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1 a imagem deslocada Lyara Apostolico orientador: Donato Ferrari Tese de doutorado apresentada ao Departa- mento de Artes Plásticas da Escola de Co- municações e Artes da Universidade de São Paulo como parte dos créditos exigidos para a obtenção do título de doutora em Artes

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1

a imagem deslocada

Lyara Apostolico

orientador: Donato Ferrari

Tese de doutorado apresentada ao Departa-mento de Artes Plásticas da Escola de Co-municações e Artes da Universidade de São Paulo como parte dos créditos exigidos para a obtenção do título de doutora em Artes

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2

Agradecimentos

A minha mãe querida pelo apoio incondicional e constante

A Eduardo Peñuela Cañizal e Donato Ferrari, meus orientadores de

teses e de vida

A FAPESP pelo suporte

A Juan Manuel e Alejandro Tapia pela acolhida carinhosa no

México, pelos livros e pelas discussões proveitosas

A meu doce amigo húngaro Gabor Csonka que me manda imagens

dos quatro cantos do mundo, por onde anda

A biblioteca do campus SENAC em São Paulo que me tratam como

se eu fosse de casa

A meus superiores no Ministério da Cultura pela flexibilização de

meus horários na reta final da tese.

3

Índice

Prefácio 4

Introdução 6

A quarta estória 11

O eterno retorno pós-moderno 27

O sentido da imagem

A percepção na origem do sentido 30

Elementos do discurso 34

Funções da Imagem 42

A mobilidade do signo 47

Significação do Espaço 54

O espaço dialógico da cidade 56

Contextualidade 67

Morte ao museu 72

O embate no interior do signo:

A anti-publicidade 75

A fronteira norte 79

Tipologia do deslocamento:

Contextos nacionais, cadáveres internacionais 87

Fora do museu:

A poesia das ruas 93

Bienal dos pobres 101

Deslocamento pelo tempo e fatos:

O antes e o depois das imagens do World Trade Center 105

A imagem reproduzida 111

Conclusão 114

Bibliografia 119

4

Prefácio“Nós estamos a caminho: não caminhamos em direção a

uma meta pré-determinada, não somos guiados por um projeto, não

erramos sem destino e às cegas; caminhamos em busca de um lugar

no qual possamos permanecer como viandantes. A “viaticidade”

revela-se como um traço essencial da experiência da diferença: ela

dissolve do mesmo modo o enraizamento e a alienação. Heidegger

“Precisamos, sim, de senso incomum”

Mia Couto

Bem vindo(a)!

Como se constrói o conhecimento no mundo contemporâneo?

Um mundo onde as áreas do saber mesclam-se e copulam em orgias

desregradas e férteis? Por certo não é mantendo-se fiel a uma só

linha de Ariadne: o labirinto tem várias saídas, e várias entradas.

O tema desta tese é a imagem no contexto pós-moderno.

Vamos falar de incertezas, instabilidades, polifonias, paradoxos,

plurideterminações, promiscuidades. Como faze-lo utilizando o

formato clássico das teses acadêmicas? Não se pode, sob pena de se

perder o mais essencial das descobertas.

Por isso, o estilo desta tese é o da menipéia. A menipéia é um gênero

literário nascido no século III A.C. com o filosofo Menipo de Gadara.

A menipéia é, segundo Kristeva um “gênero englobante que se

constrói como um mosaico de citações. Abarca todos os gêneros:

contos, cartas, discursos, mesclas de verso e prosa cuja significação

estrutural é denotar as distancias do escritor em relação ao seu texto

e dos textos.”

Para uma verdadeira compreensão do fenômeno pós moderno

novos instrumentos são necessários. É necessário descobri-los e

inventa-los.

O que acontece quando se junta Patativa do Assaré com Hegel, o

manual do vídeo cassete com citações bíblicas, notícias de jornal

com Shakespeare, literatura de cordel com física quântica? A

5

justaposição de textos, unidos por delicadas linhas de conexão, foi a

minha tentativa de construir “malhas para captar o incognoscível” e,

se por vezes o conjunto parecer excessivamente ilógico, é sempre bom

saber que, como diz Guimarães Rosa “o não-senso, crê-se, reflete por

um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e nos cria”

Esta tese está forjada pelo azar, pelo erro e pelo mal entendido,

principais forças criadoras no mundo. Aos livros, tomados ao acaso

das prateleiras da biblioteca do Campus do Senac em São Paulo (o

mais belo conceito de biblioteca da cidade), atirei minhas redes que

voltaram pesadas de citações que, na redação, encontravam, quase

naturalmente, seus lugares. Do erro na leitura surgiam conceitos

novos e promissores: a palavra ofício lida como orifício, cornija como

coringa e assim sucessivamente. A má interpretação de um conceito

me servia, às vezes, melhor do que se o interpretasse fielmente. E de

erro em erro vai se construindo alguns acertos.

Entre explicar os conceitos usando os textos técnicos ou

explicar usando as imagens da literatura universal busquei, sempre

que possível, a segunda opção pois a imaginação, além de dar sabor

e cor ao texto, é para mim a melhor estrada para o conhecimento.

Na diagramação, um pouco de caos de imagens reflete melhor

o caos das ruas e se aproxima mais do tema que estamos tratando do

que se cada coisa estiver no seu lugar.

6

Introdução

“Even the process of analisis itself is suspect”

Margot Lovejoy

“Any image from everyday life will thus become part of

a vague and complicated system that the whole world is

continually entering and leaving(…) There are no more

simple images(…) The whole world is too much for an

image. You need several of them, a chaim of images(…)

No longer a single image, but, rather, multiple images,

images dissolved together and then disconnected(…) Art

is not the reflection of reality, it is the reality of that

reflection”

Jean Luc Godard

O mundo é um acidente, que haja vida é um acaso e a

humanidade navega na improbabilidade. Estas são algumas

conclusões que a física quântica põe em evidência e que alteram

radicalmente nossa maneira de compreender a vida e os fatos.

Se estas novas conclusões, alteram as bases mais sólidas das ciências

particulares, que eram os repositórios das certezas na sociedade

moderna, o que dizer do campo da comunicação e das artes onde as

certezas sempre flutuaram ao sabor das marés conceituais?

Neste panorama, a comunicação e a estética, ciências do

impreciso por excelência, ganham destaque enquanto ferramentas para

a compreensão dos movimentos culturais e sociais contemporâneos

e dentro delas, o estudo das imagens oferece um campo privilegiado

de descobertas das forças mais profundas que movem a grande roda

dos fenômenos sociais.

A imagem é, para Benjamin, a categoria principal de seus

7

estudos culturais que estavam baseados na análise de “imagens

prenhes de história”. As imagens da cidade, as “imagens do desejo”,

as imagens aparentemente insignificante, as “imagens oníricas”,

constituíam, para ele, a matéria prima fundamental para a construção

do conhecimento da história. A imagem é a porta de acesso a um saber

arcaico e a formas primitivas de conhecimento; a imagem dialética “é

a chave para a mitologia de uma época”. (Bolle:2000)

E é nesta linha de pensamento que se situa o presente estudo.

As imagens selecionadas neste trabalho, são imagens-orifícios

através das quais é possível vislumbrar outras verdades possíveis da

cidade que estão camufladas sob o pesado manto da visão cotidiana

e acostumada de nossa percepção sonolenta. Nestas imagens, os

conceitos se manifestam de maneira saliente mas, os fenômenos

apontados, manifestam-se, também, em maior ou menor grau, em

todas as outras imagens.

Para desentocar estes novos e inusitados sentidos, alguns

pressupostos teóricos mostram-se preciosos. É o caso de toda a

teoria estruturalista semiótica e estética do estudioso checo Jan

Mukarovsky de cuja obra foram apropriados os principais conceitos-

chaves utilizados nas análises das imagens. A obra de Mukarovsky,

que só veio a público em 1966, contém uma síntese quase profética dos

principais temas que se tornariam lugar-comum entre os semióticos

da segunda metade do século XX. Mukarovsky antecipou questões

sobre o papel do leitor e seus limites que depois ganhariam destaque

pelas palavras de Umberto Eco, expôs claramente a vinculação social

do signo, a relação entre a capacidade de fruição artística com o

estrato social do fruidor, o grau de mistificação contido na vinculação

entre valor estético e estado psíquico do autor ou do leitor (e assim

fazendo desnuda uma questão que viria a ser denunciada depois por

Benjamin, Bourdieu e Berger dentre outros)

Mukarovsky vê o signo como uma estrutura autônoma de

equilíbrio instável fruto de relações dialéticas entre a consciência

8

individual e a consciência social. Dentro desta estrutura, os diversos

componentes portadores de sentido revezam-se na determinação do

sentido global da obra, de acordo com o tempo e o lugar em que a

obra aparece. Evidencia-se, aqui, a importância da vinculação do

sentido de um signo ao contexto e à situação concreta em que este

signo é atualizado, princípio este também explicitado por Bahktin.

Mukarovsky aponta para a importância dos elementos formais:

cor, forma, textura na construção do sentido, tema que se tornaria

um dos eixos principais da Retórica Geral do grupo μ.

Mukarovsky acredita, junto com Focillon, que “as formas têm

uma vida autônoma, independente da vida orgânica do homem” e

esta autonomia está baseada numa “intentio operis” que não coincide

totalmente com a “intentio auctoris“. A obra ultrapassa as intenções

do autor, e vai viver a sua vida soberana limitando, até certo ponto,

as investidas interpretativas dos leitores.

O ambiente urbano, caracterizado pela disputa por espaços

escassos e a conseqüente colagem resultante; os modernos meios de

reprodução e veiculação que multiplicam e disseminam imagens e a

globalização que promove intercâmbios culturais antes insuspeitados

constroem o panorama pós-moderno e agitam como nunca a estrutura

interna dos signos como se fossem móbiles numa tarde de ventania.

E ao se agitarem, estes signos sofrem interferências mútuas de

sentidos que invadem o espaço significante uns dos outros.

Assim, altera-se, de maneira essencial, o papel do autor de

uma imagem. Se antes sua preocupação primordial estava centrada

na utilização do código e dos meios por um lado e no repertório do

receptor por outro – que de per si já oferecem variáveis colossais,

– soma-se, agora, mais um complicador vinculado à significação do

espaço onde esta imagem é veiculada, às interferências naturais

ou artificiais a que está sujeita, aos fatos vindouros e ao diálogo

inevitável com outras imagens e elementos vizinhos; conjunto este

que estamos denominando contexto.

9

O contexto, espacial e temporal, é um grupo de variáveis que

não se submetem ao controle do autor que sobre elas pode, quando

muito, apenas fazer um exercício premonitório. Este grupo é, hoje, o

elemento mais importante na determinação do sentido das imagens

e, para ele, ainda não há ciência constituída.

Na física quântica há um efeito, que só recentemente começou

a ser estudado, denominado descoerência, segundo o qual não é

possível separar um corpo macroscópico do meio onde ele se encontra.

“Assim, o meio terá uma influência decisiva na dinâmica do sistema

fazendo com que as condições necessárias para a manutenção dos

efeitos quânticos desapareçam em uma escala de tempo extremamente

curta”. (wikipédia)

Da mesma maneira, o sentido da imagem começa na forma mas

só se completa fora dela: “O meio é a mensagem”, mas não “meio” no

sentido de mídia que tinha em McLuhan mas no sentido de ambiente,

de caminho, de contexto.

O autor deve ser um gestor da incerteza e dominar, o máximo

possível, as suas ferramentas; o leitor deve deixar de ver o mundo

por objetos e passar a concebe-lo por relações, ele deve assumir

integralmente a sua liberdade de realizar associações subjetivas; o

teórico deve fazer como o físico moderno que sabe que “um sistema

quântico, ao contrário do clássico, só pode ser descrito através das

possíveis alternativas (não necessariamente apenas duas) que a nossa

montagem apresente para ele. A onda associada ao sistema carrega

a possibilidade de interferência entre as diferentes alternativas e é a

informação máxima que podemos ter sobre o sistema em questão”.

(wikipédia) Da mesma forma, uma análise semiótica, estética ou

retórica resume-se a este apontar de alternativas. O sentido não é

um ponto, mas todo um intervalo.

Segundo Mukarovsky, a obra de arte (ou a imagem) é um signo

autônomo com 3 partes: “o símbolo sensorial, a significação e a

relação com o contexto geral dos fenômenos sociais”. O sentido é

10

consignado e para nos aproximarmos, o máximo possível, dessas

alternativas da significação precisamos usar ferramentas que dêem

conta de cada uma destas partes. Assim, as teorias das formas nos

ajudam a compreender o símbolo sensorial; a semiótica, a retórica

visual, as teorias da percepção e recepção nos ajudam a desvendar

os sentidos e a contextualidade, intertextualidade, sociologia da arte

e o estudo do espaço provêem uma maior compreensão das relações

entre textos, determinantes da significação.

Este trabalho bebe nestas fontes todas partindo sempre

dos pressupostos conceituais da autonomia do signo, da imagem

enquanto texto, no sentido Barthesiano1 - que dá ênfase ao contexto e

à situação enunciativa; e da imagem enquanto estrutura dinâmica.

Finalmente, é intenção deste trabalho, através da análise das

peculiaridades da imagem contemporânea e suas relações com o

tempo, o espaço e os fatos, apontar para discursos ocultos, de grande

riqueza poética e política, que permeiam as paisagens urbanas e

que necessitam de um tipo de atenção-desatenção, de um tipo de

acidente luminoso, de um evento que produza um insight pois só

assim o sujeito é capaz de romper os “extratos mais superficiais da

consciência” (Paz) e permitir que as imagens repercutam “acima ou à

margem das certezas racionais”. (Bachelar)

“A vida também é para ser lida, não literalmente, mas em seu

supra-senso” (G. Rosa)

1 Segundo Barthes, texto é “aquele espaço social que não deixa nenhuma linguagem a salvo, não deixa de fora nenhuma linguagem, e não deixa nenhum sujeito da enunciação na posição de juiz, senhor, analista, confessor, decodificador”

11

a quartaestória

“Nunca se perguntou à tese e à antítese se elas

estavam de acordo para produzir uma síntese”

Stanislaw Lec

“Indesfecho”. Assim descreve o resultado de uma peça escolar

o personagem de Guimarães Rosa no conto Pirlimpsiquice. Anos

depois do evento, a história é reconstruída pela memória do narrador.

Conta ele que, quando criança, fora chamado a tomar parte em uma

peça teatral intitulada “Os Filhos do Doutor Famoso”. Os ensaios

começam e com eles a ameaça de divulgação do enredo do drama. A

estratégia para proteger a estória da peça é inventar uma segunda

estória substituta. Esta segunda estória, criação coletiva do grupo,

chega às vezes a ser preferida em relação à “estória de verdade”. Os

ensaios avançam e, a certa altura, surge ainda uma terceira estória,

inventada por um grupo rival que não participava dos ensaios.

Chega o dia da apresentação e uma série de incidentes faz com

que tudo dê errado (ou certo?). O ator principal retira-se porque seu

pai está a beira da morte, o pano não desce, o substituto não sabe

como começar...

O resultado é a representação de um espetáculo inusitado que

não segue nenhuma das três estórias mas que compõe uma quarta,

com fragmentos das outras três.

O fim das grandes narrativas

O mundo contemporâneo tem a estrutura desta quarta

estória. Aquilo que Lyotard chama de pós-modernidade e Giddens

de modernidade tardia caracteriza-se justamente pela superação

12

das teorias evolucionistas que propunham um enredo, uma “grande

narrativa” que organizava a complexidade dos eventos humanos

numa linha que conduzia de um passado conhecido e imutável a

um futuro humanamente planejado e previsível. “A consciência da

história parecia ser a grande aquisição do homem moderno. Essa

consciência se converteu em pergunta sem resposta sobre o sentido

da história” (Paz 105)

“Desconstruir o evolucionismo social significa aceitar que a

história não pode ser vista como uma unidade, ou como refletindo

certos princípios unificadores de organização e transformação.

(Giddens 15)

A perda do fio condutor da história, nos remete, de imediato,

aos questionamentos dos argumentos teleológicos da modernidade:

a perda da fé na supremacia da razão através de críticas como a de

Heidegger ou Bataille que expõe a vontade de poder por trás da falácia

da neutralidade dos argumentos da racionalidade; o fim da crença

no progresso enquanto valor supremo desprovido de implicações

políticas e sociais e baseado na ideologia tecnocrática da máxima

eficiência e o fim das ideologias universalizantes que propunham a

validade dos modelos ocidentais a todas as sociedades do mundo.

Estas desconfianças, de violenta natureza, solapam os alicerces

dos paradigmas sobre os quais estão cimentadas as instituições

modernas. O mal estar advindo desta consciência faz com que

alguns teóricos proponham o fim da história ou a impossibilidade de

apreensão de qualquer princípio geral nas sociedades, ou seja, um

novo agnosticismo. Contra isto, Giddens alerta:

Mas isto não implica que tudo é caos ou que um número infinito

de “histórias” puramente idiossincráticas pode ser escrito”. (Giddens

15)

Assim é no conto de Guimarães Rosa. As estórias são três e

13

suas origens podem ser determinadas: a primeira, é a estória oficial

imposta por uma instância superior, a segunda criada pelo próprio

grupo de atores e a terceira criada por um grupo marginal.

Papéis e identidades

Esta pluralidade de histórias, sem que no entanto nenhuma

delas consiga uma hegemonia absoluta, caracteriza nossa época.

Estas histórias são escritas pelos mais diversos atores que exercem

diferentes graus de poder dentro do jogo social.

Estes atores sociais atualizam em seus discursos, uma visão de

mundo baseada em identidades fragmentadas e múltiplas. O processo

de construção destas identidades variam de grupo para grupo e está

vinculado ao exercício dos papéis sociais.

Papéis sociais “são definidos por normas estruturadas pelas

instituições e organizações da sociedade” enquanto que identidades

são originadas pelos próprios atores “e construídas por meio de

um processo de individuação”. (Castells, 23) Na modernidade, e

em todo o período histórico anterior, a força dos papéis sociais era

determinante na construção das identidades através da internalização

das instituições dominantes. Constituíam-se, assim, no que Castells

chama de identidade legitimadora: “introduzida pelas instituições

dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua

dominação em relação aos atores sociais”. (Castells, 24)

No entanto, com a crise das instituições modernas, a estas

identidades legitimadoras, começam a se opor, de maneira cada vez

mais organizada, as identidades de resistência: “criada por atores

que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou

estigmatizadas pela lógica da dominação” (Castells, 24)

Os atores de Rosa buscam assumir a identidade do papel que

exercem: “Alvitrou-se senha de nos tratarmos só pelos nomes em

drama: Mesquita o ‘Filho Poeta’, Rutz o ‘Amigo’, Gil o ‘Homem que

1 Citações extraídas do

conto “Pirlimpsiquice”

em cor de rosa.

