democracia deliberativa

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Nilson Vidal Prata INFORMAÇÃO E DEMOCRACIA DELIBERATIVA UM ESTUDO DE CASO DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciência da Informação. Área de Concentração: Produção, Organização e Utilização da Informação Linha de Pesquisa: Informação, Cultura e Sociedade Orientadora: Profª. Drª. Maria Guiomar da Cunha Frota Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte Escola de Ciência da Informação da UFMG 2007

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  • Nilson Vidal Prata

    INFORMAO E DEMOCRACIA DELIBERATIVA UM ESTUDO DE CASO DE PARTICIPAO POLTICA NA

    ASSEMBLIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Informao da Escola de Cincia da Informao da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Informao.

    rea de Concentrao: Produo, Organizao e Utilizao da Informao

    Linha de Pesquisa: Informao, Cultura e Sociedade

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Guiomar da Cunha Frota Universidade Federal de Minas Gerais

    Belo Horizonte

    Escola de Cincia da Informao da UFMG

    2007

  • Prata, Nilson Vidal. P912 Informao e democracia deliberativa: um estudo de caso de participao poltica na Assemblia Legislativa do Estado de Minas Gerais / Nilson Vidal Prata. Belo Horizonte, 2007. 162 f.

    Orientadora: Maria Guiomar da Cunha Frota.

    Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Cincia da Informao.

    1. Informao. 2. Participao poltica Minas Gerais. 3. Poder Legislativo Minas Gerais. I. Frota, Maria Guiomar da Cunha. II. Ttulo.

    CDU: 007:321.7(815.1)

  • MEMRIA DE MEU PAI, QUE, DE TO BOM, PARTIU JOVEM DEMAIS. AO BRENO, MEU FILHO, A MAIS BRILHANTE LUZ NA MAIS ESCURA NOITE.

    SANDRA, ESPOSA E CONFIDENTE, COMPANHEIRA DE TODA A VIDA.

  • AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, agradeo a Deus por ter, como sempre, guiado os meus passos pelos caminhos de mais uma etapa da vida.

    A duas pessoas devo, antes de tudo, um pedido de desculpas: ao Breno, filho querido que, apesar da ingenuidade de seus sete/oito anos, demonstrou possuir pacincia e compreenso dignas dos mais sbios para suportar minhas ausncias e meus humores, apenas pelo fato de me amar (talvez esta tenha sido a principal lio que aprendi no decorrer desta jornada); e Sandra que, pelas crticas e pelo apoio, me fez ver que tudo tem seu tempo, muito embora no tenhamos tempo para tudo.

    Agradeo a meu pai (que infelizmente partiu durante a realizao deste trabalho) e minha me, que lutaram muito para que os filhos tivessem a oportunidade de estudar - coisa que eles prprios nunca tiveram - e tambm aos meus irmos, sempre importantes em minha vida.

    Muitos colegas da Assemblia de Minas so merecedores da minha mais profunda gratido, tanto pelo apoio incondicional quanto pela inestimvel interlocuo que me desvelou preciosas dicas, idias e informaes. Sou especialmente grato Sheyla Abreu, Ordlia Arajo, Rosana Froes, ao Guilherme Ribeiro, ao Sabino Fleury, ao Rogrio de Senna, ao Ricardo Martins, Raquel Mansur, Luisa Luna, Daniela Santiago e Cludia Sampaio.

    Meus mais sinceros e eternos agradecimentos tambm sempre dedicada e atenciosa Prof Maria Guiomar da Cunha Frota que, encontrando-me como que uma nau deriva, soube serenar o turbilho e conduzir-me a porto seguro.

    Agradeo ainda ao Prof. Carlos Aurlio Pimenta de Faria, da PUC Minas, Prof Alcenir Soares dos Reis e aos demais professores e funcionrios da Escola de Cincia da Informao da UFMG, aos colegas da ps-graduao pelo profcuo convvio e a todas as pessoas que, de alguma forma, contriburam para a concretizao deste sonho.

  • ...QUEM NO DISPE DA INFORMAO NECESSRIA A UMA PARTICIPAO

    ESCLARECIDA, EQUIVOCA-SE QUER QUANDO PARTICIPA, QUER QUANDO NO PARTICIPA.

    BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

  • RESUMO

    Estuda-se, nesta dissertao, a relao entre informao e democracia deliberativa

    para tentar compreender a dimenso informacional que envolve o processo de

    participao poltica da sociedade organizada no mbito do Poder Legislativo

    estadual. Para tanto, analisam-se as atividades desenvolvidas e a documentao

    produzida em cada etapa de um mecanismo de interlocuo com a sociedade

    denominado seminrio legislativo, promovido pela Assemblia Legislativa do

    Estado de Minas Gerais. No plano terico, exploram-se os conceitos de assimetria

    informacional, accountability e competncia informacional, considerados

    fundamentais para a compreenso das possibilidades e dos limites de influncia da

    informao no campo poltico. Procura-se ainda identificar os principais aspectos da

    relao entre informao e democracia com base nos argumentos do elitismo

    democrtico, da teoria polirquica e da teoria deliberativa de democracia. Conclui-se

    que, no caso estudado, em linhas gerais, foram gerados fluxos informacionais que

    propiciaram avanos relativos reduo da assimetria informacional e ampliao

    dos nveis de accountability do processo democrtico. Contudo, identificaram-se

    aspectos negativos relacionados escassez de informaes sobre os resultados

    prticos da deliberao e disperso dos contedos gerados durante o seminrio

    legislativo analisado.

    Palavras-chave: Informao. Democracia Deliberativa. Participao Poltica. Poder

    Legislativo.

  • ABSTRACT

    This dissertation analyses the relationship between information and deliberative

    democracy to try to understand the informational dimension that involves the politics

    participation process of the society in the scope of the state Legislative Power. For

    that, in such way, examines particularly activities and the documentation produced in

    each stage of a mechanism of politics participation denominate legislative seminary,

    developed by Minas Gerais State Legislature (Brazil). In the theoretical plan, are explored the concepts of information asymmetry, accountability and information

    literacy, considered basics for understanding the possibilities and the limits of

    influence of the information in the politician field. It still identifies the main aspects of

    the relationship between information and democracy theories, especially democratic

    elitism, poliarchy and deliberative democracy. The conclusion is that, in the studied

    case, general lines, information flows had been generated propitiating advances to

    the reduction of the information asymmetry and to the magnifying the levels of

    accountability of the democratic process. However, negative aspects had been

    identified, related to the scarcity of information on the practical results of the

    deliberation and to the dispersion of contents generated during the legislative

    seminary analyzed.

    Keywords: Information. Deliberative Democracy. Politics Participation. Legislative Power.

  • SUMRIO

    INTRODUO ....................................................................................................... 9 1 ASPECTOS POLTICOS E CONCEITUAIS DA SOCIEDADE DA INFORMAO .................. 15 1.1 Assimetria informacional ................................................................................ 18 1.2 Accountability e informao............................................................................ 24 1.3 Competncia informacional e participao poltica ........................................ 32 2 TEORIA DEMOCRTICA E INFORMAO.................................................................. 37 2.1 A informao e a concepo hegemnica de democracia ............................. 38 2.2 Poliarquia, informao e participao ............................................................ 42 2.3 Informao e concepes contra-hegemnicas de democracia..................... 48

    2.3.1 Informao e Pblicos Participativos ................................................ 57 3 EXPERINCIAS DE PARTICIPAO POLTICA NA ASSEMBLIA DE MINAS ................... 65 3.1 Os Seminrios Legislativos ............................................................................ 70 4 METODOLOGIA .................................................................................................... 73 5 SEMINRIO LEGISLATIVO SEGURANA PARA TODOS E INFORMAO.................... 81 5.1 Proposio do Evento .................................................................................... 81 5.2 Etapa Preparatria ......................................................................................... 85 5.3 Comisses Tcnicas Interinstitucionais.......................................................... 91 5.4 Encontros Regionais ...................................................................................... 98 5.5 Etapa Final ..................................................................................................... 102

    5.5.1 Reunies Plenrias Parciais ............................................................. 103 5.5.2 Reunies dos Grupos de Trabalho ................................................... 113 5.5.3 Plenria Final .................................................................................... 116

    5.6 Implementao das propostas ....................................................................... 123 6 CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................... 133 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................... 138 ANEXOS A - RELATRIO DE PROPOSTAS DAS COMISSES TCNICAS INTERINSTITUCIONAIS ........ 143 B - DOCUMENTO FINAL DO SEMINRIO LEGISLATIVO SEGURANA PARA TODOS .......... 153 C - RELAO DE LEIS ORIGINADAS DE SEMINRIOS LEGISLATIVOS ANTERIORES............. 162

  • 9

    INTRODUO

    No Brasil, o fim do regime militar (1964-1985) propiciou condies favorveis restituio de garantias como o sufrgio universal, eleies livres e diretas em

    todos os nveis de governo, parlamento ativo, liberdade de imprensa, dentre outras.

    Entretanto, por mais que se tenha avanado na reconstruo das instituies

    democrticas, a democracia brasileira um fenmeno relativamente recente e

    encontra-se ainda em processo de consolidao e aperfeioamento. Neste sentido,

    uma das caractersticas marcantes do processo de redemocratizao do pas,

    iniciado a partir da segunda metade da dcada de 1980, a paulatina ampliao das

    oportunidades de participao poltica de grupos sociais at ento excludos dos

    processos decisrios de formulao de polticas pblicas.

    No campo normativo, a Constituio Federal de 1988 estabeleceu um rol de

    garantias e direitos que possuem potencial para promover a expanso da

    participao dos cidados na tomada de decises acerca de temas pblicos. Pode-

    se citar, por exemplo, mecanismos como o plebiscito e o referendo, os direitos de

    associao e de acesso informao, a possibilidade de iniciativa popular de

    projetos de leis, a participao da comunidade na gesto das polticas de sade, de ateno criana e ao adolescente, de educao e cultura, dentre outros. No campo

    prtico, principalmente a partir da dcada de 1990, outros mecanismos institucionais

    surgiram com o objetivo de propiciar a participao da sociedade civil em determinados espaos da gesto pblica. Talvez a iniciativa conhecida como

    Oramento Participativo seja a face mais visvel dessa inovao institucional; contudo, a criao de conselhos gestores de polticas, as consultas e as audincias

    pblicas e os comits de bacias hidrogrficas so exemplos de diversas outras

  • 10

    aes que buscam promover a participao democrtica da cidadania organizada e

    o estabelecimento de um novo modelo de relacionamento entre a sociedade e os

    poderes estatais.

