singularidades (conto)

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Page 1: Singularidades (Conto)
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Livros editados na colecção Imagens de Hoje

O Breve Reino dos VivosFernando MeliM

O Diário de A.Glória de Sá

O Silêncio da PromessaHelena Ferreira MarqueS

A Pedra de Villa Novaolinda Beja

sairòmeM – Guerra ColonialGuStavo PiMenta

Dez Horas de MemóriajorGe FraGoSo

JulgamentoaBílio Pereira de CarvalHo

Rumo a Fulacundarui alexandrino Ferreira

Em Verdade Vos DigoFernando MeliM

Joaquim Calhau – Memórias de um Sindicalista. Conversas com Jorge FragosojoaquiM CalHau e jorGe FraGoSo

Quem Matou o Professor?Maria do SoCorro diaS

Retratos de Um País EncantadorGuStavo PiMenta

A Noite Americanajúlia MatoS Silva

Como Poderia Esconder-me na Tua FaceHélder GonçalveS Pereira

Conversas Entre Nós – Uma leitura de autores portuguesesManuel Sá Correia

Amantes da Lua Negraantónio rolo

Deus, Pátria e... a VidaGertrudeS da Silva

Bichos do MatojoSé Ferreira MarqueS

Em Nome da GreiGuStavo PiMenta

Esta Tristeza Que Me HabitaMário ruFino

Angola Terra d’UangaluíS vieira da Silva

O Homem do PelourinhoCarloS Paixão

Mundosa. j. BranCo e norBerto eliaS

Os Dias Imprecisosálvaro de oliveira

A Pátria ou a VidaGertrudeS da Silva

Imitação das Horasnuno MiGuel Proença

TrancosãluíS Manuel de SouSa Peixeira

Contos NegrosjoSé n.

11 - M. O 11 de MarçO eM MadridCarloS alMeida

NeblinaanaBela CunHa vaz

HerançaMaria adelaide Calado

AutoMiGuel raMalHo SantoS

Expresso Latinoalexandra Pereira

Rua do ArsenaljoSé Ferreira MarqueS

Quatro Estações em AbrilGertrudeS da Silva

Do Tempo da Outra SenhoraluíS urGaiS

Luta Titânica! Eu e o CancroPaula aMoriM

Contra MarésMaria adelaide Calado

O Perigo na Ponta da EsferográficaPedro MiGuel Gon

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O Perigo na Ponta da Esferográfica

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Título: O Perigo na Ponta da EsferográficaAutor: Pedro Miguel Gon

Capa: Summer fun, fotografia de Baine Carruthers© 2009 Pedro Miguel Gon

Direitos reservados por Terra Ocre - unip. lda.Apartado 10032

3031-601 [email protected]

www.palimage.ptData de edição: Novembro 2009

ISBN: 978-972-8999-79-7Depósito Legal n.º 301595/09

Execução Gráfica: Palimage / Artipol

Palimage é uma marca editorial da terra ocre – edições

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Pedro Miguel Gon

O Perigo na Ponta da Esferográfica

CONTOS

A Imagem e A Palavra

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Sumário

Singularidades ................................................................................................................................................................9Rebeldia ................................................................................................................................................................................17A Campanha ................................................................................................................................................................23Sapatos Brilhantes .............................................................................................................................................39S. P. P. ........................................................................................................................................................................................45Electrónica ......................................................................................................................................................................71O Avião .................................................................................................................................................................................87O Problema ...............................................................................................................................................................133A Bomba Atómica ........................................................................................................................................137Eu e o meu Clone ..........................................................................................................................................171Arrendatário de Suicídio ....................................................................................................................187pax americana..............................................................................................................................................................197O Homem dos Balões ...........................................................................................................................203O Informacêutico ..........................................................................................................................................209Planeta que Morre de Tristeza ................................................................................................213

ApêndiceA Cultura Cansada ........................................................................................................................................219