14

sabia o segredo’ (...)”1. Este assumir de papéis leva a uma consciência

da obrigação de se seguir as regras daqueles que impuseram os

papéis: “não fumar escondido, não conversar nas filas, esquivar o

mínimo pito, dar atenção nas aulas”. Mas este incorporar de papéis

não é igual para todos, um deles, Zé boné, reluta em incorporar seu

papel e, por isto é “proibido de abrir a boca em palco”. A oposição

aos papéis pré-estabelecidos parte não só de um membro interno do

grupo da peça, como também de um personagem externo, de nome

Gamboa, responsável pela invenção da terceira estória.

Resulta emblemático que, no momento da representação, seja

o próprio Zé Boné, seguindo em parte a terceira estória do Gamboa, o

responsável pelo início da performance. E este início incerto inaugura

e determina uma postura de independência / resistência em relação

à estória e aos papéis oficiais ao ponto de o próprio narrador, que

mesmo conhecendo “tintim de cor por tintim e salteado” a estória

oficial, entrar no jogo do improviso: “Eu mesmo não sabia o que ia

dizer, dizendo, e dito – tudo tão bem – sem sair do tom”

E algo maravilhoso ocorre; aqueles atores experimentam,

naquele instante, o verdadeiro sentido da identidade: “Cada um

de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo,

sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver?” Tornam-se sujeitos,

“protagonistas, outros atores, as figurantes figuras, mas personagens

personificantes” ou, na definição de Touraine:

“Chamo de sujeito o desejo de ser um indivíduo, de criar uma

história pessoal, de atribuir significado a todo o conjunto de experiências

da vida individual...” (citado por Castells, 26)

Neste sentido, se aceitamos o conto de Rosa como metáfora

do mundo contemporâneo, podemos ver nele também uma alegoria

que ilustra a hipótese que Castells desenvolve em seu livro2 e

segundo a qual “a constituição de sujeitos, no cerne do processo de

transformação social, toma um rumo diverso do conhecido durante

a modernidade (...) ou seja, (...) não são mais formados com base em 2 O Poder da Identidade:

2000. Ed. Paz e Terra

15

sociedades civis, que estão em processo de desintegração, mas sim

como um prolongamento da resistência comunal.” (Castells,1999 -

28)

Sem dúvida, não há como desperceber o forte tom de otimismo

que tinge a tese de Castells já que o eixo dos movimentos sociais

passa a recair, por primeira vez, sobre os não hegemônicos.

A criação coletiva

Os atores insurgentes do conto de Rosa dissolvem as fronteiras

que separam criadores e intérpretes. Todos são criadores de uma

obra cooperativa, colaboram na construção do sentido.

Um sentido plural, construído a partir de atores diversos, com

diferentes visões de mundo e formações culturais: este é o panorama

da cultura hoje, onde nenhuma criação pode exorar a condição de ser

fruto de uma única mente brilhante e solitária.

“Essa abertura e pluralidade é própria da época

moderna, em que as liberdades econômicas e políticas,

a maior difusão das técnicas artísticas, diz Becker,

permitem que muitas pessoas atuem, juntas ou separadas,

para produzir uma variedade de fenômenos de maneira

recorrente. A organização social liberal (...) deu ao mundo

artístico sua autonomia, está na base da maneira moderna

de fazer arte.” (Canclini, 39)

No entanto, e em certo sentido, esta divisão de tarefas na

elaboração de uma obra coletiva é anterior à época moderna e pode

ser encontrada desde os primórdios do teatro.

O que, a meu ver, diferencia a situação contemporânea,

ilustrada pelo conto de Rosa, é a ausência da coordenação, da

direção. Os atores atuam de maneira improvisada, “sem combinação”

e baseados em textos distintos. O diretor, dr. Perdigão, tenta sem

sucesso impor rumo ao espetáculo: “Dr. Perdigão se soprava alto, em

16

bafo, suas réplicas e deixas, destemperadas. Delas, só a pouca parte

se aproveitava.”

Da mesma forma, as instituições: museus, escolas, estado,

tentam continuar organizando, controlando e impondo as convenções

a uma sociedade cada vez mais longe deste tipo de controle. É o

afrouxamento do contrato social, as instituições supostamente

representam a sociedade; mas o que ocorre quando esta sociedade

é totalmente plural e onde as minorias absolutas já não aceitam /

acreditam serem representadas?

Na criação coletiva, a cooperação se dá não sem um forte

caráter competitivo. O sentido é gerado por um conjunto de sujeitos

que estão vinculados entre si por relações de afinidade e antagonismo

num contexto caracterizado pelos jogos de poder. Mas o exercício

deste poder, como podemos perceber não só no conto de Rosa como

no panorama da cultura contemporânea, não segue os desenlaces

comuns pois nem sempre aqueles que detêm o poder hegemônico

conseguem efetiva-lo no exercício da comunicação. “Viu como era

que a minha estória também era a de verdade?” diz Gamboa, aquele

que, de fora, sagra-se vitorioso.

A revolução em cena

Sem o saber, os atores do conto de Rosa protagonizam uma

revolução. Alteram a estrutura do fazer teatral baseado no autor,

texto, diretor, atores e repetição. O autor não é um mas vários, o

texto três, o diretor não dirige e os atores representam, em última

instância, a si mesmos.

A abertura desta estrutura teatral se faz notar desde a commedia

dell’arte baseada mais em improvisos do que no texto, passando por

Wilde e sua paródia da peça bem feita3, Brecht e o distanciamento do

espectador até as experiências dos anos 60 das criações coletivas e

do working in progress. Não é o caso de inserirmos a peça encenada 3 The importance of

being earnest

17

no conto de Rosa dentro da história do teatro mundial mas, por outro

lado, não podemos deixar de notar que se as rupturas fossem a regra

no teatro, o conto de Rosa jamais teria sido escrito.

Esta revolução, apesar do inusitado, conta com uma estratégia.

Vimos que os ensaios sofrem, desde o início, pressões por parte de

elementos estranhos ao grupo. Primeiro para terem acesso à estória

do drama, depois para fazer valer a sua versão da estória. Dentro

desta estratégia dois personagens exercem papel importante: Alfeu e

Zé Boné.

Alfeu é o responsável pelo vazamento da estória, aquele que

escutava os ensaios detrás das portas. Comparado a uma cobra,

“capaz de deslizar ligeiro por corredores e escadas” “não sorria:

sibilava”, Alfeu (note-se a proximidade com Alphen – inventor de liga

metálica que imita a prata) faz a ligação entre os que estão dentro

e os que estão fora rompendo com o hermetismo mas, ao contrário

de Hermes, o deus mensageiro atlético, Alfeu é o aleijado de “pernas

tresentortadas e moles, quase de não andar direito”

Zé boné, ao contrário, é o responsável pela infiltração da estória

externa dentro do espetáculo. Talvez o mais importante personagem

de todo o conto, Zé boné é inicialmente apresentado como “preenchido

beócio”, “estafermo”, que reproduzia, num sem sentido, as peripécias

do cinema mas que, ao final, supera a todos: “Zé boné, sendo o

melhor de todos? Ora, era. Ei. E. Fulge, forte, Zé Boné! – freme a

representação.”

Ambos os personagens, Zé boné e Alfeu, aparecem como

indivíduos altamente estigmatizados. São eles, no entanto, os

responsáveis pela permeabilização das informações.

No ambiente contemporâneo, a chamada hibridização cultural

baseia-se na existência de indivíduos capazes de apropriar-se dos

códigos culturais de campos diferentes do seu e transmiti-los e

readaptá-los em outros contextos. Esta prática talvez seja, hoje,

a de maior poder revolucionário já que promove a “subversão dos

18

conteúdos” sem, no entanto, afrontar abertamente o sistema.

A mescla do erudito, pop e vernacular

Poderíamos associar as três estórias que aparecem no conto

de Rosa com as três áreas nas quais se costuma dividir o panorama

cultural. O drama original da peça, representando o erudito; a nova

estória criada coletivamente como o pop e a terceira estória marginal

como o vernacular (melhor do que ‘popular’ já que este termo vincula-

se às manifestações folclóricas e deixa de fora outras manifestações

contemporâneas de minorias que não são nem eruditas nem pop)

Desde o início, o erudito é apresentado como o verdadeiro

e a relação com o texto requer solenidades e seriedades. O texto

coletivo, com base nas estórias de cinema e quadrinhos, é o preferido

porque criado a partir do repertório comum. O texto do Gamboa (do

português brasileiro: “local, no leito dos rios, onde se remansam as

águas, dando a impressão de lago sereno”4), largamente divulgado

na surdina, é o que aparece como opositor a ser combatido.

A quarta estória, a representada, não pertence exclusivamente

a nenhum destes campos mas se nutre de todos eles. Da mesma forma,

nas composições pós-modernas a indústria cultural alimenta-se do

erudito e do vernacular; o erudito torna-se espetáculo de massas, o

vernacular molda os gostos populares.

E a pergunta de Canclini é também a nossa:

“como se reestrutura esse conjunto de tradições

simbólicas, procedimentos formais e mecanismos de

distinção denominado arte culta quando interage com

as maiorias sob as regras daqueles que costumavam

ser os mais eficazes comunicadores: as indústrias

culturais”. (Canclini, 105)

Pergunta esta que pode e deve ser ampliada, uma vez que esta

4 Novo Dicionário

Aurélio da Língua

Portuguesa

19

interação, promove a reestruturação não só da cultura culta mas da

cultura de massa e da vernacular.

Parece, sob todos os aspectos, que os produtores de sentido, das

três áreas, “vivem no limite ou na intersecção de várias tendências,

artistas da ubiqüidade” (Canclini, 134) limite este que é dissolvido

não só no que diz respeito às áreas culturais mas também em relação

aos gêneros. A quarta estória não é um drama como a estória original,

tampouco é comédia, nem romance, nem aventura. Não tem gênero

e os tem todos. Esta mescla de gêneros aparece também como uma

característica peculiar da pós-modernidade.

O Eterno presente

A quarta estória é uma espécie de espetáculo da realidade (reality

show), um espetáculo do aqui e do agora. É um evento encerrado no

tempo presente, que não repete o passado, não foi ensaiado; nem se

repetirá no futuro: “não se podendo representar outra vez e nunca

mais”. Este é o eterno presente pós-moderno onde futuro e passado

se fundem, prisioneiros, numa constante atualização. Diferente das

épocas anteriores – o passado organizava o futuro nas sociedades

tradicionais pré-modernas; o futuro condicionava o presente nas

sociedades modernas5 – o presente prepondera hoje.

Este presente infinito, mais do que circular, configura-se como

um redemoinho, uma espiral que congrega elementos do passado,

presente e futuro sem rupturas e sem fim. A novidade não baseia-se

mais na cisão com o precedente, o incorpora e o resignifica. Nesta

poética do tempo presente, roleta alucinante, somos todos envolvidos,

as referências se tornam opacas e o racionalismo já é um acessório

supérfluo.

Como no conto de Rosa, os atores entram em um estado de

êxtase, de um automatismo quase delirante do qual não há como

sair: “E como terminar?” como sair “do fio, do rio, da roda, do

5 “A orientação para

o passado que é

característica da

tradição não difere

da perspectiva da

modernidade apenas

em ser voltada para

trás ao invés de para

frente” (Giddens, 107)

20

representar sem fim”? O narrador não busca a finalização tentando

dirigir o enredo a uma conclusão, mas põe fim na representação

utilizando-se da mesma lógica que deu início a ela: a acidental; “Dei

a cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí.”

Diz Baudrillard:

“Essa precipitação das coisas em direção a seu fim

desempenha um papel, no mínimo, tão importante quanto

a sensibilidade às condições iniciais. O pensamento faz

parte, sem dúvida, dos elementos caóticos, portanto, das

condições iniciais que, como tais, deixaram de ser causas”

(Baudrillard 2003: 101)

E a peça começa, é importante lembrar, com um “Viva a Virgem

e viva a Pátria!”, frase que coloca a religião e o estado como fontes

primárias do sentido mas que, pela própria anarquia da representação

termina por equivaler a um “Abaixo a Virgem e a Pátria”.

O pensamento desvincula-se das causas: “Ao precipitar as

coisas em direção a seu fim, ele se encontra sobretudo do lado dos

efeitos (enquanto o pensamento crítico está do lado das causas, está

sempre em busca das causas)” (Baudrillard 2003: 100)

O papel do leitor na determinação do sentido

Enquanto os atores estavam embebidos em um “jogo de

advinhas” no esforço de articular seus fragmentos de estórias

e arbítrios, o público, do outro lado, seguia também no empenho

de concatenar os discursos em uma lógica, buscando conferir

significados e estabelecer nexos.

O que começa como um “disparate” enche-se de coerência.

“Sei, de, mais tarde, me dizerem: que tudo tinha e tomava o forte,

belo sentido, esse drama do agora, desconhecido, estúrdio, de todos

21

o mais bonito, que nunca houve, ninguém escreveu”. Ninguém

escreveu a quarta estória e, se podemos chamá-la assim: estória, é

porque havia um público que assim a compreendeu.

Para este fato muitos teóricos têm se voltado dentre os quais

Umberto Eco cita:

“estética da recepção, a hermenêutica, as teorias

semióticas do leitor ideal ou modelo, o chamado reader

oriented criticism e a desconstrução (...) a assertiva

subjacente a cada uma dessas tendências é: o

funcionamento de um texto (mesmo não verbal) explica-se

levando em consideração, além ou em lugar do momento

gerativo, o papel desempenhado pelo destinatário na sua

compreensão, atualização, interpretação, bem como o

modo com que o próprio texto prevê essa participação”

(Eco, 1995: 2)

Neste sentido, torna-se necessário acrescentar a retórica a

esta lista já que, também segundo esta disciplina, o texto prevê o

destinatário, uma vez que baseia-se no conhecimento dos lugares da

opinião para a geração de seus argumentos.

Podemos adicionar também, à lista de Eco, as teorias da

percepção já que, como sabemos, a percepção não é uma atitude

desprovida de intencionalidades mas, ao contrário, comporta atitudes

e escolhas que de per si são significantes.

Esta abertura da obra à participação do leitor e a conseqüente

polissemia que daí advém é mais um reflexo da derrocada dos grandes

sistemas epistemológicos da modernidade, da mesma forma como “a

obra fechada e unívoca do artista medieval refletiu uma concepção do

cosmo como hierarquia de ordens claras e predeterminadas.” (Eco,

1969: 55)

Emissor e receptor (e aquela flecha unidirecional que víamos

entre eles) jazem já em cova profunda. O autor se rebela contra a

22

responsabilidade exclusiva de gerar sentido: “o senhor pense, o

senhor ache. O senhor ponha enredo” diz outro personagem de

Rosa6; e o leitor, por outro lado, levanta-se contra sua condição de

puro receptáculo.

Esta colaboração às vezes, como nos mostra Umberto Eco em

seu livro sobre os limites da interpretação, coloca autor e leitor em

campos opostos duma guerra onde cada lado reivindica para si o

direito ao sentido.

O condicionamento do espaço

Deste saco sem fundo, desta cartola de mágico, desta espécie

de lâmpada de Aladim em que transformei o conto de Rosa alguns

vapores ainda saem...

No palco, Zé Boné “desempenhava um importante papel, o

qual a gente não sabia qual. Mas, não se podia romper em riso.” No

entanto, páginas antes, quando o mesmo Zé Boné “varava os recreios

reproduzindo fitas de cinema (...) Dele, bem, se ria.” Na boa vontade

do público para com a peça, há um elemento peremptório: o fato de

estarem todos no espaço de um teatro. O espaço do teatro determina

as regras do jogo: aqueles que estão no palco encenam uma estória e

aqueles que estão na platéia tentam compreender o enredo e avaliar

a performance.

Hoje, o espaço é um elemento condicionante, determina os

sentidos. “o tempo e o espaço não são as dimensões sem conteúdo

que se tornaram com o desenvolvimento da modernidade, mas estão

contextualmente implicados na natureza das atividades vividas”

(Giddens, 107)

Mas como no caso do teatro, o espaço é menos polissêmico

que as mensagens nele inseridas. Funciona como uma espécie de

quadro imantado ao qual os fragmentos de texto se prendem. Ele

direciona a leitura, é “um lugar, um aqui, que receba e sustente 6 Riobaldo em Grande

Sertão Veredas

23

uma escritura: fragmentos que se reagrupam e procuram constituir

uma figura, um núcleo de significados.” (Paz, 1996:110)

O espaço é fortemente ideológico pois funciona como uma

moldura que determina a lógica do simbólico em seu interior. O

espaço ainda é moderno ainda

que seu conteúdo seja pós-moderno. O espaço determina não só o tipo

de relação entre o leitor e o texto, mas também os acidentes e mutações

a que estará sujeito um determinado enunciado. A incompletude da

obra se resolve não apenas nas soluções interpretativas do leitor,

mas na transformação de suas estruturas quer seja por este leitor ou

por fatores naturais/casuais proporcionados pelo espaço.

A intertextualidade

Falamos até agora na existência de quatro textos no conto

de Rosa: o original, o coletivo, o marginal e o improvisado. Não

obstante, basta escavarmos um pouco o conto para descobrirmos

que, por detrás de cada um destes textos encontram-se indefinidos

outros. Cada um destes textos é um palimpsesto (ou palimptexto?),

constroem-se segundo o que Eduardo Peñuela chama de perspectiva

em abismo (um texto nos remete a outro que, por sua vez remete a

outro, que remete a outro, etc.). Gregos e latinos nos acenam por detrás

do véu do drama original; Hollywood e suas estórias incorporam-se

nos “singulares-em-extraordinários episódios” do “trem de duelo” e

“estouro da bomba”; desconhecidas referências povoam a imaginação

de Gamboa e as enciclopédias particulares da vivência de cada ator

mobilizam o repentino improviso, de tal forma que, ao final, mais de

5 mil pessoas estavam naquele palco naquele dia...

Foi Bakhtin, segundo Kristeva quem introduziu na teoria

literária a idéia de que “todo texto se constrói como mosaico de citações,

todo texto é absorção e transformação de outro texto.” (Kristeva, 3)

assim, a criação coletiva que vimos anteriormente se estenderia não

24

só no eixo horizontal, mas também no vertical já que se relaciona a

contextos atuais e anteriores. Ao fazer isto, “Bakhtin situa o texto

na história e na sociedade, consideradas também como textos que o

escritor lê e nos quais se inserta reescrevendo-os.” (Kristeva, 2)

Muito próximo a isto se encontra, a meu ver, a retórica: prática

dialógica e intertextual que prevê os argumentos pertencentes ao

repositório da opinião pública, ao contexto e aos textos antagônicos

para poder construir sua contra-argumentação. Neste sentido,

aqueles que trabalham com o universo simbólico, nunca emitem

uma mensagem, mas sempre uma contra-mensagem, um contra-

texto.