    A ordem constitucional brasileira adotou o clssico modelo tripartite de

    organizao do Estado1, baseado no trip formado pelos poderes Executivo,

    Legislativo e Judicirio, teoricamente independentes e harmnicos entre si. Mas,

    dentre os trs poderes que compem o Estado brasileiro, talvez nenhum seja mais susceptvel aos efeitos da opinio pblica do que o Poder Legislativo. Muitas de

    suas posturas e aes so condicionadas pelas preferncias manifestas pela

    sociedade ali representada. Essas preferncias constituem valiosa e talvez a

    principal fonte informativa de subsdio atuao parlamentar, pois versam sobre

    os mais variados temas, refletindo a pluralidade de interesses e problemas que

    afetam a vida dos cidados e sobre os quais os representantes devem decidir de

    forma justa e legtima. Alm disso, certamente o Legislativo, enquanto locus privilegiado de debate, o poder com maior potencial de abertura participao

    poltica dos cidados. Ao contrrio do Executivo, no qual h somente um mandatrio

    e, portanto, ao menos em tese, uma nica porta de influncia2, e do Judicirio, em

    que essa porta tambm em tese deve manter-se cerrada, pois de seus titulares

    1 O modelo de tripartio de poderes foi proposto por Montesquieu, no sculo XVIII. Para mais detalhes, Cf.

    Bobbio (1988).

    2 Na prtica, certo que tambm o Poder Executivo pode possuir, como de fato possui, vrias portas atravs

    das quais a influncia pode ser exercida. Mas h uma diferena bsica em relao ao Poder Legislativo, em que cada parlamentar teoricamente deve representar as preferncias de uma parcela da populao, sendo o embate entre as preferncias dos diversos segmentos sociais resolvido, ainda que no satisfatoriamente, atravs da deliberao na assemblia de representantes. No mbito do Poder Executivo, ao contrrio, os conflitos entre as preferncias, ainda que cheguem ao mandatrio por meio de diversos mecanismos e pessoas-chave, so resolvidos pelo chefe de governo com base principalmente em sua discricionariedade. Como no h outros mandatrios com o mesmo poder discricionrio, pode-se falar ento em uma nica porta de influncia.

  • 11

    exige-se iseno, o Legislativo mantm, no mnimo, tantas possibilidades de

    influncia quantos forem os parlamentares no exerccio do mandato (ASSIS, 1994). Destarte, elegeu-se como objeto de pesquisa desta dissertao os

    mecanismos de participao poltica institudos pela Assemblia Legislativa do

    Estado de Minas Gerais (ALMG)3 mais especificamente aqueles denominados seminrios legislativos. A investigao insere-se no plano terico da relao entre

    informao e democracia, procurando desenvolver especificamente uma reflexo

    que contribua, ainda que modestamente, para a compreenso da dimenso

    informacional que envolve o processo de participao poltica dos cidados e de

    outras instituies no mbito do Poder Legislativo. Parte-se do pressuposto de que

    um importante insumo para o desenvolvimento das atividades de uma Casa

    Legislativa so as informaes que a instituio parlamentar recebe, busca ou capta

    junto sociedade que representa, as quais traduziriam uma parte significativa das demandas e preferncias dos cidados. Em contrapartida, o Parlamento tambm

    seria, ele prprio, um fornecedor de informaes sociedade, as quais traduziriam

    uma parte significativa dos resultados institucionais da ao parlamentar. Acredita-se

    que este fluxo informacional torna-se mais visvel quando so institucionalizados

    mecanismos de interlocuo entre o Legislativo e a sociedade.

    A hiptese que norteia este trabalho a de que a implementao, pela ALMG,

    de mecanismos de incentivo participao poltica estimula a circulao de

    informaes entre os atores envolvidos, gerando um fluxo que pode reduzir o grau

    3 A Assemblia de Minas Gerais composta, atualmente, por 77 deputados estaduais. Apesar de tantas

    possibilidades de influncia (cada deputado pode ser considerado um canal para recebimento/fornecimento de informaes dos/aos cidados), a instituio sentiu a necessidade de abrir novas portas sociedade mineira, dentre as quais destacam-se os mecanismos aqui utilizados como campo de pesquisa.

  • 12

    de assimetria informacional e ampliar o nvel de accountability da ordem

    democrtica, desde que os cidados participantes possuam competncia

    informacional para lidar com temas pblicos complexos.4

    O objetivo geral desta dissertao , pois, analisar o fluxo informacional que se estabelece entre a ALMG e o conjunto dos segmentos da sociedade que se dispem a participar de um seminrio legislativo e verificar se tal investigao

    emprica pode contribuir para a reflexo terica e a compreenso da relao entre

    informao e participao poltica no contexto de regimes democrticos. Os

    objetivos especficos da pesquisa so os seguintes: a) identificar como surge a demanda de realizao de um seminrio

    legislativo e o papel desempenhado pela informao na etapa preparatria

    do evento;

    b) identificar os tipos e as origens das informaes fornecidas ALMG pelos participantes no decorrer de todo o processo de realizao de um

    seminrio legislativo;

    c) identificar os tipos de informaes fornecidas pela ALMG e por outros rgos pblicos aos participantes de um seminrio legislativo, bem como

    identificar as formas de divulgao dessas informaes;

    d) verificar se as trocas estabelecidas nesse fluxo possuem potencial para gerar informaes que podem ser utilizadas para subsidiar a atuao dos

    poderes pblicos;

    4 Os conceitos de assimetria informacional, accountability e competncia informacional sero apresentados no

    Captulo 1 desta dissertao.

  • 13

    e) verificar se essas mesmas trocas resultam na gerao de contedos informacionais de interesse pblico que, se colocados disposio da

    sociedade em geral, poderiam contribuir para reduzir a assimetria

    informacional que caracteriza a relao Estado-cidado e ampliar o grau

    de transparncia e accountability da ordem democrtica.

    Como metodologia, alm da reviso da literatura que fornece o suporte

    terico pesquisa, optou-se pela anlise das atividades desenvolvidas e da

    documentao produzida em cada etapa do ltimo seminrio legislativo realizado

    pela ALMG, denominado Segurana para Todos Propostas para uma sociedade

    mais segura, buscando identificar os momentos crticos de gerao, troca ou

    disseminao de informaes.

    A dissertao inclui seis captulos. O captulo 1 apresenta algumas questes

    polticas relacionadas chamada sociedade da informao e discorre sobre trs

    conceitos fundamentais, nos quais est ancorada grande parte das discusses deste

    trabalho: assimetria informacional, accountability e competncia informacional.

    O captulo 2 constitui uma tentativa de identificar os principais aspectos da

    relao entre informao e democracia, com base nos argumentos centrais de trs

    correntes tericas que representam importantes momentos do processo de evoluo

    da teoria democrtica, a saber: a) o elitismo democrtico, que tem em Joseph Schumpeter o seu principal autor; b) a teoria polirquica, desenvolvida por Robert Dahl e c) a teoria deliberativa de democracia, representada nesta pesquisa por trabalhos de diversos autores que, influenciados pela obra de Jrgen Habermas,

    analisam as possibilidades e os limites da participao poltica dos cidados

    enquanto instrumento de aperfeioamento das instituies democrticas.

  • 14

    O captulo 3 resgata uma parte da histria recente da Assemblia Legislativa

    mineira para demonstrar a experincia pioneira da instituio no desenvolvimento e

    implementao de mecanismos de interlocuo com a sociedade. O captulo

    tambm apresenta uma anlise detalhada dos eventos denominados seminrios

    legislativos, modalidade de interlocuo e de aproximao entre a ALMG e a

    sociedade que constitui o objeto da presente investigao. A metodologia adotada para a realizao da pesquisa apresentada no

    captulo 4 e, no captulo 5, so apresentados os principais resultados decorrentes da

    anlise efetuada.

    Finalmente, o captulo 6, alm de tecer algumas ltimas consideraes, busca

    sintetizar as principais concluses da dissertao.

  • 15

    1 ASPECTOS POLTICOS E CONCEITUAIS DA SOCIEDADE DA INFORMAO

    O perodo compreendido entre as duas ltimas dcadas do sculo XX e o

    incio do sculo XXI caracteriza-se como um momento peculiar de sucessivas

    mudanas e transformaes de grande impacto econmico, social e poltico. Frente

    aos avanos cientficos e ao desenvolvimento de novas tecnologias, tais mudanas

    acontecem com rapidez nunca antes experimentada.

    Dois fatores intrinsecamente relacionados tm sido apontados como os

    principais propulsores das transformaes em curso: o processo de globalizao

    econmica e o papel central desempenhado pela informao e pelo conhecimento

    no atual estgio de desenvolvimento mundial. Muitos tm sido os termos utilizados

    para designar as novas relaes econmicas, sociais e polticas do perodo corrente,

    destacando-se, dentre os quais, as expresses sociedade da informao e

    sociedade do conhecimento.

    Mas o que significa fazer parte desta nova sociedade? No fcil responder

    a esta pergunta, precisamente por no haver uma resposta nica. A literatura sobre

    o assunto ampla e analisa o fenmeno luz de abordagens distintas e, com

    freqncia, divergentes. Webster (1995, p. 29), por exemplo, um autor que levanta dvidas acerca da validade da noo de uma sociedade da informao. Para ele,

    as tentativas de caracterizar tal sociedade baseiam-se em uma srie de critrios

    vagos e imprecisos, incapazes de demonstrar se a sociedade da informao um

    novo formato de organizao social j existente ou se um fenmeno ainda incompleto, que se realizar plenamente em algum momento do futuro. Em seu livro,

    Theories of the information society, Webster analisa como as teorias de importantes

  • 16

    pensadores contemporneos podem nos auxiliar a compreender o advento da

    sociedade da informao. Em uma dessas anlises, o autor recorre obra de

    Anthony Giddens e demonstra que nela possvel encontrar um importante ponto

    para reflexo. Isso porque, para Giddens5, comum supor que somente no final do

    sculo XX a sociedade entrou na era da informao. No entanto, historicamente as

    sociedades modernas teriam sido, desde sempre, sociedades de informao. Em

    relao s sociedades atuais, a diferena residiria basicamente na maior importncia

    atribuda hoje informao enquanto recurso estratgico e no nvel de desenvolvimento das tecnologias para process-la, armazen-la e transmiti-la. Isso,

    porm, no seria suficiente para criar uma nova sociedade.

