sistema coringa
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Sistema Coringa
Histrico
Modelo dramatrgico criado porAugusto Boalpara permitir a montagem
de qualquer pea com elencos reduzidos, alterando as tradicionais
relaes narrativas do gnero dramtico, apoiado numa proposta pica e
crtica.Aps o golpe militar de 1964, os homens de teatro se vem numa
situao paradoxal: h pouco pblico e inexistem peas que retratem as
profundas mudanas ocorridas na realidade. A primeira experincia de
uso do Coringa d-se emArena Conta Zumbi, peloTeatro de Arena, em
1965.No Rio de Janeiro, Augusto BoaldirigeOpinio, no ano anterior,
espetculo que enfeixava as experincias de ex-cepecistas, sobretudo
apoiados nos esquemas dramatrgicos criados pelo "agit-prop".Opinio
uma colagem de fontes diversas: msicas, notcias de jornal, citaes
de livros, cenas esquemticas e depoimentos pessoais situando as trs
realidades em cena, nucleadas em torno de Nara Leo (a classe mdia
intelectualizada), Joo do Vale (o migrante nordestino) e Z Kti (o
sambista de morro).Com essa experincia dramatrgica na bagagem,
Augusto Boal integra o coletivo de artistas que criaZumbi. Trata-se
aqui de colocar em cena um episdio complexo da histria brasileira:
a luta dos quilombolas de Palmares e sua resistncia ao jugo
portugus. Mas o Arena enfrenta dificuldades materiais, desde o
pequeno palco e espao cnico at um elenco reduzido. Escolhido o
tema, os locais de ao e as principais personagens - a saga da luta
antiescravagista -,a soluo cnica encontrada toma o aspecto de um
grande seminrio dramatizado, com os oito atores representando todas
as personagens, revezando-se no desempenho das pequenas cenas
focadas sobre os pontos fortes da trama, deixando a um ator coringa
a funo narrativa de fazer as interligaes entre fatos, pessoas e
processos, como um professor de histria organizando uma aula e
dando seu ponto de vista sobre os acontecimentos. O emprego da
msica ajuda as passagens de cena, acrescentando tons lricos ou
exortativos de grande efeito. Augusto Boal,Gianfrancesco Guarnierie
Edu Lobo assinam a realizao.A montagem deArena Conta Tiradentes, em
1967, aprofunda a experincia e surge explicada teoricamente em "O
Sistema Coringa", redigido por Boal. O sistema evolui
conceitualmente, desenvolvido para ser aplicado a qualquer texto
teatral, permitindo, desse modo,tanto o barateamento da produo
quanto a implantao de proposies estticas, ligadas a um modo pico e
dialtico de expor a trama.So empregados quatro procedimentos: a
desvinculao ator/personagem (qualquer ator pode representar
qualquer personagem, desde que vista a mscara correspondente),
perspectiva narrativa unitria (o ponto de vista autoral assumido
ideologicamente pelo grupo que faz a encenao), ecletismo de gnero e
estilo (cada cena tem seu estilo prprio - comdia, drama, stira,
revista, melodrama, etc. - independentemente do conjunto, que se
transforma numa colagem esttica de expressividades), uso da msica
(elemento de ligao, fuso entre o particular e o geral, introduo do
ingrediente lrico ou exortativo no contexto mtico e dramtico).O
Coringa uma personagem onisciente que altera, inverte, recoloca,
pede para ser refeita sob outra perspectiva uma cena, sempre que
sinta necessidade de alertar a platia para algo significativo,
concentrando a funo crtica e distanciada.Funo oposta ocupa o
protagonista, o heri. Ele deve ser naturalista, fechado em sua
lgica causal e psicolgica, sempre representado pelo mesmo ator,
destinado a criar e dar corpo dimenso do particular tpico,
insuflando a iluso cnica e materializando a dimenso mtica, uma vez
que se destina identificao e ao fomento da empatia junto ao
pblico.O conjunto de tais procedimentos especialmente pico, oriundo
de Bertolt Brecht, mas no deixa de abrigar, igualmente, uma
tentativa de conciliar o historicismo proposto pelodistanciamento
brechtianocom oparticular tpico, como concebido por Lkacs, outro
terico marxista que defende um heri mtico e fechado sobre si
mesmo.O sistema examinado e tem suas propostas rebatidas no livroO
Mito e o Heri no Moderno Teatro Brasileiro, porAnatol Rosenfeld.
Tomando ponto por ponto os aspectos polmicos da proposta de Boal, o
crtico expe os limites e contradies que apresenta, concluindo pela
impossibilidade de sua aplicao a qualquer pea, como pretendia ser
seu objetivo central.E especificamente sobreTiradentes, observa: "O
heri, embora criticado pelos seus erros e cercado por um aparelho
distanciador, levado inteiramente a srio como heri (...) no
chegando a ser suficientemente mito para colher as vantagens
estticas do arqutipo monumental. Mas de outro lado tem do mito a
esquematizao extrema de modo a no render suficientemente na dimenso
da anlise histrico-social e da vigncia emptica. A no ser que nos
enganemos, Boal no deseja que se aplique a Tiradentes a sua
excelente formulao: 'sempre os heris de uma classe so os quixotes
da classe que a sucede'. O heri, tal como proposto na pea, seria
hoje um ser quixotesco, como o Hrcules de Drrenmatt".1Na base
dessas discusses encontram-se questes estticas e ideolgicas muito
amplas, que devem ser reportadas s distintas solues propostas por
Bertolt Brecht ou por Lkacs; ou seja, os modos diversos de se
dialetizar artisticamente a perspectiva crtica e
histrica.ApsZumbieTiradentes, o coringa volta a ser empregado por
Boal emA Lua Muito Pequena e a Caminhada Perigosa, texto integrante
daPrimeira Feira Paulista de Opinioem 1968 e emArena Conta Bolivar,
criao vitimada pela Censura e apresentada apenas no exterior, em
1970. Ainda que pleno de contradies, ele utilizado por muitos
grupos latino-americanos, ao longo dos anos 1970, que encontram
assim um modo de ao poltica compatvel com o fechamento dos regimes
polticos do perodo. Em modo evoludo e diverso, ajuda Augusto Boal a
definir e propor, logo a seguir, oTeatro do Oprimido.Ao longo das
dcadas seguintes, no Brasil, algumas das tcnicas teatrais nascidas
ou criadas no sistema coringa acabam por ser empregadas em outros
contextos, utilizadas como recursos de linguagem, sem obedecer,
todavia, s suas determinaes ideolgicas. So exemplos: o rodzio de
personagens do elenco por meio da substituio de adereos; o amlgama
de gneros diversos numa mesma cena ou pea; o emprego de recursos
narrativos mesclados com cenas dramticas, etc., tornando o Sistema
algo assimilado e diludo, mais uma prtica do que um modelo, no
cotidiano do fazer teatral.Notas1. ROSENFELD, Anatol. O mito e o
heri no moderno teatro brasileiro. 2. ed. So Paulo: Perspectiva,
1996. p. 38