O acidental

Finalmente, para completar nossa caixinha pós-moderna,

devemos chamar a atenção a um aspecto fundamental, sem o qual

a peça do conto de Rosa teria sido uma peça como outra qualquer:

o fortuito. Apesar das pressões dos ensaios e das concorrências dos

textos, no dia anterior à apresentação tudo estava como o planejado:

”Saía-nos o ensaio geral em brilho e pompa, todos na ponta da língua

seus papéis”. O que deflagra, desencadeia toda a sucessão de eventos

que culminará no resultado que conhecemos é justamente o acaso. A

informação de que o pai do protagonista está à beira da morte chega

minutos antes do início da apresentação, o defeito na cortina do

teatro interfere na organização da seqüência inicial, tirando de vez

dos trilhos o trem.

O acaso, como articulador de situações significantes, esteve

sob o foco dos surrealistas7 e hoje volta à baila pelas mãos dos

teóricos da pós-modernidade. Diz Lyotard da paisagem urbana: ”A

rua (européia, nova-iorquina, japonesa) é uma representação da vida

cotidiana pública, o palco dos encontros. (...) O que se encontra na

rua é o inesperado, “o que passa”, o movimento. (...) todos colocados

7 Ferdinand Alquié define assim o a c a s o - o b j e t i v o : Trata-se sempre, de um encontro que, objetivamente, ocorre ao acaso e que, de fato, parece não ter sido um acaso, isto é, parece significar alguma coisa. (trecho de fragmento por citado por Peñuela: 1986)

25

sob o mesmo gabarito, submetidos à mesma regra do sem-regra, do

acontecimento.” (Lyotard:1996)

A casualidade é alçada à categoria de enunciante e seu discurso

baseia-se em uma lógica oculta. Um discurso sem autor e sem

intencionalidade mas que, em contado com o interpretador-criativo

preenche-se de sentido poético. Este fato, que podemos denominar de

contextualidade, consiste no fenômeno segundo o qual o significado

de um signo é dado, não por relações intrínsecas que ele possa ter

com um ou mais referentes, mas por sobredeterminação exteriores

ao enunciado.

Este panorama que acabamos de delinear, e para o qual o

conto Pirlimpsiquice de Guimarães Rosa serve incrivelmente bem de

ilustração, nos ajuda a compreender que: 1) as grandes teorias já não

explicam a complexidade atual; 2) as identidades são fragmentárias

e não mais vinculadas a papéis sociais; 3) nunca estamos sozinhos

na criação do que quer que seja; 4) a revolução é silenciosa e se

infiltra pelas brechas do sistema; 5) os campos autônomos já não

estão tão independentes e a interdisciplinaridade é um imperativo;

6) o presente não rompe com o passado: incorpora-o; 7) o leitor

reivindica e conquista direitos sobre o texto; 8) o espaço é significante

e contamina qualquer texto que nele se localize; 9) um texto sempre

se relaciona com outros do presente e do passado e 10) o acaso é tão

criador quanto os autores e os leitores.

Propor uma peça de comunicação visual para tal ambiente

envolve complexidades antes inimagináveis. O projeto, o ensaio, as

referências, a pesquisa sobre os lugares da opinião e os argumentos são

pontos de partida, a interpretação e a percepção, pontos de chegada.

No meio está todo o fenômeno indeterminado e indeterminante que

pode alterar radicalmente as idéias originais. Analisar os limites e os

desafios desta indeterminação na imagem contemporânea e propor

como uma composição visual pode e deve prever o leitor, os contextos

26

e seus acidentes: eis o escopo deste trabalho.

“O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a

gente é no meio da travessia.” (Guimarães Rosa) O criador de imagens

é responsável pela elaboração de mensagens-travessia, pois nunca

o que sai é igual ao que chega e é necessário que compreenda isto

para que possa construir uma canoa capaz de navegar em mares

turbulentos e em gamboas, capaz de avançar mas também de ficar à

deriva, capaz de cruzar de uma margem à outra sem afundar. Navegar

em um mar de signos sabendo que muitos deles se incorporarão ao

casco da canoa mudando sua forma e seu destino, eis o desafio.

Desafio este que não passou despercebido por alguns dos

estudiosos da condição contemporânea; como Baudrillard e Lyotard.

Este último, em suas Moralidades Pós-Modernas, presta sua

solidariedade aos artistas gráficos. Diz ele:

“Ele ‘mira’ seu objeto, mas o alvo mexe-se o tempo todo (...)

aposta em uma comunicação incerta, imprevisível, talvez impossível”.

(Lyotard: 1996)

27

“De certa maneira, pode-se dizer que, nos últimos 100 anos,

temos vivido numa repetição”. Esta impressão de Roland Barthes,

deve-se à incrível proliferação dos neoismos nas artes: neo-dada, neo-

construtivismo, neo-expressionismo, neo-pop, neo-conceitualismo,

,neo-minimalismo, etc. numa situação que nos remete a um conto de

Adolfo Bioy Casares, intitulado “El sueño de los heroes”. Neste texto, o

autor argentino narra a tentativa do personagem Gauna de reconstruir

as circunstâncias de fatos que se apagaram de sua memória. Para

isto, ele convoca os personagens envolvidos nos episódios originais e

tenta reviver as situações o mais identicamente possível terminando

por perceber que a repetição é impossível. O interessante do conto é

que, através desta tentativa de repetição, são desencadeados novos

acontecimentos que terminam por mudar o destino do personagem.

A mesma idéia está presente no pensamento do historiador de

arte francês, Focillon segundo o qual só se “chega ao novo através

de uma repetição diferente, através da variação de uma ordem

formal à qual é inevitável fazer referência” (Perniola: 1998) idéia que

coincide também com o pensamento de Kubler que “vê a essência da

experiência estética não na originalidade que cria a partir do nada,

mas na pequena variação (...). Daí decorre ser o comportamento

humano em todas as suas manifestações essencialmente ritual,

inteiramente plasmado na lógica da repetição diferente.(...) na

realidade, para Kubler, as grandes mudanças são mais aparentes

que reais: perante uma análise cuidadosa, elas revelam pequenas

variantes de repetição.” (Perniola: 1998)

Neste sentido, o que o pós-modernismo faz é tornar mais

evidente um mecanismo que sempre esteve presente.

Serge Gruzinsky, ao estudar o fenômeno cultural na Nova Espanha

O eterno retorno pós-moderno

28

no México, afirma que boa parte das características da cultura

contemporânea foram antecipados, de alguma maneira, no período

barroco e pré-barroco.

Desta forma, a mesma impressão que Barthes teve sobre este

século, pode ser estendida também para séculos anteriores e, em

particular, em relação ao período barroco no mundo.

Os estudos de Wolfflin sobre o barroco confirmam ainda mais

esta perspectiva pois, se substituímos a palavra barroco por pós-

modernismo suas frases continuam a poder ser lidas com o mesmo

grau de pertinência. Wolfflin afirma ainda que o barroco “é animado

pela pesquisa do excepcional e do insólito” o que nos leva a identificar

um terceiro movimento com profundas afinidades tanto com o barroco

quanto com o pós-modernismo: o surrealismo

“O ______________ procura reproduzir, através de meios artísticos, o

efeito do sublime, ele tende para o infinito, o informe, o inexaurível.

A experiência estética _______________ é uma excitação que subverte

a identidade singular e lança quem a experimenta num abismo, onde

toda a vida particular é suprimida”. Wolfflin

“A isto se acrescenta o recurso ao indeterminado, ao

inapreensível, ao ilimitado, que se manifesta formalmente no cobrir,

no ocultar, no esconder algumas partes essenciais do que se pretende

pôr em cena: aquilo que se encontra sob a superfície das formas, ou

até mesmo aquilo que se encontra fora delas, que excita a fantasia

e a introduz em mundos maravilhosos, imensos, imperscrutáveis.”

(Perniola:1998)

Barroco, surrealismo, pós-modernismo, três árias de uma

única ópera. Três períodos da história da humanidade onde a arte

esteve e está mais comprometida com os conteúdos irracionais.

E em seus momentos, cada um destes movimentos, opunham-se

a outros com características mais ou menos opostas. Wolfflin, ao

BarrocoSurrealismo

Pós-Modernismo

29

analisar a relação entre o barroco e o classicismo elaborou um lista

de conceitos antitéticos: “o modo de ver linear é caracterizado pela

sucessão das superfícies, o modo de ver pictórico pela profundidade

e pela sobreposição do espaço: o primeiro prefere a forma fechada e

a clareza absoluta, o segundo a forma aberta e a clareza relativa.”

(Perniola:1998) Poder-se-ia estar falando de pós-modernismo, ao

invés de barroco e sua oposição em relação ao modernismo.

Também McLuhan trabalha com uma oposição entre dois

modos fundamentais de percepção. De um lado “um homogêneo,

simples, linear, visual, hierárquico, explosivo(...), o outro pluricêntrico,

participativo, táctil, instantâneo e implosivo. A primeira médium

quente: “leva um sentido único, à vista, até uma alta definição que

limita enormemente a capacidade de participação do fruidor”; o

médium frio: “com baixa definição, solicita a intervenção ativa do

fruidor” (Perniola:1998)

Assim, a repetição parece ser uma constante na história da

percepção humana e não se configura como uma característica única

da pós-modernidade. Esta verdade está mais explicita nos dias de

hoje, onde o eterno presente contemporâneo, une as duas pontas, do

presente e do futuro, num deja vú incompleto e fértil, como no conto

de Bioy Casares.

30

A percepção na origem do sentido

O contato com a realidade significante se dá, no primeiro

momento, pelas vias da percepção. “Um dado perceptível isolado é

inconcebível” nos diz Merleau Ponty. Assim, a percepção é o contato

com relações de dados perceptíveis, com uma estrutura.

Uma obra ou uma paisagem urbana “é percebida pelo receptor

como uma continuidade significativa – como um contexto. Cada novo

signo parcial de que o receptor se dá conta durante o processo da

percepção (isto é, cada componente e cada parte da obra, à medida

em que elas vão entrando no processo criador de significação do

contexto) não só se junta aos que já tinham penetrado na consciência

do receptor mas também transforma em maior ou menor medida, o

sentido de tudo o que nela o precede. E vice-versa, aquilo que veio

antes influencia a significação de cada novo signo parcial do que o

receptor toma conhecimento.” Mukarovsky

O problema da percepção, neste sentido, é semelhante ao

problema da montagem no cinema onde os elementos isolados não

significam nada e o sentido só nasce a partir de uma combinação de

fragmentos dispostos no tempo. A percepção cinematográfica dispõe-

se em uma linha temporal, a percepção da cidade em uma temporal-

espacial. Caminhar pela cidade, como o flaneur de Benjamin, é

assistir/criar uma narrativa sem começo nem fim, e com uma lógica

oculta. A mesma lógica dos processos oníricos, o que faz com que a

análise destas narrativas seja um meio poderoso de investigação do

imaginário coletivo.”

Os elementos no mundo estão em contraste simultâneo, isto é,

exercem influência transformadora uns sobre os outros. Um exemplo

bastante conhecido deste fenômeno é a ilusão de Muller-Lyer.

31

“A ciência exige que duas linhas percebidas, assim como duas

linhas reais, sejam iguais ou desiguais, (...) sem ver que o próprio do

percebido é admitir a ambigüidade, o ‘movido’, é deixar-se modelar

por seu contexto. Na ilusão de Muller-Lyer, uma das linhas deixa

de ser igual à outra sem tornar-se ‘desigual’: ela se torna ‘outra’, o

que significa dizer que uma linha objetiva isolada e a mesma linha

considerada em uma figura deixam de ser, para a percepção, ‘a

mesma’.” Merleau-Ponty

De maneira semelhante, a ilusão de Zollner, reafirma esta

irreversibilidade de influência a que os elementos no mundo estão

sujeitos.

Sobre ela, Merleau Ponty diz: “seria preciso reconhecer que,

recebendo linhas auxiliares, as linhas principais deixaram de ser

paralelas, que elas perderam aquele sentido para adquirir um outro,

que as linhas auxiliares importam na figura uma significação nova

que doravante ali vagueia e dali não pode mais ser destacada.”

Mas não só os elementos próximos alteram a percepção que temos

dos objetos, a percepção é também uma questão de juízo - “a menor

32

ilusão, já que dá ao objeto propriedades que ele não tem em minha

retina, basta para estabelecer que a percepção é um juízo.” Merleau-

Ponty. Para a percepção concorre toda a formação cultural do sujeito

e seus estados de espírito que são variáveis que se alteram ao longo

da história. Portanto, o estudo da maneira de perceber de uma época

pode ser uma chave para a compreensão dos fenômenos sociais desta

época.

O ato de ver constitui-se de duas partes distintas mas

indissociáveis: o estímulo físico-biológico concernente à retina ocular

e o olhar, que envolve um ato de escolha e interpretação ou, nas

palavras de Arnheim

Longe de ser um registro mecânico de elementos sensórios, a

visão prova ser uma apreensão verdadeiramente criadora da realidade

– imaginativa, inventiva, perspicaz e bela (...) Toda percepção é

também pensamento, todo raciocínio é também intuição, toda a

observação é também invenção. (Arnheim: 1986)

Haveria, desta maneira, um olhar pós-moderno? Se sim, quais

seriam as suas características?

Os estímulos visuais, na paisagem urbana, aumentaram de

maneira vertiginosa. Ao mesmo tempo, a velocidade de vida na cidade

é incomparável à velocidade de vida dos séculos anteriores, o que

altera também a percepção do tempo. Isto significa dizer que, por um

lado, há mais coisas para ver e, por outro, menos tempo.

O resultado deste estado de coisas é uma percepção fragmentada

e fugaz para a qual o vídeo clipe talvez seja o exemplo mais acertado.

O indivíduo não pode mais deter a sua atenção por vários segundos

em um único estimulo. Neste sentido, a percepção pós-moderna é

sempre incompleta.

A incompletude é uma característica da percepção humana em

qualquer período da história, mas há uma variação na proporção e

na liberdade das livres associações que o receptor pode fazer a partir

dos estímulos dados.

33

Na pós-modernidade, esta liberdade atingiu os maiores níveis

já experimentados pelo Homem e sua participação na elaboração das

mensagens recebidas altera profundamente as teorias da comunicação

que preconizavam uma unidirecionalidade entre emissor e receptor.

Desta forma, podemos afirmar que hoje vivemos em um império

da subjetividade que traz interessantes desafios aos profissionais da

comunicação mas, principalmente, liberdades e responsabilidades

nunca antes imaginadas ao cidadão comum.

34

o discurso da imagem

O discurso da imagem

Qualquer representação visual é sempre uma opinião, devemos

então submeter a imagem a uma análise retórica, entendida como “a

faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz

de gerar a persuasão” (Aristóteles, 1985) para perceber como os

diferentes agentes fazem uso da linguagem para atuar num campo

social onde existem diversos grupos com diferentes graus de poder.

Os lugares discursivos

Os lugares são pontos de partida para as argumentações

a partir dos arquivos das opiniões e acordos tácitos e diferem de

categoria porque não constituem uma teoria ou um modelo científico

mas se vinculam a cada situação particular.

Cada discurso deve buscar conhecer seus lugares

argumentativos, isto é, o conjunto de posições, opiniões e ideologias

que estão em jogo e são considerados válidos para determinada

situação comunicativa.

Tapia afirma que lugares “dão forma aos problemas mas não

são fixos.(...) São contextos determinados que servem para orientar o

pensamento sobre o modo como uma situação pode ser abordada”1.

O lugar-comum e o lugar da invenção

Aristóteles faz a distinção entre lugar-comum que são as

premissas largamente aceitas pelo público e o lugar da invenção que

são os argumentos que, partindo das premissas aceites, propõem

novas assertivas. Aristóteles sustenta, então, que a invenção parte

35

dos lugares-comuns da opinião que são o repositório do pensamento

retórico.

Uma imagem lugar-comum, em nossa opinião é aquela que,

partindo das premissas largamente aceitas não propõe, através

de sua argumentação, nenhum novo valor, juízo, ação, idéias ou

significados. São, portanto, imagens hipercodificadas e, de certa

maneira, tautológicas porque sua conclusão tem grande semelhança

com as premissas das quais partiu.

Ora, se a imagem lugar-comum tem o mesmo ponto de partida

e de chegada, ela está, então, profundamente comprometida com

o status quo. A imagem lugar-comum é uma imagem reacionária

porque, ao não propor novos significados, procura manter o mesmo

corolário de argumentos e, conseqüentemente, a mesma ordem social

numa espécie de circularidade totalitária pois, segundo Baudrillard

“a tautologia é sempre a ideologia racionalizada de um sistema de

poder” (Baudrillard, 1995: 60)

Mulheres em biquini para cervejas, mulheres com a mão no

cabelo, casais em posições displicentes para lojas de roupas, pais com

filhos sorridentes, grupos de jovens caracterizados como profissionais

para anúncio de universidade são somente alguns exemplos de

discursos redundantes e aborrecidos que ofendem aqueles com um

mínimo de exigência poética.

Por outro lado, a imagem inventiva parte das premissas

comuns para, a partir daí, re-elaborar novos sentidos. Estas imagens

propõem novas articulações e inter-relações de significados e têm,

como objetivo retórico, alterar a maneira corrente de se pensar

determinado assunto.

Por propor sempre uma mudança, a imagem inventiva está

comprometida com a revolução, ela propõe a “subversão do mundo tanto

em sua materialidade quanto em sua subjetividade.” (Quijano, 1993)

Desvios e Graus zeros local e geral

O fundamento de toda retórica, enquanto ciência que analisa

36

as formas da persuasão, é a de estabelecer as normas em relação

às quais haverá a ruptura ou desvio -que constituem as figuras de

linguagem.

As semióticas variam de acordo com o grau de codificação e vão

desde as hipercodificadas, isto é, aquelas onde os elementos do plano

de expressão estão unidos aos do plano do conteúdo em uma relação

que tende à biunivocidade – para cada significante corresponde um,

e somente um, significado – até as semióticas pouco codificadas nas

quais, ao contrário da anterior, “os laços que unem os conjuntos do

plano da expressão e do conteúdo são instáveis, difícil de estabelecer

posto que as relações entre expressão e conteúdo estão nelas menos

submetidas a uma legalidade e, por tanto, são plurívocas, o valor dos

signos que os une varia com os contextos” (grupo μ, 1993)

Para que possamos detectar os desvios, devemos antes

conhecer a regra. Nas semióticas hipercodificadas é relativamente

fácil identificar estas regras e, conseqüentemente suas rupturas;

por outro lado, nos sistemas hipocodificados não há código prévio

e o conhecimento das regras dos sistemas torna-se muito mais

complicado.

O grupo μ propõe, para esta questão, a distinção entre dois tipos

de graus zero: grau zero geral e grau zero local. Segundo estes autores,

o grau zero geral é constituído pelo valor que os signos possuem no

código, independente de sua atualização em mensagens. O grau zero

local, ao contrário, por não estar indexado por um código depende

da “isotopia do enunciado” (“as regras lógicas de encadeamento de

seqüências e a homogeneidade de um nível dado dos significados”)

ou do contexto onde aparece este enunciado2.