    Mesmo admitindo-se que a expresso sociedade da informao designa

    apropriadamente o atual estgio de desenvolvimento social em diversos pases,

    difcil atribuir-lhe um nico sentido ou significado. O desenvolvimento das novas

    tecnologias de informao e comunicao (TICs), que propiciou as condies materiais facilitadoras da produo e da divulgao de informaes em larga escala,

    tem levado diversos autores a adotar uma viso otimista da sociedade da

    informao. Para muitos, conforme critica Fernandes (2003, p. 108), parece que estamos adentrando uma realidade em que todo mundo poder ter acesso a toda a

    informao que necessita, porque isto existe ou existir como uma disponibilidade j pronta para nosso usufruto. Lvy (1999) acredita que as TICs podem levar o mundo a funcionar como uma espcie de universo do saber em fluxo, onde o

    conhecimento seria flutuante num ambiente caracterizado pela interconexo de

    5 Giddens, Anthony. Social Theory and Modern Sociology. Cambridge: Polity, 1987.

  • 17

    todos com todos em tempo real, favorecendo a orientao, o acesso informao, a

    aprendizagem e o desenvolvimento.

    Na direo oposta, Snchez Gamboa (1997) destaca que, na sociedade da informao, os contedos informacionais esto sempre direcionados por interesses

    humanos, geralmente em proveito dos grupos que controlam essas informaes.

    Para ele, as informaes utilizadas nos processos produtivos, na tomada de

    decises e na gerao de novas tecnologias so rigorosamente controladas. J as

    informaes que geram disperso, confuso, distrao, divertimento, lazer ou

    veiculam ideologias desmobilizadoras e concepes fantasiadas do mundo so

    democraticamente divulgadas. O autor acrescenta ainda que a revoluo

    informacional, enquanto advento que levou ao surgimento da sociedade da

    informao, um fenmeno incompleto, pois pouco alterou as relaes de poder no

    mbito da sociedade. Ao contrrio, as transformaes provocadas por esta

    revoluo, segundo suas ponderaes, beneficiaram principalmente os grupos

    privilegiados da sociedade que j detinham o controle do poder econmico e poltico. Alis, tambm em relao aos aspectos polticos da sociedade da informao

    possvel identificar opinies divergentes. H correntes de pensamento que

    defendem que a nova sociedade ser uma comunidade voluntria, voltada para o

    benefcio social. Alguns prevem que a abundncia de informaes levar

    construo de uma sociedade mais democrtica atravs da reestruturao das

    instituies. Para os mais otimistas, o maior acesso informao desenvolver a

    conscincia poltica dos cidados, o que promover a alterao das estruturas de

    poder rumo harmonia do sistema poltico. Mas existem tambm autores mais

    pessimistas, para os quais

  • 18

    ... os governos utilizaro as novas tecnologias de informao para aumentar seu controle sobre a sociedade. As informaes sero disponibilizadas em maior quantidade e rapidez, porm os grandes grupos econmicos e os detentores do poder poltico somente divulgaro as informaes que lhes interessam. (AKUTSU; PINHO, 2002, p. 728)

    Certamente a participao poltica das pessoas depende de vrios fatores,

    dentre os quais destacam-se questes relacionadas s condies econmicas e

    sociais dos cidados, ao seu interesse pelas causas coletivas, sua sade,

    educao, ao tempo de que dispem para participar e liberdade de associao e

    organizao. possvel inferir, no entanto, que a informao tambm um importante fator, pois portadora de um potencial estratgico que reside na

    possibilidade de sua utilizao como recurso poltico. Neste trabalho, alguns

    conceitos so fundamentais para a compreenso dos limites e das possibilidades de

    influncia da informao no campo poltico, especialmente como recurso mediador

    da relao entre governos e cidados. Estes conceitos so constitudos pela noo

    de assimetria informacional, pela relao entre informao e accountability, e pela

    idia de competncia informacional. Nas prximas sees tenta-se defini-los e

    compreender sua importncia para a reflexo acerca do relacionamento entre

    Estado e sociedade em regimes democrticos.

    1.1 Assimetria informacional

    A palavra assimetria significa falta de correspondncia, em grandeza, forma

    ou posio relativa, de partes que esto em lados opostos de uma linha ou que

    esto distribudas em torno de um centro ou eixo. Em um sentido mais filosfico,

  • 19

    indica desarmonia, desigualdade em uma relao, distribuio desigual de um

    recurso qualquer.

    No mbito deste trabalho, o conceito de assimetria informacional pode ser

    definido de forma bastante simples, indicando a desigualdade de condies para

    acesso informao de natureza poltica. Refere-se a situaes, reais ou potenciais,

    em que determinados indivduos, grupos ou instituies detm condies

    privilegiadas de acesso a informaes relativas a questes que, por sua importncia,

    influenciam diretamente no processo decisrio de formulao de polticas pblicas.

    Nesta acepo, a assimetria informacional pode ser analisada sob dois

    enfoques distintos6: um refere-se ao relacionamento dos cidados ou grupos sociais

    entre si na competio por meios de influncia na agenda poltica; o outro, diz

    respeito relao entre Estado e sociedade.

    Para compreender o primeiro enfoque relacionamento dos cidados entre si

    preciso lembrar que, conforme mencionado, a informao pode ser utilizada

    como um recurso poltico. No entanto, tal uso tende a se dar de forma assimtrica

    entre os diversos segmentos sociais, na medida em que o discurso poltico e,

    portanto, a informao dele decorrente tem sido tradicionalmente dominado pelas

    elites ou por grupos mais favorecidos da sociedade. Isso ocorre em funo da

    desigual distribuio de recursos, oportunidades e capacidades entre os cidados,

    os quais necessitam

    ... de informaes polticas diversas, em nveis distintos, desde as mais tcnicas, com explicaes provenientes do sistema de especialistas, at as abordagens mais simples. Uma

    6 possvel identificar ainda um terceiro enfoque para a noo de assimetria informacional no mbito da

    sociedade da informao, relativo desigualdade informacional entre pases ou regies centrais, detentores de informaes estratgicas, e pases ou regies perifricos do sistema capitalista, onde predominam o analfabetismo e a baixa qualificao da populao. Para anlises mais aprofundadas deste aspecto, Cf. Jardim (1999) e Eisenberg; Cepik (2002).

  • 20

    vez que as pessoas esto associadas poltica atravs de diferentes backgrounds, interesses e habilidades cognitivas, no h como prescrever um modelo nico de informao politicamente relevante, nem um mesmo padro de excelncia. (MAIA, 2002, p. 59)

    Neste sentido, uma outra considerao de Maia (2002) merece destaque, pois a autora acredita que um frum pblico de discusso, produo e troca de

    informaes deve refletir essa diversidade poltica e cultural da sociedade e

    proporcionar um balano justo de oportunidades para que as vozes que se levantam durante os processos de deliberao pblica possam ser ouvidas e consideradas.

    Se a informao suficientemente ampla, ento os cidados podem estar em

    melhores condies para decidir sobre as polticas de sua preferncia. Mas se a

    informao controlada, imprecisa ou inconsistente, ento o debate pode ser

    manipulado e as alternativas se estreitam atravs da desinformao (MAIA, 2002, p. 51).

    Assim, um sistema pblico de informao, ao invs de segregar pela

    especializao e pelo uso da linguagem tcnica, deveria antes primar pela

    aproximao e interao dos cidados entre si. Para permitir melhores

    possibilidades de engajamento no debate poltico de atores sociais que se encontram em situao de dessemelhana, torna-se necessria a oferta de

    contedos informacionais variados, que contemplem a diversidade cognitiva e de

    interesses dos atores em questo.

    Certamente, difcil estabelecer a relao exata entre a assimetria

    informacional que caracteriza o relacionamento entre os diversos segmentos sociais

    e o crescente processo de despolitizao dos cidados comuns. Parece certo,

    porm, que excluda da prtica democrtica de discusso pblica, uma grande

    parcela da populao no desenvolve interesse pela informao poltica. Tambm

  • 21

    parece razovel esperar que o acesso a fontes de informao desta natureza

    contribua para a reduo dos nveis de alienao ou de apatia em relao a

    assuntos que dizem respeito construo do presente da sociedade e definio

    de perspectivas para o seu futuro.

    Ainda no que se refere a este primeiro enfoque da assimetria informacional

    (relao cidado-cidado), razovel argumentar que um maior acesso informao poltica, mesmo que no possa ser direta e imediatamente associado

    reduo das desigualdades na distribuio de recursos materiais, certamente

    tender a reduzir as desigualdades polticas em favor daqueles que se encontram

    em situaes menos favorveis, propiciando-lhes melhores condies para participar

    do debate democrtico.

    No que concerne ao segundo enfoque da desigualdade de acesso

    informao poltica, pode-se facilmente constatar que a relao entre Estado e

    cidados caracterizada, a priori, por um elevado grau de assimetria informacional,

    tanto em termos quantitativos quanto qualitativos, a favor do primeiro. Ainda que em

    certos momentos o Estado se veja em situao de desvantagem informacional em relao a determinados atores sociais, como, por exemplo, os detentores de

    conhecimentos tcnicos ou acadmicos, em relao sociedade como um todo o

    aparelho estatal encontra-se em situao privilegiada de acesso e controle de fontes

    informativas. Tal fato gera risco para a sociedade, pois pode contribuir para que

    informaes desfavorveis ao governo sejam escondidas da populao. Alm disso, conforme ressalta Przeworski (1998, p. 12), desde que os governos sabem [o] que os eleitores no sabem, eles dispem de uma enorme janela para fazer coisas que eles, e no os eleitores, querem. H, pois, o risco de que, por deter o

    controle da informao pblica, os governantes decidam unilateralmente o que os

  • 22

    cidados podem saber, ou escolham quais cidados devem saber, ou ainda optem

    por uma combinao de ambas as alternativas. Por outro lado, se os cidados

    dispem de pouca informao, eles podem preferir deixar o governo agir com amplo

    grau de discricionariedade (e, portanto, sem muito controle). Tudo isso resulta num ciclo que termina por realimentar e ampliar a aludida assimetria informacional.

