síntese da coleção história geral da África, ii: século xvi ao século

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  • Sntese da coleoHistria Geral da frica

    Sculo XVI ao sculo XX

    Editor: Valter Roberto Silvrio

    Braslia, 2013

  • Esclarecimento

    A UNESCO mantm, no cerne de suas prioridades, a promoo da igual-dade de gnero, em todas as suas atividades e aes. Devido especificidade dalngua portuguesa, adotam-se nesta publicao os termos no gnero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inmeras menes ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam grafados no masculino, eles referem-seigualmente ao gnero feminino.

    Autor: Povo BijagsTtulo: Adorno de Costas CorubOrigem: Guin-BissauTcnica: madeira policromadaDimenso (cm): 30 x 36 x 14Acervo: Museu Afro Brasil. Coleo Emanoel Arajo

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  • Sntese da coleoHistria Geral da frica

    Sculo XVI ao sculo XX

    Editor: Valter Roberto Silvrio

  • Publicado pela Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO). Esta publicao fruto de uma parceria entre a Representao da UNESCO no Brasil, o Ministrio da Educaoe a Universidade Federal de So Carlos. UNESCO 2013Todos os direitos reservados.Coordenao editorial: Setor de Educao da Representao da UNESCO no BrasilRedao: Maria Corina Rocha e Muryatan Santana BarbosaReviso tcnica: Muryatan Santana BarbosaReviso e atualizao ortogrfica: Maria Corina RochaProjeto grfico e diagramao: Casa de Ideias e Unidade de Comunicao Visual da Representao da UNESCOno BrasilImagem de capa: Rmulo FialdiniOs autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opiniesnele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaesde nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites.

    Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO)Representao no BrasilSAUS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9 andar70070-912 Braslia DF BrasilTel.: (55 61) 2106-3500 / Fax: (55 61) 3322-4261Site: www.unesco.org/brasilia / E-mail: [email protected] da Educao (MEC)Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade e Incluso (Secadi/MEC)Esplanada dos Ministrios, Bl. L, 2 andar70097-900 Braslia DF BrasilTel.: (55 61) 2022-9217 / Fax: (55 61) 2022-9020Site: http://portal.mec.gov.br/index.html

    Universidade Federal de So Carlos (UFSCar)Rodovia Washington Luis, Km 233 SP 310 Bairro Monjolinho13565-905 So Carlos SP BrasilTel.: (55 16) 3351-8111 (PABX) / Fax: (55 16) 3361-2081Site: http://www2.ufscar.br/home/index.php

    Impresso no Brasil

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Silvrio, Valter RobertoSntese da coleo Histria Geral da frica : sculo XVI ao sculo XX / coordenao

    de Valter Roberto Silvrio e autoria de Maria Corina Rocha e Muryatan Santana Barbosa. Braslia: UNESCO, MEC, UFSCar, 2013.

    784 p.ISBN: 978-85-7652-169-3

    1. Histria 2. Histria Medieval 3. Histria Moderna 4. Histria Contempornea

    africanas 10. Arqueologia 11. Lnguas africanas 12. Artes africanas 13. Norte da frica14. Leste da frica 15. Oeste da frica 16. Sul da frica 17. frica Central 18. fricaI. Rocha, Maria Corina II. Barbosa, Muryatan Santana III. UNESCO IV. Brasil. Ministrioda Educao V. Universidade Federal de So Carlos

    http://www.unesco.org/brasiliamailto:[email protected]://portal.mec.gov.br/index.htmlhttp://www2.ufscar.br/home/index.php

  • 5SUMRIO

    SUMRIO

    Apresentao ............................................................................................... 7Captulo 5 frica do sculo XVI ao XVIII ............................................ 17Captulo 6 frica do sculo XIX dcada de 1880.............................. 181Captulo 7 frica sob dominao colonial, 1880-1935......................... 339Captulo 8 frica desde 1935 ............................................................... 455Referncias bibliogrficas ....................................................................... 615

  • 7Apresentao

    Hoje, torna-se evidente que a herana africana marcou, em maior ou menor grau, dependendo do lugar, os modos de sentir, pensar, sonhar e agir de certas naes dohemisfrio ocidental. Do sul dos Estados Unidos ao norte do Brasil, passando peloCaribe e pela costa do Pacfico, as contribuies culturais herdadas da frica sovisveis por toda parte; em certos casos, chegam a constituir os fundamentos essen-ciais da identidade cultural de alguns dos segmentos mais importantes da populao(Amadou Mahtar MBow, Prefcio da primeira edio portuguesa da HGA).((

    Assistimos, durante o sculo XX, multiplicao dos estudos sobre o negro no Brasil, quase todos, porm, sem lhe acompanhar o passado africano. A frica parecia mais que esquecida, ignorada. Embora durante a descolonizao do continente se tenha reacendido o interesse brasileiro pela frica, o descaso por sua histria persistiu atontem, ou anteontem. Ao comear a ser corrigido o pecado, no nos demoramos, noentanto, em reconhecer que muito do que se passava num lado do atlntico afetava a outra margem. E nos convencemos de que o Brasil tambm comea na frica, ea frica se prolonga no Brasil (Alberto da Costa e Silva, Introduo Razes Africanas Revista Histria Biblioteca Nacional).

    A Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura(UNESCO) desde sua criao, em 4 de novembro de 1946, apostou na crenade que elucidar a contribuio dos diversos povos para a construo da civiliza-

    Apresentao

  • 8 Sntese da HGA Volume II

    o seria um meio de favorecer a compreenso sobre a origem dos conflitos, do preconceito, da discriminao e da segregao raciais que assolavam o mundo. No caso brasileiro, o chamado projeto UNESCO, com pesquisas realizadas nosanos 1951 e 1952, marca o desvendamento, sob bases das cincias sociais, dasformas como se configuravam as relaes raciais no pas.

    Ao se passarem aproximadamente 60 anos das pesquisas pioneiras do projetoUNESCO, podemos afirmar que foram inmeras as transformaes vivenciadas pela sociedade brasileira. E, principalmente, aps a abertura poltica de meados dos anos 1980, os fatos permitem vislumbrar um processo de profunda mudanasocial, no qual de forma tensa, conflituosa e contingente convivem perspectivas de recriao/resgate do passado com projeo/planejamento do futuro.

    Entre os projetos polticos e sociais que disputam no espao pblico o quedeve ser o Brasil do futuro escancaram-se no presente contradies de temposimemoriais, impedidas de se manifestarem em sua plenitude pelo manto do autoritarismo e represses pretritas em um pas projetado, pelas elites, para ser outro, ao menos do ponto de vista de sua populao.

    O desencontro entre a projeo das elites e o estoque populacional foi tema de vrios autores desde a famosa Carta de Caminha.

    Esse desencontro proporcionou uma situao na qual os impactos das cultu-ras africanas, na formao social brasileira, foram, por um lado, retratados pelosviajantes tanto de forma positiva quanto negativa e de espanto, objeto de estudo por setores intelectuais ressaltando especialmente dvidas sobre a viabilidade da constituio de uma nao e, por outro lado, aquelas culturas, desde sua chegada em nosso solo, tm sido o lugar de vivncia e prticas sociais populares quemarcam a prpria histria do Brasil, no a oficial, e desafiam as vrias imagi-naes que constituem as cincias sociais dadas plasticidade, variabilidade e capacidade de negociao com outras culturas.

    Nos vrios patrimnios que compem o que chamamos hoje de nao bra-sileira vamos encontrar as contribuies das culturas africanas e de outras com as quais elas negociaram em condies assimtricas.

    Para alm dos instrumentos legais da UNESCO1, a noo de patrimnio cultural faz parte da constituio brasileira, a qual recomenda o seguinte:

    1 A UNESCO trabalha impulsionada pela Conveno para a Proteo do Patrimnio Mundial Cultural e Natural, que hoje o instrumento internacional da UNESCO que obteve a adeso de mais Estados--membros, e tambm pela Conveno para a Proteo do Patrimnio Subaqutico e a Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial...

  • 9Apresentao

    O poder pblico, com a cooperao da comunidade, deve promover e prote-ger o patrimnio cultural brasileiro.2 Dispe que esse patrimnio constitudopor bens materiais e imateriais que se referem identidade, ao e memriados diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, quais sejam: as formas de expresso; os modos de criar, fazer, viver; as criaes cientficas, artsticas e tec-nolgicas; as obras, objetos, documentos, edificaes e demais espaos destinadoss manifestaes artstico-culturais; os conjuntos urbanos e stios de valor his-trico, paisagstico, artstico, arqueolgico, paleontolgico, ecolgico e cientfico.

    Ns podemos subdividir o patrimnio cultural brasileiro em artstico, cienti-fico, tecnolgico e ambiental. No entanto, o reconhecimento de nossas matrizesafricanas constitui a base para a compreenso das hibridaes resultantes denossa formao social pluricultural.

    Como forma de reconhecer a influncia dessas culturas, o Ncleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de So Carlos (NEAB/UFSCar), emparceria com a UNESCO e o Ministrio da Educao (MEC), desenvolveu oprograma Brasil-frica: Histrias cruzadas. Consequncia da promulgao da Lei no 10.639 de 2003, a qual orienta que os sistemas de ensino implementem a histria da cultura afro-brasileira e africana na educao bsica. O principalobjetivo do projeto dar visibilidade e reconhecimento interseco da histria africana com a brasileira, transformando e valorizando positivamente as relaes entre os diversos grupos tnico-raciais que convivem no pas.

    A primeira ao desenvolvida pelo programa foi a traduo para o portugus da Coleo Histria Geral da frica, da UNESCO, principal obra de referncia sobre a histria do continente. So oito volumes, com aproximadamente 1000 pginas cada, que contam a histria da frica sob a perspectiva dos prpriosafricanos. Inicialmente publicada em francs, at meados dos anos 1980, elalevou trinta anos para ser produzida e sua concepo surgiu do desejo das recm--independentes naes africanas de contarem sua histria de forma crtica em relao perspectiva eurocntrica e estereotipada das obras de ento.

    A partir dessa traduo, estamos desenvolvendo a verso brasileira do projeto intitulado Uso Pedaggico da Histria Geral da frica3, o qual torna o contedo da coleo mais acessvel ao transform-lo em material pedaggico. Para tanto, esto sendo produzidos diversos produtos baseados na obra.

    2 BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia: Senado Federal, 1988.3 Existe um projeto para o desenvolvimento de materiais de uso pedaggico, com base na Coleo da

    Histria Geral da frica da UNESCO, para os pases do continente africano. p j p p g gp

  • 10 Sntese da HGA Volume II

    A sntese, em dois volumes, que estamos disponibilizando a partir dos oitovolumes da Histria Geral da frica parte do conjunto de materiais e tem por objetivo propiciar aos professores e alunos, e s pessoas de modo geral, umconjunto de conhecimentos e informaes sobre o continente africano, os quaispodem abrir novas possibilidades de tratamento de questes que atravessamseu cotidiano no interior da escola. Neste sentido, procuramos organizar os dois volumes com textos sintticos e objetivos, para permitir uma viso tantoda riqueza das contribuies dos povos africanos para a humanidade quanto do seu impacto na constituio da sociedade brasileira e, tambm, em resposta sreivindicaes de mudanas expressas pela lei no 10.639/2003 e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-raciais e para oEnsino de Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana.