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Singularidades

Sempre que saía de casa as pessoas desapareciam. Ultima­mente era coisa que o preocupava sobremaneira. Pela janela podia identificar um número apreciável de pessoas, mas quando saía do seu apertado duplex e chegava à porta da rua, não encontrava vivalma. Algumas raras vezes ainda conseguia ver uma última pessoa de costas a virar a esquina e desaparecer; mas na maioria dos casos deparava com a ausência concretizada. O mundo que lhe entrava pela janela podia transbordar de trânsito e agitação, mas quando chegava a abrir a porta da rua encontrava um mundo solitário que, apesar de tudo, e isso era deveras estranho, sugerira vontade de companhia. Ele, por sua vez, só vinha à rua em busca dessa companhia depois de uma manhã inteira de trabalho e agradava­lhe essa disponibilidade lisonjeira do mundo, pelo que nunca se havia dado conta da incoerência que agora começava a intuir.

Acontece que na tarde anterior atrevera­se a contar as pessoas que conseguia vislumbrar da sua janela no sétimo andar. Contara dois casais que desciam em direcção ao centro, quatro crianças formando dois pares distintos, e seis velhos em ritmos incomensuráveis – dois par a par, conversando para caminhar, mais dois tentando puxar um pelo outro, e mais dois separados pela rua, a saber, uma senhora obesa imobili­zada junto à parede do prédio em que se amparava, com um saquinho de plástico cor de rosa velho no chão, horrível,

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à distância da outra mão, e um senhor elegante conduzindo um jornal pelo lado soalheiro da rua. Ah! e os cães. Dois cães da moda, soltos, como manda a incivilidade endinheirada, e ainda, na trela dos donos, o casal jovem, um apalermado golden retriever chamado Snow. Mas apesar deste leque substantivo de enti dades, quando chegou à rua encontrou os prédios, os passeios, as árvores, as paragens de autocarro, a sinalética urbana, os carros estacionados; e pessoas, nicles. Olhou­a descon fiado. Percorreu com o olhar as fachadas dos prédios fronteiros e lembrou­se que devia ter procurado pistas de gente nas janelas antes de descer. As janelas encontravam­se absolutamente inanimadas e a cidade inane apesar de ser hora de almoço. Fechou a porta e voltou para cima. Abeirou­se da janela da sala e bastou apenas um instante para voltarem a passar os carros, os eléctricos e os autocarros; e viu aparecer um grupo de rapazolas da escola básica a correr com a genica gritante dos idiotas. Na face visível de um dos prédios que dava para a rua perpendicular à sua, e que criava o cruzamento a poucos passos do seu prédio, apareceu na janela do quinto andar uma mulher jovem a pendurar nos estendais a sua roupa íntima. Enfrentaram o mundo, meticulosamente, três cuequinhas – cinzenta, preta e lilás – e três soutiens, além de duas camisolinhas de manga curta, todas dispostas no estendal com um cuidado indescritível. No prédio fronteiro um gato preto assomou ao parapeito da janela. Passou um carro publicitário debitando pelos altifalantes um chinfrim de boas intenções empresariais e isso atraiu às varandas dois putos e uma avó com uma criança inconsolável ao colo.

Depois disso deixou­se sentado no braço do sofá mais próximo da janela, numa posição que o deixava lançar o olhar sobre o mundo dos outros. Precisava de meditar. Havia que enquadrar esta experiência com outros acontecimentos mais recentes. Imóvel, com as mãos levemente recolhidas nos bolsos