    Certamente, a assimetria informacional existente entre Estado e sociedade

    possui um componente estrutural, pois governar requer a montagem de uma

    mquina administrativa capaz de lidar com conhecimentos especializados que

    muitas vezes no interessam ou no so facilmente compreendidos pelo cidado

    comum. Mas isso no significa que os governos podem se eximir da

    responsabilidade e do dever de manter a populao informada sobre as aes

    governamentais e sobre os resultados delas decorrentes. Pelo contrrio, numa

    democracia de fundamental importncia que os cidados possuam oportunidades

    de acesso a contedos informacionais que lhes permitam compreender os

    complexos temas pblicos. A divulgao insuficiente de informaes (ou sua no divulgao) constitui um obstculo tanto para que os cidados sinalizem suas necessidades e preferncias aos governantes, quanto para o acompanhamento do

    desempenho destes. A informao a que a sociedade deve ter acesso no pode ser

    sinnimo da informao qual o governo permite o acesso. Colocar essa

    informao disposio da sociedade constitui uma das tarefas dos governos e

    tambm das instituies empenhadas na promoo da cidadania.

    Dois importantes conceitos, analisados em profundidade na obra de Jardim

    (1999), esto estreitamente relacionados idia da assimetria informacional que perpassa a relao Estado-sociedade: transparncia e opacidade informacional. Em

    poucas palavras, pode-se afirmar que a noo de transparncia expressa o direito

  • 23

    dos cidados informao e o dever do Estado de informar. A idia de opacidade,

    ao contrrio, reflete a ausncia ou a insuficincia em diferentes nveis de

    interao informacional entre Estado e sociedade. Dito de outra forma, a noo de

    transparncia refere-se visibilidade, publicidade das aes estatais por meio da

    divulgao de informaes pela administrao pblica. J a opacidade caracteriza-

    se pela invisibilidade e pelo segredo oriundos da falta de divulgao ou da

    divulgao insuficiente de informaes relativas aos atos oficiais. De acordo com o

    autor, uma das caractersticas do Estado brasileiro sua opacidade, e no sua

    transparncia:

    As escassas possibilidades de acesso informao governamental por outros grupos sociais contribuem para a hegemonia do bloco no poder e a excluso dos setores dominados. O Estado tende a ser invisvel sociedade civil. (JARDIM, 1999, p. 21)

    Pode-se considerar que um dos fatores que concorrem para a existncia e

    manuteno dessa invisibilidade do Estado a assimetria informacional que o

    favorece em seu relacionamento com a sociedade. Tal fato configura um paradoxo

    quando se parte do pressuposto de que uma das caractersticas mais marcantes do

    Estado democrtico a possibilidade de seu controle pela sociedade. Este controle

    requer a transparncia do aparelho estatal, expressa no direito dos cidados

    informao governamental e no dever do Estado de assegurar o acesso a essa

    informao. Segundo Jardim (1999),

    Como campo informativo, o Estado moderno constitui-se numa das maiores e mais importantes fontes de informao, alm de requisitar uma grande quantidade destas para sua atuao. Seu complexo funcionamento relaciona-se diretamente com sua ao produtora, receptora, ordenadora e disseminadora de informaes. O objeto do Estado seria, em ltima instncia, o cidado em suas variadas demandas, inclusive aquelas de natureza informacional. (JARDIM, op. cit., p. 29)

  • 24

    O Estado, ento, alm de ser um receptor das informaes emanadas da

    sociedade, deve tambm desempenhar o papel de produtor e fornecedor de

    informaes aos cidados. A consolidao da democracia depende, entre outros

    fatores, da publicidade e da transparncia das aes e decises governamentais,

    atravs da disponibilizao de informaes diversas para os cidados. Conforme

    ser demonstrado na prxima seo, a variao nos graus de transparncia e de

    opacidade do Estado, expressa na quantidade e na qualidade da informao

    produzida e divulgada pelos poderes constitudos, exercer influncia direta na

    efetividade dos mecanismos de accountability da ordem democrtica.

    1.2 Accountability e informao

    Accountability um termo que, numa definio bastante simplificada, diz

    respeito ao controle dos atos e aes de polticos pelos cidados. Trata-se de uma

    espcie de prestao de contas dos governantes e representantes sociedade

    que, por sua prpria natureza, constitui um atributo das democracias modernas,

    muito embora nem todos os regimes que se consideram democrticos possam ser

    considerados accountable.

    ODonnell (1998) elabora uma interessante reflexo sobre o tema, estabelecendo uma clara distino entre o que chama de accountability vertical e

    accountability horizontal. Para o autor, a accountability vertical refere-se relao

    entre os cidados e os ocupantes de cargos pblicos. Assim,

  • 25

    Eleies, reivindicaes sociais que possam ser normalmente proferidas, sem que se corra o risco de coero, e cobertura regular pela mdia ao menos das mais visveis dessas reivindicaes e de atos supostamente ilcitos de autoridades pblicas so dimenses do que chamo de accountability vertical. So aes realizadas, individualmente ou por algum tipo de ao organizada e/ou coletiva, com referncia queles que ocupam posies em instituies do Estado, eleitos ou no. (ODONNELL, 1998, p. 28)

    J a accountability horizontal diz respeito ao controle mtuo entre rgos e

    poderes do Estado, ou seja, constitui todo um aparato de freios e contrapesos (do Ingls, checks and balances) e est relacionada

    ... existncia de agncias estatais que tm o direito e o poder legal e que esto de fato dispostas e capacitadas para realizar aes, que vo desde a superviso de rotinas a sanes legais ou at o impeachment contra aes ou omisses de outros agentes ou agncias do Estado que possam ser qualificadas como delituosas (ODONNELL, op. cit., p. 40).

    Em razo dos propsitos deste trabalho, h aqui um maior interesse em

    discutir a dimenso da accountability vertical, muito embora se reconhea que

    ambas as dimenses relacionam-se entre si, na medida em que a ao organizada,

    determinada e persistente dos cidados que exercem a accountability vertical

    certamente pode reforar a efetividade dos mecanismos da accountability horizontal,

    atravs da criao de novas agncias de fiscalizao e controle ou do

    aperfeioamento da atuao das agncias existentes. Neste sentido, merecem

    destaque as palavras de Anastasia e Melo (2002, p. 4), para quem ... a interao entre instrumentos de accountability vertical e horizontal pode ser desenhada de

    forma a incrementar concomitantemente a responsabilizao dos governantes pelos

    governados e a estabilidade da democracia. Portanto, daqui por diante, a utilizao

    o termo accountability deve ser lida basicamente como uma referncia sua

  • 26

    dimenso vertical; a diferenciao em relao dimenso horizontal, se necessria,

    ser claramente expressa.

    A literatura sobre o tema praticamente unnime ao considerar as eleies

    como um mecanismo clssico de accountability, desde que sejam razoavelmente livres e justas, pois alega-se que atravs do voto os cidados podem premiar ou punir os polticos, com base em informaes relativas ao desempenho passado dos

    candidatos. Assim, a tese central a de que, se os eleitores no ficarem satisfeitos

    com o desempenho do governo e de seus representantes, podero votar em outros

    candidatos nas eleies seguintes, promovendo a renovao dos postos de poder

    poltico atravs da troca de seus ocupantes.

    Por outro lado, tambm possvel identificar um relativo consenso entre os

    tericos do assunto no sentido de que somente as eleies no constituem

    mecanismo suficiente para uma accountability efetiva. Conforme ressalta Przeworski

    (1998, p.16), ... a influncia que os cidados exercem atravs das eleies pode ser apenas a de menor importncia prtica se comparada a inmeros outros

    instrumentos. Para o autor, atravs do voto os eleitores concedem aos eleitos

    autorizao para governar, mas as eleies, por si s, so um instrumento pouco

    efetivo de controle popular sobre os representantes. Na mesma linha, Anastasia

    (2001) argumenta que os cidados delegam aos representantes, seus agentes, atravs do processo eleitoral, autoridade para agir em seu nome ou em seu interesse, mas dispem de poucos instrumentos de sinalizao de suas preferncias, bem como de informao, controle e fiscalizao das aes dos agentes (ANASTASIA, 2001, p. 54).

  • 27

    Para a autora, tal fato leva a um dos principais problemas tericos e prticos da

    democracia, que a tenso entre participao e representao no mbito do

    sistema poltico.

    Mas porque as eleies, apesar de importantes, so insuficientes enquanto

    instrumento de accountability? Por diversos motivos que vo desde a no garantia

    de que as preferncias dos eleitores sejam implementadas pelos eleitos durante o mandato at o fato de constiturem um mecanismo de avaliao retrospectiva que

    toma por base um perodo de tempo relativamente extenso. Alm disso, os eleitores

    dispem de apenas um voto para decidir sobre todo o conjunto de polticas governamentais, quando na realidade podem preferir a poltica educacional de um

    candidato e as propostas de assistncia sade de outro, e talvez o programa

    ambiental de um terceiro. Isso dificulta o controle e o acompanhamento da

    implementao dessas polticas.