    A sntese possibilita, tambm, uma primeira aproximao ao conjunto de conhecimentos presentes na Histria Geral da frica, obra de referncia, a qual poder ser consultada por aqueles que queiram se aprofundar em aspectos e temas especficos.

    Os critrios utilizados para a elaborao da sntese foram os seguintes:Cada volume da verso original em lngua portuguesa transformou-se em um captulo na verso sintetizada. No volume 2 da sntese, em geral, os captulos de cada um dos volumes da verso original transformaram--se em subcaptulos ou tpicos. Assim, a estrutura bsica :Apresentao do livro-sntese;Introduo geral de Ki-Zerbo para os dois volumes;Referncias bibliogrficas de cada volume da verso integral.

    Volume 1: Sntese da Coleo Histria Geral da frica: da pr-hist-ria ao sculo XVIO volume 1 da sntese corresponde aos volumes de 1 a 4 da verso ori-ginal, assim:Captulo 1: Metodologia e pr-histria da frica Captulo 2: frica antiga Captulo 3: frica do sculo VII ao XI Captulo 4: frica do sculo XII ao XVI

    Volume 2: Sntese da Coleo Histria Geral da frica: do sculo XVI ao sculo XXO volume 2 da sntese corresponde aos volumes de 5 a 8 da verso ori-ginal, assim:

  • 11Apresentao

    Captulo 5: frica do sculo XVI ao XVIIICaptulo 6: frica do sculo XIX dcada de 1880Captulo 7: frica sob dominao colonial, 1880-1935 Captulo 8: frica desde 1935

    Outros critrios metodolgicos:A sntese reflete o contedo da HGA em sua ntegra, no limite das pos-sibilidades. Esse contedo mostra o estado das pesquisas e as hiptesescom as quais se trabalhava na dcada de 1980. Assim, no se trata deuma sntese atualizada da HGA, e sim da sntese do contedo da HGAcomo foi pensado e escrito pelos seus autores.Na verso da sntese da HGA em lngua portuguesa, procurou-se seguir os parmetros das snteses j existentes em outras lnguas (principal-mente a verso norte-americana no caso do volume 2). As edies abre-viadas foram propostas como base para a traduo em lnguas africanas. Nas snteses, a estrutura dos captulos praticamente igual da versointegral, porm os livros foram reduzidos cerca de 80 a 90%. Esse pro-cedimento suprimiu do texto original as partes em que o contedo debatido, deixando-o mais fluente.As repeties presentes nos volumes integrais principalmente em funode vrios autores tratando de um mesmo tema e mesma poca , quandopossvel, foram eliminadas. No entanto, as ideias e os objetivos dos autoresde cada captulo foram preservados, e mantidos os exemplos mais repre-sentativos, significativos ou esclarecedores para o assunto tratado.As notas de rodap foram suprimidas totalmente; a meno dos nomesdos autores dos captulos originais tambm foi eliminada, bem como odiscurso em primeira pessoa (em razo das interferncias e mudanasnecessrias para se resumir o texto); grficos e tabelas foram retirados e os dados referentes inseridos no texto quando preciso. Mapas e imagensiconogrficas foram mantidos conforme a relevncia em cada captulo.As padronizaes onomsticas foram feitas na medida do possvel, em se tratando da complexidade de um projeto como esse: 8 volumes, numtotal de mais de 8 mil pginas com diversos profissionais envolvidos (com diferentes formaes). Os ndices remissivos de todos os volumes originais no constam na sntese.

    Os parceiros do Programa Brasil-frica: Histrias Cruzadas acreditam na importncia de o profissional de educao estar em sintonia com as mudanasem curso no que diz respeito ao poltica dos movimentos sociais identifi-

  • 12 Sntese da HGA Volume II

    cados pela literatura como identitrios, com o campo normativo expresso por mudanas na legislao educacional, as quais exigem atualizaes das prticas de ensino em funo da introduo de novos contedos e/ou novos enfoquesde temas tradicionais. O que se pretende que ao refletir sobre o significado da presena de vrios grupos tnicos africanos no Brasil que os professores identi-fiquem prticas sociais que atravessam o cotidiano escolar, mas nunca estiveramno interior da escola, como prticas significativas para seus alunos e familiares.

    A ideia que ao dar visibilidade ao encontro pretrito dos africanos com oterritrio hoje denominado Brasil, de modo no racializado e positivo, vamos nos reconciliar com uma dimenso fundamental da cultura brasileira encobertapelo racismo, pelas tentativas de branqueamento da populao e pelos discursos preconceituosos que desconhecem o quanto de frica existe no Brasil.

    O mapa abaixo nos d uma ideia sobre o fluxo de africanos que entraram no territrio hoje conhecido como Brasil; ele tambm justifica a possibilidade do cruzamento de vrias histrias e serviu como ponto de partida para o desenvol-vimento do projeto como um todo.

    Fonte: reproduzido de frica: culturas e sociedades; guia temtico para professores. So Paulo: MAE, USP, [1999]. (Formas de Humanidade).

  • 13Apresentao

    Vrios autores informam que os africanos que aportaram no Brasil eram originrios das seguintes regies:

    1) frica Ocidental: povos sudaneses e/ou iorubas (nags, ketus, egbs);gegs (ews, fons); fanti-ashanti (genericamente conhecidos como mina);povos islamizados (mandingas, haussas, peuls);

    2) frica Central: povos bantos: bakongos, mbundo, ovimbundos, bawoyo, wili (isto , congos, angolas, benguelas, cabindas e loangos);

    3) frica Oriental: os conhecidos como moambiques.

    De um modo geral, os povos africanos formariam alguns padres principaisde culturas negras no Brasil:

    1) A sudanesa (iorubana), aqui introduzida principalmente na Bahia, masespalhada pelo Norte/Nordeste; teria como caractersticas o culto aos orixs, a realizao de cerimnias de iniciao, a prtica de ritos mgicos, msica e dana/rituais, a elaborao de esculturas em madeira, em metais e outros traba-lhos manuais como, por exemplo, instrumentos musicais. A cultura iorubana apontada ainda como fonte de influncia ao nosso lxico.

    2) Os bantos, principalmente no estado do Rio de Janeiro e Minas Gerais, so mais estudados da perspectiva lingustica. Culto aos antepassados e aos esp-ritos; quimbundo incorporado ao portugus falado no Brasil; festas: coroao dos reis, danas que emulam a caa e a guerra (carnaval), festas do boi, folclore; esculturas em madeira, confeco de objetos domsticos etc.

    A identificao dos padres culturais acima e sua relao prioritariamente com aspectos centrais da cultura popular brasileira poder ser ampliada com mais pesquisas como, por exemplo, aquelas que tm demonstrado a dimensosociopoltica, e no religiosa e messinica, das revoltas do sculo XIX. Outroaspecto importante das novas pesquisas a identificao da forte presena deafro-brasileiros nesses movimentos, o que vem demonstrando o quanto neces-sitamos aprofundar nossos conhecimentos sobre a presena de elementos afri-canos na luta por mudana social na histria do Brasil.

    Outra dimenso que vem sendo resgatada est relacionada aos saberes e fazeres tradicionais na manipulao de plantas medicinais e condimentares emcomunidades quilombolas e/ou afro-brasileiras como um patrimnio cultural, e hoje se avalia seu uso, e importncia, na ateno bsica sade.

  • 14 Sntese da HGA Volume II

    Quando se preserva legalmente e na prtica o patrimnio cultural, con-serva-se a memria do que fomos e do que somos: a identidade da nao. Patrimnio, etimologicamente, significa um conjunto de bens naturais e cul-turais de importncia reconhecida num determinado lugar, regio ou pas, oumesmo para a humanidade na verdade, a riqueza comum que herdamos como cidados, e que se vai transmitindo de gerao gerao. No caso espe-cifico dos afrodescendentes (e dos brasileiros de modo geral) a refernciaprincipal o legado das vrias culturas africanas que contriburam com a formao social brasileira.

    Os bens materiais e imateriais que formam o nosso patrimnio culturalso atravessados por modos especficos de criar e fazer, os quais incluem asdescobertas e os processos de desenvolvimento cientfico e tecnolgico; asartes; as construes que se transformaram em monumentos da tradio bra-sileira, as quais so representadas pelos bens imveis e bens mveis como, por exemplo, as obras de arte e o artesanato. So extremamente importantes asexpresses de um povo, as criaes imateriais tais como a literatura, a msicae as danas. No esquecendo os modos de viver, a linguagem e os costumes; os locais dotados de expressivo valor para a histria, bem como as reas de proteo ambiental.

    O Brasil conta atualmente com a maior populao originria de uma movi-mentao forada, e, ainda assim, a importncia das culturas africanas na for-mao do territrio nacional desconhecida pela maioria dos brasileiros.

    Em relao s cincias humanas, em especial a histria, retraar os desloca-mentos desumanos provocados pelo colonialismo e, ao mesmo tempo, demons-trar que os povos colonizados tinham uma histria que foi interrompida, dando lugar a uma histria imposta que os colocou na condio de selvagens e brba-ros, nos possibilita entender o significado devastador da violncia do processo, colonial e, ao mesmo tempo, reconhecer que aquele processo ao tentar apagar ahistria dos povos colonizados, nos coloca a tarefa contempornea de reconsti-tuir, em diferentes nveis, contextos e situaes, a histria que est inscrita nasprticas sociais.

    A primeira dcada do sculo XXI pode ser considerada o marco de uma mudana fundamental na percepo de quem somos ns, os brasileiros. Frutode um longo processo de lutas e disputas simblicas recobertas pela ideia de pas mestio e harmnico, finalmente nos descobrimos como descendentes deafricanos, europeus, asiticos, nativos etc.

  • 15Apresentao

    A mestiagem4 e a miscigenao5, realmente existentes, tm sido deslocadas deseu sentido anterior, no qual s origens ancestrais pouca ou nenhuma importncia era conferida, para um reconhecimento de sua centralidade no processo de estigma-tizao ou mobilidade de um grupo. Desta forma, o imaginrio social que conferia mestiagem o estatuto prioritrio de nomeao de boa parte dos brasileiros, encobrindo suas origens, tem dado lugar, por exemplo, aos prefixos afro, euro etc.

    O debate sobre as diversas formas de ser brasileiro ademais tem contribudopara uma rediscusso de nossa cultura plural. A diversidade enquanto um valor est presente nos vrios discursos que perpassam nossa experincia cotidiana. A questo ento saber do que estamos falando: uma diversidade que faz ouno faz diferena?

    O que a gente est tentando mostrar que existe uma histria mundial muito mais complexa das contribuies das diferentes culturas para as cinciase tecnologias que temos hoje. Esse tipo de informao fundamental para se comear a desconstruir a imagem de que existem povos superiores e inferiores.

    Ento, a dinmica deste projeto tem como foco recontar de uma forma no hierarquizada as origens do conhecimento a partir de uma perspectiva que incluaas contribuies do continente africano, e para tanto recorremos HistriaGeral da frica.