O grau zero local pela isotopia do enunciado é, pois, “um

elemento esperado em determinado lugar do enunciado, em virtude

de uma regularidade interna deste enunciado. O grau zero local pelo

contexto pragmático é proveniente de uma “isotopia projetada” isto

é “dependem dos usos que faz uma cultura com os grandes campos

2 O grupo μ distingue

dois tipos de grau

zero local, aquele que

depende da isotopia

do enunciado e

aquele de depende do

contexto pragmático.

Ver grupo μ 1993:

237-242

37

que abarca” (grupo μ. 1993: 241).

Isto significa que os contextos também criam regularidades

com base nas quais podemos identificar os desvios. No mundo da

Arte elas abundam; são os artistas que, como dizia Picasso, criam

uma fôrma e seguem fazendo sempre o mesmo bolo. Daí o mérito

deste artista que, sempre que se aproximava de criar um grau zero

local com a regularidade de sua produção, promovia rupturas que

constituíram um dos conjuntos de obras mais variados da história da

Arte.

Veremos mais adiante algumas regularidades que se manifestam

na paisagem urbana contemporânea e perceberemos também

que, mesmo nas semióticas hipercodificadas, o papel do contexto

é determinante no sentido que os signos adquirem a ponto de nos

questionarmos se, em última instância, existe realmente o grau zero

geral ou se somente há distintos níveis de graus zeros locais.

O discurso da estilização

A estilização consiste em um processo de representação onde

o ícone perde seus detalhes realistas para ser reduzido a elementos

essenciais. A estilização tem, como principal função, a de generalizar

uma representação. O ícone de um pássaro ou um peixe deixa de

representar um indivíduo específico para representar todo um

conjunto de pássaros ou peixes.

O grupo μ afirma que “toda estilização é uma operação retórica

sobre a imagem” , eles a classificam como uma transformação de

supressão/adjunção. A supressão é claramente visível em qualquer

ícone estilizado, a adjunção, no entanto, provém de um processo mais

sutil que eles chamam de modelo de universo proveniente daquele

que elabora a estilização:

“resulta banal afirmar que um mesmo objeto pode

ser estilizado de várias maneiras. Uma flor ou uma

38

folha podem ser objeto de uma estilização romântica,

fantástica, moder style, pueril, mecânica, psicodélica,

etc. Sob cada tipo de estilização há um modelo do

universo, caracterizado por elementos precisos, que

um método adequado de seleção / rechaço pode impor

a todo objeto.”

Se os estilos variam é porque a concepção filosófica

do que é essencial em cada cultura também varia. Daí as

alterações de perspectiva, proporção, formas e cores que dão

origem a estilos tão distintos quanto os são o dos povos nativos

do Brasil e os da Ìndia ou Japão.

Nestas marcas, a forma de estilização cria figuras que

equilibram a figura e o fundo e produzem um resultado de

um bloco compacto. Este tipo de representação remonta às

culturas antigas da meso-américa.

Nesta outra, a relação figura-fundo cria uma mensagem

interessante. Como figura vemos a representação de um puma mas

como fundo vemos a representação de um cervo que é, justamente,

a presa do puma. Esta imagem encerra assim uma outra visão da

competição onde a equipe dos Puma e seu opositor são vistos como

fazendo parte de uma mesma entidade.

39

O discurso do suporte

A questão do suporte remete, necessariamente, à textura, aos

materiais e à enunciação.

Conforme sua aparição, o suporte deixa mais ou menos aparente

o processo de enunciação da imagem. A tela super preparada para a

pintura homogeneíza a textura do fundo e estabelece uma distinção

clara entre a imagem e o mundo circundante. Por outro lado, o grafiti

realizado sobre um muro da maneira como ele se encontra, deixa

no enunciado as marcas do processo de criação, fazendo com que

o suporte, com sua textura e material, participe de forma ativa no

processo de significação da imagem.

A utilização de suportes que rompem com os padrões largamente

utilizados pode, enquanto recurso retórico, ser visto como distintivo

do pós-modernismo. K. Frampton postula igualmente que os valores

táteis – eventualmente manifestados por sinestesia – constituem uma

reação contra o primado do puramente visual no tecnologismo do

movimento moderno” (in Foster, 1983)

Schapiro analisa o suporte (ou o veículo) daquilo que denomina

“imagens-signos, ou seja, seu material de sustentação, e mostra como tal

material, mesmo sendo aparentemente estranho ao projeto conteudístico

da obra, acaba mesmo por determina-lo. (in “on some problems in the

semiotics of visual arts: field and vehicle in image-signs)

40

O discurso da Identidade

Durante muito tempo e ainda hoje, exige-se a apresentação do

esquema construtivo de uma marca sobre uma malha geométrica.

Poderíamos dizer que esta malha é, segundo o grupo μ, uma imposição

geométrica.

O grupo μ dá, como exemplo desta imposição geométrica, o

jogo do tangram3 e os traçados dos tapetes persas. O resultado, em

qualquer um dos casos é um conjunto de composições visuais que

mantém entre si uma relação de identidade ou, na definição do grupo

μ, um estilo.

Não é à toa, portanto, que encontramos na paisagem

contemporânea uma série de signos de identidade que parecem ter

sido criados por uma mesma e única pessoa ou, nas palavras de

Frutiger, “devemos admitir que em conjunto se aprecia uma certa

reiteração nos tipos de signos empregados, certa pobreza inovadora,

falta de originalidade e profundidade conceitual”.

Temos estabelecido, portanto, um grau zero local resultante

de uma imposição geométrica que, por sua vez é resultante de um

modelo de universo ou, nas palavras de Tapia:

“a busca de homogeneidade e pureza que se projeta

ao conjunto das corporações, tem seus fundamentos

no pensamento positivista, que exalta a racionalização

quase-científica como a única guia válida para a ação do

homem, em um modelo que afirma a organização técnica

e industrial da sociedade moderna”

Estas análises sobre a dominância deste tipo de representação

gráfica em nossa sociedade jogam luz nova sobre uma questão

que sempre foi tida como resultado de estudos científicos sobre a

percepção humana e como fundamentos da linguagem visual ou,

segundo Tapia, “podemos dizer que o discurso geométrico representa

3 Jogo que consiste

em representar

seres ou objetos

utilizando para isto

sete peças diferentes

(cinco triângulos,

um trapézio e um

quadrado) utilizando

para isto as 7 peças

simultaneamente e

sem encavalar uma

na outra.

41

não uma adequação à percepção, mas uma metáfora da ordem

social” e, neste sentido, torna-se possível entender os paradigmas

largamente difundidos pela Bauhaus e pela escola suíça dentro de

uma perspectiva histórica e filosófica. O problema dos resultados

visuais derivados das teorias propostas por estas escolas não reside

na solução gráfica em si mas na tentativa de fixar o lugar a partir do

qual o discurso da identidade deve partir.

A rigidez e ambição dos programas de criação das imagens de

identidade não é uma novidade do período moderno. Enric Satué nos

mostra como, desde os séculos IX ao XI a Igreja e o Estado protagonizam

a criação de um dos maiores sistemas de identidade visual “coincidindo,

significativamente, com a etapa mais rigorosamente obscurantista e

feudal de toda a idade média” e nos mostra como este fato irá se

repetir em “outras tantas situações totalitárias” da história.

Em oposição a isto, vemos surgir, tanto no âmbito empresarial

quanto governamental, marcas de identidade que rompem com a malha

geométrica e com a simetria características das marcas modernas, e

que refletem um movimento que é mais amplo na sociedade pós-

moderna de fragmentação e diversificação das identidades.

42

Funções da Imagem

Persuasiva, identitária, estética e sinalética são as principais funções

das imagens que encontramos na paisagem urbana.

A persuasiva inclui todas as imagens publicitárias que tem como

objetivo principal a indução a uma ação ou crença; a identitária

engloba todas aqueles ícones e símbolos utilizados para identificar

instituições e conceitos; a estética é a que provoca reflexões sobre o

estado das coisas e a sinalética é a que busca dirigir o comportamento

social.

Estas categorias poderiam ser incluídas, por sua vez, dentro das

três categorias de ação de Habermas. Segundo ele, as ações podem

ser divididas em “agir teleológico”: orientado para a realização de

um objetivo; “o agir regulado por normas que têm a pretensão de ser

justas” e o “agir dramatúrgico” que é a “estilização das experiências

vividas em função da situação espetacular.”

Na primeira estaria a publicidade, na segunda a sinalização

e na terceira a estética e identitária. Esta divisão, no entanto, não

é excludente e uma imagem pode conter, ao mesmo tempo, as três

funções:

“O artista, apesar de adaptar a estrutura da obra a uma

determinada função, não elimina de antemão nenhuma outra

função. (...) Por isso, só julgando as funções da arte do ponto de

vista do indivíduo é que a função da obra aparece como um conjunto

de energias vivas em permanente tensão e em permanente conflito

recíproco. Só então poderemos compreender plenamente que as

funções da obra não são compartimentos estanques, isolados uns

dos outros, mas sim movimento, que continuamente transforma o

aspecto da obra de receptor em receptor, de nação em nação, de

época em época; isto mostrar-se-á com particular evidência quando

a obra é observada, não com os olhos do autor, mas com os dos seus

43

receptores.” Mukarovsky

Os vários deslocamentos que a imagem sofre, afeta a estrutura

hierárquica das funções de uma imagem e, “na maioria das vezes

essa transformação das funções tem o aspecto de uma mudança

de função dominante dentro do sistema das funções possíveis; a

mudança de função dominante manifestar-se-á necessariamente,

também na transformação do sentido global da obra”. Mukarovsky

Estes outdoors da campanha publicitária da Ellus em São

Paulo, apresentam um exemplo interessante de mudança de função

da imagem.

Os criadores da campanha espalharam cartazes pretos contendo

somente a marca e o nome do produto. A partir daí, foram convidados

diversos grafiteiros da cidade para realizar intervenções sobre eles.

A ousadia desta campanha está na ausência de controle sobre a

mensagem final pois não foi apresentado nenhum tipo de restrição

aos artistas que, em alguns casos chegaram a mascarar parte do

44

nome do produto.

Nesta campanha houve um deslocamento da função da imagem

que deixou de ser somente persuasiva e adquiriu uma predominância

da função estética.

Este deslocamento, por um lado, provocou uma ruptura na

lógica publicitária caracterizada por um alto controle da mensagem

em todos os seus níveis de significação e, por outro lado, provocou

uma ruptura também na prática do grafite que, convidado, afastou-

se de sua natureza essencialmente invasora.

A hibridação das funções ocorrida nestes outdoors transformam

estas imagens em imagens dialéticas e criam uma tênue fronteira que

abriga significados que jamais seriam encontrados nas mensagens

publicitárias tradicionais.

Fenômeno semelhante ocorre também neste outro caso, onde

o suporte de uma imagem de sinalização é ocupado por uma colagem

de imagens de diversos autores que dialogam entre si e com o suporte

que as recebe.

Aqui, a mensagem unívoca, unidirecional e estatal é substituída

por uma polifonia anônima. Esta placa pode ser vista como uma

metáfora do novo papel do leitor contemporâneo, que não aceita mais

ser apenas um receptor das mensagens mas reivindica para si um

papel de interlocutor num diálogo necessário.

45

Os cartazes eleitorais argentinos, apresentados nestas imagens

seguem uma composição redundante: fundo azul, imagem da

candidata à direita que aparecem com o mesmo olhar, maquiagem

e até a divisão do cabelo. O coletivo de arte argentino B.s.A.s. ao

colar a imagem de potes de cosméticos “elección” expõe o clichê

que se esconde por trás tanto das campanhas eleitorais quanto das

publicitárias e faz uma vinculação entre o consumo e a política como

pertencentes a uma mesma lógica. Também se pode perceber um

possível machismo ao se comparar o papel da mulher na política ao

cosmético.

Este tipo de interferência nas imagens unidirecionais são cada

vez mais comuns na paisagem urbana e demonstram uma nova

46

maneira de relacionamento com a imagem que é eminentemente

diferente daquela de todos os períodos históricos anteriores.

Este tipo de relação, alarga ainda mais o conceito de “obra

aberta” que “tende, como nos diz Pousseur, a promover no interprete

‘atos de liberdade consciente’, pô-lo como centro ativo de uma rede

de relações inesgotáveis, entre as quais ele instaura sua própria

forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreva

os modos definitivos de organização da obra fruída” (Eco:1968); é

uma obra escancarada já que esta liberdade do receptor ultrapassa

os limites do enunciado e espraia-se também pela enunciação.

Nas imagens que vimos, há uma transformação na estrutura

das funções e a estética adquire papel preponderante. A imagem

comum se transforma em arte e a arte, para Mukarovsky “não se

orienta para nenhum objetivo unívoco: do ponto de vista funcional a

sua tarefa é libertar a capacidade humana de descoberta da influência

esquematizante e limitativa prática da vida, levar o homem a tomar

consciência, em todas as ocasiões, do fato de a quantidade de atitudes

ativas que pode adotar perante a realidade ser tão inesgotável como o

caráter multifacetado da realidade, encoberto pela rígida hierarquia

das funções de orientação única”.

47

A mobilidade do Signo

O signo é uma estrutura móvel. Esta estrutura está composta

de componentes que se revezam na construção do sentido deste signo.

Estes componentes são todos aqueles elementos capazes de serem

portadores de significados tais como a cor, a forma, o tamanho, a

textura, o tema, a forma de representação, etc.

Segundo Mukarovsky, só pode ser considerado estrutura “aquele

conjunto de componentes cuja unidade se manifesta como conjunto

de contradições dialéticas. O que perdura é apenas a identidade

da estrutura: a sua composição interna, a correlação das suas

componentes, modifica-se incessantemente.”

Este grau de mobilidade, no entanto, varia de um signo para

outro. Podemos afirmar que há signos cuja estrutura é extremamente

móvel, outros de uma mobilidade tênue, enferrujada, e outros ainda

de mobilidade quase nula, engessada. Analisar os fenômenos, sociais

por excelência, que contribuem para este índice de mobilidade de um

signo constitui, aqui, nosso principal desafio.

O que chamamos aqui de índice de mobilidade de um signo,

aproxima-se do conceito de grau zero, mas não coincide com ele. O

grau zero diz respeito à relação unívoca entre um significante e apenas

um significado. Assim, um signo em grau zero teria um baixo índice

de mobilidade enquanto que o inverso também seria verdadeiro: um

signo “fraco” teria um alto índice de mobilidade.

Porém, a não coincidência entre os dois conceitos torna-se

evidente quando promovemos o deslocamento deste signo e sua

conseqüente mudança de contexto.

Diversos exemplos tornam evidente que um signo que, num

determinado contexto cultural, estava caracterizado pelo grau zero,

em outro contexto torna-se um signo polissêmico. É o caso, por

exemplo, de elementos gráficos de sinalização que são percebidos

48

como unívocos no contexto cultural de que são originários, mas

que, quando transportados para outros contextos abrem-se numa

pluralidade de sentidos.

(um estranho personagem sonolento? Um par de seios? Para aqueles

que não compartilham do código de trânsito australiano, segundo o

qual esta placa indica obrigatoriedade de faróis baixos, a imaginação

sinaliza os caminhos da interpretação)

¿Alguien sabe que diablos significa esto????)

49

Por outro lado, há signos que resistem aos deslocamentos e

encontram-se como que mais apegados ao seu grau zero. São estes,

signos de baixo índice de mobilidade e dentre os quais o exemplo

mais emblemático talvez seja o da suástica.

A suástica nazista goza da incrível capacidade de se manter

vinculada a todo um corolário de sentidos estabelecidos em

determinado momento da história da humanidade. As mudanças de

contextos afetam muito pouco a estrutura interna deste signo que, ao

contrário, possui uma forte capacidade de contaminação dos textos

que a circundam.

Hitler não conquistou o mundo, mas conquistou,

definitivamente, o território de um signo. E ele estava consciente de

suas estratégias no terreno do simbólico. Diz ele para a mulher de

Speer, seu arquiteto: “seu marido erigirá para mim edificações tais

como já não se fazem há 4 milênios” e, ao dizer isto, como afirma

Elias Canetti ele se referia às pirâmides egípcias não somente pela

grandeza mas, principalmente, porque lograram perdurar ao longo

destes 4000 anos. Tanto na arquitetura quanto nas artes gráficas,

Hitler agia segundo uma clara intenção de impregnar, de si próprio,

estes símbolos de modo a “eterniza-los por sua função”.

A suástica é, portanto, um exemplo claro da vinculação do

signo com a história social e de como episódios violentos são capazes

de concretar a estrutura interna de um signo. Nem o príncipe da

Inglaterra, que usou o símbolo numa festa à fantasia, conseguiu

deslocar este signo e viu-se, preso neste labirinto sem saída que é a

suástica, obrigado a um pedido público de desculpas.

50

Esta estrutura engessada da suástica tem, como portadores

hegemônicos do sentido, a ortogonalidade, o equilíbrio radial

e o esquema cromático. É possível descaracteriza-la alterando

qualquer destes 3 elementos mas, uma vez mantidos estes

componentes a mobilidade entre eles torna-se virtualmente

nula.

Esta outra imagem confirma que, ainda que com a forma

incompleta, os três elementos portadores de sentido da suástica

garantem a manutenção de sua estrutura significante.

Há algo de religioso na suástica. As imagens religiosas, em geral,

possuem esta estrutura interna rígida e resistem aos deslocamentos

e às interferências de outras imagens. É o caso desta situação em um

salão de cabeleireiro em Cuzco. Ainda que haja outros dois quadros

ao lado da imagem de Jesus onde a atenção está direcionada para

o estilo do cabelo, a nenhum cliente ocorrerá a idéia de solicitar um

corte ao estilo Jesus Cristo.

Segundo um dos pressupostos da teoria benjaminiana,

51

a imagem localiza-se em sujeitos históricos concretos. Assim,

poderíamos afirmar que o índice de mobilidade da imagem é

diretamente proporcional à força da personalidade destes sujeitos e

dos fatos a eles relacionados.

Por outro lado, há composições que possuem uma estrutura

interna extremamente móvel que se ajustam aos mais diversos

contextos, recebendo e dando sentido de maneira maleável. Um

exemplo deste tipo de imagem é a caveira com dois ossos cruzados.

As primeiras aparições desta composição remontam ao século

XVI na Inglaterra e eram utilizadas na decoração de lápides e

mausoléus simbolizando a mortalidade.

No século XVIII tornou-se um símbolo popular entre piratas

como o Barba Negra e já nesta época começa a receber novos sentidos.

Antes de 1700 os piratas usavam uma bandeira vermelha, chamada

bandeira de sangue, no mastro principal das fragatas conquistadas

que indicava que toda a tripulação fora morta. Ao contrário, a bandeira

da caveira passou a significar que faziam-se prisioneiros e o símbolo

passou a ser visto quase como um sinal de boas vindas às vítimas

dos piratas.

No século XX, o símbolo foi apropriado por diversos e

distintos grupos sociais, roqueiros, punks, góticos, etc, moldando-se

plasticamente a diferentes novos sentidos.