    Em razo dos objetivos desta pesquisa, importante ressaltar ainda alguns aspectos ligados questo informacional que permeia os processos eleitorais,

    especialmente no mbito da democracia brasileira. Um primeiro ponto que chama a

    ateno diz respeito alegada falta de memria do eleitor brasileiro, que

    freqentemente no se lembra dos nomes dos candidatos em quem votou. Apenas

    para citar dois exemplos: o Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB) realizado em 2002 mostrou que 54% dos eleitores no se lembrava dos candidatos escolhidos para a

    Cmara dos Deputados (e isso somente dois meses aps as eleies!); outra pesquisa revelou que em So Paulo quase 90% dos entrevistados no soube

    apontar o nome de um deputado estadual ou federal do estado (para mais detalhes, Cf. MARTINS JR.; DANTAS, 2004, p. 270). Isso leva ao segundo aspecto que

  • 28

    merece destaque: ora, se o eleitor brasileiro no retm facilmente uma informao

    to bsica, difcil acreditar que se preocupe em obter informaes para o

    acompanhamento dos mandatos de seus governantes e representantes, de modo a,

    com base nelas, recompens-los ou puni-los na eleio subseqente. No mximo,

    seria mais plausvel acreditar que, no momento do voto, os eleitores possuem

    apenas informao incompleta ou insuficiente sobre a atuao passada dos

    candidatos. Com efeito, em trabalho em que procuram avaliar o ndice de

    participao poltica no Brasil, Martins Jr. e Dantas chegam concluso de que

    apenas uma parcela muito reduzida do eleitorado brasileiro (cerca de 2,5 milhes de pessoas de um universo de mais de 80 milhes) procura manter-se informada sobre poltica (ibid., p. 286).

    importante mencionar, ainda, outro problema informacional da democracia brasileira que est estritamente ligado aos resultados das eleies, embora suas

    causas sejam anteriores a estas: devido s regras do sistema poltico-eleitoral atualmente em vigor no Brasil, muitas vezes o eleitor no sabe que, ao votar em

    determinado candidato, pode estar, na verdade, elegendo outro. Isso ocorre nas

    chamadas eleies proporcionais (para os cargos de deputado federal, deputado estadual e vereador), em razo de mecanismos como a transferncia de votos entre candidatos dos partidos e coligaes partidrias. Tal fato gera ... uma distoro

    entre o conjunto de preferncias manifestas pelo eleitorado e a efetiva distribuio de cadeiras entre os partidos (ANASTASIA; MELO, 2002, p. 13). Ainda que a relao entre os eleitores que conhecem essas regras e os que no as conhecem

    no tenha sido empiricamente verificada, certamente a quantidade de eleitores do

    segundo grupo no desprezvel, tendendo mesmo a superar em muito a

  • 29

    quantidade de eleitores do primeiro grupo. Faltam, pois, a grande parte dos cidados

    brasileiros informaes bsicas para o efetivo exerccio de sua cidadania poltica. Se

    as eleies neste pas tm promovido taxas relativamente altas de renovao dos

    ocupantes dos postos de poder, h razes para acreditar que isso decorre menos do

    controle da populao sobre os polticos, e mais da falta deste controle (ausncia de accountability) e de informao: o eleitor mediano vota em quem aparece, por razes que englobam desde motivaes individualistas at convices religiosas,

    sem se preocupar, na maioria das vezes, em obter - ou sem possuir meios de

    acesso a - informaes que talvez lhe permitissem fazer escolhas mais conscientes.

    Pelo exposto, v-se que mesmo para a utilizao de instrumentos tradicionais

    de accountability, como as eleies, a informao desempenha um papel importante.

    Mas, em razo da aludida insuficincia dos mecanismos eleitorais como meio de

    controle da populao sobre as aes de governos e representantes, torna-se

    evidente a importncia da existncia de outros mecanismos que ampliem o grau de

    participao poltica dos cidados brasileiros e lhes permitam acompanhar, fiscalizar

    ou controlar o desempenho dos polticos nos interstcios eleitorais. Parece claro,

    tambm, que a efetividade de tais mecanismos depender em grande parte da

    quantidade e da qualidade da informao disponibilizada sociedade.

    Para que os cidados tenham condies de saber o que e porque os

    governos fazem, independentemente do que os governantes queiram que os

    cidados saibam, Przeworski (ibid., p. 16) aponta a necessidade da existncia de accountability agencies independentes dos outros rgos e nveis de governo e

    designadas a informar o pblico, no somente seus representantes. Encontra-se

    aqui um dos pontos de interao entre as dimenses horizontal e vertical da

  • 30

    accountability, na medida em que essas agncias, para fornecer aos cidados

    informao potencialmente relevante para o incremento da participao poltica e do

    controle do Estado, seriam elas mesmas controladoras deste ltimo. Apesar de

    importante e necessria para a consolidao democrtica, uma tal iniciativa no

    eximiria cada um dos Poderes estatais da responsabilidade pela promoo da

    transparncia de seus atos, atravs da criao de mecanismos de interlocuo com

    a sociedade baseados num regime de informao livre e de qualidade. O carter

    pblico da informao um dos pilares da democracia e no pode ser jamais desconsiderado por aqueles que comandam o Pas, bem como seus estados e

    municpios.

    Assim, apesar das mencionadas divergncias entre os pensadores da

    sociedade da informao, defende-se, neste trabalho, que a possibilidade de

    participao poltica dos cidados est ligada, de alguma forma, disponibilidade de

    informaes. Este tambm o entendimento de Anastasia e Melo (2002, p. 15), para quem ... cidados mais bem informados e dotados de alternativas institucionais por

    meio das quais possam vocalizar suas preferncias encontram-se em melhores

    condies para instruir e/ou responsabilizar os seus representantes. Em outro

    trabalho [s.d.] - sobre a participao poltica na regio metropolitana de Belo

    Horizonte - esses mesmos autores testaram e confirmaram a hiptese, proposta por

    Reis e Castro (2001)7, que associa positivamente a propenso participao poltica ao aumento e sofisticao da informao disponvel.

    7 REIS, Fbio W.; CASTRO, Mnica. Democracia, civismo e cinismo: um estudo emprico sobre normas e

    racionalidade. Revista Brasileira de Cincias Sociais, v.16, n.45, 2001.

  • 31

    Acredita-se que um dos entraves para o pleno desenvolvimento da

    democracia brasileira a falta (ou o baixo grau) de accountability vertical, decorrente da reduzida participao da sociedade civil em processos de avaliao de polticas

    pblicas. A criao, por parte das instituies do Estado, de mecanismos de

    accountability fundamental para o desenvolvimento da cidadania e para a prpria

    consolidao da democracia no Brasil. Mas a existncia de accountability no

    apenas uma questo de vontade poltica dos governantes. Assim como a

    democracia, ela tambm procedimental e tende a acompanhar o avano dos

    valores democrticos, ao mesmo tempo em que contribui para novos progressos. sintomtica a ausncia de uma palavra na lngua portuguesa que possa ser utilizada

    para a traduo do termo accountability. Para Campos (1990, p. 31), falta aos brasileiros no precisamente a palavra: Na verdade, o que nos falta o prprio

    conceito, razo pela qual no dispomos da palavra em nosso vocabulrio. Pode-se

    concluir, ento, que a falta do conceito decorre da ausncia de uma cultura

    verdadeiramente democrtica no Brasil. A falta de transparncia ou a opacidade

    informacional das aes estatais e a falta de organizao da sociedade civil

    resultam num grau muito baixo de participao poltica, levando o Estado a

    desempenhar o papel de tutor e os cidados a agirem como tutelados.

    No entanto, no se pode esquecer que a disponibilidade de informaes

    apenas um dos lados da questo. A consolidao da democracia depende tambm

    do efetivo acesso e uso dessas informaes por parte dos cidados. O

    desenvolvimento e o estabelecimento de uma poltica de divulgao constante de

    informaes por parte das instituies do Estado, ainda que atenda a preceitos

  • 32

    legais8 e possa ser considerada uma atitude louvvel do Poder Pblico, pouco

    contribuir para o aumento dos nveis de accountability da ordem democrtica se a

    sociedade no for formada por cidados capazes de compreender e efetivamente

    utilizar essas informaes para controlar seus governantes e representantes, no

    sentido de fazer com que as aes destes se aproximem das preferncias e

    expectativas daqueles. A prxima seo abordar especificamente a necessidade

    de desenvolvimento dessa competncia informacional.

    1.3 Competncia informacional e participao poltica

    A noo de competncia informacional derivada da expresso inglesa

    information literacy e designa o conjunto de habilidades necessrias para interagir com a informao, seja no espao acadmico, no trabalho, nas questes particulares, constituindo-se tambm em capacidade chave dentro do processo de

    participao poltica. Em outras palavras, a competncia informacional representa a

    habilidade em reconhecer quando existe uma necessidade de informao e a

    capacidade de identificar, recuperar, avaliar e usar eficazmente essa informao

    para a resoluo de um problema ou para a tomada de uma deciso.

    No campo das preocupaes presentes nesta pesquisa, pressupe-se que

    cidados participativos possuem competncia informacional, pois compreendem a

    8 A Constituio Federal brasileira de 1988, por exemplo, assim dispe sobre o direito de acesso dos cidados

    informao: Art. 5, inciso XIV assegurado a todos o acesso informao e resguardado o sigilo da fonte, quando necessrio ao exerccio profissional.

  • 33

    necessidade de acesso a informaes pblicas de qualidade para o entendimento e

    tratamento de problemas e questes inerentes s suas prprias vidas, comunidade

    e sociedade em que vivem. Alm disso, esto mais atentos e preparados para

    fazer com que esta mesma sociedade acompanhe a atuao de seus

    representantes e governantes e perceba a importncia da sua participao em todas

    as arenas onde se desenrola o jogo democrtico.

    Em linhas gerais, pode-se considerar que a participao na vida social e

    poltica que confere ao indivduo o status de cidado. Conforme enfatizou-se na

    seo anterior, em regimes verdadeiramente democrticos o exerccio de uma

    cidadania ativa no se esgota com o exerccio do voto, ultrapassando tambm a

    noo pura e simples da submisso a deveres e da titularidade de direitos. Neste

    sentido, Mamede (1997, p. 223), afirma que cidado o sujeito ativo na cena poltica, sujeito reivindicante e provocador da mutao do direito. Percebe-se, pois, que participao uma palavra-chave para a promoo da cidadania.

    A esta altura, deve estar claro que a informao um dos direitos bsicos dos

    cidados e ao mesmo tempo um requisito essencial para a existncia de uma

    cidadania participativa. por meio do acesso a informaes que o cidado tem condies de conhecer e cumprir seus deveres, bem como de entender e reivindicar

    seus direitos junto s instituies que, em tese, deveriam assegur-los. A falta de informao, alm de prejudicar o exerccio de deveres e direitos, pode se constituir tambm numa barreira para que os indivduos contribuam, participem e ocupem seu

    espao na sociedade, assim como pode impedi-los de acompanhar, avaliar e

    questionar as aes do Estado.

  • 34

    Mas no somente a falta ou a insuficincia de informao que pode

    ameaar o exerccio da cidadania. Isso porque, na atualidade, os cidados se vem

    com freqncia diante de um paradoxo caracterizado pela dificuldade de obteno

    de informaes em meio abundncia delas. O dilvio informacional (LVY, 1999) que caracteriza a sociedade da informao tambm pode criar obstculos para o

    acesso a contedos relevantes para resposta a uma determinada questo, seja ela referente aos direitos, aos deveres ou s formas de participao do cidado nos

    mecanismos de controle do Estado9. Este contexto, alm de tornar mais complexo o

    exerccio da cidadania, ao mesmo tempo evidencia a importncia do

    desenvolvimento de competncias relacionadas ao acesso e uso de informaes.