    Neste sentido, a sntese que ora disponibilizamos no mbito do Programa Brasil-frica: Histrias Cruzadas mais um passo para que os sistemas deensino, e em especial os professores de educao bsica, tenham mais uma pos-sibilidade de acessar a Histria da frica para melhor compreender o quantodaquele continente est presente no Brasil. E sua maior importncia reside no fato de que qualquer brasileiro que se interesse por suas origens ancestrais, e/ouqueira acessar as origens das fortes influncias artsticas, cientficas e tecnolgi-

    4 O conceito de mestiagem uma construo que s adquire sentido quando se considera, em relao com seu par, a noo de raa. Ele nos conduz a um paradoxo bsico da ideia de mestiagem. Um mestiose forma a partir de duas ou mais raas. Assim, o paradigma dominante das cincias biolgicas afirma veementemente que no existem raas, que s existe uma raa humana. De acordo com esta concepo foi se convencionando a noo de populaes humanas como um substituto heurstico do conceito obsoleto de raa, de modo que nos permite continuar usando a ideia de mestiagem. Contudo, a palavramestiagem encontra sua maior difuso no sentido ideolgico de caracterizar alguns grupos humanosque se autodefinem estrategicamente, frente a outros considerados puros ou homogneos racialmente, como mestios. Esta ideologia da mestiagem especialmente importante na Amrica Latina, que se v mestia em oposio aos Estados Unidos da Amrica e frica do Sul (durante o regime do

    g g p p qapar-

    theid); naes que se definem como segregadas e, em consequncia, no mestias (BARAANO et al. p

    ddDiccionario de relaciones interculturales: diversidad y globalizacin. Madri: Editorial Complutense, 2007).

    5 Ao ou efeito de miscigenar-se; processo ou resultado da mistura de raas, pelo casamento ou coabi-tao de um homem e uma mulher de etnias diferentes (HOUAISS, A. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 1933).

  • 16 Sntese da HGA Volume II

    cas legadas pelas culturas africanas que participaram de nossa formao social, ter na sntese um texto indispensvel para esse fim.

    Dess a forma, h implicaes para a escola, e para a educao de modo mais amplo, da emergncia de novos sujeitos na esfera pblica a partir da mobilizaodos movimentos negro, indgena, feminista, que passam a exigir o reconheci-mento de suas especificidades, a ampliao de seus direitos de cidadania e o acesso igualitrio ao espao pblico e ao mercado de trabalho. O que na prtica significa que as instituies que operam na perspectiva de formar cidados necessitam se repensar para atender de forma democrtica tais exigncias.

    Valter Roberto SilvrioEditor

  • 17frica do sculo XVI ao XVIII

    C A P T U L O 5

    frica do sculo XVI ao XVIII

    A luta pelo comrcio internacional esuas implicaes para a fricaEm 1500, o mapa geopoltico do mundo revelava a existncia de um grande

    nmero de regies relativamente autnomas: o Extremo Oriente, o MdioOriente, a Europa, e, enfim, a frica, com sua encosta mediterrnea ao nortee suas costas do Mar Vermelho e do Oceano ndico, que estavam abertas aocomrcio internacional com o oriente.

    O perodo que se estendeu de 1500 a 1800 viu estabelecer-se um novo sis-tema geoeconmico orientado para o Atlntico, com seu dispositivo comercialtriangular, ligando a Europa, a frica e as Amricas. A abertura do comr-cio atlntico permitiu Europa e, mais particularmente, Europa Ocidental, aumentar sua dominao sobre as sociedades das Amricas e da frica.

    O perodo de 1450 a 1630 foi marcado, na maioria dos pases europeus, por uma formidvel expanso econmica, poltica e cultural e tambm por um movi-mento de expanso alm-mar que atingiu imensos territrios situados na borda do Atlntico e at mesmo no Pacfico. A costa africana sofreu esse movimentodesde o incio do sculo XVI.

    Durante todo o sculo XV e incio do sculo XVI, os portugueses conse-guiram estabelecer numerosas feitorias na costa ocidental e fazer com que a

  • 18 Sntese da HGA Volume II

    populao do litoral e seus chefes participassem do comrcio com os europeus. A partir de 1481-1482, a fortaleza de Elmina tornou-se a feitoria mais importante da Costa do Ouro. Na frica Oriental, dominaram pela fora Sofala, Mombaa e outras cidades costeiras.

    Por volta de 1525, os portugueses comearam a experimentar dificuldades para achar ouro, mesmo na regio de Elmina. Desta situao, aproveitaram-seos negociantes franceses, ingleses e holandeses, que dispunham de maioresmeios financeiros e no sofriam taxa de importao, pois suas mercadorias eramquase exclusivamente de origem metropolitana. Na frica, os mercadores quechegavam da Frana, da Inglaterra ou da Holanda possuam meios suficientes para comprar em maior escala e vender a melhores preos do que aqueles de Portugal. Os portugueses tinham conscincia desta situao, mas eram incapazes de remedi-la.

    Era sobretudo o ouro, exportado para os pases islmicos, que, no princpio, atraa os portugueses para a frica negra. No obstante, eles no tardaram a per-ceber que a frica possua uma outra mercadoria, tambm fortemente procuradapelos europeus: os escravos. A tradio de exportar escravos para os pases rabestinha suas razes no passado de uma grande parte do continente, em particular, do Sudo. Nos sculos XV e XVI, essa tradio parece ter ajudado os portugueses a conseguir, regularmente, escravos em uma grande parte da frica Ocidental, notadamente na Senegmbia, parceira econmica de longa data. Compreendendoo carter indispensvel da cooperao dos chefes e dos mercadores locais, dedi-caram-se a interess-los no comrcio de escravos. Os portugueses no ignoravam que isso pudesse resultar em uma intensificao dos conflitos entre os diversospovos e Estados africanos os prisioneiros de guerra tornando-se o principalobjeto deste comrcio mas deixaram muito cedo de se opor s objees morais, pois, como muitos outros na Europa, diziam acreditar que o trfico abria aos negros o caminho para a salvao: no sendo cristos, os negros haveriam de ser condenados por toda a eternidade se ficassem em seus pases.

    Durante todo o sculo XV e incio do XVI, o principal mercado para a mer-cadoria negra era a Europa, em particular, Portugal e os pases sob dominaoespanhola, assim como as ilhas do Atlntico: Madeira, Canrias, ilhas de Cabo Verde e So Tom. O trfico negreiro nessas ilhas originou-se, primeiro, em razo da introduo da cultura da cana-de-acar e do algodo. Na ausncia de tal imperativo econmico, a escravido teve poucas razes para se desenvolver no continente europeu. Os africanos, introduzidos em Portugal e nos territrios espanhis, foram, majoritariamente, empregados nas cidades como domsticos ou artesos pouco qualificados.

  • 19frica do sculo XVI ao XVIII

    Desenho satrico-poltico intitulado: Homens e irmos! The Wilberforce Muzeum, Hull.

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    Os portugueses, durante todo o sculo XV, tiveram um crescente interesse pelo comrcio de escravos e, ao longo do sculo XVI, e seguintes, buscavam ter-ritrios capazes de lhes fornecer escravos em grande quantidade. sob essa tica que preciso alocar a penetrao portuguesa no Congo, encetada no comeo do sculo XVI, e a conquista posterior de Angola. Obter grandes quantidadesde escravos era, igualmente, a preocupao dos colonos da Ilha de So Tom, no s porque precisavam dessa mo de obra para suas plantaes, mas tambmporque vendiam os escravos s colnias espanholas da Amrica e, a partir do fim do sculo XVI, tambm ao Brasil portugus. A populao negra do Brasil, que era somente de alguns milhares de indivduos, sofreu, no sculo seguinte, um brusco aumento, da ordem de 40.000 a 450.000 pessoas, atribudo ao incial desenvolvimento da cana-de-acar.

    O trfico negreiro, entretanto, apenas alcanou a sua plena expanso quandoforam criadas as grandes plantaes de cana-de-acar na Amrica.

    V-se, portanto, que desde o comeo do sculo XVI e, em particular, aolongo da segunda metade desse sculo, a frica desempenhou um papel extre-mamente importante, ainda que pouco invejado, de fornecedora de mo deobra e de uma certa quantidade de ouro para uma economia mundial em plenodesenvolvimento.

    Entretanto, necessrio destacar que a situao dos portugueses estava cada vez mais precria. O ano de 1560 assistiu primeira falncia da Coroa portu-guesa. A manuteno de um imprio colonial concedeu enormes benefcios auma parte da aristocracia e da pequena nobreza, assim como a alguns merca-dores, mas ela arruinou a Coroa e seu Tesouro, e tornou o fardo cada vez mais pesado para grande parte da populao.

    Os franceses, a partir de 1520, e os ingleses, a partir da segunda metade do sculo XVI, revelaram-se perigosos rivais dos portugueses na frica. A presena francesa foi particularmente sensvel na regio de Cabo Verde e do Senegal. Osfranceses pilhavam frequentemente, nessas guas, os navios portugueses que retornavam carregados de ouro africano ou de mercadorias embarcadas na ndia. Levavam da Normandia e da Bretanha txteis, lcoois, objetos de metal, at mesmo armas de fogo. Este ltimo comrcio favoreceu a Frana, pois a Coroa portuguesa havia proibido esse tipo de importao na frica, no momento em que os soberanos locais se desesperavam para obter tal produto. Os franceses compravam, sobretudo, o ouro e o marfim, mas tambm pimenta malagueta, peles e azeite de dend. Os escravos no ocupavam, nessa poca, um lugar dedestaque nas aquisies francesas. Na metade do sculo XVI, os franceses eram perigosos rivais dos portugueses na Costa da Pimenta e na Costa do Ouro. Mais

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    tarde, expulsaram os portugueses do esturio do Senegal e da Gmbia, mas seviram obrigados a ceder o lugar aos ingleses, no fim do sculo XVI.

    Na frica, a penetrao destes ltimos, no sculo XVI, anloga dos fran-ceses. Eles comearam a travar slidas relaes econmicas com o Marrocos, a partir de 1541, ano em que os portugueses foram expulsos de grande partedos portos que possuam no Atlntico, os quais, a partir de ento, abriram-se aos navios de outros pases europeus. Por volta de 1550 a 1565, as companhias comerciais inglesas promoveram vrias expedies. Exploravam as costas do Atlntico ocidental at o Golfo de Benin, onde compravam, sobretudo, ouro, peles e um pequeno nmero de escravos.

    Foi precisamente nessa poca que os holandeses apareceram nas costas do continente negro. Estavam, ento, em guerra com a Espanha, e se recusavam arespeitar a partilha do Atlntico. Tratavam Portugal, na ocasio governado por Felipe II, como inimigo. Os enormes capitais acumulados por seus negociantese a potncia de sua frota lhes permitiram penetrar, mais profundamente, nandia e na frica, do que os ingleses e os franceses. Os portugueses no podiam rivalizar com eles, pois que a riqueza dos holandeses e a grande eficcia de suas redes comerciais lhes permitiam vender barato grandes quantidades de produtos. Isso os favoreceu tambm em relao aos ingleses e aos franceses.