É do inicio do século XX o advento do símbolo como sinal de

perigo. A caveira inscrita num triangulo indica que a substância

sinalizada deve ser manipulada com luvas de borracha, inscrita num

52

pentágono, além das luvas e roupas de borracha devem ser utilizados

protetores oculares; inscrita num octógono, indica que o conteúdo

é altamente venenoso. Além disso, é muito utilizada para indicar

risco de vida em situações relacionadas à energia elétrica, minas,

radiação, etc.

O fato interessante é que, toda tentativa de transformar

este símbolo em um signo forte, isto é, relacionado a apenas um

significado, será inevitavelmente frustrada devido a esta maleabilidade

natural da estrutura interna deste signo, uma vez que trata-se de

uma representação presente nas mais diversas culturas do mundo

como, por exemplo, no Tibet e no Nepal onde esta configuração está

associada a uma divindade denominada Ekajata cujo mantra se

ouvido por um mortal, o liberta de todos os obstáculos trazendo bons

auspícios.

O México é outro exemplo de local onde a caveira adquire

sentidos totalmente distintos dos da cultura ocidental. Lá, a relação

com os mortos comporta um forte elemento de humor que se manifesta

em todas as representações de caveira que encontramos lá.

Duas composições do artista mexicano Octavio Ocampo.

Na primeira a caveira vincula-se ao pão, símbolo cristão. Não há

53

nenhuma conexão com o sentido de “veneno” que vimos. Igualmente,

na segunda, dois jovens jogam xadrez e não há a idéia de ameaça

na composição. O pão e o jogo aparecem como metáforas de vida, a

caveira como a presença constante e inexorável da morte.

Em outro capítulo veremos como o tipo de representação

e sentido dado à caveira pode denunciar relações culturais de

dominação e subjugo que podem ser deduzidos a partir das tentativas

de engessamento da estrutura interna deste signo móvel.

54

Significação do Espaço

“Cada lugar é o mesmo lugar e nenhuma parte está em todas

as partes.”

Octavio Paz

“Lócus regit actum” isto é, o espaço condiciona a percepção e

a significação de um signo.

O grupo μ apresenta um exemplo interessante onde um

grafismo, comum nos urinários dos banheiros masculinos, é

interpretado por todos como representando o órgão sexual feminino.

Este mesmo grafismo, quando transferido para uma folha de papel,

deixa de ser reconhecido como tal. Segundo o grupo de estudiosos,

este fenômeno ocorre porque o espaço “banheiro” condiciona a leitura

de qualquer imagem que nele apareça como escatológica, sexual ou

política. Pegamos um urinário e o colocamos dentro de espaço de um

museu e já sabemos o que ocorre.

O espaço cria, portanto, redundâncias que estruturam os

enunciados. Assim, quando uma imagem que normalmente aparece

em um espaço se manifesta em outro, temos uma ruptura com efeitos

claramente retóricos.

Pode-se afirmar que o espaço sempre condicionou a leitura

dos textos que nele aparecem. Isto é verdade em relação às obras

do passado que tinham seus sentidos profundamente vinculados ao

edifício para o qual estavam destinadas e é verdade hoje, quando as

imagens já não estão mais presas em um único local mas pulverizam-

se e circulam por toda a parte, e em cada parte seu sentido vai se

alterando porque “o espaço perdeu, por assim dizer, sua passividade;

não é aquilo que contém as coisas e sim aquilo que, em perpétuo

movimento, altera seu transcorrer e intervém ativamente em suas

transformações. É o agente das mutações, é energia.” (Paz:1996)

55

O espaço é alçado à condição de enunciante. Podemos falar

em uma intentio do espaço que sobredetermina os conteúdos

das mensagens nele colocadas. “O tempo e o espaço não são as

dimensões sem conteúdo que se tornaram com o desenvolvimento

da modernidade, mas estão contextualmente implicados na natureza

das atividades vividas” (Giddens:1991)

Lucrecia d´Alessio Ferrara distingue entre dois tipos de lugares:

o simbólico que “surge nos espaços urbanos que estão próximos aos

grandes centros de decisão econômica, empresarial e administrativa.

(...) Caracterizam-se pelo forte impacto visual que se combina com

um código de valores persuasivos prontos para serem consumidos

como marcas da proposta mundial para as grandes cidades do

mundo. A fidelidade ao código global e à comunicação de uma

mensagem unívoca constitui a característica dos lugares simbólicos

(...) que são assinados e, pela sua codificação comunicativa, tendem

à redundância: daí serem iguais em todos os lugares do mundo”

(Ferrara:2002); e o lugar indicial que “processa rapidamente seus

significados, o que quer dizer que os esvazia na mesma velocidade em

que os processa; espaço banal, sua vida pode ser efêmera porque seu

espaço não é consagrado (...)” (Ferrara:2002)

No primeiro estão os shopping centers e os museus, no segundo

estão as ruas e os prédios abandonados. Os primeiros participam das

mensagens com todo o peso de seus clichês oficiais, os segundos

são os que permitem que o diálogo entre as imagens nele colocadas,

flua sem amarras. O espaço indicial é a agora da imagem, é o espaço

preferido pela pós-modernidade.

56

O Espaço Dialógico da Cidade

“Nenhum rosto é tão surrealista como a fisionomia autêntica

de uma cidade”

Walter Benjamin

A cidade conversa, dialoga. Este diálogo nasce da “tensão

entre a racionalidade geométrica e o emaranhado das existências

humanas” (Ítalo Calvino). As paredes, os muros, os outdoors são

como uma imensa sala de espelhos onde os reflexos se reproduzem

ao infinito ao estilo de um caleidoscópio.

Este diálogo constrói o inconsciente ótico da era pós-moderna

e o olhar de uma época é o pensamento desta época. Assim, é preciso

aprender a ler esta “escrita secreta da metrópole” construída a partir

de uma arte combinatória com elementos tirados, aleatoriamente, de

um saquinho preto.

57

Schapiro fala em uma teoria da contaminação das imagens que

estaria baseada na influência mútua entre as imagens e na ruptura

provocada nestas imagens pelo local onde ela aparece.

Um exemplo desta ruptura aparece nesta imagem de um

quadro de Picasso num outdoor. O desvio se manifesta de cinco modos

diferentes: 1) a pintura está fora do museu que é o seu lugar por

natureza; 2) a imagem encontra-se ampliada varias vezes em relação

ao original e 3) a imagem encontra-se numa posição superior àquela

em que encontraríamos o original. 4) a representação da moldura a

coloca com o mesmo material e bidimensionalidade da pintura, coisa

que não ocorre no original e 5) a imagem passa a “dialogar” com

outras imagens que não pertencem ao universo da arte”, coisa que

não ocorre no interior do museu.

Se afirmamos que estas rupturas têm efeitos retóricos

estamos sugerindo que, por trás delas, existem discursos persuasivos

e ideológicos.

58

1) Sabemos que uma das principais características

da modernidade é a especialização e autonomização dos campos

do conhecimento. Segundo Bourdier, na medida em que surgem os

museus e galerias, a arte constitui-se como campo autônomo livrando-

se das pressões por parte do clero e da nobreza, “(...) os artistas já

não competem pela aprovação teológica ou pela cumplicidade dos

cortesãos, mas sim pela ‘legitimidade cultural’” A partir daí sabemos

como os museus se tornam espaços sacralizantes freqüentados

por uma classe social que possui uma certa “disposição estética”,

adquirida por “possuir recursos econômicos e educativos”, mas que

aparece como sendo um “dom, não como algo que se tem mas como

algo que se é”. (Canclini, 2000: 37)

O quadro de Picasso não aparece neste outdoor como uma

parte da exposição que se oferece ao público mas como fazendo parte

de uma argumentação pelo exemplo. Afirma que é necessário que o

espectador compareça pessoalmente ao espaço do museu, munido

de toda a sua disposição para a fruição estética e, uma vez diante do

original poderá sentir a autenticidade insubstituível do original.

Este tipo de mensagem atribui à obra um significado não no

que ela “diz mas no que ela unicamente é”. Berger nos mostra que

este tipo de “valor espiritual de um objeto, distinto de uma mensagem

ou de um exemplo, só pode ser explicado em termos de magia ou de

religião. E uma vez que na sociedade moderna nenhuma das duas

é uma força viva, o objeto de arte, a ‘obra de arte’, fica envolvido

numa atmosfera de religiosidade inteiramente falsa.” (Berger, 1999:

2) A alteração de tamanho do quadro, ademais de se adaptar às

condições de percepção de um indivíduo que está a 90 Km/h, tem

também o intuito de estabelecer em relação ao expectador e ao

contexto uma condição de dominância ou, em outras palavras, “uma

dimensão importante – com relação aos pontos de referência que já

examinamos – será, no plano do conteúdo, ‘dominante’, ou ‘com forte

presença; uma dimensão restringida será ‘dominada’ ou ‘com débil

59

presença’”. (grupo μ. 1993)

Neste sentido, o outdoor busca recuperar pelo tamanho, a

“superioridade espiritual” da obra de arte em oposição às imagens da

publicidade e da paisagem em geral.

3) No caso da imagem analisada, a posição tem, em termos retóricos,

o mesmo efeito que a alteração da dimensão.

4) Segundo o grupo μ o significado da moldura (ou borda) “pode ser

definida pelos seguintes aspectos:

a) Tudo o que está compreendido dentro dos limites da borda

recebe necessariamente um estatuto semiótico;

b) Este conjunto de signos constitui um enunciado homogêneo,

distinto dos que poderiam ser percebidos no espaço exterior a

este limite;

c) A atenção do espectador deve enfocar-se neste conjunto. “

Se a borda homogeneíza o enunciado, tudo o que se encontra

dentro de um outdoor contém uma mensagem publicitária. Neste

sentido a imagem da obra de Picasso não difere das outras imagens

da paisagem. Para tentar estabelecer uma diferença, os criadores do

outdoor reproduziram uma segunda moldura ao redor da pintura.

Com isto tentam estabelecer uma distinção entre o status desta

imagem emoldurada em relação ao resto do conteúdo do próprio

outdoor e dos demais.

O tipo de moldura que aparece nesta imagem (que talvez

corresponda à moldura real desta obra) resulta anacrônica. Segundo

o grupo μ

“ Foram, sem dúvida, os cubistas que, no século XX, trataram

melhor o problema, (...) quando uma parte da pintura se

considerou estritamente bidimensional, um simples filete

de madeira ou de metal se fez a regra, um filete geralmente

estreito e, às vezes reduzido à borda aparente do chassis. (...)

Esta norma de uma ocultação da moldura tem sido reforçada

60

ainda mais pelo costume que adquirimos de conhecer as

obras unicamente através de reproduções” (grupo μ. 1993:

350).

A moldura ostensiva e hiperbólica que vemos nos remete ao século

XVII e, de certa maneira, tenta domar a estética revolucionária de

Picasso.

Para Baudrillard, este

“gosto do antigo é característico do desejo de transcender

a dimensão do êxito econômico, de consagrar por meio de

um signo simbólico, culturalizado e redundante, um êxito

social ou uma posição privilegiada. O antigo é, entre outras

coisas, o êxito social a buscar uma legitimidade, uma

hereditariedade, uma sanção nobre”.

5) Este desvio é, sem dúvida, aquele sobre o qual os autores do

outdoor podem exercer o menor controle. Esta é a lógica da paisagem

contemporânea: nunca se sabe qual será a imagem ao lado. A paisagem

da metrópole é surrealista. Os enunciados que encontramos nas

cidades nos remetem ao jogo surrealista onde uma poesia é elaborada

a partir de palavras escolhidas, aleatoriamente, de um recipiente.

Assim, a aglomeração de imagens, das mais diversas origens,

criam composições cujo significado não estava previsto em nenhuma

delas originalmente mas que, poderíamos afirmar, refletem um

imaginário inconsciente do mundo contemporâneo.

Analisando agora a fotografia reproduzida acima como

enunciado, a imagem de Picasso onde vemos uma menina que dorme

apoiada em um dos braços estabelece uma relação de rima com a

mulher que carrega um peso no outdoor da Reebok, rima também que

ocorre em relação ao outdoor de um motel localizado imediatamente

abaixo da reprodução da Pintura e, finalmente, estabelece rima com

o concreto quebrado da mureta de divisória da Marginal Pinheiros

como se a paisagem fizesse parte de um estranho sonho cubista desta

menina que dorme.

61

A cidade é surrealista como o sonho desta menina. O caminho

está livre para o automatismo psíquico que foi, durante algum tempo,

uma das principais, senão a principal, técnica surrealista. Dentre

os frutos desta técnica estavam os textos de escrita automática e os

poemas de fragmentos aleatórios apanhados ao acaso do jornal ou

de qualquer outro lugar, como este trecho citado por Breton em seu

manifesto:

numa fazenda isolada

dia a dia

agrava-se

o agradável

uma estrada de carruagens

leva-o à fímbria do desconhecido

(Breton: 2001)

Imaginemos, agora, quanta poesia deste tipo não há brotando

da paisagem-colagem das cidades. De dentro de um automóvel veloz

uma frase lida pela metade junta-se a uma outra também pela metade

formando sentenças que se encadeiam em parágrafos de um discurso

insólito, estranho e belo. Como no exemplo a seguir:

62

“Você vai ficar chá gelado

evite a umidade da gestante

faça consorcio”

O espaço da cidade

O caos urbano manifesta-se também na forma de ocupação

do espaço. Pontes, viadutos, postes, muros recortam a paisagem em

pequenos fragmentos como num quebra-cabeças.

Estas molduras arquitetônicas variam o enquadramento

conforme o deslocamento do sujeito neste espaço e, sob várias

perspectivas, provocam amputações e sangramentos altamente

significativos. É Breton quem primeiro chama a atenção para a

possibilidade poética destes esquartejamentos:

Há um homem cortado em dois pela janela, mas não poderia

haver ambigüidade, acompanhada como estava pela fraca

representação visual de um homem andando, e seccionado

a meia altura por uma janela perpendicular ao eixo de seu

corpo. Fora de dúvida era a simples aprumação de um

homem debruçado à janela... (trecho de fragmento citado

por Peñuela: 1986)

Tendo esta frase em mente, Peñuela afirma:

a imagem surrealista, enquanto combinatória de signos, não

se resume à união de duas realidades remotas: ela pode

ser também, em termos de representação, a disjunção ou

separação da integridade física de uma pessoa ou de uma

coisa (Peñuela: 1986, pgs 94,95)

Assim, a cidade é inteiramente surrealista também neste

aspecto, senão vejamos.

63

Este surrealismo da cidade está baseado em diálogos

entabulados entre interlocutores que se desconhecem. Uma imagem

que conversa com uma palavra ou frase, um prédio que fala com

um cartaz, um evento cotidiano que cochicha com uma mancha

na parede. As associações significantes são infinitas e demanda do

cidadão um ouvido preparado para ouvir esta música.

A cidade abunda de imagens dialéticas que é, para Benjamin,

“aquela que está no limiar entre o consciente e o inconsciente.”

A cidade também está repleta de acasos objetivos envolvendo

imagens de diferentes autores, “existem encruzilhadas ou cruzamentos

onde brilham, de repente, no meio do trânsito, sinais espectrais,

onde podem ocorrer a qualquer momento inimagináveis analogias e

coincidências de acontecimentos. É o espaço de que fala a poesia

surrealista”. W. Benjamin

Um prédio-navalha decepa a zebra que de animal zôo-

lógico vira mito-lógico.

Uma etiqueta que cola em ursos?

64

Aqui, a odisséia de nosso Ulises é concorrer

ao governo do Estado mexicano de Oaxaca e, em

seu banner publicitário, vemo-lo sorridente tendo,

ao seu lado esquerdo, uma também sorridente

menina. A velha fórmula candidato + criança +

sorriso = votos encontra, nesta peça gráfica, sua

expressão mais óbvia e não seria digna de nota

Nesta imagem, por exemplo vemos, a

princípio, uma composição bastante conhecida

de todos em épocas de eleições.

não fosse um terceiro sorriso, sinistro e desafiador, que se impõe à

percepção do (e)leitor.

Os criadores do banner optaram por colocar a infância, passado

de todos nós, ao lado esquerdo de Ulises e quis o fortuito acaso que,

de seu lado direito, figurasse o futuro inexorável de todos nós. Lá

está Ulises agora, no breve intervalo entre o nascimento e a morte

expondo a todos nós a insignificância e efemeridade da condição

humana. A mensagem agora não é mais sobre uma eleição casual

e corriqueira e o outrora candidato perde sua cidadania Mexicana

para transformar-se no epíteto do Homem.

Ulises agora é Hamlet diante do crânio de Yorick, o bobo da

corte que o divertia quando criança...

“Alexandre morreu, Alexandre foi enterrado, Alexandre

reverteu ao pó, o pó à terra, da terra se faz a argamassa. E

porque com essa argamassa, na qual ele se transformou,

não podem tapar um barril de cerveja?”

Uma simples imagem, cotidiana e ordinária, é capaz, se

quisermos, de desencadear raciocínios que nos levam ao limiar

da lógica racional e nos apresentam uma outra maneira, mais

poética e rica, de estar no mundo.

Se é assim, se subimos ao palco não para um monólogo mas para uma

65

conversa de doidos o que levar em consideração na hora de propor

uma nova peça gráfica para este ambiente. Alguns artistas gráficos

começam a se dar conta de que não compomos obras, compomos

fragmentos. Não é possível pensar uma composição como uma

totalidade, mas, simplesmente, como parte, como uma peça de um

grande conjunto. É com esta consciência que Zalma Jalluf se pergunta

sobre a atividade do designer: “situamos conteúdos em contextos?

Adaptamos contextos? Criamos contextos de comunicação?” (Jalluf:

2004) e conclui: “o que devemos projetar é a conseqüência que as

possibilidades e características de cada objeto ou comunicação

desencadeia no funcionamento do todo.”(Jalluf: 2004) Ou ainda,

com Lyotard, o papel é o de “desencadear o potencial inesgotável de

acontecimentos sensíveis. (...) Na nossa sociedade de hoje, a maioria

dos motivos é incerta, muitas motivações são imprevisíveis (...) e a

arte do artista gráfico é arriscada” (Lyotard:1996)

A predominância da imagem no ambiente urbano coloca o

drama de seus criadores em evidência. O poder da imagem hoje vem

acompanhado de uma angústia: o de saber que a criatura pode se

voltar contra o criador, o de imaginar que, com tantas conexões e

sentidos possíveis, a imagem possa, ao contrário, esvaziar-se e

tornar-se inócua, a suspeita de que, em meio a tantas incertezas e

possibilidades, o sem sentido e o lugar-comum possam prevalecer.

66

67

ContextualidadeAs imagens da rua não dialogam somente entre elas, dialogam

com os fatos presentes do aqui e agora. O trabalho do artista

brasileiro Alexandre Orion baseia-se nesta constatação.