    O cidado necessita, ento, de preparo para exercer o direito de acesso

    informao governamental, seja num contexto de escassez ou de abundncia de informaes. O desenvolvimento de competncias para que as pessoas tenham

    capacidade de buscar, recuperar e filtrar as informaes (ou de exigir o acesso a elas), promovendo sua apropriao crtica, um dos fatores primordiais para que possam utiliz-las como elemento de emancipao individual. Mas tambm

    essencial para a formao de cidados atuantes, que buscam na participao

    poltica, atravs do acompanhamento e controle de governantes e representantes,

    uma forma de interferir na construo do presente e do futuro da sociedade. Um dos

    desafios das sociedades atuais, alm de promover a formao de cada vez mais

    pessoas com capacidade cada vez maior de acesso e compreenso da informao,

    9 Alm disso, crescente o processo de privatizao da informao pblica que, transformada em produto

    venda, deixa de estar disponvel (ou melhor, est disponvel para quem pode pagar) e exclui do progresso grandes parcelas da populao. H ainda casos em que a informao simplesmente no divulgada pelos Poderes constitudos, chegando, em determinadas circunstncias, a ser tratada como segredo pelo Estado. Certamente, muitos governantes preferem mesmo manter os cidados passivos e desinformados.

  • 35

    o de fazer com que os governos e representantes polticos ajam no sentido de garantir condies para o acompanhamento de suas aes. Alm de ser, ele prprio,

    um produtor e disseminador de informaes, o Estado deve garantir aos cidados o

    acesso a uma educao que lhes possibilite desenvolver plenamente suas

    competncias includa a competncia informacional e exercer ativamente a

    cidadania. Um tal cenrio, ainda que utpico e insuficiente no que tange resoluo

    de todos os problemas que afligem este pas, contribuiria para o contnuo

    aperfeioamento da democracia brasileira.

    A democracia, alis, um regime procedimental e, como tal, no garante

    resultados por si s. atravs de tentativas, de erros e acertos, de idas e vindas que ela se desenvolve e se consolida. O desenvolvimento de competncias

    informacionais deve ser priorizado por um processo educacional voltado ao

    desenvolvimento da cidadania em seus distintos componentes formal, informal e

    permanente. Este aspecto fundamental para a construo das sociedades

    democrticas, atravs da criao de uma cidadania culta e da preparao dos

    indivduos para se envolverem de forma ativa e efetiva em tudo o que diga respeito

    administrao de sua cidade, de seu estado e do seu pas, no se limitando a

    aceitar passivamente o que decidido pelos outros. A capacidade de acesso e uso

    da informao vem se consolidando como um importante elemento para o

    desenvolvimento econmico e social, alm de requisito para o exerccio da

    cidadania.

    A educao para a cidadania deve ser promovida desde as escolas do ensino

    bsico e durante todo o processo de formao dos indivduos, pois somente

    cidados bem formados e informados, que tenham acesso a ensino de qualidade, a

  • 36

    diversos meios de informao e aos modernos recursos tecnolgicos podem

    desenvolver competncias informacionais que lhes propiciem melhores condies de

    participao na sociedade da informao, contribuindo com esta de forma eficaz a

    partir da integrao entre o local, onde a participao mais gil, e os nveis

    regional, nacional e global.

    Este captulo teve o propsito de indicar as principais controvrsias tericas

    acerca da noo de sociedade da informao. Alm disso, buscou elucidar os

    conceitos bsicos utilizados nesta dissertao, os quais permitem considerar a

    informao como um recurso poltico que pode propiciar a compreenso da

    realidade social e a interveno sobre ela atravs da mobilizao e participao

    poltica das pessoas.

    No entanto, no difcil perceber que o problema de pesquisa aqui colocado

    possui natureza interdisciplinar. Por isso, para sua adequada compreenso torna-se

    necessrio recorrer ainda literatura da rea de Cincia Poltica que possa

    fornecer subsdios para uma reflexo acerca da importncia da informao para o

    exerccio da cidadania e o desenvolvimento da democracia, bem como para a

    promoo de processos de participao poltica. Destarte, o captulo seguinte

    constitui uma tentativa de resgatar essas contribuies.

  • 37

    2 TEORIA DEMOCRTICA E INFORMAO

    primeira vista, a relao entre os conceitos de democracia e de informao parece bvia. Tal obviedade fica clara na opinio de diversos autores que realam a

    importncia da informao para a existncia de regimes democrticos. Para Guanter

    (1974, p. 24), por exemplo, a relao direta entre informao e democracia to evidente como a razo inversa existente entre totalitarismo e informao, ou seja, para esse autor a ausncia de informao ou a restrio a seu acesso so

    caractersticas mais prximas dos regimes totalitrios do que das democracias.

    A mesma posio parece ser defendida por Norberto Bobbio, para quem o

    poder autocrtico dificulta o conhecimento da sociedade. O poder democrtico, ao

    contrrio, enquanto exercido pelo conjunto dos indivduos aos quais atribudo o direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decises coletivas, exige a

    livre circulao de informaes e conhecimentos. O cidado deve saber, ou pelo

    menos, deve ser colocado em condio de saber (BOBBIO, 2000, p. 392). Mas a compreenso da relao entre informao e democracia requer um

    aprofundamento terico. Isso porque, assim como ocorre com o conceito de

    informao, no h um consenso acerca do conceito de democracia. Longe disso, o

    termo historicamente tem sido objeto de disputas e de acalorados debates e discusses que envolvem pensadores cujas idias apresentam significativas divergncias, resultando da o surgimento de diferentes concepes ou teorias sobre

    a prtica democrtica. No objetivo deste trabalho reconstituir a histria de tal debate que, alis, encontra-se em aberto. Mas interessa aqui analisar os aspectos

    tericos centrais daquelas abordagens que forneam elementos relevantes para a

  • 38

    compreenso da relao entre democracia e informao para, em seguida, tentar

    estabelecer a relao entre esta e a participao poltica dos cidados.

    Destarte, para tais propsitos suficiente adotar a diviso proposta por

    Santos e Avritzer (2002), para quem as disputas em torno das diversas teorias democrticas podem, ao menos a partir da segunda metade do sculo XX, ser

    definidas em termos de uma concepo hegemnica de democracia, sendo possvel,

    no entanto, destacar elementos que conduzem formulao de concepes

    democrticas contra-hegemnicas. A concepo hegemnica representada,

    basicamente, pela teoria elitista de democracia. As concepes contra-hegemnicas

    so aquelas que vem na participao poltica dos atores sociais um caminho para a

    inovao e renovao do agir democrtico. Contudo, possvel identificar na

    literatura tambm uma concepo intermediria s duas primeiras, representada

    pela teoria polirquica.

    Cada uma dessas concepes permite entrever modos diversos para a

    abordagem da relao entre democracia e informao. As prximas sees so,

    ento, dedicadas anlise de cada uma dessas correntes.

    2.1 A informao e a concepo hegemnica de democracia

    Conforme mencionado, no h um consenso acerca da questo democrtica.

    Pelo contrrio, se existe um termo capaz de gerar divergncias e posies tericas e

    ideolgicas conflitantes, este termo democracia. O sculo XX, conforme

    argumentam Santos e Avritzer (2002), foi marcado por um intenso debate acerca dessa forma de organizao poltica. Na opinio dos autores, a primeira metade do

  • 39

    sculo passado caracterizou-se pela disputa em torno da desejabilidade da democracia, considerada at ento, por muitos e por muito tempo, perigosa e

    indesejada por atribuir o poder de governar a quem estaria em piores condies para o fazer: a grande massa da populao, iletrada, ignorante e social e

    politicamente inferior (SANTOS; AVRITZER, 2002, p. 39)10. J aqui possvel notar um primeiro relacionamento mais pragmtico entre informao e democracia, posto

    que uma grande massa iletrada e ignorante corresponde precisamente a uma

    significativa parcela da populao que, de alguma forma, encontra dificuldades de

    acesso informao ou, mesmo que a ela tenha acesso, possui dificuldades para

    compreend-la, estando assim em uma situao de desvantagem poltica. No se

    ignora o fato de que essa desvantagem pode ser ocasionada e geralmente o

    por fatores outros que no somente a dificuldade de acesso e compreenso da

    informao, como, por exemplo, as condies econmicas e sociais desfavorveis.

    Mas importante ressaltar que aquela dificuldade contribui em boa medida para a

    no superao destas condies.

    Apesar da resoluo do mencionado debate em favor da desejabilidade da democracia, Santos e Avritzer (2002, p. 39) alertam que, ao cabo das duas guerras mundiais, a proposta de democracia que se tornou hegemnica ... implicou em uma

    restrio das formas de participao e soberania ampliadas em favor de um

    consenso em torno de um procedimento eleitoral para a formao de governos. Ou

    seja, para os adeptos da concepo hegemnica, no mbito de regimes ditos democrticos caberia ao povo to somente escolher seus governantes e

    representantes dentre os membros de uma elite melhor preparada e apta a discutir

    10 Grifou-se.

  • 40

    os assuntos pblicos. Trata-se, pois, de uma concepo elitista de democracia que

    considera que o povo seria capaz apenas de escolher os polticos, mas no de

    exercer a poltica, funo esta reservada somente a alguns indivduos moral e

    intelectualmente superiores. Dentre os autores que defendem a teoria elitista de

    democracia, Joseph Schumpeter11 aquele cujas idias obtiveram maior aceitao. Para ele, o cidado tpico [...] desce para um nvel inferior de rendimento mental to

    logo entra no campo poltico. [...] Torna-se primitivo novamente (SCHUMPETER, 1961, p. 319). A doutrina schumpeteriana pretende fazer uma anlise realista ao defender que, na sociedade de massas, os indivduos so facilmente manipulveis,

    cedem a impulsos irracionais e so incapazes de participar e de tomar decises

    importantes na poltica, a qual, por isso mesmo, deve ser exercida apenas pela elite,

    melhor preparada.