    A princpio, os holandeses se mostraram, como os ingleses e os franceses, pouqussimo interessados pelo comrcio de escravos. Por volta de 1600, toda-via, inaugurou-se uma nova fase da penetrao europeia na frica, ao longoda qual o comrcio de escravos viria a ter uma importncia crescente, inclusivepara os holandeses. Essa evoluo foi anunciada com a compra de escravos em Elmina, Acra e Arda, no Benin e no delta do Nilo, tal como em Calabar, no Gabo e em Camares. Esses escravos eram vendidos aos donos das plantaes da Ilha de So Tom (que, ento, pertencia aos holandeses), em troca do acar, ou enviados ao Brasil. A conquista de Angola, em 1641, estava estreitamente ligada s necessidades dos holandeses no Brasil, seguindo, nisso, o exemplo dos portugueses. Os holandeses perderam o nordeste do Brasil e foram expulsos deAngola em 1648. No obstante, a associao estreita desses dois territrios, quese baseava no comrcio de escravos, persistiu at o sculo XIX.

    Ao longo desse perodo, o interesse dos europeus pela frica Oriental foi inexpressivo. Os portugueses, que detinham Sofala e sujeitavam politicamenteoutras cidades costeiras, no penetravam o interior.

    No que concerne ao extremo sul da frica, os primeiros sinais de uma penetra-o europeia se manifestaram no sculo XVII, quando a Companhia Holandesa das ndias Orientais encorajou a criao de colnias de camponeses holandeses

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    (e alemes), aos quais foi atribudo o nome de beres. A presso dos beres, quereduziam os san escravido ou os expulsavam de suas terras, isso quando noos exterminavam, significava um mau futuro para essa populao africana.

    O trfico de escravos cresceu vertiginosamente ao longo dos sculos XVII, XVIII e XIX. Estima-se em 274.000 o nmero de negros transportados atra-vs do Atlntico entre 1541 e 1600. Em alguns anos, esse nmero chegou a1.341.000 pessoas, atingindo 6 milhes, no sculo XVIII. O nmero de escravos enviados ao Brasil entre 1575 e 1675 foi da ordem de 400.000 a 450.000, e, no sculo XVIII, chegou prximo de 2 milhes. Ao longo do sculo XVIII, ofornecimento de mo de obra negra s Antilhas britnicas e francesas cresceraconsideravelmente, assim como em Cuba. Esses nmeros testemunham umamudana radical de atitude, ainda que progressiva, dos europeus para com a frica. Aos olhos deles, esse continente deixou de ser uma rica fonte de ouro para tornar-se, antes de tudo, um reservatrio de mo de obra, sem o qual seria pura e simplesmente impossvel a criao e a explorao de numerosos e grandes domnios europeus na Amrica. Essa mudana tornou-se totalmente evidente por volta de 1700. O rpido desenvolvimento das plantaes de cana-de-acar foi a causa principal do enorme aumento da demanda por mo de obra negra. O processo, iniciado desde o sculo XV na Ilha da Madeira, nas Canrias, nas ilhas de Cabo-Verde e, mais particularmente, em So Tom, ao longo da segundametade do sculo XVI, atingiu o Brasil, adquirindo grandes propores na regio Nordeste. A ocupao holandesa, longe de interromp-lo, refora-o ainda mais. A situao s foi modificada quando os holandeses, expulsos do Brasil, comearam a aplicar, nas ilhas do Caribe, as tcnicas de refinamento do acar, por eles desenvolvidas no Brasil. Tais ilhas seriam, pouco a pouco, dominadas, principalmente pelos ingleses e franceses. Em intensa concorrncia com essasnovas plantaes, aquelas do Brasil s conseguiam ocupar o segundo lugar na economia mundial. Com a explorao das minas de ouro e de diamantes do Brasil central (e, mais tarde, no sculo XIX, com o desenvolvimento da culturado caf no Brasil meridional), a demanda e a importao de escravos, nos sculos XVIII e XIX, quase triplicaram, em relao quelas do sculo XVII.

    A demanda por mo de obra negra nas colnias americanas imps EuropaOcidental uma tarefa de uma importncia sem precedentes, especialmente emuma poca caracterizada por mudanas radicais na partilha das foras econ-micas e polticas.

    Na segunda metade do sculo XVII, o declnio da Espanha e de Portugalera cada vez mais evidente. No sculo XVI, a Holanda e a Inglaterra, depois aFrana e um certo nmero de outros pases, criaram companhias que assegu-

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    ravam o comrcio com a frica e o envio dos escravos para a Amrica. Nessesentido, a ao das companhias inglesas, holandesas e francesas reforou a posi-o dos europeus na frica. Ao mesmo tempo, a frica tornou-se um lugar deafrontamento para os europeus. Os negociantes e as companhias comerciais esforavam-se para obter o controle das melhores feitorias situadas na costa africana; para isso eles aproveitavam os perodos de guerra. Assim, as possesses dos diferentes grupos rivais formados por europeus e cada grupo era apoiado por seu governo frequentemente mudavam de mos.

    Ao longo do sculo XVIII, a Inglaterra se afirmou progressivamente como opas que estabelecia as ligaes econmicas mais estreitas com a costa africana. Sua influncia foi sentida do Senegal at os confins de Camares. Os ingleses no foram os nicos protagonistas europeus nessa cena. Embora suas posies fossem menos marcadas, a Holanda e, em particular, a Frana, com os mer-cadores de Nantes, estavam, cada vez mais, ativos na Costa dos Escravos, noSenegal, na regio de Camares e em Loango. Angola, que, por volta do final do sculo XVII, era o principal reservatrio de mo de obra negra, permaneceu, durante a segunda metade do sculo XVIII, sob a influncia de Portugal que, maciamente, continuava abastecendo o Brasil de escravos.

    As tentativas de colonizao comearam em Angola, onde os europeus, pouco numerosos no princpio, vieram se instalar. No litoral de Cabo-Verde eno Congo, a penetrao europeia continuou meramente comercial. As feitoriase as colnias criadas pelos europeus (como So Lus, fundada em 1626) foramdispersas e unicamente estabelecidas na costa, prximas de baas bem protegidase, geralmente, de aglomeraes africanas. Elmina e Acra, mas tambm, Ouidah, Porto Novo, Badagri, o Antigo e o Novo Calabar, clebres no sculo XVIII, constituam, tal como outras feitorias, pontos de encontro estabelecidos entre os brancos e os negros que lhes abasteciam de escravos em troca de produtoseuropeus.

    difcil saber qual era a extenso do territrio em que o comrcio de escravos foi praticado. No sculo XVIII, quando a exportao dos africanos tornou-se macia, era preciso penetrar no interior das terras para conseguir escravos, pois, nessa poca, os principais fornecedores eram os soberanos de pases poderosos, como Ashanti e Daom, e tambm os traficantes de Calabar. Os antigos Estadosafricanos, como Benin ou Oyo, eram bem menos acessados. O Congo que, nosculo XVIII, entrara em um perodo de desintegrao completa, nunca desem-penhou um papel importante como fornecedor de escravos.

    Nessa poca, os europeus no pensavam particularmente em uma expanso territorial na frica, salvo em Angola, j que conseguiam escravos no mesmo

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    lugar onde vendiam rum, armas e outras mercadorias, ou seja, em suas feitorias e nas numerosas baas por eles controladas. No estavam ainda prontos paraempreender a conquista do continente negro, especialmente, porque no supor-tavam bem o clima, alm de estarem desarmados frente s doenas tropicais. Os europeus, como os brasileiros e os primeiros norte-americanos que comearam a aparecer no continente africano, faziam de tudo para conquistar a amizade dos soberanos africanos, fornecendo-lhes, generosamente, as mercadorias que eles desejavam. Nos sculos XVII e XVIII, a zona pela qual os europeus mais se interessavam era a costa ocidental da frica. O comrcio de escravos eramuito reduzido na costa oriental e somente no sculo XVIII que os traficanteseuropeus l fazem suas primeiras aparies. A imensa distncia que a separava dos mercados americanos criava srios obstculos, ainda que superveis, ao enviodos africanos para as colnias do Novo Mundo. Na frica Oriental, as expor-taes de escravos destinados Arbia aumentaram no sculo XVIII. Quando este trfico se voltou para Zanzibar, causou efeitos trgicos nas populaes da frica Central e Oriental. Parece, entretanto, que foi sobretudo no sculo XIX que elas foram dizimadas pelas razias dos rabes negreiros.

    Na frica do Norte, a expedio realizada em direo ao Rio Nger, em 1591, no parece ter obtido um efeito durvel no Marrocos. No se encontratraos de mudanas importantes ocorridas no comrcio entre o Marrocos e o Arco do Nger. Escravos e pequenas quantidades de ouro continuaram sendoexportados do Sudo Ocidental. O trfico de escravos parece ter sido expressivo, visto que, no fim do sculo XVII, os sultes do Marrocos possuam uma armada de escravos que, durante certo perodo, tambm exerceu uma forte influncia sobre a poltica do pas.

    As estruturas polticas, econmicas e sociaisafricanas durante o perodo consideradoAs estruturas sociais, econmicas e polticas africanas no pararam de sofrer

    mudanas entre os sculos XVI e XIX. Isto se deveu, notadamente, tanto a fato-res internos de ordem demogrfica ou ecolgica , quanto a foras externas tais como o comrcio de escravos, o cristianismo, o Isl e o capitalismo.

    , a princpio, no domnio social que a mudana se fez sentir e que novas estruturas apareceram. Na rea religiosa, os filsofos e as religies da Europa e do Oriente Mdio comearam sua expanso em regies onde eram at ento desconhecidos.

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    Todo o terreno conquistado pelo cristianismo nas reas costeiras da frica Oriental foi perdido com o assassinato do padre portugus Gonalo da Sil-veira, responsvel por submeter, com muito esforo, o mwene mutapa Nogoma ainfluncia crist e portuguesa, em 1560. O Isl, em contrapartida, progredia na Etipia com as conquistas de Ahmad Gra (1531-1535) e a dos mai, do Borno, bem como a conquista dos askiya, do Songhai, no Saara e no Sudo ocidental.

    A segunda mudana importante foi a substituio, na maior parte da frica, de um sistema prprio da frica negra, o do jonya, por um sistema importadoda Europa e do Oriente Mdio, o da escravido.

    O jonya (do termo mande a jon, que significa cativo) era difundido princi-palmente no Sudo ocidental e na regio do Nger e do Chade. Um jon era um escravo ligado a uma linhagem. Ele no era cedvel, e possua a maior parte doque produzia. O jonya desempenhou um papel considervel nos Estados e impa -rios de Gana, Takrur, Mali, Kanem-Borno, Ashanti, Ioruba e Monomotapa. A elite dos escravos reais pertencia classe dominante do Estado e da sociedade.

    No entanto, a escravido oriental e ocidental, sob sua forma mais antiga oucolonial, fez do escravo um ser praticamente privado de direitos, que poderiaser negociado e transferido.