Ele espalha pelos muros imagens-coringa, que aguardam, com

paciência de pescador, o evento que as completará. E então, durante

um lapso mínimo de tempo, arte e vida se completam. As imagens

de Orion permanecem ali, como que amputadas à espera de uma

prótese. E este complemento vem por um acidente, não um acidente

que aleija, mas um que restitui. É um trabalho budista em busca da

iluminação. “A iluminação é sempre uma espécie de acidente: você

não pode controla-la, não pode faze-la acontecer. Não me entenda

mal, pois, quando digo que a iluminação é como um acidente, não

quero dizer que não é preciso fazer nada para atingi-la. O acidente só

ocorre com aqueles que têm feito muito para que ele possa acontecer.

Entretanto, nunca acontece por causa daquilo que fizeram. O fazer

é só uma causa que cria a situação dentro deles de forma que se

tornam passíveis de sofrerem esse acidente, é apenas isso. Esse é o

sentido desse belo acontecimento.” Osho (filósofo budista)

Uma das graças do trabalho de Orion está no fato de que

aqueles que participam de suas composições semi-acidentais, não

estão conscientes de que o fazem. Há sempre um terceiro que observa

e interpreta.

Este terceiro somos nós. Todos os cidadãos que vivem nas

grandes cidades onde, a todo momento, poderíamos pescar, se

quiséssemos, estes peixinhos poéticos que estão a nadar por todos os

lugares da paisagem.

As imagens casadoiras juntam-se aos fatos humanos, como vimos

na obra de Orion, mas também unem-se aos espaços.

68

69

Sebástian Arancibia explica sua lógica na escolha dos lugares

em que aplica seus trabalhos:

“Siempre busco lugares que tengan una coherencia con la imagen,

para poder reforzar el sentido de ésta. Cuando esto se logra, la imagen

se hace “parte” del lugar y forman una unidad.”

É o que ocorre neste seu trabalho. A antipublicidade feita a partir da

marca da Shell tem seu sentido potencializado ao ser aplicado sobre

uma bomba de gasolina em um posto.

Lógica semelhante foi perseguida pelos publicitários responsáveis por

esta campanha:

Os outdoors foram criados especificamente para ocuparem

um determinado lugar na paisagem urbana de modo a reforçar a

mensagem, dialogando com o espaço circundante. Esta campanha

expõe o reconhecimento de que o espaço contribui com elementos

significantes que tentaram ser controlados pelos criadores da

campanha. No entanto, esta tentativa de controle está sempre limitada

por outros elementos significantes da paisagem que concorrem para a

contaminação dos significados, como podemos ver nestes cartazes.

70

O mesmo espaço publicitário em dois momentos diferentes e

com duas soluções distintas. No primeiro, a cobertura do edifício,

onde geralmente encontramos as antenas de televisão, serve de

mote para o tema do cartaz; no segundo, a localização do prédio,

próximo a uma região de comércio atacadista é o que define a jogada

realizada pelo publicitário. Mas, como podemos perceber em ambos

os casos, a maior força de interferência na mensagem do outdoor

não provém do espaço mas das imagens circundantes.

Assim, ao lermos “antenados” fazemos imediatamente uma vinculação

com o modelo masculino do cartaz da Trifill, localizado logo abaixo,

ele é o antenado de que fala a mensagem. O mesmo acontece com a

palavra “atacadistas” que se vincula imediatamente com a moça de

meias coloridas do cartaz abaixo. A posição corporal da modelo nos

parece, de certa maneira, uma posição de ataque.

Neste outro cartaz, da campanha da Ellus em São Paulo, o

grafiteiro convidado para fazer a intervenção, procurou relacionar

seu trabalho com o contexto casual em que apareceu posicionado o

seu suporte.

“Cultive uma vida saudável, e um corpinho também” diz o cartaz de

cima. No cartaz de baixo aparece, em forma de paródia, a inversão da

idéia. Um personagem esquálido, com o mesmo gestual do modelo do

cartaz, põe em cheque os conceitos de beleza e saúde impostos pela

publicidade hegemônica.

71

Portanto, na lógica da paisagem urbana, tem mais poder de

comunicação aquele que tenha mais controle sobre os elementos

significantes do ambiente. Neste sentido, as velhas práticas

publicitárias devem ser substituídas por práticas mais maleáveis e

adaptáveis, pois já se foi o tempo em que o publicitário conseguia fazer

com que suas mensagens chegassem incólumes ao seu consumidor.

72

Morte ao Museu!“mantenha o pote bem fechado em local seco e arejado”

embalagem de achocolatado

O museu, da maneira como o conhecemos, está com seus dias

contados. O museu é anacrônico, o museu já era.

A revolução institucionalizada é exatamente a que ocorre no interior

dos museus e que de revolução já não têm mais nada. O museu,

enquanto espaço sacralizado, neutraliza e conforma qualquer

manifestação. O museu é um ambiente controlado, onde as

interferências são reduzidas a quase zero, o museu é um shopping

center da elite cultivada e iluminada.

O museu é antiestético pois “uma experiência estética do

espaço deve alcançar a sua essencial descontinuidade: a luz, a

força, a intensidade são disseminadas de modo desigual segundo

linhas dinâmicas, que conferem à obra de arte uma espécie de vida

autônoma e independente da subjetividade do autor e do espectador.

Deste modo, Florénski acaba por considerar a arte como uma forma

vivente, uma coisa que atua (érgon); assim o museu, que condensa

em si mesmo a abordagem filológica e a espetacular, constitui uma

traição à obra de arte: ele coloca-a num estado de anabiose, de

letargo, ao qual se torna muito difícil subtraí-la.” (Perniola:1998) A

rua é estética, o museu não.

“Originalmente, as pinturas constituíam uma parte integrante

do edifício para o qual estavam destinadas. Às vezes, numa igreja

ou capela do início da Renascença tem-se a sensação de que as

imagens na parede são registros da vida interior do edifício, que

juntas constroem a memória do edifício – de tal modo são elas parte

da peculiaridade do edifício”. (Berger: 1990) Não o museu, não há

vida interior no museu e as obras não se comprometem com ele,

73

nem ele com as obras, ele recebe qualquer obra, de Arte (com

“a” maiúsculo). O museu é, pois, uma zona de meretrício. Em

japonês, iki é a palavra que define estes lugares e o comportamento

típico da gueixa, “aquela figura feminina, dotada de talento e de

cultura artística, que desempenhava a função de entretenimento

sexualmente envolvente” (Perniola:1998). O teórico japonês

Kuki, elabora a partir desta palavra seu conceito de um ideal

de comportamento estético. “A gueixa quando se recusa, de

algum modo se dá e vice-versa (...) o iki, na gueixa manifesta-se

através do desprezo pelo valor mercantil das coisas, (...) estima

pelo valores culturais e estéticos, (...) despreocupação perante a

instabilidade e inconsistência do mundo.” (Perniola: 1998) Este é

o comportamento estético de museu, a gueixa é o símbolo máximo

da libido com amarras. Na rua não! Na rua, o “sex appeal do

inorgânico” (Benjamin) manifesta-se em toda a sua ferocidade, as

imagens são violentadas e engravidam de sentidos.

As obras dentro de um museu não dialogam (ou apenas

cochicham), elas estão mortas. O museu é um cemitério mas os

cadáveres não apodrecem.

As obras estão no museu, lado a lado, presas em suas molduras-

celas. O museu é uma prisão de onde somente algumas conseguem

escapar, quando são reproduzidas em livros e em cartões postais.

A reprodução é a libertação da imagem!

O artista inglês autodenominado Banksy é um terrorista

poético que atua dentro e fora dos museus. Sua atuação dentro

dos museus é invasiva, nunca convidada. Banksy leva o diálogo

das ruas para dentro do museu. Em um de seus trabalhos, no

Tate Britain, o artista colou na parede do museu uma obra sua

que passou algumas horas confabulando com a obra ao lado, até

que a cola não agüentou e o trabalho veio ao chão, para a surpresa

e o susto dos seguranças da galeria. Com isto, Banksy agitou a

estrutura interna da obra ao lado, da sua própria obra e da função

Terrorismo Poético

“Dançar

bizarramente a

noite inteira em

caixas eletrônicos

de bancos.

Apresentações

pirotécnicas não

autorizadas. Land-

art, peças de argila

que sugerem

estranhos artefatos

alienígenas

espalhados em

parques estaduais.

Arrombe

apartamentos,

mas, em vez de

roubar, deixe

objetos Poético-

terroristas.

Seqüestre alguém

e o faça feliz.

Escolha alguém

ao acaso e o

convença de que

é herdeiro de uma

enorme, inútil e

impressionante

fortuna -

digamos, cinco

mil quilômetros

quadrados na

Antártica, um

velho elefante de

74

do museu; Banky abriu uma pequena fresta para deixar passar

uma corrente de ar que agitasse um pouco os móbiles paralisados

pelo ar estanque do museu. Até a queda, que não estava prevista,

teve um papel estético e metafórico, seu trabalho se recusa a

permanecer naquele espaço, ele dialoga e quando o assunto acaba

ele encontra outra maneira de entabular uma nova conversa.

Num outro trabalho seu, um rato empalhado com uma

mochila nas costas, óculos escuros e uma frase que dizia “our

time will come”, foi colocado no Museu de História Natural na

Inglaterra. Apesar de não ser um museu de arte, a provocação

de Banksy está dirigida a estes. Ele compara as obras de arte no

museu a animais empalhados. Mas ele sugere que continuam em

evolução, e planejam uma revolução. “Nosso tempo chegará”, a

arte do museu, autônoma e com vida própria, se rebelará contra o

exílio forçado imposto por este tipo de espaço.

Se o museu, como vimos, é um lugar tão problemático e

defasado, o que fazer então com as centenas deles espalhados pelo

mundo, já que incendiá-los não parece ser a melhor opção, por

questões ecológicas, pois os animais ali dentro estão ainda vivos?

Transforma-los em (escolha apenas uma alternativa):

a) repartições públicas

b) zoológico

c) funerárias

d) agências de viagens

e) banheiros públicos

circo, um orfanato

em Bombaim ou

uma coleção de

manuscritos de

alquimia. Mais

tarde, essa pessoa

perceberá que por

alguns momentos

acreditou em algo

extraordinário

e talvez se sinta

motivada a

procurar um modo

mais interessante

de existência.”

“Uma requintada

sedução levada

adiante não apenas

pela satisfação

mútua, mas

também como um

ato consciente

por uma vida

deliberadamente

mais bela - deve ser

o TP definitivo. O

Terrorista Poético

comporta-se como

um trapaceiro

barato cuja meta

não é dinheiro, mas

MUDANÇA.” Hakim

Bey

75

A Anti Publicidade“Os cientistas pesquisando por todo lugar, eles descobriram que

é com veneno de cobra que eles curam as picadas de cobra, não é? Pois

olhe aqui (pega o cigarro e dá uma pitada): é com esse cigarro que eu

melhoro, me chega mais habilidade, me chega mais memória, me chega

mais TUUUDO! Sabe por que? Porque é com veneno que a gente

cura veneno. Eu aprendi com os médicos”. (risos) Patativa do Assaré

A antipublicidade está baseada na apropriação de um símbolo

largamente reconhecido e na transformação mínima deste símbolo de modo

que a mensagem sofra alterações profundas, invertendo muitas vezes seu

conteúdo de forma a expressar uma visão crítica sobre um determinado

tema.

Através deste mecanismo, a antipublicidade expõe lógicas de

dominação que, de outra maneira, permaneceriam ocultos. A antipublicidade

expõe a vinculação clara entre o clichê e os poderes hegemônicos

constituídos.

A antipublicidade provoca deslocamentos no interior da estrutura

dos signos de maneira extremamente violenta pois escolhe sempre signos

cuja estrutura encontra-se petrificada pelo uso massificado e aceitação

generalizada.

Neste sentido, a antipublicidade caracteriza-se por um raciocínio

contencioso ou erístico que é aquele que, segundo Aristóteles, “parte de

opiniões que parecem ser geralmente aceitas, mas não o são realmente,

ou, então, se apenas parece raciocinar a partir de opiniões que parecem ser

geralmente aceitas. Pois nem toda opinião que parece ser geralmente aceita

o é na realidade.” (Aristóteles:1985)

E este talvez seja o principal objetivo da antipublicidade, o de mostrar

que há oposição, que há diferentes maneiras de pensar e diferentes visões de

mundo ainda que a publicidade e o poder das corporações internacionais

nos façam acreditar no contrário.

76

A antipublicidade segue a estratégia de David, usar a força do inimigo

contra ele mesmo, e isto é feito através da paródia, que é uma forma pós-

moderna por excelência “pois paradoxalmente, incorpora e desafia aquilo

que parodia”. (Hutcheon: 1991)

Neste exemplo, a marca do Mac Donald´s é construída com base

nos eventos terroristas de 11 de setembro. Uma empresa estadunidense

representa, por sinédoque, toda a nação; uma nação que tenta obrigar, pela

força do capital, todo o mundo a uma mesma dieta, no sentido literal e

metafórico. O mundo tem que engolir os Estados Unidos e esta imposição

mundial aparece aqui como a causa dos eventos em Nova York. Agora os

Estados Unidos tem que engolir as conseqüências de suas próprias ações.

É interessante notar que, neste exemplo, o modus operandi dos

terroristas é exatamente o mesmo do artista gráfico Sebastián Arancibia,

criador deste trabalho. Enquanto os terroristas utilizaram os próprios aviões

americanos para executar o ataque, Arancibia utiliza-se de suas marcas

mundialmente conhecidas para a sua ofensiva. Ocorreu em ambos os casos

o deslocamento da função tanto do objeto físico quanto do simbólico.

77

Nesta outra imagem, a violência do conjunto deriva da condensação,

em um mesmo enunciado de representações provenientes de repertórios

distintos. De um lado a publicidade e seus personagens de ficção, de outro a

fotografia jornalística em toda a sua exacerbação naturalista. Ao juntar estes

dois discursos em uma única imagem, o artista inglês Banksy desmascara

uma mesma e única lógica que está por trás deles. A imposição cultural é

uma bomba com poder de destruição igual ao da bomba de Hiroshima.

Idéia semelhante está nesta outra imagem do coletivo argentino

B.s.A.s. que utiliza a mesma estratégia de opor a felicidade e o sucesso que

os estadunidenses fazem questão de expor ao mundo, à violência de sua

atuação internacional.

78

Não é por acaso que os Estados Unidos são o alvo principal deste tipo de

deslocamento. O poderio de seus aparatos de divulgação em massa de suas

idéias e símbolos não é comparável ao de nenhuma outra nação no mundo

e a oposição frontal, pelos mesmos meios, é política e financeiramente

inviável. Assim, o embate se dá no interior dos signos, em estratégias de

guerrilha, onde a luta pode ser mais justa. A arma principal é a paródia que

oferece, “em relação ao presente e ao passado, uma perspectiva que permite

ao artista falar para um discurso a partir de dentro desse discurso, mas sem

ser totalmente recuperado por ele. Por esse motivo, a paródia parece ter se

tornado a categoria daquilo que chamei de ex-cêntrico, ,daqueles que são

marginalizados por uma ideologia dominante.” (Hutcheon: 1991)

79

A Fronteira Norte

“Cobra explode ao engolir jacaré nos EUA” (O Estado de São

Paulo 6 de outubro de 2005). Morreram, a cobra e o jacaré. O jacaré

talvez já estivesse morto, ou foi morto pela cobra. A cobra morreu

por um erro de cálculo, por se achar maior do que era, ou imaginar

menor o jacaré. Há arrogância na morte desta cobra, há justiça para

a morte do jacaré. A cobra morre dilacerada, o jacaré mantém sua

dignidade réptil. Um fato incomum da vida natural, e extremamente

comum na vida social, revela “as misérias da força e os privilégios da

fraqueza” (Balzac)

Estados Unidos e México compartilham 3 mil quilômetros de

fronteira. Esta é a fronteira norte, expressão que indica sua origem

mexicana, único lugar no planeta onde o primeiro mundo se encontra

cara-a-cara com o chamado terceiro.

80

A fronteira é uma obsessão latina, como nos diz Eco, obsessão

esta que remonta à lenda da fundação de Roma quando Rômulo mata

o irmão por não respeitar os limites espaciais. Para o México, o Estados

Unidos é o norte, terra dos sonhos prometidos e roubados; para os

Estados Unidos, o México é seu “Sulburbio” (Mia Couto)

Apesar das diferenças fundamentais entre os dois países, surgiu

nesta fronteira um tipo de expressão gráfica, híbrida e sincrética,

que aponta para o mundo um caminho possível de resistência

poética, resistência esta que nasce de uma aptidão para se apoderar

e transformar elementos impostos.

Creio que esta particularidade é a grande responsável pelo papel

de vanguarda que o México exerce, em minha opinião, no mundo

contemporâneo e penso que seus cordões umbilicais se encontram

atados não somente a seu passado histórico mas também a certas

características próprias da linguagem Náhuatl. Gostaria de apontar

o porque.

A escrita Náhuatl era uma espécie de pintura literária baseada

em pictogramas, ideogramas e signos fonéticos também chamados

grifos. Há um tipo especial de grifo para o qual nos interessa chamar

a atenção. São aqueles “desenhos compostos cujos elementos

representam sílabas e juntos formam uma palavra” (Galarza: 2000)

como podemos ver no exemplo seguinte:

Neste grifo, a parte de baixo representa o traseiro masculino –

tzintli – do qual tiramos a última sílaba para ficarmos com a palavra

“tzin” que significa pequeno; a parte de cima represnta uma árvore

chamada Huexotl fazendo com que o conjunto represente, portanto,

Huexotzin ou “uma pequena árvore de Huexotl”.

81

Este tipo de representação quando visto dentro do contexto

das narrativas nahuatl, isto é, dentro dos códices, não apresenta

nenhuma espécie de ruptura mas caracteriza-se, justamente, como

o padrão. No entanto, a partir do instante em que há o encontro de

formas distintas de representação, o que aconteceu com a chegada

dos europeus, os grifos compostos adquirem valor retórico. Isto ocorre

porque há uma transformação na estrutura isotópica dos enunciados

produzidos a partir de então, como vemos nas imagens seguintes:

82

Em ambas estas imagens vemos justapostos duas formas

diferentes de representação e de leitura. Na primeira, a organização

do espaço é ocidental mas as figuras seguem sendo representadas

de perfil à maneira asteca; na segunda, a disposição é, ainda, aquela

típica dos códices, mas a representação das figuras é européia.

Uma vez rompida a superfície isotópica dos enunciados

Náhuatl, o grifo composto que vimos acima pode muito bem deixar de

significar “uma arvore pequena” para significar uma árvore sentada,

uma árvore que pode caminhar, ou um homem incapaz de pensar, já

que tem folhas e galhos no lugar da cabeça.

A escrita Náhuatl, dentro agora deste novo contexto e desde o

ponto de vista da retórica do tipo, configura o que o grupo μ denomina

“figura por incoordinación”. O grifo da pequena árvore apresentaria

um processo de supressão-adjunção de coordenação resultando em

uma figura não reversível e não hierarquizada.