    No campo das preocupaes presentes neste trabalho, a concepo

    hegemnica ou elitista de democracia, mesmo que estivesse correta ou fosse

    desejvel do ponto de vista pragmtico, pouca importncia acrescentaria ao papel desempenhado pela informao enquanto instrumento portador de potencial para

    interveno no processo poltico por parte dos cidados comuns. Isso porque uma

    tal concepo beneficia-se da desinformao como um dos fatores que permitem a

    concentrao oligrquica de poder poltico, econmico e ideolgico. Ou, em termos

    menos radicais, bastaria ao povo ter acesso s informaes que lhe possibilitassem

    o conhecimento necessrio para realizar, de tempos em tempos, uma boa escolha

    de seus representantes e governantes. Conforme afirma Vita (2004),

    11 Para uma crtica teoria schumpeteriana, Cf. Avritzer, 1996.

  • 41

    do fato de que a maioria dos cidados comuns no tenha motivao e informao suficientes para constituir um julgamento racional, digamos, sobre a poltica de privatizaes do governo [...], no se segue que eles no sejam capazes de constituir um julgamento genuno sobre o desempenho governamental como um todo. [...] Pode parecer pouco, mas essa distino crucial que nos permite diferenciar a democracia schumpeteriana de um governo de minoria ou de um governo tecnocrtico (VITA, 2004, p.128).

    A concepo hegemnica ou elitista, ao reduzir a democracia a um mero

    processo eleitoral, no conseguiu responder convincentemente a duas questes

    essenciais: a questo de saber se as eleies esgotam os procedimentos de

    autorizao por parte dos cidados e a questo de saber se os procedimentos de

    representao esgotam a questo da representao da diferena (SANTOS; AVRITZER, 2002, p. 46). Tais questes remetem a um debate entre democracia representativa e democracia participativa, constituindo esta ltima o eixo principal do

    discurso das concepes contra-hegemnicas de democracia. Interessa, ento,

    dentro dos limites tericos desta pesquisa, analisar a literatura que discorre sobre

    essas concepes no-hegemnicas na tentativa de nela colher novos subsdios

    acerca do papel desempenhado pela informao em processos de participao

    poltica.

    Antes, porm, necessrio apresentar algumas idias fundamentais daquele

    que considerado um dos principais tericos da democracia, Robert Dahl, cuja teoria polirquica pode ser situada entre as concepes hegemnicas e as

    concepes contra-hegemnicas de democracia.

  • 42

    2.2 Poliarquia, informao e participao

    O pensamento de Robert Dahl ocupa um lugar intermedirio entre o elitismo

    democrtico e uma concepo normativa e participativa de democracia

    (AVRITZER, 1996, p.114). De sua obra possvel extrair um conjunto importante de contribuies acerca da relao entre o acesso informao e os processos de

    democratizao poltica.

    Dahl parte do pressuposto de que uma caracterstica-chave da democracia

    a contnua responsividade do governo s preferncias de seus cidados,

    considerados como politicamente iguais (DAHL, 1997, p. 25). O autor acredita que, para que o governo seja responsivo, todos os cidados devem ter oportunidades plenas: a) de formular suas preferncias; b) de expressar suas preferncias a seus concidados e ao governo atravs da ao individual e da coletiva e c) de ter suas preferncias igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminao decorrente do contedo ou da fonte da preferncia (DAHL, 1997, p. 26).

    Essas trs condies so necessrias democracia, embora no sejam suficientes e variem enormemente na amplitude em que se encontram disponveis

    geogrfica e historicamente. Para que um grande nmero de pessoas possa

    desfrutar de todas essas oportunidades, em seu modelo de democracia Dahl

    ressalta a necessidade adicional da existncia de oito garantias institucionais,

    conforme indicado no QUADRO 1, a seguir:

  • 43

    QUADRO 1 - Alguns requisitos de uma democracia para um grande nmero de pessoas

    Para a oportunidade de: So necessrias as seguintes garantias institucionais:

    I. Formular preferncias 1. Liberdade de formar e aderir a organizaes 2. Liberdade de expresso 3. Direito de voto 4. Direito de lderes polticos disputarem apoio 5. Fontes alternativas de informao

    II. Exprimir preferncias 1. Liberdade de formar e aderir a organizaes 2. Liberdade de expresso 3. Direito de voto 4. Elegibilidade para cargos polticos 5. Direito de lderes polticos disputarem apoio 6. Fontes alternativas de informao 7. Eleies livres e idneas

    III. Ter preferncias igualmente consideradas na conduta do governo

    1. Liberdade de formar e aderir a organizaes 2. Liberdade de expresso 3. Direito de voto 4. Elegibilidade para cargos polticos 5. Direito de lderes polticos disputarem apoio 5a. Direito de lderes polticos disputarem votos 6. Fontes alternativas de informao 7. Eleies livres e idneas 8. Instituies para fazer com que as polticas governamentais dependam de eleies e de outras manifestaes de preferncia.

    Fonte: DAHL, 1997, p. 27 (grifou-se)

    Dentre as oito garantias institucionais propostas por Dahl, duas interessam

    mais diretamente aos objetivos deste trabalho. A primeira refere-se garantia institucional de acesso a fontes alternativas de informao, a qual aparece como

    uma condio para o exerccio das trs oportunidades que devem ser asseguradas

    aos cidados. Em seu livro Poliarquia, obra em que Dahl prope as garantias

  • 44

    apresentadas no QUADRO 1, o autor no deixa explcito o que constituiriam essas

    fontes alternativas de informao. Mas em outros trabalhos ele fornece ao leitor

    subsdios para a clara compreenso da expresso. No livro Um prefcio teoria

    democrtica, Dahl, ao abordar as condies que devem operar no perodo pr-

    eleitoral, destaca que todos os indivduos devem possuir informaes idnticas

    sobre as alternativas existentes (DAHL, 1996, p. 73). Apesar de no constituir uma garantia de racionalidade geral, a satisfao dessa condio pode contribuir para

    que os eleitores rejeitem uma alternativa que teriam aprovado se possussem menos informaes. Assim, crescem as chances de que a escolha no tenha sido

    manipulada pelo controle das informaes por indivduos isolados ou grupos. Mas,

    para o autor, essa condio no facilmente observvel.

    Em outro trabalho, Dahl elabora alguns questionamentos que, embora sejam colocados na forma de perguntas, ajudam a responder o que se deve entender por fontes alternativas de informao: como os cidados podem adquirir a informao

    de que precisam para entender as questes se o governo controla todas as fontes

    importantes de informao? - e continua: como poderiam os cidados participar

    realmente da vida poltica se toda a informao que pudessem adquirir fosse

    proporcionada por uma nica fonte? (DAHL, 2001, p. 111). Sob essa tica, caberia ento ao Estado o dever de desempenhar um papel fundamental, garantindo ao

    cidado o acesso informao. Alm de ser, ele prprio, um fornecedor de

    informaes, o Estado deve assegurar as condies necessrias existncia do

    pluralismo de fontes de informao, evitando, desse modo, o monoplio da

    informao de interesse pblico.

    A oitava garantia institucional dahlsiana constitui o segundo foco de interesse

    para este trabalho, pois preceitua que as instituies devem ser capazes de fazer

  • 45

    com que as polticas governamentais dependam de eleies e de outros

    mecanismos de expresso de preferncias. Ora, a crise da democracia

    representativa, ao gerar descrena e apatia polticas, evidencia a necessidade da

    existncia de canais de acesso da sociedade civil s instituies do governo para

    troca de informaes atravs da participao no processo poltico, como forma de

    conferir maior legitimidade e efetividade ao daqueles que, investidos num

    mandato eletivo, devem zelar pela boa administrao da coisa pblica. Apesar da

    anlise desenvolvida por Dahl estar basicamente voltada para regimes nacionais, ele

    prprio reconhece que certamente ao menos uma parte dela poderia ser aplicada a

    nveis subordinados ou unidades subnacionais. Assim, possvel utiliz-la para

    subsidiar a reflexo acerca dos mecanismos de participao poltica institudos pela

    Assemblia de Minas, objeto desta pesquisa. As oito garantias institucionais propostas por Dahl constituem duas

    dimenses tericas ligeiramente diferentes da democratizao: a oposio (ou contestao) pblica ao governo e o direito de participar dessa contestao (ou inclusividade). Essas dimenses podem variar independentemente, pois um regime pode, por um lado, tolerar um alto grau de contestao pblica, mas que exercida

    por uma minoria. Pode, por outro lado, permitir que um grande nmero de pessoas

    participe, mas tolera apenas um baixo nvel de oposio. Na falta do direito de

    exercer oposio, o direito de participar despido de boa parte de seu significado

    (DAHL, 1997, p. 28). As duas dimenses tericas da democratizao propostas por Dahl so

    graficamente representadas atravs da seguinte figura:

  • 46

    FIGURA 1 - Liberalizao, inclusividade e democratizao

    Fonte: DAHL, 1997, p. 30

    Para o autor, a democracia poderia ser concebida como um regime localizado

    no canto superior direito (altamente inclusivo e fortemente liberalizado). Em seu modo de ver, porm, nenhum grande sistema do mundo real plenamente

    democratizado (a democracia seria um ideal a ser alcanado), razo pela qual prefere chamar os regimes prximos do canto superior direito de poliarquias.

    Assim, qualquer deslocamento de um regime ao longo do caminho III representa

    algum grau de democratizao. medida que um sistema torna-se mais competitivo ou mais inclusivo, crescem as chances de que os polticos busquem apoio junto aos segmentos sociais que agora podem participar mais facilmente da vida poltica. Dahl

    Hegemonias fechadas

    Hegemonias inclusivas

    Oligarquias competitivas

    Poliarquias

    I

    II

    III

    Liberalizao (contestao pblica)

    Inclusividade (participao)

  • 47

    prope que quanto maiores as oportunidades de expressar, organizar e representar

    preferncias polticas, maior a variedade de preferncias e interesses passveis de

    representao na poltica (DAHL, 1997, p. 46). importante ressaltar que Dahl acredita que a distribuio de recursos-chave

    constitui uma das variveis que afetam o desenvolvimento da poliarquia. Esses

    recursos tornam-se recursos polticos medida que so utilizados por um ator para

    influenciar o comportamento de outros atores, pelo menos em algumas

    circunstncias. Desigualdades na distribuio de recursos-chave equivalem, pois, a

    desigualdades na distribuio de recursos polticos, que por sua vez podem levar a

    desigualdades extremas no exerccio do poder. possvel inferir que, para Dahl, a informao est entre os recursos polticos distribudos, ainda que de modo

    desigual, a indivduos, grupos e organizaes, pois o autor, ao analisar a distribuio

    de recursos-chave, fala em saber e em conhecimento, alm de renda, riqueza e

    ocupao, dentre outros. Assim, em sociedades complexas, formadas por uma

    grande quantidade de cidados, as chances de uma participao extensiva e de um

    alto grau de contestao pblica dependem, em certa medida, da disseminao de

    leitura, escritura, alfabetizao, educao e jornais ou equivalentes (DAHL, 1997, p. 85).