    Com a criao de Estados muulmanos ou de emirados, que ocuparam pro-gressivamente todo o Sudo no curso do sculo XVIII, as tradies e o direitomuulmanos foram implantados na regio e a escravido substituiu o sistema jonya. Mas o jonya sobreviveu em meio aristocracia tradicional do Sudoocidental e da regio do Nger-Chade, que quase no tinha sofrido influnciamuulmana. At a conquista colonial, o jonya guardou alguma influncia dos aEstados wolof, serer, haussa, kanembu e ioruba.

    A terceira mudana diz respeito s estruturas feudais que, intactas ou modi-ficadas, se expandiram nas civilizaes agrrias da frica.

    Enquanto estrutura poltica, modo de produo ou sistema socioeconmico, o feudalismo supunha no apenas laos de fidelidade e de suserania, mas oferecia tambm a possibilidade de especular e tirar proveito dos meios de produo. A propriedade fundiria caracterizava tanto os regimes feudais ocidentais quantoos orientais que foram implantados nas civilizaes agrrias da frica. Sua influ-ncia era exercida em todo lugar onde a ocupao das terras ou a dominao deum territrio incorria no recebimento de taxas, direitos, aluguis etc.

    Na frica negra, antes da apario do direito islmico ou do regime do tipoocidental (feudal), a terra no era uma fonte de ganhos. Os que se apropriavamou transmitiam uma parcela de terra ou rea de caa, de pesca ou de colheitavaliam-se apenas de um direito de usufruto que exclua a especulao lucrativa

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    ou o direito de venda. As sociedades agrrias do sul do Saara criaram ento olamana, sistema de ocupao que no previa locao, arrendamento ou meao da terra. A economia prpria da frica negra era centrada, antes de tudo, na produo destinada ao consumo. O homem produzia aquilo de que precisava, mas no possua os meios de produo.

    As interaes entre as diferentes estruturas sociais criaram sociedades hbridase heterogneas. Do sculo XVI ao XVIII, havia reas marginais onde um feuda-lismo atpico se avizinhava ao lamana. Onde a produo era destinada s trocas, o regime de tipo feudal dominava e o lamana era eliminado ou transformado.a

    Os principais fatores que contriburam para a adoo do sistema socioeco-nmico feudal otomano foram a propagao do regime do emirado muulmano com a chegada dos askiya ao Sudo ocidental, a expanso do a Imprio dos maiislamizados de Borno e a introduo do direito cornico, resultante de con-verses e djihads. No Songhai, os askiya conservaram uma parte da estrutura asocioeconmica tradicional. Nos emirados, foi adotado o direito islmico dasdjihads, o que reforou a implantao das estruturas socioeconmicas semifeu-dais. As almamia do Fouta-Toro, do Fouta-Djalon e do califado de Sokoto eram asimplesmente calcadas nos regimes feudal e fiscal otomanos.

    A partir do sculo XVI, houve uma conjugao de estruturas socioecon-micas de diferentes origens. A isso sucedeu-se a apario de uma nova ordemsocial, ou seja, de um governo de tipo autoritrio ou aparentado ao emirado, no qual estruturas feudais eram sobrepostas ao lamana africano. No Sudo ocidena -tal e na Nigria, que foram islamizados, a instituio muulmana do emirado substituiu o mansaya ou se lhe sobreps. No Golfo da Guin e na frica Centralae Oriental, onde chefes cristos apareceram entre os manicongo e os mwenemutapa, a influncia da monarquia feudal crist ficou cada vez mais evidente.

    Na arquitetura e nas artes houve tambm algumas realizaes importantes. Os construtores das cidades do Vale do Nilo, do Magrebe, do Sudo e da costa, bem como os construtores dos palcios iorubas, das hoje chamadas runas do Zimbbue, de casas, palcios e mesquitas da costa oriental da frica, e dos tata que cingem as cidades haussas , todos eles eram ao mesmo tempo arquitetos, pedreiros, decoradores e urbanistas. Grandes estruturas econmicas apareceram no decorrer desse perodo: o sistema de castas que substituiu o sistema de guildasou corporaes, a economia de pilhagem, principalmente na frica do Norte e do Leste, e a economia dos entrepostos ou feitorias, principalmente na frica Central e Ocidental.

    A civilizao urbana medieval contribuiu para a diviso do trabalho, assim favorecendo o artesanato e as indstrias manufatureiras. Porm, no sculo XVI,

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    esse desenvolvimento foi desigual e diferentes tendncias manifestaram-se em funo dos contextos sociais.

    Nas civilizaes do Sudo ocidental, da regio do Nger-Chade e do Saara, por exemplo, o artesanato e as atividades industriais e manufatureiras desen-volveram-se no quadro de um sistema de castas mais ou menos fechadas econstitudas com base em linhagens.

    Um aspecto importante da organizao da indstria ou do artesanato da poca reside no grau de controle exercido pelo Estado. Nas civilizaes medi-terrneas, havia geralmente monoplio do Estado para certo nmero de ativi-dades como a tecelagem, a construo naval, a fabricao de armas, o refino eo comrcio exterior. Mas os Estados na frica negra raramente exerceram essaprerrogativa, mesmo quando a indstria dos armamentos se desenvolveu. Esseperodo foi marcado pelo contraste entre a polivalncia das diferentes categoriasda populao camponesa e a ntida especializao dos citadinos.

    As indstrias do Estado cresceram: manufaturas de armas e mesmo estaleirospara a construo de frotas martimas e fluviais foram implantados tanto no Sudo ocidental e na costa ocidental do Atlntico, quanto nos pases mediter-rneos e do Oceano ndico.

    A multiplicao das guerras, s vezes, dava um novo impulso ao trabalhodos metais. No sculo XVI, Sonni Ali reorganizou os arsenais do Songhai, fixando objetivos anuais de produo s oficinas. A metalurgia aperfeioou-seno Egito, onde comearam a fabricar o ao de Damasco, enquanto o trabalhocom o ferro, o cobre, o ouro e a prata ocupava numerosas comunidades. Aindstria dos metais preciosos no Egito e na frica do Norte continuava a se abastecer de ouro em Wadi Allaga, na Nbia, em Sofala e no Sudo ocidental. Os forjadores mandes, organizados em castas, exportaram suas tcnicas para as novas cidades que o comrcio atlntico fazia surgir na costa. A cunhagem de moeda de ouro (praticada h muito tempo no norte e na costa swahili, particularmente em Zanzibar e em Kilwa) progrediu rumo ao sul, at Nikki. Os swahili fabricavam igualmente magnficas joias e outros objetos de ouroe prata. O trabalho da cermica tornou-se industrial, a olaria, bem como aempalhao, continuavam sendo tarefa das mulheres. A indstria do vidromanteve sua expanso e propagou-se no conjunto do pas ioruba, no Egito eno Magrebe. Entre os shona do sul da Bacia do Zambeze, a extrao mineiraera muito desenvolvida e as minas de ouro e cobre constituram o fundamento da economia da regio at o sculo XVIII.

    O trabalho em couro florescia principalmente na Nigria, onde a pecuriafornecia uma abundante matria-prima. Do sculo XVI ao XVIII, a empalhao

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    e a tecelagem dos tapetes tomaram um lugar igualmente importante dentre asindstrias da regio do Nger-Chade. A fabricao do papel, que tinha substi-tudo o papiro, desenvolveu-se principalmente no Egito. As indstrias alimen-tares que haviam se multiplicado na Idade Mdia, nas cidades do norte e doSudo ocidental, foram tambm implantadas nas cidades nigerianas. A frica do Norte, particularmente o Egito, especializou-se no cultivo da cana-de-acar e no refino do acar. A extrao do leo de oliva, de palma e de amendoim, assim como o trabalho com carnes, massas e especiarias conservou, de maneira geral, seu carter artesanal. Na rea txtil, a cultura e a tecelagem do algodo estavambem implantadas no plat do Zimbbue desde o sculo XVI. Da mesma forma, as cidades-Estados swahili eram famosas por seus tecidos. Na frica Central do sculo XV ao XIX, os tecidos de rfia dos congos eram renomados.

    O comrcio com centros urbanos afastados desempenhou um papel impor-tante na economia africana anterior ao sculo XVI, favorecendo a produtividade, o desenvolvimento das civilizaes urbanas e o estreitamento de laos entre ascidades e as reas rurais. Porm, entre os sculos XVI e XIX, a economia depilhagem consequncia do expansionismo espanhol e portugus foi intro-duzida e se estabeleceu.

    Entre 1495 e 1523, Espanha e Portugal estenderam gradualmente seu dom-nio sob o Magrebe. Quando os portugueses ocuparam Azemmour, em 1513, os arabo-berberes e o Imprio otomano decidiram resistir agresso europeia; corsrios, navegando sob a bandeira otomana, contriburam para reequilibrar as foras.

    A despeito do enfrentamento com as potncias europeias, os Estados da frica do Norte continuaram a preservar sua liberdade, mas sua evoluo ficouentravada, no sculo XVI, pelo desabamento da ordem econmica internacional. Os portos do Magrebe e do resto da frica do Norte viveram ento principal-mente do produto da pirataria, de tributos e de direitos, mais do que do comrcio ou de novas indstrias.

    A economia de pilhagem, da qual a pirataria no Mediterrneo fazia parte, contribuiu muito certamente para a desacelerao do crescimento econmico etcnico da regio situada ao sul do Mediterrneo. Mas as estruturas socioeco-nmicas e polticas desempenharam igualmente um papel na estagnao e no subdesenvolvimento dessa regio e de seu interior.

    Todos os pases do Nilo e da frica Oriental, bem como os da regio doNger-Chade e do Sudo ocidental foram atingidos em diferentes graus. Naparte ocidental do Oceano ndico, o perodo de 1680 a 1720 tornou-se conhe-cido como a poca dos piratas. Os pases diretamente em contato com as

  • 29frica do sculo XVI ao XVIII

    Vent

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  • 30 Sntese da HGA Volume II

    novas potncias europeias foram abalados pela economia de pilhagem e sofre-ram igualmente por no terem podido reanimar uma estrutura socioeconmica cada vez mais influenciada por um Oriente atrasado. Outra de suas deficinciasconsistia na incapacidade de estabelecer relaes de fora necessrias para no serem vtimas da desigualdade do sistema de trocas da poca.

    A economia de pilhagem provocou a estagnao das trocas comerciais entre as cidades e o campo e influiu consequentemente em suas relaes. At ento, suas atividades e produes haviam sido complementares. As cidades haviam quebrado o crculo vicioso da agricultura de subsistncia, acentuado a diviso dotrabalho e lanado as bases da sociedade nova. Eram a indstria e o comrcio urbano que haviam at ento encorajado o desenvolvimento em grande escala daagricultura, da pecuria, da pesca e da caa, e das indstrias a elas relacionadas.

    O sculo XVI, contudo, iria abalar esse universo e mergulh-lo na crise. Avida campestre foi abalada pelo comrcio de escravos, que esvaziou o campo. Em algumas reas, a populao continuamente assediada regrediu para umaeconomia nmade de caa e de coleta, deixando frequentemente a rea da savana pela da floresta.

    A opresso do campesinato africano pelas elites rurais e urbanas cresceu ao passo que o garrote fiscal apertou.