Dita figura consiste na união de dois ou mais elementos que

não pertencem à mesma classe de tipos. O centauro é o exemplo dado

pelo grupo μ no qual encontramos o tipo “homem” e o tipo “cavalo”.

Neste exemplo, os determinantes são tomados do mesmo paradigma:

o animal. O mesmo não ocorre, necessariamente, na escrita Náhuatl

e, em particular, no grifo da pequena árvore onde um tipo provém do

paradigma animal e outro do vegetal.

Esta peculiaridade da linguagem Náhuatl prestará seus

melhores serviços a partir do século XVI com a constituição da

“sociedade fractal” da Nova Espanha descrita por Gruzinsky como

uma formação produto da “diversidade de componentes étnicos,

religiosos e culturais” que resultava numa “aptidão para combinar

fragmentos dispersos e opostos”.

Um exemplo desta aptidão são os engenhosos mecanismos de

adaptação a que foram submetidas as palavras introduzidas pelos

conquistadores: a palavra amém era obtida colocando-se juntos o

signo da água (atl) e do maguei (metl), o nome Miguel agregando-

83

se asas ao signo de cadáver (miquetl). Já não temos Miguel mas

simplesmente um cadáver alado, invertendo a doutrina católica

deixando a alma na terra enquanto o corpo sobe ao céu.

A adaptação se deu a tal ponto que, em 1555 o dominicano

Las Casas disse que boa parte da doutrina cristã podia ser lida pelos

índios através de suas figuras e imagens da mesma maneira como ele

lia “por nossa letra em uma carta” (citado por Gruzinsky: 1991)

Este processo instaura uma prática cultural que é, ao meu ver,

a grande contribuição do México para o mundo. Para ler uma destas

palavras híbridas é necessário, ao menos, o conhecimento de duas

realidades distintas.

Nesta imagem de Octavio Ocampo, artista cujas obras podem

ser encontradas em reproduções por todo o México, estes indícios

aparecem.

Temos, nesta imagem, o mesmo processo de figura por supressão-

adjunção que vimos nos grifos astecas mas, neste caso, trata-se de

figuras hierarquizadas não reversíveis para as quais o grupo μ dá o

exemplo de Archimboldo onde um nariz pode ser substituído por

uma cabaça devido às propriedades comuns a ambos.

Nos diz o grupo μ sobre estas figuras:

“A coordenação assim produzida tem numerosas

repercuções. Primeiramente conduz à identificação

84

da alegoria, mas também produz inevitavelmente

inferências semânticas que provém da nossa competência

enciclopédica: estamos feitos do que comemos,

terminamos por parecer-nos aos objetos ou aos seres que

freqüentamos, identificação que pode tornar-se ridícula e

dar lugar à sátira.”

Em Archimboldo temos um processo em dois níveis onde os

livros compõem um bibliotecário, plantas constroem um jardineiro,

etc. Na imagem de Ocampo, a complexidade da composição nos

leva a identificar até quatro níveis: os legumes e frutos da terra que

compõem o camponês que, inserido em um ambiente constrói o rosto

da virgem de Guadalupe cujas cores da indumentária somadas ao

entorno sugerem a bandeira dos Estados Unidos.

O homem mexicano está feito de milho, feijões e cebola e ajoelha-

se humildemente diante de sua adorada virgem de Guadalupe. No

entanto, há algo mais, há uma bandeira estrangeira capaz de mudar

o sentido do ajoelhar-se e contaminar-lo de uma dose de opressão. A

identidade mexicana portanto, e segundo este trabalho de Ocampo,

está sobredeterminada não só pelos elementos nativos (representados

pelos produtos da terra) como também pela conquista espanhola de

outrora e a influencia estadunidense de hoje ou, como disse Erico

Veríssimo: “As vezes penso que o gringo é tão necessário à mitologia

mexicana quanto o diabo à mitologia cristã.” (Veríssimo:)

O alebrije reflete o México com o mesmo poder de espelho que

Borges atribui ao dragão:

“Ignoramos el sentido del dragón, como ignoramos el sentido

del universo, pero algo hay en su imagen que concuerda con la

imaginación de los hombres (...). Es, por decirlo así, un monstruo

necesario(...)”

85

O alebrije, a exemplo do centauro e da escrita Náhuatl, também

é uma figura não reversível não hierarquizada. Excessivamente

colorido, o alebrije podia ser confundido com brinquedo de criança

mas seu caráter passa longe do do bicho de pelúcia

Érico Veríssimo, no seu livro sobre o México propõe a seguinte

visão diante do Zócalo do Distrito Federal:

“Se um grande terremoto derrubasse um dia esta igreja e

estes palácios, revolvendo o solo, possivelmente veríamos surgir do

ventre da terra o cadáver de Tenochtitlán, ao qual se misturariam os

escombros do México colonial e os da metrópole do século XX com

seus arranha-céus, cinemas, night clubs, e soda fountains(...). E nosso

olho testemunharia cenas espantosas, como por exemplo a cabeça de

um ídolo asteca – Texcatlipoca ou Quetzalcoatl – coroada com um

destes discos vermelhos da Coca-Cola que vemos sacrilegicamente

grudados na face destas velhas arcadas.”

Sem saber, o que Veríssimo descreve nesta “catástrofe

hipotética” é precisamente o que fazem os artistas chicanos de hoje.

A apropriação de conceitos e estigmas e a transformação em

expressão própria são os fundamentos da arte chicana. Elementos

86

da cultura dominante estadunidense são postas em choque com

formas pré-hispânicas – cujos sentidos e funções estão esquecidos,

reproduzindo, uma vez mais, o mesmo fenômeno que se deu na Nova

Espanha entre a cultura indígena e a européia.

Artistas chicanos se apropriam dos ícones do american way

of life e, ao muda-los de lugar, promovem uma profunda crítica não

só da cultura estadunidense como de sua própria cultura. Aceitam

estereótipos para transformar-los em brilhantes escudos que

terminam por refletir aos próprios criadores do preconceito.

87

Contextos Nacionais Cadáveres Internacionais

As nações todas são mistérios.

Cada uma é todo o mundo a sós.

Fernando Pessoa

No conto “El ahogado más hermoso del mundo” Gabriel Garcia

Marquez narra a estória de um cadáver encontrado na praia por umas

crianças. Enquanto os homens da comunidade passam o dia tentando

identificar o morto, que não pertencia nem à sua nem à comunidade

vizinha, as mulheres admiravam o belo corpo do defunto e faziam

elucubrações sobre sua vida e personalidade ao ponto de chorarem

por ele. Por fim, vestem-no e enterram-no da maneira correta como

se o conhecessem da vida toda, para ciúmes de seus maridos.

Com a globalização e os modernos meios de comunicação,

o intercâmbio internacional de produtos e imagens multiplicam

exponencialmente a quantidade de cadáveres chegando nas praias

de todos os países. Estes cadáveres são constituídos por conjuntos

de imagens, símbolos e ícones, originários de determinado contexto

cultural que, ao chegarem em outro, estão esvaziados de seus sentidos

originais. Assim, como no conto, aquela forma estranha é preenchida

com elementos da enciclopédia do novo contexto em que se encontra

ou, como nos diz Mukarovsky:

“A tradição local – seja ela nacional ou regional – assimila a seu

modo os elementos artísticos transmitidos dessa maneira, dá-lhes

um sentido novo, integrando-os no seu contexto e recria-os segundo

a sua própria imagem, transformando-se naturalmente, também ela,

sob a sua influência.”

Esta permuta frenética, característica de nossa época, é

88

responsável pelo surgimento de manifestações artísticas riquíssimas

provenientes de uma miscigenação de enciclopédias as mais díspares,

que colaboram, de maneira equilibrada, para o surgimento desta

cultura híbrida pós-moderna.

O problema surge quando há um desequilíbrio entre as

enciclopédias e os cadáveres não são enterrados - para proporcionar o

surgimento de uma terceira coisa - mas, ao contrário, são oficializados

e priorizados pela cultura que os recebe.

Um exemplo emblemático deste fenômeno é a sinalização. A

sinalização é a maneira como o Estado e as instituições organizam a

vida prática dos cidadãos. Por seu caráter instrucional, a sinalização

constitui-se em uma semiótica hipercodificada,.

Para lograr sua eficácia, as sinalizações fazem uso do discurso

generalizante da estilização. Vimos anteriormente que toda estilização

é uma operação retórica sobre a imagem assim, podemos supor que,

por trás destes signos, que acatamos com tanta diligência, também

se esconde um discurso comprometido com determinadas instâncias

de poder.

No início da década de 40 o designer alemão Otto Neurath

criou todo um conjunto de pictogramas de sinalização chamados

isotipos. Estes símbolos, aceitos em seguida como tendo validade

universal, baseiam-se na filosofia do positivismo lógico, segundo a

qual a realidade é apreensível de modo racional e objetivo através

da lógica, da geometria e da matemática (Lupton e Miller citado por

Tapia:2004). Assim, temos como resultado representações de objetos,

situações e figuras realizadas através de um processo de estilização

esquemática e geométrica, que se pretende neutra, objetiva, universal

- e, portanto, desprovida de vinculações culturais - e baseada tão

somente nas capacidades perceptivas.

89

A representação da mulher neste sistema denuncia, logo de início,

sua vinculação cultural a uma sociedade e mesmo a uma época em

que a moda determinava um tipo específico de saia ou vestido para

as mulheres. É possível imaginar que, se os processos educativos não

tivessem difundido tanto estes sistemas de sinalização, a dupla que

vemos acima significaria, na Escócia por exemplo, um homem em

trajes típicos e um homem em trajes ocidentais.

Resulta desafiador confrontar estas teorias da objetividade da

estilização com imagens na paisagem contemporânea. Um exemplo

desconcertante é esta placa de sinalização encontrada na cidade do

México. Nesta imagem nos deparamos com uma caveira sorridente

que nos informa sobre o perigo da rede elétrica de alta tensão. A

contradição da mensagem parece evidente. O designer tentou seguir

a cartilha internacional de sinalização onde o perigo é representado,

como vimos em outro capítulo, de maneira hiperbólica, por uma

caveira do corpo humano mas, na hora de representar a caveira, pesou

sobre ele séculos de uma tradição onde o sentido da representação

da caveira e a própria concepção da morte diferem completamente

de toda a tradição ocidental. O contexto cultural neste caso desvia

e agrega sentidos, expondo a falácia da universalidade e da eficácia

destes sistemas de sinalização.

Neste sentido, observar a representação da caveira nos diversos

90

contextos culturais, funciona como uma espécie de termômetro que

mede o grau de soberania das culturas.

Na imagem abaixo, a caveira é utilizada num aviso contra as

minas. Este aviso está localizado em algum lugar no Camboja, país

não ocidental que não compartilha, originalmente, deste sentido

da caveira. Fica evidente, neste caso, o desequilíbrio entre as

enciclopédias local e ocidental, o que é confirmado, ainda, pelo texto

em inglês na parte inferior da placa.

Caso semelhante aparece nesta outra placa localizada na

Malásia onde a representação ocidental impera de maneira absoluta.

Em caso como estes do México, Camboja e Malásia, o impacto desejado

das mensagens dissolve-se e esvazia-se devido ao desconhecimento e

subestimação do repertório local.

91

A seguir, duas outras placas elaboradas a partir do repertório e

modo de representação cambojano e malásio oferecem um parâmetro

comparativo. O modo narrativo tem preponderância em relação ao

puramente simbólico

Se, como vimos, nenhum sistema tem validade universal,

o fato deles continuarem, ou não, sendo usados por instituições e

principalmente por governos adquire também valor retórico. O que

significa dar legitimidade a um tipo de representação que não está

baseado no código acordado social e historicamente por uma sociedade?

As respostas a esta pergunta podem variar desde a afirmação da

hegemonia de uma cultura sobre outra até a determinação de inserir,

à força, uma sociedade na modernidade.

Desde estas perspectivas podemos avaliar alguns exemplos

de tentativas de superação destas imposições gráficas. Nesta figura

vemos que apesar de mantida a representação da saia, temos alguns

acréscimos significantes tanto em termos formais (o contorno

preenchido em forma de silhueta é substituído pelo jogo de linhas

paralelas), como em termos cromáticos (o preto e branco é substituído

pelo rosa e laranja)

92

Neste outro exemplo, temos uma placa com informações sobre

como proceder em caso de incêndio ou terremotos. Aqui, o padrão

internacional foi substituído completamente por uma representação

baseada nos desenhos têxteis dos povos nativos do México. Podemos

afirmar que a informação apresenta-se de maneira muito clara e

não é prejudicada, de maneira nenhuma, pelo tipo de estilização

adotado. Por outro lado, podemos constatar também que este tipo de

estilização tampouco pode aspirar à universalidade haja visto que o

ícone que representa “conserve la calma” em outras culturas, que nos

são familiares, representaria um sujeito completamente paralisado

pelo pânico.

Esta percepção do comprometimento das estilizações

com o contexto cultural que as origina serviu de

ponto de partida para a elaboração, extremamente

apropriada, da logomarca do Fórum Mundial

Barcelona 2004 que trata, justamente, da diversidade

cultural no mundo. Nesta logomarca a ruptura ocorre

quando uma das mãos deixa de ser representada

pelo padrão internacionalizado para ser representado

à maneira asteca, egípcia ou indiana. Esta imagem

propõe um mundo onde o princípio da diversidade

e da diferença impera e incita a que nenhum grau

zero local aspire a grau zero geral como ocorreu, em

diversos aspectos, na modernidade.

93

A Poesia das Ruas

It’s easier to get forgiveness than permission.

Banksy

Os artistas migraram. Nos museus ficaram somente os do

passado. O verdadeiro artista de hoje quer o desafio das ruas e dos

espaços alternativos, com seus riscos e suas glórias. “Todo artista tem

de ir aonde o povo está” (Milton Nascimento) e o museu fracassou,

definitivamente, o povo está nas ruas. O museu restringe a interação:

os parangolés de Hélio Oiticica não podem mais ser vestidos, os

bichos de Ligia Clark não podem ser manuseados; eles estacionaram

no tempo e os artistas morreram duas vezes.

A rua é o lugar da arte viva e pulsante. “Longa é a arte, tão

breve a vida”, a arte da rua quer ser breve como a vida, a arte quer

ser pura vida. “Não seria melhor transformar a vida em poesia do que

fazer poesia com a vida? E a poesia não pode ter como objeto próprio,

mais que a criação de poemas, a de momentos poéticos?” (Octavio

Paz)

SIM! É o que fazem os artistas da rua. A arte na rua é um rasgo

no marasmo e na pressa cotidiana; é uma fresta, é um buraquinho,

é uma rachadura daquelas que põe a perder toda a estrutura da

construção.

O artista da rua Julian Beever abre buracos, buracões que dão

acesso a mundos paralelos e surreais. Ele é um artista de calçada e

seu público são os pedestres.

Beever trabalha com o deslocamento da função da calçada. A

calçada para ele não é o caminho para o trabalho e para casa, que

tanta gente percorre sem maiores emoções. A calçada é a metáfora

da vida, podemos passar por ela em direção a um outro objetivo, sem

perceber que, na verdade, o caminho é que conta.

A Beever não interessa fazer estas intervenções no museu,

94

porque ali seu trabalho seria neutralizado. Quem vai ao museu já

espera encontrar buracos, não quem anda na rua. A calçada, com

suas irregularidades, seus diferentes materiais e seus contextos,

oferece a sugestão e o suporte para as criações do artista.

A obra de Beever é um manifesto contra a vida sem felicidade e alegria,

contra a falta de imaginação, contra o mecanicismo e alienação da

vida moderna. Esta é para Beever, a função social da arte que só

atinge seu objetivo quando não se prende às amarras institucionais

95

pois, como denuncia Canclini:

“Qual é então a função social das práticas artísticas? Não lhes foi

atribuída, com êxito, a tarefa de representar as transformações

sociais, de ser o palco simbólico onde acontecem as transgressões,

mas dentro de instituições que limitam sua ação e eficácia para que

não perturbem a ordem geral da sociedade?”

Banksy é outro artista que gosta de perturbar esta ordem,

seja entrando furtivamente em museus tradicionais para lá deixar

trabalhos seus, seja fazendo intervenções nas ruas como esta,

localizada na parede de uma clínica de saúde sexual.

Banksy talvez seja, hoje, o artista que mais ferinamente ataca

o stablisment da arte, com seus conceitos e instituições. Isto fica

patente, nesta sua resposta perspicaz:

96

Is graffiti art or vandalism?

That word has a lot of negative connotations and it alienates people, so no, I

don’t like to use the word ‘art’ at all.

97

A arte da rua tem sido realizada, principalmente, por coletivos,

que são grupos de artistas que trabalham de maneira cooperativa. O

coletivo também é uma forma de oposição a um dos conceitos mais

caros ao ambiente oficial da arte que é a idéia do artista solitário e

genial.

A lógica dos coletivos é explicada por um dos membros do

coletivo argentino B.s.A.s.: “Quizás el detonante fue la misma calle,

en esta época ya se percibía el crecimiento del espacio publico tomado

por asalto y en particular del stencil como medio de intervención.

Nuestro aporte vale considerarlo nulo si no se tiene en cuenta el

resto de los trabajos, la cantidad de gente expresándose es, a nuestro

entender, el verdadero fenómeno, es la fuerza del uno y la colaboración

anónima lo que le da sentido al intercambio, a la reconfiguración de

los significados y la diversidad construye su discurso.”

A matéria prima fundamental destes artistas são os fragmentos

de realidade que, ao sofrerem intervenções e deslocamentos, expõem

ideologias ocultas e possibilidades impensadas, “o menor fragmento

autêntico da vida cotidiana diz mais que a pintura. Assim como a

sangrenta impressão digital de um assassino, na página de um livro,

diz mais que o texto” diz Benjamin.

98

99

100

101

Bienal dos Pobres

Meu amigo Severino,

Tua coragem reverberou em mim. No começo, esta história de

ocupação me causava sérias suspensões de juízo. E este não concordar

nem discordar, pra mim, é quase pior do que estar do lado errado da

história. Mas fui te conhecendo melhor e os teus motivos terminaram

por se fazer arrebatadores. Eu concordo com você, do alto da minha

classe média, concordo com você.

Os edifícios abandonados estão aí para serem ocupados. O ser

humano tem sempre prioridade: sobre as leis, sobre os ratos, sobre

os donos. Mas você não levou para lá somente o teu corpo, levou

a tua alma grande, que ocupou o maior espaço. Você não somente

habitou, mas habitou poeticamente.

Com livros achados no lixo você montou uma biblioteca e

Machado de Assis ocupou com você. Com o tempo foram chegando

outros e logo os grandes nomes da literatura universal te faziam

companhia na sua intrépida aventura. Os mortos foram atraindo os

vivos e noutro dia havia ali as duzentas pessoas. E estas pessoas

resolveram fazer arte e povoaram aquele ambiente estranho com

imagens provocadoras. Elas ocuparam o espaço do subsolo do prédio

mas ocuparam também o subsolo dos sentidos. Os teus amigos

artistas ocuparam os signos do poder, ocuparam os clichês, ocuparam

o símbolo de distinção social oculto na palavra bienal. Você nunca

foi numa bienal de arte. A bienal não é para você nem para os seus.