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do casaco de lã de trazer por casa e com os olhos como telas da memória plasmada no vidro em que batia a luminosidade da tarde. Lembrou­se que já há muito tempo não partilhava o elevador com outro condómino. Ou mesmo com uma qualquer pessoa em visita. Um rapaz das pizzas, por exemplo. De facto, ultimamente sempre que usava o elevador estava vazio e disponível. O que é estranho, percebeu então, num prédio tão grande, onde residiam tantas famílias, ainda por cima com escritórios nos primeiros pisos. A esta luz ganhava outra dimensão aquele episódio extraordinário ocorrido no metro há cerca de três semanas atrás. Raramente o usava, pois preferia deslocar­se de táxi, já que o deixava sempre nos locais precisos, mas dessa vez, por causa do lançamento de uma obra numa determinada livraria, escolheu o metro. Não se cruzou com ninguém quando desceu os ternos degraus das galerias, nem encontrou qualquer pessoa à espera na plataforma da estação; na carruagem em que entrou não havia nenhum outro passageiro; e na estação em que saiu também não se cruzou com ninguém, pois não havia funcionários nas bilheteiras, nem seguranças a fazer o giro, nem músicos pedintes, nem mulheres da limpeza; em resumo, ninguém. Achou uma coincidência tão extraordinária, tão singular, que até foi digna de um apontamento detalhado no seu diário. Algo só comparável a atravessar de automóvel uma grande cidade e só deparar com sinais verdes nos semáforos.

«Coincidências extraordinárias», concluiu.No dia seguinte saiu cedo de casa com o fito de apanhar a

realidade desprevenida. Nos primeiros minutos convenceu­se que o conseguira; as pessoas têm que trabalhar e para trabalhar têm que sair à rua. A realidade estava tramada. Não podia ser de outra forma. Mas pouco mais de quinze minutos depois de sair de casa, as pessoas começaram a rarear precisamente nas ruas por onde passava, apesar de ser suposto estar­se na

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hora de ponta. Lembrou­se que se apanhasse um táxi chegaria mais rápido ao centro da cidade, por isso mudou de sentido e dirigiu­se à praça de táxis mais próxima. Avistou ao longe uma fila de pessoas à espera de táxi e imaginou que lhe restaria muito tempo de espera, junto de quem já lá estava, para chegar à sua vez, por isso nem acelerou a passada; mas, diante dos seus olhos, os três táxis que lá se encontravam pisgaram­se com os respectivos clientes, num instante apareceram mais dois que levaram as restantes pessoas na fila de espera e a rua ficou subitamente deserta. Até de sons. Tudo aconteceu com uma rapidez surpreendente, enquanto percorria os escassos cem metros entre a esquina que havia dobrado e a estação de táxis. Quando lá chegou, ainda sem acelerar a passada, já não havia ninguém por perto. E resolveu esperar. Durante quanto tempo poderia a realidade resistir em pôr gente na rua àquela hora da manhã? Reforçou a espera. Talvez por imposição lógica, a realidade acabou por oferecer um táxi vazio, no qual entrou. Teria passado muito tempo? A realidade cumpria­se de maneira forçada, como no mau teatro.

Ao entrar disse,«Bom dia!», com um tom que sugeria o início de uma

conversa que poderia alongar­se, porém, a única resposta que recebeu estava confinada ao olhar do condutor reflectido no retrovisor feito de forma pragmaticamente interrogativa. Por isso, foi quase arrancada da sua boca a resposta,

«Para a baixa.»Mal fechou a porta do automóvel, apareceram quase

simultaneamente quatro cidadãos apressados. O táxi arrancou; o condutor ainda não engrenara a terceira velocidade quando decidiu olhar para atrás e constatou que a fila de espera já ultrapassava a dezena de pessoas, tensas e esbracejantes, acres ­ cen tando­se que se aproximavam inúmeros táxis quase no limite do caos.