    Nesse contexto, os chefes das djihads e dos movimentos cristos messinicossno tiveram dificuldade alguma em garantir o apoio macio do campesinato. Eles tornavam os aristocratas tradicionais e os europeus responsveis de todos os incmodos e da injustia social.

    A partir do sculo XVII, o papel poltico do campesinato aumentou. Revoltas camponesas causadas pela decadncia do campo varreram o continente como uma revoluo religiosa, abrindo assim o caminho para a resistncia conquistacolonial. Essas revoltas no eram feitas por prisioneiros ou escravos, mas pelaclasse mais importante e mais fortemente explorada, a dos pequenos proprietrios.

    As repercusses da economia de pilhagem nos pases do Nilo e do Oceano ndico foram tambm totalmente desastrosas. Os portos da frica Oriental eram conhecidos por suas atividades comerciais desde o sculo XI e estavamem contato direto com a Arbia, a Prsia, a ndia, a China e o Mediterrneo. A invaso portuguesa marcou o incio da decadncia desse complexo comercialurbano. Em 1502, Kilwa e Zanzibar tornaram-se dependentes de Portugal. Em 1505, Francisco de Almeida saqueou Kilwa e Mombasa e construiu o forteSantiago em Kilwa. Ele proibiu qualquer comrcio entre essas cidades e os negociantes as deixaram para se instalar em Malindi e nos Comores. Lamu e Pate foram ocupadas.

  • 31frica do sculo XVI ao XVIII

    Com exceo de Luanda e Moambique, nenhuma das feitorias fundadaspelos portugueses e depois pelos holandeses, ingleses e franceses se aproximava em tamanho de uma cidade mdia do Sudo ocidental, nem mesmo dos portos swahili e da frica Oriental, entre os sculos X e XVI.

    Se a economia de pilhagem se generalizou nas regies situadas margem do Mediterrneo, do Nilo e do Oceano ndico, a economia de feitoria ou de entrepostos tornou-se a estrutura dominante ao longo do Oceano Atlntico. As novas feitorias martimas consistiam em fortalezas antes de se tornarem centros de civilizao comercial.

    As feitorias no contriburam de forma alguma para a prosperidade local. Antes de 1800, Alberda, Cacheu, Santiago do Cabo Verde, Elmina, Ketu, Cala-bar e So Salvador constituam as mais importantes e comportavam cada uma menos de cinco mil habitantes. A economia de feitoria baseava-se no comrciotransatlntico de escravos. Em seu apogeu, nenhuma das feitorias servia decentro para o escoamento dos produtos locais, nem criava oportunidades para as atividades comerciais ou industriais da populao autctone. As feitorias para a venda de escravos eram antes de tudo um instrumento de despovoamento.

    A contribuio direta e indireta da economia de feitoria prosperidademundial foi, contudo, considervel. Depois da descoberta das minas africanas, asfeitorias forneceram uma grande parte do ouro e da prata mundiais. Alm disso, foi por meio delas que transitou grande parte da mo de obra que valorizou o continente americano. De fato, as feitorias eram a alma do comrcio mundial, a fonte da indstria, das finanas e do capitalismo europeu e internacional. Ocomrcio francs, por exemplo, cresceu tremendamente ao longo do sculoXVIII.

    A economia africana sofreu principalmente a concorrncia do comrcio edas indstrias europeias. Ao monopolizarem os portos, os europeus paralisarama relao entre a costa e o interior. Assim, os Estados europeus que anexaram as reas costeiras delimitaram suas reas de influncia (portuguesa, holandesa, francesa e inglesa) antes mesmo da conquista colonial. Determinaram, assim, o desenvolvimento e a geografia poltica dessas regies no sculo XVIII. Doavano do Marrocos no pas Songhai at as peripcias das guerras internas do Sudo Ocidental, a maioria das reviravoltas polticas africanas explicam-se pelo processo de desmembramento imposto pelas potncias europeias no sculo XVI.

    A cena poltica africana j atingira certo nvel de equilbrio e de estabilidade durante o perodo compreendido entre os sculos XII e XVI. No sculo XVI, africa mediterrnea representava, no seio do Imprio rabe-otomano, um sub-sistema do qual o Marrocos, a Ifriquia e a Tripolitnia constituam uma parte.

  • 32 Sntese da HGA Volume II

    O Egito era uma entidade parte. A regio do Nilo, compreendendo a Nbiae a Etipia, ligava o sul aos Estados dos Grandes Lagos do Bunyoro-Kitara, scidades-Estados swahili e parte sul do Zambeze que, no fim do sculo XVI, era dominado pelo Estado mutapa. Quanto frica Austral, ela contava ainda com poucas estruturas estatais. Na frica Central, existiam dois sistemas polticos, um sob o domnio dos reinos Congo e Tio, outro sob o reino luba. Entretanto, os habitantes das florestas no estavam organizados em Estados. As regiesdo Sudo Ocidental e do Nger-Chade eram limtrofes, mas suas fronteiras mudavam constantemente. Ambas ficavam em contato com a Nbia e a Etipia.

    A evoluo do mapa poltico demonstrava as presses exercidas pelas foras exteriores e suas repercusses. As guerras internas que reviravam a cena pol-tica aniquilaram as fronteiras locais e o equilbrio de foras. Novos Estados apareceram: eram os mais bem armados, tal como o Kanem-Borno, ou aqueles com mais sadas martimas, como o Cayor na Senegmbia, o Daom no golfo da Guin, a Angola na frica Central e o Reino dos Changamira na parte suldo Zambeze.

    A prpria natureza do Estado africano foi modificada. Vastas regies sem soberanos nem chefes, que eram at ento habitadas por agricultores, caadores ou pastores nmades, foram conquistadas e transformadas em Estados dotados de estruturas centralizadas.

    A partir do sculo XVI, a vida poltica concentrou-se cada vez mais nas reas costeiras, nos portos que serviam de base aos corsrios e nas feitorias. Em 1780, a guerra entre o Marrocos e a Espanha terminou pelo tratado de Aranjuez, que redefinia as fronteiras dos dois pases e codificava suas relaes comerciais. Mais ou menos na mesma poca, a Arglia, que estava em guerra com os Estados Unidos, forou essa nova nao a pagar um resgate a piratas para obter a libe-rao de seus extraditados.

    Foi preciso guerras, a destruio de feitorias e a proibio de trocas para con-vencer as potncias europeias a pagar impostos. Todavia, essas fontes de ganhos mais ou menos regulares estiveram na origem das guerras que estraalharam a aristocracia e as classes dominantes no conjunto do continente.

    As entidades polticas estavam principalmente em regies que souberamatingir um certo equilbrio e conseguiram se desenvolver, levando em conta asituao interna. As dimenses dessas entidades e a estabilidade de suas frontei-ras, bem como de seu governo, eram variveis. Algumas eram confederaes deEstados, outras estados unitrios ou chefias de jurisdio limitada. Tratava-se, em alguns casos, de um cl ou de um lamana independente no qual os primeiros aocupantes levavam uma existncia autnoma.

  • 33frica do sculo XVI ao XVIII

    0 500 miles

    0 800 km

    123 4 567

    8 91011121314

    1516171819

    9

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    15

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    17

    18

    19

    ADRARTRARZAENNEDI

    BORKUBRAKNA

    TIGRJOLOF

    GALAM

    GODJAM

    OGAD

    EN

    BURE

    WASUL

    UBAGUIRMI SIDAMA

    AKAN

    KAKONGO NSUNDIKUBA

    SOYO

    MBAMBA LU

    BA

    Gao

    S gou

    Dongola

    Shend Massawa

    SennarGondarFort

    Saint-James TadjouraFada NGurmaYendi

    Oyo

    Bonduku

    Zaylac

    Harar

    Pemba

    Zanzibar

    Kilwa

    Cabinda

    Mpinda

    Calabar

    Assin

    ieElm

    ina

    HAWSA

    KANEM-

    -BORNO

    WADAIDARFUR

    KORDOFAN

    KAFFA

    DUAL

    LOANGO

    CONG

    O

    HODH

    Espaos polticos do Saara ao Equador, no sculo XVII. Fonte: segundo um mapa desenhado por P. Ndiaye, Departamento de Geografia, Universidade de Dakar.

  • 34 Sntese da HGA Volume II

    A instabilidade introduzida pela economia de pilhagem e pela economia defeitoria criou ento, entre os sculos XVI e XVIII, Estados e economias que no podiam mais assentar sua evoluo econmica, social e poltica em bases coerentes e organizadas.

    Os movimentos populacionais e a emergncia de novas formas sociopolticas na fricaUm dos principais pontos nos quais a histria da frica pr-colonial difere

    da histria da Europa e da maior parte da histria da sia a mobilidadedas diferentes categorias da populao, particularmente dos agricultores. Os agricultores africanos das regies tropicais e subtropicais apresentaram muito mais mobilidade do que os camponeses europeus ou asiticos que, praticando um cultivo intensivo, renovavam a cada ano a fertilidade da mesma parcela daterra. Na maior parte da frica, o cultivo tinha de ser extensivo e as mesmas terras no podiam ser trabalhadas por muitos anos consecutivos. A populaotinha ento muito menos razes em uma terra em particular, sendo mais mvel que em outros lugares. De qualquer modo, a mobilidade da populao uma caracterstica essencial que deve ser levada em conta em todo estudo e todareconstituio do passado africano, e importante avaliar cuidadosamente sua influncia sobre as sociedades e as culturas.

    H evidncias de numerosas migraes: daquelas dos trekboer do Cabo s dos rsomalis e dos oromo do Chifre da frica (correspondente ao nordeste africano), dos ngbandi de oubangui, dos jagas (djagas) da frica Central, dos tuaregues do Arco do Nger, dos mane de Serra Leoa, dos fulbes de toda frica Ocidentale de todos os povos de Madagscar. Tudo parece ter se passado como se, entre 1500 e 1800, nenhum povo tivesse permanecido no mesmo lugar.

    Na frica, as principais estruturas do espao eram os Estados e as redes comerciais. Os africanos destacam a importncia das migraes em suas tra-dies orais. Um grande nmero dessas tradies tinha por objetivo explicar acriao do mundo, e elas se referiam frequentemente a povos ou indivduosfundadores vindos de outros lugares, de um lugar das origens.

    Mas preciso primeiramente estudar os deslocamentos normais, ligados busca dos meios de subsistncia, para ento compreender melhor os deslocamen-tos inabituais, e ver como se produzem os diferentes movimentos populacionais.

    Os homens dispem essencialmente de quatro maneiras de tirar seu sustento do meio onde vivem: a caa associada colheita, a criao de gado e animais

  • 35frica do sculo XVI ao XVIII

    domsticos, o cultivo do solo e a pesca. A esses quatro tipos de atividade cor-respondem quatro formas comuns de deslocamentos.

    Os caadores e coletores percorrem um territrio que permanece relativa-mente estvel enquanto a densidade da populao est adaptada a seu modo de vida. Eles vivem em acampamentos e se deslocam frequentemente no interior do territrio, como os pigmeus de Ituri ou os kung san de Botswana. Seus des-locamentos variam tambm em funo das estaes. Apesar de sua grande mobi-lidade, tais grupos podem explorar os mesmos territrios durante muito tempo.