    Em sntese, a obra de Dahl fornece subsdios para que a informao, tomada

    na perspectiva de uma das garantias institucionais inerentes democracia, seja considerada como um dos recursos que podem contribuir para tornar os cidados

    mais capacitados a influenciar o comportamento e as aes dos polticos, permitindo

    aos primeiros vocalizar suas preferncias e fazer com que elas sejam igualmente consideradas em relao s questes afetas vida poltica da sociedade.

  • 48

    Mas isso no encerra a busca por uma maior compreenso da relao entre

    democracia e informao, posto que esta, enquanto recurso poltico, encontra-se

    dispersa pela sociedade de maneira desigual. Destarte, para o suporte terico

    interdisciplinar a esta pesquisa torna-se necessrio recorrer, ainda no campo da

    Cincia Poltica, tambm literatura sobre a democracia deliberativa. Isso porque,

    da leitura que se fez da obra de Dahl, ficou claro que o autor, apesar de levantar

    importantes questes sobre a participao (ou inclusividade) poltica, concentra uma maior parcela de seu esforo na compreenso da dimenso que denominou de

    oposio (ou contestao) pblica. Ou seja, o autor no chega a desenvolver uma teoria participativa, mas aponta aspectos da participao essenciais ao bom

    funcionamento da poliarquia.

    importante, pois, recorrer a autores que mais recentemente tm buscado compreender e desenvolver a dimenso participativa da democracia. Destarte, a

    literatura voltada aos processos de participao e deliberao pblicas ser

    analisada na seo subseqente. Trata-se de contribuies tericas que apresentam

    diversas facetas das concepes contra-hegemnicas de democracia. Sua anlise

    constitui uma tentativa de obteno de outros subsdios que permitam avanar na

    compreenso da relao entre participao poltica e informao.

    2.3 Informao e concepes contra-hegemnicas de democracia

    As concepes contra-hegemnicas de democracia so, essencialmente,

    concepes alternativas ao elitismo democrtico, pois defendem a possibilidade de

    participao e deliberao dos cidados como forma de se atingir um novo patamar

  • 49

    institucional da democracia. Tambm nesse campo terico, como de resto em toda a

    teoria democrtica, no existem consensos absolutos. Diversos autores apresentam

    opinies divergentes, principalmente no que se refere intensidade e efetividade

    da participao dos cidados e legitimidade das decises decorrentes de

    processos deliberativos. Mas, apesar dessas divergncias, parece haver um ponto

    em comum na teoria desses autores, qual seja a necessidade de se combinar o processo eleitoral com mecanismos que propiciem, atravs da participao dos

    cidados, o incremento do controle da atuao de seus representantes e

    governantes. Esse aspecto mantm uma estreita relao com a oitava condio

    dahlsiana, citada na seo anterior, no sentido de que as instituies democrticas

    devem ser estruturadas de modo a fazer com que a formulao de polticas pblicas

    dependa de eleies, mas tambm de outros mecanismos de manifestao de

    preferncias por parte dos cidados.

    A obra de Jrgen Habermas parece ser aquela que maior influncia exerceu

    na formulao da teoria democrtica deliberativa. Seu modelo procedimental rompe

    com a noo de democracia como mero sistema de constituio de governos ao

    ressaltar a importncia da participao dos atores sociais em processos racionais de

    discusso e deliberao. Para tanto, a teoria habermasiana ressalta a diferena

    existente entre a esfera administrativa e burocrtica do Estado, resultante do

    aumento da complexidade das sociedades modernas e por isso mesmo concentrada

    nas mos de especialistas, e a esfera pblica, espao dialgico e interativo

    existente entre a esfera privada e o Estado. Na concepo do autor,

    A esfera pblica pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicao de contedos, tomadas de posio e opinies; nela os fluxos comunicacionais so filtrados e sintetizados a ponto de se condensarem em opinies pblicas enfeixadas

  • 50

    em temas especficos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pblica se reproduz atravs do agir comunicativo, implicando apenas o domnio de uma linguagem natural; ela est em sintonia com a compreensibilidade geral da prtica comunicativa cotidiana (HABERMAS, 1997, p. 92).

    Para Habermas, a esfera pblica, enquanto arena privilegiada para a

    discusso dos temas pblicos por parte dos cidados, seria dotada de uma

    racionalidade comunicativa atravs da qual a formao de opinio e de vontade dos

    atores sociais poderia exercer influncia na elaborao de polticas pblicas, desde

    que conseguisse atravessar as comportas dos procedimentos burocrticos do

    Estado.

    Em sntese, Habermas coloca a questo da participao no centro de sua

    teoria de democracia ao demonstrar que a esfera pblica uma rbita insubstituvel

    de constituio democrtica da opinio e da vontade coletivas, estabelecendo a

    mediao necessria entre a sociedade civil, de um lado, e o Estado e o sistema

    poltico, de outro (AVRITZER; COSTA, 2004). Diante disso, possvel perceber que as concepes contra-hegemnicas de

    democracia baseadas na teoria habermasiana tm na participao e na deliberao

    pblicas seus principais pilares, j que os cidados passam a desempenhar um papel ativo no processo de superao das deficincias do sistema democrtico

    representativo. Neste sentido, parece claro que uma condio de efetividade dessa

    perspectiva deliberacionista a permeabilidade das instituies formais da

    democracia aos resultados dos debates travados na esfera pblica. Ou seja, o desenvolvimento da capacidade, por parte das instituies polticas, de captao e

    absoro das informaes que traduzem os temas, argumentos, demandas e

    interesses manifestados durante o processo deliberativo, de forma a diminuir a

  • 51

    distncia entre as decises tomadas nas esferas formais de governo e as

    preferncias manifestas na esfera pblica.

    Voltando a ateno questo informacional que perpassa a teoria

    deliberativa de democracia, de acordo com a opinio de Santos e Avritzer (2002, p. 48), existe um certo ceticismo quanto capacidade das burocracias estatais de lidarem com a criatividade e absorverem o conjunto das informaes envolvidas na gesto pblica. Para esses autores, o Estado possui uma necessidade crescente de

    encontrar solues plurais para os problemas administrativos, ao passo que a

    capacidade das burocracias centralizadas de lidar com o conjunto das informaes necessrias para a execuo de polticas complexas limitada. Neste sentido,

    O conhecimento detido pelos atores sociais passa, assim, a ser um elemento central no aproprivel pelas burocracias para a soluo dos problemas de gesto. [...] A residiria o motivo da re-insero no debate democrtico dos assim chamados arranjos participativos (SANTOS; AVRITZER, 2002, p.48).

    Deve-se entender por conhecimento no aproprivel aqueles saberes

    constitudos a partir de informaes possudas pelos cidados, mas no detidas a

    priori pelo Estado, e que se encontram desigualmente dispersas pela sociedade. A

    institucionalizao de arenas participativas teria, ento, a potencialidade de

    promover um intercmbio informacional entre a sociedade e as instncias decisrias

    do Estado, propiciando-lhes ganhos mtuos de informao.

    Dito de outra forma: para as concepes democrticas contra-hegemnicas,

    se os problemas enfrentados por sociedades complexas exigem cada vez mais

    solues plurais, a prpria poltica tem de ser plural, baseando-se em processos

    participativos racionais de discusso e deliberao. Para essa corrente de

  • 52

    pensamento o poder poltico deve ser exercido coletivamente, com base em

    processos de livre apresentao de razes entre iguais (SANTOS; AVRITZER, 2002, p. 53)12.

    No entanto, em outro trabalho Santos (2006, p. 1) afirma com convico que a promoo da democracia no ocorreu de par com a promoo das condies de

    participao democrtica. Para o autor, a criao e o desenvolvimento de espaos

    propcios participao democrtica dos cidados constitui um dos principais

    desafios da democracia na atualidade. Para a superao deste desafio trs

    condies essenciais devem ser asseguradas aos cidados: a garantia de

    sobrevivncia (quem no tem como se alimentar tem prioridades mais altas do que votar, por exemplo); no estar ameaados (em qualquer regime poltico, quem vive ameaado no livre); e estar informados, pois quem no dispe da informao necessria a uma participao esclarecida, equivoca-se quer quando participa, quer

    quando no participa (SANTOS, 2006, p. 1). Deste modo, experincias participativas podem ser vistas como uma

    oportunidade no s para a transferncia de informaes da sociedade para a

    burocracia estatal, mas tambm desta para aquela, gerando um fluxo informacional

    entre governados e governantes. Se em uma direo desse fluxo o Estado passa a

    receber informaes providas pelos segmentos potencialmente afetados pelos

    temas em discusso, em outra direo os cidados passam, atravs de uma maior

    disseminao da informao poltica, a compreender melhor o funcionamento dos

    processos poltico-administrativos.

    12 Cf. tambm COHEN, J. Procedure and Substance in Deliberative Democracy. In: BOHMAN, J.; REHG, W.

    Deliberative Democracy: essays on reason and politics. Cambridge: MIT Press, 1997.

  • 53

    Se as concepes democrticas contra-hegemnicas estiverem corretas,

    ento possvel conceber ainda uma terceira direo para o fluxo de informaes

    que se estabelece em arranjos participativos e deliberativos, j que o intercmbio de experincias proporcionado pelo incremento da participao poltica contribuiria

    tambm para a reduo da assimetria informacional entre os prprios cidados

    participantes, portadores de recursos desiguais, entre os quais a informao,

    relativamente aos temas em discusso. Isso porque a deliberao em processos

    participativos baseia-se na troca argumentativa entre os participantes, numa

    interao em que cada parte recebe e analisa os argumentos da outra. Estes

    argumentos geralme