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O táxi levou­o por ruas cheias de gente. Sim, as pessoas existiam, a cidade estava cheia delas. E dentro do táxi encontrou pistas inequívocas da existência dos outros: um canto rasgado de uma carteira de chicletes indicava um passageiro que tenta esmagar os nervos com a rotina, ou alguém continuamente preocupado com o mau hálito; um jornal do próprio dia já abandonado no banco atrás do condutor indiciava alguém apressado ou distraído ou entediado; finalmente, mais tangí­vel ainda, um chapéu anacrónico junto do jornal. Noutras circunstâncias aquele chapéu teria sido objecto de interesse e devaneio especulativo, mas agora merecia apenas o reconhe­cimento de objecto. O táxi corria rápido e tantas pessoas tão perto, pertinho, nos passeios, nas lojas, nos autocarros, nas pastelarias e nos cafés. Então disse ao taxista,

«Pare!»O carro afrouxou, encostou e parou numa praça ampla

ancorada em torno de uma bela estátua equestre. Havia na praça uma harmoniosa diversidade de cores e movimentos. Abriu a porta. Não foi preciso um minuto para que as pessoas fadassem um destino diverso daquele que lhes inspirava os passos instantes atrás; e a bonita praça acabou por esvaziar­se, deixando os charcos límpidos espalhar um brilho prateado no branco dos edifícios antigos. Até as pombas estavam desapa­recidas.

Nessa noite teve dificuldade em adormecer. A casa respi­rava com dificuldade. Os livros, nas estantes, pareciam afoguea­dos e os dossiers de arquivo pareciam engasgados. Repensou e ressonhou e acordou quando as suspeitas pesadelavam a tranquilidade do sono. Levantou­se mal disposto e sem vontade, imagine­se, de escrever. Foi à sua janela predilecta espiar a realidade e sentiu­se envolto numa sozinhitude esquisita. Era muito cedo e o céu ainda se encontrava pintado num tom de azul­escuro. Foi quando rodava a chávena do

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café na mão que decidiu sair à rua. Preparou­se devidamente, meticulosamente, barba, banho, roupa seleccionada, incluindo gravata, e saiu. Desta vez levou o seu próprio carro para não se deixar enganar, e atirou­se ao trânsito infernal da metrópole com alma espartana.

O seu automóvel foi o primeiro na avenida. O veículo desenhou uma curva perfeita para a direita, ao sair da gara­gem, e iniciou uma suave aceleração em linha recta que ia pedindo crescentes cavalos de potência. Havia luzes acesas em algumas janelas, mas insuficientes para competir com os reclames luminosos e os semáforos. Estes pareciam pactuar com o automóvel em movimento, uma vez que a maioria sufragava o verde e os mais hesitantes concediam­lho logo que se aproximava. Sabia que a realidade costumava encher as vias principais de automóveis apreensivos a caminho de circunstâncias de sobrevivência, pelo que a sua intenção era encurrala­la aí. Mas, até ao momento, ainda não se cruzara com qualquer veículo. Atravessou várias ruas e avenidas mas não deu com ninguém, nem os homens da recolha do lixo, nem vagabundos, nem cães, nem gatos, nem fantasmas.

Com sede de ver confirmado o seu raciocínio, ligou o rádio, sintonizou a TSF e esperou pelos relatos do estado do trânsito. Poucos minutos depois o locutor dava conta que a segunda circular estava estranhamente entupida. Dirigiu­se imediatamente para lá. Numa rotunda envolta de edifícios austeramente elegantes, meteu­se por uma avenida que subia até ao aeroporto e, depois de passar uma sucessão de semáforos, entrou na segunda circular, mas não deparou com qualquer carro diante de si, nem atrás de si. Era o único; o que o decepcionou. Os locutores da TSF também estavam para o enganar? Começava a aborrecer­se. Reparou porém, enfim, que do outro lado do separador central havia imensos carros parados em fila compacta. Abrandou e pôde ver os rostos

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avermelhados dos condutores em cólera, gritando uns com os outros, de janelas abertas, a esbracejar, mas sem abandonarem o lugar ao volante. Estavam tão pertinho! Ansiou por estar lá do outro lado a comungar da cólera inútil. Acelerou à procura de maneira de passar para as faixas do sentido contrário, mas assustou­se, porque no horizonte da estrada não havia paisagem, apenas uma nódoa escura. Travou a fundo, sem saber se ia estampar­se contra aquela mancha escura ou se ia cair lá dentro, e foi então que largou a caneta e apagou a luz.

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