Mas você não acreditou nisto e fez a tua própria bienal: a Bienal dos

Pobres.

Nada de ambientes compartimentados como na outra Bienal.

Na tua bienal o espaço é socializado e abriga uma conversa mal

educada e muito mais interessante do que os monólogos polidos e

chatos da outra bienal.

102

Eu aplaudo você por esta deselegância de entrar no prédio dos

outros sem ser convidado, aplaudo os artistas pela invasão do espaço

dos signos e pela expulsão dos antigos inquilinos comprometidos

com o poder hegemônico.

O prédio não cumpria a sua função social, prevista na

constituição do Brasil , e precisava ser ocupado; da mesma forma,

os signos que não cumprirem sua função social também devem

ser ocupados, ainda que haja luta, ainda que haja embate em seu

interior.

Um prédio vazio e um clichê são a mesma coisa, sobrepujam o

direito à moradia e aniquilam o direito à poesia.

de tua amiga com orgulho

Lyara

103

104

105

O Antes e o Depois das Imagens do World Trade Center

“Com efeito, a coisa mesma não se esgota em seu fim, mas em

sua atualização; nem o resultado é o todo efetivo, mas sim o resultado

junto com o seu vir-a-ser”

Hegel

Kaí tí tô gignômenon mèn kaì apollýmenon, óntos dê oudêpote ón;1

Platão

O Retrato de Dorian Gray narra a história da relação entre uma

imagem e a vida do personagem por ela representada. Esta intrigante

relação caracteriza-se pelo fato de que, enquanto o personagem

permanece jovem e belo, a pintura vai sofrendo alterações de acordo

com os acontecimentos da vida do rapaz que são, assim, plasmados

na representação pictórica de seu rosto.

O livro de Oscar Wilde encerra uma metáfora que ilustra, de

maneira exemplar, a relação entre as imagens e os fatos.

Parece claro que os sentidos das imagens se vinculam aos fatos do

passado como ocorre, como vimos, com a suástica nazista, e aos fatos

do presente que constituem o contexto geral dos fenômenos sociais,

que condicionam a sua significação.

Mas o mais desafiador para qualquer artista da imagem está

na consciência de que as imagens vinculam-se também aos eventos

futuros. A imagem é como a mensagem numa garrafa atirada ao

mar: seu destinatário aleatório pode estar séculos depois. Apesar

do efêmero de boa parte dos suportes, a imagem pode sobreviver

décadas e séculos e sofrerá as interferências provenientes de novos

e imprevisíveis contextos. Assim, toda imagem possui sentidos que

somente se revelam à luz de acontecimentos posteriores.

1 Que é o que será e o

que foi, mas realmente

nunca é?

106

Mukarovsky afirma que a obra de arte (ou a imagem no nosso

caso) se conecta, numa estrutura, tanto ao que veio antes quanto ao

que ainda está por vir.

Tomemos o caso das imagens do World Trade Center; de

todas aquelas anteriores ao episódio de 11 de setembro, como esta

fotografia.

Nesta foto, aviões de alta tecnologia, avançam, imperativos,

sobre uma megalópole moderna e ensolarada. Há um escudo aéreo

que protege a cidade, capital do mundo, representada pelas torres

gêmeas do World Trade Center. Os aviões são lindos e a imagem

transpira os princípios da segurança e da eficiência.

Depois do 11 de setembro, esta mesma imagem tinge-se de

ironia. Os aviões já não são tão lindos, são pequenos; não há eficiência,

eles estão desalinhados e com a numeração fora de ordem; um dos

pilotos pode enlouquecer e mudar sua rota em direção à cidade frágil

e desprotegida. Há agora, na imagem, a idéia de insegurança, ameaça

e incompetência.

Esta outra imagem é de um cartaz colado à entrada da plataforma de

107

observação situada no topo de uma das torres gêmeas. “É difícil ficar

“pra baixo” quando se está por cima” diz o texto. Não há depressão

possível para aquele que é superior. Não é admissível ficar amuado

a 250 metros de altura, olhando a cidade-mapa com seu movimento

frenético de automóveis e gente rumo ao progresso. É improvável

sentir-se inferior estando no topo de um prédio em uma cidade que

está no topo do mundo.

A composição da imagem reafirma o texto. As torres gêmeas

são vistas de cima, por uma lente olho-de-peixe que cria a sensação

de estarmos a ver o planeta terra do espaço. É o olhar de Deus que

enxerga as torres gêmeas no centro do planeta e, portanto, no centro

de Sua atenção. God bless America! Há auto confiança e afirmação de

superioridade nesta imagem.

Depois de 11 de setembro, a imagem tinge-se de um escárnio

mordaz. Há uma segunda voz que diz: - “veremos...”. O “be down”

108

perde o seu sentido conotativo e passa a ser lido em seu sentido de

dicionário. Não é Deus quem olha as torres gêmeas, mas um satélite

espião que colhe informações preciosas. O cartaz já não parece ter

sido criado por um estadunidense, mas por um sarcástico terrorista

muçulmano. A imagem possui, agora, um velado tom de ameaça e

funciona como uma justificativa à punição de pecadores soberbos.

Justificativa semelhante revela-se nesta outra imagem. As torres

gêmeas, vistas assim, de baixo, parecem sustentar a abóbada celeste.

O ser humano é ao mesmo tempo um ente insignificante e grandioso

capaz de erigir esta espécie de escada para o paraíso.

Há uma arrogância latente na imagem. Depois do 11 de

setembro, a conexão intertextual com as narrativas bíblicas sobre

a torre de babel e seu destino, torna-se inevitável. Esta imagem,

aliada aos eventos, parece ilustrar o texto intitulado “O Escudo da

Cidade” onde Kafka conta como o projeto da torre de Babel, surgido

inicialmente do desejo de grandeza do Homem faz, aos poucos, surgir

o que há de mais mesquinho na natureza humana, culminando no

desejo de que chegue um dia “especialmente vaticinado, no qual

cinco golpes assestados em forma sucessiva, pelo punho de uma

mão gigantesca, destruirão a mencionada cidade. E é por isso que o

punho aparece em seu escudo de armas.”

Nestas outras duas imagens, o deslocamento da estrutura

109

interna provocado pelos fatos veementes usurpam os sentidos

anteriores.

O nascer e o por do sol acentuam a imanência das torres gêmeas.

Dias passarão, anos passarão, séculos passarão e as torres gêmeas

permanecerão, eretas e monumentais, como as grandes construções

da humanidade, num testemunho indelével da grandiosidade do povo

estadunidense.

Depois do 11 de setembro, desaparece a oposição entre o

efêmero do movimento solar e a permanência da construção, há

uma identidade: as torres nasceram e se puseram como o sol. Além

disso, as imagens parecem oferecer sugestões estratégicas de ação.

Na primeira, o sol assemelha-se ao formato de um avião que vem ao

encontro das duas torres; o reflexo na água faz lembrar a fumaça

que se vê após uma explosão. Na segunda, o sol atua como um raio

x que revela o frágil esqueleto dos edifícios e a imagem realista passa

a atuar como um desenho esquemático a serviço de estrategistas

alucinados.

Nestas duas imagens, os fenômenos naturais passam a ser

portadores de sentido pelo mecanismo de projeção assim explicado

pelo grupo µ:

110

Se a sociedade nos oferece artefatos visuais cuja função é

claramente a de significar (escultura, quadros abstratos, fotos,

planos) esta função existe igualmente no caso de objetos tais

como pôr do sol, árvores, pedras, solos, água. É necessário, e

suficiente, que estes objetos sejam introduzidos por alguém,

inclusive furtivamente, num processo de semiose qualquer; o

qual, de certo modo, torna-se artificial. A noção de intenção

se vê, de repente, substituída pela de projeção: projeção do

receptor sobre uma série de fatos físicos aos quais dá sentido.

(esta é a teoria da leitura ativa, que sempre defendemos)

(Groupe µ: 1993)

Na imagem seguinte, recebida por e-mail com o título “como

nasce uma idéia”, um acaso objetivo submetido à crítica paranóica de

alguém transforma-se em um roteiro cinematográfico holiwoodiano

encenado num reality show horripilante pelo grupo terrorista que

atacou as torres gêmeas.

Pelo exposto, ficam claras três conclusões fundamentais:

1. Toda imagem é uma caixa de Pandora, contêm, em seu interior,

um sem número de possibilidades significantes que podem se

vincular a fatos do passado, do presente e do futuro;

2. As próprias imagens das torres gêmeas, divulgadas

internacionalmente, sugeriram os ataques terroristas de 11

de setembro pois os terroristas foram capazes de deslocar

a estrutura interna e os elementos portadores de sentido,

alterando a sua hierarquia e seus significados.

3. A imagem também é uma questão de vida ou morte.

111

A imagem Reproduzida

A reprodução liberta a imagem, de seu suporte, de seu lugar, de sua

moldura, de seu dono. A reprodução é uma carta de alforria e a imagem

está então, livre para dialogar. “Originalmente, as pinturas constituíam

uma parte integrante do edifício para o qual estavam destinadas. (...)

A unicidade de cada pintura foi uma vez parte da unicidade do local

onde ela residiu. Por vezes a pintura era transportável. Mas nunca

podia ser vista em dois lugares ao mesmo tempo”. John Berger

A imagem reproduzida perde e ganha durante o processo de

reprodução. Não estamos apenas falando das reproduções fiéis feitas

pelos meios de reprodução técnica, estamos falando da cópia mal

feita, da paródia, da falsificação, da pirataria, da releitura, da colagem.

Neste trabalho de Banksy, clássicos da pintura universal sofreram

alguns acréscimos. Banksy fundiu, à arte do passado, elementos

contemporâneos que não possuem, originalmente, nenhum atributo

artístico. Carrinhos de supermercado, sistemas de vigilância por

câmeras, sucata de automóvel são elementos anti-artísticos que, ao

serem inseridos no espaço significante de uma obra, reconhecida

pelos experts como arte, causa um impacto que desloca as estruturas

internas desta obra. Banksy está dizendo: se a arte não sai dos

museus e vem ao encontro da realidade, a realidade entrará, à força,

no ambiente da arte.

112

Só os artistas que são reproduzidos permanecem vivos. O

objetivo de qualquer artista deveria ser buscar ser plagiado. Leonardo

da Vinci não pode se queixar. Ele é autor de uma das imagens mais

reproduzidas na história da humanidade, a Monalisa e seu espectro

continua a circular entre nós. Não é à toa que, séculos depois de sua

morte, o interesse por ele renova-se a cada geração e o torna tema de

best sellers e filmes de cinema.

A estrutura interna da Monalisa mostrou-se, ao longo da

história, extremamente móvel e adaptável aos mais diferentes

suportes e contextos culturais. Ela suporta as alterações formais,

cromáticas, de suporte, tamanho, etc. e mantém, intocado o seu

essencial ar de mistério. A Monalisa é um patrimônio coletivo de toda

a humanidade e dificilmente se vinculará a culturas hegemônicas

nem totalitárias. As estruturas altamente móveis são, portanto,

libertárias, democráticas e humanas.

113

114

ConclusãoA conclusão é a seguinte:

O mundo é hoje potencialmente mais poético do que em outros

tempos.

A novidade e o poético, a partir da teoria da informação definem-

se pelo fato de que, “se é verdade que todos os códigos podem prover,

por que são funcionais, um certo grau de redundância às mensagens

(isto é, um baixo conteúdo informativo) toda operação estética, sendo

baseada na originalidade, deve, ao contrário, aumentar muito o grau

de informação, ou seja, o grau de imprevisibilidade das próprias

mensagens.” (Calabrese: 1987) Por isso a rua é mais

poética do que o museu, a internet, mais que o impresso, porque são

espaços que propiciam interação, a imprevisão, o diálogo, a citação,

a apropriação, a incorporação, a intertextualidade. E estas são as

palavras de ordem da nova estética, estes são os caminhos para a

poesia.

A força poética e estética estão necessariamente na vinculação

entre as criações humanas e a vida, o espaço e o tempo. Quanto

menor esta vinculação mais fraco o poder de transformação desta

criação. A experiência estética tem, assim, um caráter essencialmente

dialógico e há nela, como defende Marcuse, um “significado político,

o qual consiste no fato de ela nos introduzir num modo de sentir e

de pensar alternativos relativamente ao quotidiano, dominado pelo

dinheiro e pelo poder burocrático.” (Perniola:1998)

Não há outro caminho senão o da criação coletiva e qualquer

reserva sobre isto é hipocrisia. O conceito de invenção já não coincide

com o de novidade e o inédito é apenas uma nova forma de rearranjo

de elementos do domínio comum.

Se toda criação está baseada no repertório coletivo, o que um

homem faz é como se todos o fizessem. “A ficção do indivíduo criador

dá lugar ao confisco, à citação, à seleção, à acumulação e à repetição

115

manifestos de imagens já existentes. As noções de originalidade,

autenticidade e presença (...) são enfraquecidas” ( Hutcheon: 1991).

Diante desta realidade, como lidar com questões que estão na ordem

do dia como a pirataria e os direitos autorais? É necessário flexibilizar

antigos conceitos e alargar restrições sob pena de escondermos,

sob uma máscara de justiça, uma espoliação de bens naturalmente

públicos e coletivos. Somos, portanto, obrigados a reconsiderar a

idéia de originalidade para além daquela defendida pelo humanismo

liberal.

O individual está em crise “como sugeriram Foucault e outros,

a essa contestação do indivíduo unificado e coerente se vincula um

questionamento mais geral em relação a qualquer sistema totalizante

ou homogeneizante. O provisório e o heterogêneo contaminam todas

as tentativas organizadas que visam a unificar a coerência (formal ou

temática)” (Hutcheon: 1991)

A heterogeneidade é condição primordial para o diálogo que

exige sempre vozes diferentes. A diversidade cultural deve ser vista,

portanto, como o grande patrimônio da humanidade pois somente

ela permitirá que o fenômeno poético continue acontecendo a todo o

momento e em cada esquina do mundo.

Esta multiplicidade do mundo reflete-se na fragmentação e

pluralidade da identidade do indivíduo contemporâneo segundo uma

concepção “interativa” da identidade e do eu. “Para Cooley quando a

vida individual começa, os elementos hereditário e social fundem-se

e deixam de existir como forças isoladas. Para ele, nem o indivíduo,

nem o grupo, tem primazia na análise sociológica, existindo, sim, um

processo de influência mútua entre um e outro. Os pressupostos do

interacionismo simbólico, são três premissas: 1. O comportamento

humano fundamenta-se nos significados dos elementos do mundo.

2. A fonte dos significados é a interação social. 3. A utilização dos

significados ocorre por meio de um processo de interpretação.”

(Perniola:1998)

116

A imagem-móbile que apresentamos, mobiliza também o interior

mais profundo do ser humano, provocando modificações

importantes e abrindo caminho para a realização de utopias. Diz

Aníbal Quijano que “toda transformação no mundo ocorre primeiro

como transfiguração estética. Conseqüentemente é preciso admitir

uma relação fundamental entre utopia e estética”, assim, a imagem

deslocada pode ser vista como um prenúncio de uma nova ordem e

de um “tempo historicamente novo”.

Mas para que esta transformação ocorra, é necessário que

estejamos preparados para “ultrapassar as camadas superficiais de

conteúdos petrificados pelo cotidiano” pois só assim seremos capazes

de alcançar um outro estágio de humanidade, uma “humanidade

terceira”, como diz Peñuela. É necessário que estejamos atentos ao

mistério do sublime que “consiste efetivamente em distinguir, através

do sensível, qualquer coisa que o sensível não pode apresentar sob o

aspecto de formas” (Perniola:1998)

E a imagem tem este poder, uma simples imagem pode

desencadear processos irreversíveis se conseguirmos libertar

o olhar e reconhecer no aparentemente insignificante forças

incomensuráveis.

Dalí, ao analisar uma fotografia comum, detecta num canto

sem importância um objeto insignificante e diz:

“Retirem, eu lhes peço (mesmo que seja contra

sua própria vontade), seus olhos do centro

hipnotizante dessa fotografia (...) Todo o enigma

provocado pela pequena bobina sem fio (...) reside,

no momento, segundo minhas pesquisas, na

dificuldade para o homem moderno, que pretende

mais ou menos alimentar-se à luz e ao calor das

ciências particulares, em compreender a situação

de um tal objeto, poder localiza-lo (segundo nossos

velhos hábitos) no vir-a-ser espacial e temporal”

(Dali:1974)

117

É preciso despir-se dos velhos hábitos e deixar que as imagens

repercutam acima e à margem das certezas racionais. É preciso estar

aberto à experiência estética que não se diferencia radicalmente da

experiência comum pois, segundo Dewey, “qualquer experiência

pode tornar-se estética se, em vez de ser interrompida e abandonada

(como continuamente acontece), for prosseguida e levada a termo.

(...) O contrário de uma existência estética é uma vida que vai à deriva

(...) ou então é uma experiência que tem um princípio, mas é depois

abandonada por indolência, covardia, (...) respeito pelas convenções.”

(Perniola:1998)

Para alcançar esta experiência estética, que dão mais densidade à

vida, várias maneiras já foram apontadas. Benjamin nos fala que “é

preciso do imprevisível” e da distração que liberta uma percepção no

limiar entre consciente e inconsciente; Greimas nos fala da “espera

de uma estesia única, de um deslumbramento” e pergunta “é possível

uma sintaxe da vida ‘aceitável’? Entre as práticas do gosto socializado,

que conduzem à usura das categorias estéticas e o grande evento,

que talvez acontecerá, existirá um caminho pessoal por traçar, um

caminho para a esperança?”

Este caminho tem duas mãos, de um lado o leitor em busca

destes momentos de Thykhe (do grego, acaso/ surpresa/ imprevisto)

como forma de libertação em busca de “mágicos novos sistemas de

pensamento” (Guimarães Rosa); e de outro o artista gráfico que tem

como missão “despertá-los do sono reconfortante da comunicação

generalizada, frear sua má velocidade de vida, faze-los perder um

pouco de tempo” (Lyotard:1996) e no meio do caminho a pedra

estratégica do acaso, que achata e altera com seu peso incalculável,

as intencionalidades do leitor, do autor e da obra.

Os deslocamentos que vimos, provocados por ações de invasão,

fusão, inversão e apropriação são as “provas de que a coisa, única,

adveio, que outra coisa seja talvez possível” greimas

A iluminação, o êxtase, o terrorismo poético, o grande evento,

118

a thykhe, a estesia, o deslumbramento são o portão para a profunda

transformação da alma humana e a imagem deslocada é o tiro que

arrebenta o cadeado.

“Curta a incerteza” porque no caos do mundo pós-moderno

só uma certeza persiste: toda comunicação está inexoravelmente

destinada a um “indesfecho”.

119

Bibliografia

Bibliografia

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