    Os criadores de gado tambm se deslocam. Os animais dos quais eles tiramsua subsistncia tm necessidade de gua, de pastagem e de sal. Esses alimentos se encontram em quantidade mais ou menos grande de acordo com as estaes. No Saara, por exemplo, os nmades vivem em geral nas bordas do deserto ouprximos a grandes osis durante a estao seca e penetram profundamente no interior do deserto quando chegam as chuvas. Trata-se da transumncia, e os percursos so frequentemente os mesmos de um ano para outro. Contramovi-mentos complexos ocorrem frequentemente entre comunidades nmades que criam espcies diferentes (camelos, cabras, bovinos ou ovinos), em funo dasnecessidades especficas de cada espcie.

    Entre os agricultores tambm havia mobilidade, pois praticavam um cul-tivo itinerante, deixando as terras cultivadas no ano precedente para desbravar novos espaos. As melhores terras eram aquelas fertilizadas ao mesmo tempo pela irrigao e por aluviamento anual, mas eram raras. Exceto no Egito e nos arrozais na costa ocidental da Guin, as culturas permanentes eram muito rarasna frica porque geralmente no era possvel aplicar mtodos eficazes de fer-tilizao intensiva.

    A maior parte dos povoados se deslocava, mas, ao passo que a densidadepopulacional permanecia baixa, eles seguiam um trajeto mais ou menos circular no interior de um territrio estvel. A mobilidade da populao no dependia somente do estado do solo. Em muitas regies, em toda a floresta tropicalmida da frica Central, os agricultores recorriam igualmente caa, sobretudocom armadilhas, e no desdenhavam a colheita. Por exemplo, a localizao dopovoado dos nzabi do Gabo podia ser escolhida em funo das necessidadesdos caadores tanto quanto dos agricultores. As variaes climticas eram o principal perigo a esse modo de vida, especialmente a irregularidade das chuvas. Geralmente, dois anos sucessivos de seca provocam uma situao de misria etrs podiam levar fome.

    Para os agricultores, criadores de animais e coletores, havia ento uma densi-dade mxima e uma densidade tima da populao, variveis segundo seu meio

  • 36 Sntese da HGA Volume II

    ambiente: a natureza do solo, as precipitaes, a topografia, as possibilidades deabastecimento suplementares, o estado das tcnicas e o regime de partilha oude distribuio dos recursos.

    Os pescadores eram sedentrios e deslocavam raramente seus povoados. Mas as variaes sazonais do regime dos cursos de gua podiam lev-los a fazer expedies longnquas. Eles se instalavam, ento, em acampamentos ou sobre os bancos de areia, como no Zaire ou no Kasa, s vezes a centenas de quilmetrosdos povoados onde tinham deixado suas famlias. Graas a seus barcos, eles dispunham de um meio de transporte barato e vrios dentre eles se tornaram comerciantes, servindo de intermedirios entre diversas comunidades.

    Quando um grupo possua uma economia complexa ou vivia em simbiose com outros grupos, as condies e forma de seus deslocamentos eram, por sua vez, mais complexas.

    A mobilidade dos indivduos era igualmente considervel. Na frica, a mobilidade individual era to grande quanto em outras partes do mundo. Oesteretipo segundo o qual certas etnias africanas no tinham nenhum contatocom o mundo exterior no tem mais fundamento que o esteretipo da errnciaperptua.

    Convm destacar que a distino entre deslocamentos ordinrios e extraor-dinrios era muito mais tnue no caso dos indivduos, mesmo se eles podiam, na sua somatria, produzir resultados espetaculares. Dessa maneira, pode-seconsiderar o trfico de escravos aps 1660 como um movimento comum no quediz respeito aos indivduos. Porm, o transporte de escravos para a Amrica do Norte e do Sul de longe o mais importante movimento populacional que africa conheceu.

    A urbanizao supe igualmente um movimento populacional. No comeo do sculo XIV, a cidade de Zimbbue possua talvez 10.000 habitantes. Essaconcentrao era o resultado de uma migrao interior: a cidade tinha, prova-velmente, absorvido uma centena de povoados. Aps o esgotamento das ter-ras cultivveis em Zimbbue, os habitantes no podiam permanecer mais l, abandonaram a cidade e voltaram para seus povoados. Sua disperso representa igualmente um movimento populacional importante.

    parte a urbanizao e o trfico de escravos, temos muito poucos dados sobre os deslocamentos de indivduos e mesmo das famlias. Os movimentos inabituaise coletivos da populao se dividem em duas grandes categorias: as correntes migratrias e as migraes propriamente ditas. Os movimentos da primeiracategoria so progressivos e lentos, enquanto a migrao um movimento sbito. Uma corrente migratria no implica necessariamente no abandono do territrio

  • 37frica do sculo XVI ao XVIII

    de origem, ao passo que a migrao sim. Essas duas categorias de movimento populacional subdividem-se em vrios tipos. Uma corrente migratria chamadade expanso quando faz crescer o territrio de um grupo, e de dispora quando descontnua e resulta em novos estabelecimentos. Alm disso, h tambm as migraes em massa, as migraes de bandos (geralmente de guerreiros quepraticam a pilhagem) e as migraes de elites, que envolve pequenos grupos, cujachegada provoca importantes mudanas na sociedade que os acolhe.

    Somente uma parte da frica conheceu, durante esse perodo, as grandes redistribuies populacionais que levaram formao de sociedades e culturasnovas. Trata-se, por um lado, da regio do Chifre da frica, situada ao sul doAbbay, ou Nilo Azul superior, e corresponde aproximadamente Somlia e ao norte do Qunia, e, por outro lado, da zona situada a leste do Nilo Branco, aonorte do Lago Nyanza e ao sul do Sobat. Vrios movimentos populacionaisproduziram-se nessas regies. O mais espetacular foi a emigrao dos oromo na Etipia, por volta de 1535.

    Mais a oeste, os movimentos populacionais tinham comeado antes, talvez por volta do ano 1000, com a migrao dos luo ao longo do Nilo Branco. Um grande nmero de comunidades se deslocou, notadamente os karamojong, e, mais a leste, os turkana, bem como os nandi e os masai. Todos esses povos, salvo os luo, praticavam essencialmente a criao de animais, como os oromoe os somalis. Estavam todos procura de terras vazias, isto , com densidadepopulacional relativamente baixa.

    Esses movimentos populacionais atm-se, ao menos at o sculo XVIII, histria da colonizao de terras marginais. As terras com melhor irrigao, smargens do Nilo, foram originalmente ocupadas por agricultores que tambmcriavam animais. Eles repeliram todos aqueles que chegaram depois. Essa mobi-lidade ressalta a estabilidade que prevalecia, na mesma poca, na maior parte docontinente. Quase por toda parte, vastas regies eram ocupadas por pessoas cuja economia era adaptada ao meio natural e densidade populacional. No conjunto do continente, o homem havia dominado o espao, salvo nas terras marginaisonde o combate prosseguia.

    Como em seus deslocamentos as diferentes populaes tinham sempre emvista sua prpria densidade e de populaes vizinhas, pequenas correntes migra-trias produziram-se quase por toda parte, mesmo na frica do oeste e do Norte. Essas expanses se davam com mais ordem que as das migraes em massa, o que indcio de uma verdadeira estabilidade.

    A maior parte dos pequenos movimentos populacionais atinha-se formao ou queda de um Estado. Na frica Ocidental, o declnio do Imprio do Mali

  • 38 Sntese da HGA Volume II

    parece ter levado os soso (susu), os baga e os nalu a deixarem o Futa Djalon e os mane a emigrarem em bandos para a Libria e Serra Leoa.

    Na frica Central, poucos movimentos so conhecidos. A expanso do Imprio lunda, em seguida a do Reino yaka do Kwango provocaram a migraode bandos armados, dentre os quais os mais conhecidos so aqueles da Lundameridional e o que fundou o Reino de Kazembe.

    sem dvida em Madagscar que se v mais claramente como os movimen-tos populacionais podiam se ligar formao de sociedades e reinos, por exem-plo, as migraes dos maroserana, aos quais se juntaram algumas comunidades, enquanto outras deles fugiam. Em 1500, a populao da ilha conservava uma grande mobilidade, pois havia ainda terras desocupadas. Em 1800, a maior parte da ilha estava organizada em Estados de diferentes tipos. O espao tinha sido dominado. Entretanto, nesse processo, a formao dos Estados desempenhara um papel mais importante em Madagscar que em outras regies da frica.

    No continente, a formao de Estados por movimentos populacionais limita-se a uma parte da Tanznia central, Tanznia meridional e ao norte de Moambique. Nessas regies, a formao dos Estados bena, sangu, hehne, makua (makwa), lundu e yao, e a unificao de certos Estados nyamwezi con-triburam para fixar a populao.

    A considervel extenso das rotas comerciais ao sul do Saara levou a novas disporas e amplificou as antigas. Ela provocou tambm outros movimentos populacionais, que se deram mais frequentemente em curtas distncias. Asdisporas melhor conhecidas so, de oeste a leste, as dos jahanka, dos joola, dos yarse, dos haussas, dos bobangui, dos vili, dos hungaan, dos bisa, dos yao, e dos swahilis. preciso acrescentar as disporas europeias: os franceses para acosta do Senegal, os portugueses para Luanda e Moambique, os agentes dos portugueses (lanados, pombeiros e o pessoal dos prazos) e os holandeses do Cabo foram os europeus cujo estabelecimento teve a maior influncia sobre ocontinente africano durante esse perodo.

    A frica na histria do mundo: o trfico deescravos a partir da frica e a emergncia de uma ordem econmica no AtlnticoData do sculo IX a exportao de forma significativa de escravos da frica

    negra para o resto do mundo. Esse comrcio aprovisionava essencialmente os

  • 39frica do sculo XVI ao XVIII

    pases banhados pelo Mediterrneo (inclusive os da Europa meridional), oOriente Mdio e algumas regies da sia, e perdurou por vrios sculos, extin-guindo-se no comeo do sculo XX. Todavia, as quantidades anuais exportadasnunca foram relevantes. Porm, a partir do momento em que o Novo Mundo, aps a viagem de Cristvo Colombo, em 1492, se abriu explorao europeia, o trfico de escravos africanos, envolvendo nmeros muito maiores, se superpsao antigo trfico: trata-se do trato transatlntico de escravos, praticado do sculoXVI at meados do sculo XIX.

    Do ponto de vista da histria mundial, o comrcio de exportao de escravosafricanos, especificamente o comrcio transatlntico, representa um fenmeno nico em termos de nmero, extenso geogrfica e econmica.

    Para avaliar com exatido o papel histrico mundial do comrcio de escravosda frica, preciso estabelecer uma estimativa acurada, a mais prxima possvelda realidade, do volume desse comrcio ao longo dos sculos. A esse respeito, considerveis progressos foram feitos, e as estimativas atuais de escravos expor-tados giram em torno de 15,4 milhes. No que diz respeito ao trfico pelo Saara, pelo Mar Vermelho e pelo Oceano ndico, as estimativas disponveis no so toconfiveis, mas chegou-se a um total de 6.856.000 para o perodo 1500-1890, ou seja, 3.956.000 para o trfico transaariano e 2.900.00 para o trfico do Oceano ndico e do Mar Vermelho. Em termos gerais, chegamos a aproximadamente22 milhes de indivduos exportados da frica negra em direo ao resto do mundo, entre 1500 e 1890.

    Para analisar o impacto do nascente sistema atlntico sobre as economiasda Europa Ocidental, convm distinguir dois perodos: de 1500 a 1650 e de1650 a 1820.

    Durante o primeiro perodo, as economias e as sociedades da regio atlnticaainda no possuam as estruturas necessrias para que as foras presentes no mercado assumissem totalmente o funcionamento de um sistema econmico nico, capaz de dividir funes e lucros entre seus membros. Consequentemente, a Europa Ocidental usou sua superioridade militar para adquirir o domniosobre os recursos de outras economias e sociedades da regio.

    O segundo perodo (1650-1820) dominado pela estruturao econmicae social nos pases da zona atlntica, enquanto o processo de transformao capitalista da Europa Ocidental torna-se, por sua vez, subordinado ao sistema atlntico. Para apreciar plenamente o papel desse sistema no desenvolvimentoeconmico da Europa Ocidental, preciso inseri-lo no contexto da crise geral, que abalou essa regio durante o sculo XVII.

  • 40 Sntese da HGA Volume II

    As importaes de metal americano, cujo pice ocorreu entre 1590 e 1600, diminuram e a expanso demogrfica reduziu-se. Tal situao agravou-se em razo da poltica de nacionalismo econmico adotada por vrios pases da EuropaOcidental durante o sculo XVII. Devido s barreiras aduaneiras, impostas pela Frana, Inglaterra e outros pases, com o intuito de proteger suas indstriasnacionais, a situao econmica degenerou em crise geral e o comrcio intrar-regional desmoronou. O processo de transformao capitalista interrompeu-secompletamente em alguns pases e a regresso instalou-se em outros.

    Nitidamente, a natureza e a origem da crise do sculo XVII indicam que, para levar a cabo seu processo de transformao capitalista, a Europa Ocidentalprecisava de muito mais oportunidades econmicas do que o continente europeu podia, em si, oferecer.

    Entre 1650 e 1820, as mudanas ocorridas na estruturao da economia edas sociedades das regies no europeias da zona atlntica ofereceram tanto imensas possibilidades quanto desafios a serem enfrentados, e iriam transformar completamente a situao econmica da Europa Ocidental. No Novo Mundo, a produo de metais preciosos continuou a desempenhar um papel importante, particularmente por ocasio da entrada do Brasil, no sculo XVIII, em suafase de grande produo, mas o elemento capital da estruturao econmica e social dos pases da regio foi o considervel impulso dado agricultura de larga escala. No subcontinente norte-americano, tratava-se principalmente de tabaco e algodo, enquanto na Amrica Latina e nas Antilhas reinava o acar. Em razo da amplitude das operaes, a lgica da nova economia requeria um repovoamento completo do Novo Mundo.

    Um comrcio muito ativo organizou-se em torno do transporte martimo de mercadorias da frica e das Amricas: os escravos africanos partiam rumo s Amricas, enquanto os produtos agrcolas e metais preciosos eram enviados das Amricas rumo Europa Ocidental.

    As novas possibilidades econmicas geradas pela expanso no sistema atln-tico levaram criao de empregos, estimulando assim o crescimento demo-grfico em toda a Europa Ocidental, em contraste com a queda constatada no sculo XVII. Tais mudanas contriburam fortemente para impulsionar os mercados internos ingls, francs e holands. Nos sculos XVIII e XIX, esse impulso, acompanhado pela progresso nas exportaes, deu origem ao aumentoda demanda que, por sua vez, permitiu o advento das invenes e das inovaes tcnicas no curso das revolues industriais na Europa Ocidental.

    Nessa mesma poca, no Novo Mundo, a regio que em 1783 se tornou os Estados Unidos da Amrica composta por territrios coloniais do sculo XVII

  • 41frica do sculo XVI ao XVIII

    Vento

    sudoe

    ste

    Vento n

    ordest

    e

    Vento oeste

    Vento sudeste

    Tabaco

    Tabac

    Rum Al

    go

    do

    Mar

    fim

    Tabac

    Esclaves

    Escravos

    Esclaves

    Esclaves

    Escla

    ves

    Madeira para obras

    Ac

    ar

    Produto

    s man

    ufa

    turad

    os

    Produtosalimentcios

    O comrcio atlntico no sculo XVIII e no incio do sculo XIX. Fonte: segundo A. G. Hopkins, 1973. Mapa reproduzido com a amvel autorizao do Longman Group UK Ltd.

  • 42 Sntese da HGA Volume II

    at 1776 participou ativamente de tal expanso. O grau de participao desses territrios no sistema atlntico, no curso dos anos imediatamente anteriores Declarao de Independncia dos Estados Unidos, alteraram consideravelmentea situao. A amplitude de sua participao no somente estimulou o cresci-mento do mercado interno e a produo de bens destinados troca no mercado, como tambm encorajou a especializao, aumentou a renda por habitante e influiu nas taxas de migrao rumo a essa regio.

    Por outro lado, na Amrica Latina e nas Antilhas, as novas possibilidades comerciais decorrentes da chegada dos europeus surgiram em condies antesfavorveis criao de estruturas de subdesenvolvimento, do que de desenvol-vimento. Em primeiro lugar, porque os pases da Europa Ocidental garantiram pela fora seu domnio sobre os recursos naturais da Amrica Latina e das Antilhas. Humilhada e desmoralizada, posteriormente pressionada pelo trabalhoe dizimada pelas doenas introduzidas pelos europeus, a populao indgena diminuiu em toda a regio.

    O quase extermnio da populao indgena resultou em duas importantes consequncias: a importao macia de mo de obra servil africana e o domnio pelos colonos europeus das terras cultivveis, agrupadas em vastos latifndios ou fazendas. Esses dois fenmenos criaram novas possibilidades comerciais, capazes de estimular a transformao capitalista na Europa Ocidental e na Amrica do Norte, engendrando ao mesmo tempo o subdesenvolvimento e a dependnciana Amrica Latina e nas Antilhas.

    A amplitude dos contrabandos de escravos para a Amrica espanhola, nos sculos XVI e XVII, torna quase impossvel uma avaliao rigorosa acerca da real participao da mo de obra servil africana na extrao de metais preciososdessa regio durante esse perodo. Entretanto, segundo censo realizado pelo clero, a populao de origem africana chegaria, em 1796, a 679.842 pessoasno Mxico e a 539.628 no Peru. No Brasil, durante esses dois sculos, so osescravos africanos que garantem, integralmente, a produo de acar para a exportao. No sculo XVIII, quando ocorreu a forte expanso no mercado do ouro, a produo efetiva permaneceu, na prtica, dependente do trabalho dos escravos. A confirmao dada pelo perfil da composio tnica da populao brasileira nos sculos XVIII e XIX. A populao de origem africana representava61,2% da populao total do Brasil em 1798 e 58% em 1872. As comunidades servis concentravam-se nas seis regies que forneciam o ouro e os produtos agrcolas destinados Europa e Amrica do Norte: Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, So Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

  • 43frica do sculo XVI ao XVIII

    Em suma, a transferncia macia de mo de obra africana para a Amrica Latina, para as Antilhas e os territrios do sul da Amrica do Norte resultou na impressionante expanso da produo e do comrcio de bens de consumo na zona atlntica, entre os sculos XVI e XIX. Por sua vez, trouxe baila oportuni-dades e desafios, sob cuja influncia o processo de transformao capitalista foiempreendido nos grandes pases da Europa Ocidental e na Amrica do Norte. Esse mesmo processo histrico gerou, em contrapartida, na Amrica Latina e nas Antilhas, estruturas de subdesenvolvimento e de dependncia.

    Por outro lado, na frica, os dados disponveis mostram que, poca da chegada dos europeus, aproximadamente no fim do sculo XV, as sociedadesafricanas estavam em grande processo de transformao. Descobertas arqueo-lgicas realizadas na dcada de 1970 indicam que, em vrios casos, sua trans-formao social e econmica j avanara bastante. O estabelecimento, a partir da segunda metade do sculo XV, de uma ligao comercial martima entre a frica e a Europa Ocidental parece ter oferecido, inicialmente, as oportunidades necessrias frica negra, com vistas a operar uma rpida transformao eco-

    Embarque de escravos a bordo de um navio negreiro europeu. The Hulton -Deusch Collection, Londres.

  • 44 Sntese da HGA Volume II

    nmica e social. Alm do crescimento no comrcio do ouro, algumas produesagrcolas, como a pimenta, tiveram incio e, inclusive, um certo incentivo foi oferecido em prol do aumento da produo de teceles africanos, uma vez queos portugueses e os holandeses haviam participado da distribuio de tecidos africanos em diferentes pontos litorneos do continente.

    Porm, essas primeiras mudanas no durariam muito. Assim que os imensos recursos das Amricas tornaram-se acessveis Europa Ocidental, ou seja, a partir de 1492, com o quase extermnio da populao indgena por ocasio da conquista e com a introduo das doenas pelos conquistadores europeus, nesse momento o papel da frica no sistema econmico atlntico modificou-se. Apopulao requerida para garantir as condies internas de uma transformaocompleta em suas estruturas econmicas e sociais foi transferida, de forma macia, para as Amricas, e empregada, em larga escala, para desenvolver as produes mercantes. As condies criadas por essa fortssima transferncia populacional impediram, durante trs sculos, o impulso na produo de bens africanos, tanto ao nvel do comrcio interno, quanto no tocante s exportaes, dando assim origem s estruturas de dependncia.

    A primeira perda imposta pela migrao forada foi a interrupo do cres-cimento demogrfico em vastas zonas do continente. estimado acima de 22milhes o nmero de indivduos levados da frica para o resto do mundo, entre1500 e 1890.

    O principal problema consiste em determinar em que medida essas expor-taes reduziram a capacidade de reproduo da populao na frica negra.

    Convm destacar que o exame dos dados relativos ao trfico transatlntico revela uma relao praticamente constante entre as propores de homens e mulheres, sejam quais forem as regies de origem dos escravos.

    Para o conjunto da frica negra, os dados mostram que a importncia do nmero de mulheres exportadas a cada ano provocou considervel reduo na capacidade de reproduo. Se levarmos em conta as perdas suplementares cau-sadas pelas exportaes para as Amricas (a mortalidade entre o momento dacaptura e o da chegada ao trmino da viagem, os falecimentos devidos a com-bates e a fome durante as capturas), assim como a exportao de 6,9 milhes de negros (dos quais a maioria era composta por mulheres) para o resto do mundo, tudo indica que a populao de frica negra diminuiu, em valores absolutos, aomenos entre 1650 e 1850.

    Como a escravizao de grande parte da populao exportada foi obtidaprincipalmente pelo emprego da fora, o comrcio dos