sincretismo afro brasileiro

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Debates do NER, Porto Alegre, ano 12, n. 19 p. 11-28, jan./jun. 2011 SINCRETISMO AFRO-BRASILEIRO, POLITEÍSMO E QUESTÕES AFINS Reginaldo Prandi 1 Resumo: O presente artigo trata do sincretismo religioso na formação e posteriores transformações das religiões afro-brasileiras numa sociedade em que ser católico era a condição necessária para ser brasileiro. Introduz a seguir a questão do politeísmo, apresentado como característica importante das religiões africanas, e discute o favorecimento do sincretismo que o politeísmo propicia. Trata, finalmente, desses dois aspectos, sincretismo e politeísmo, nas relações entre afro-brasileiros, católicos e evangélicos. Palavras-chave: Sincretismo afro-brasileiro; Politeísmo afro-brasileiro; Intolerância religiosa; Monoteísmo versus politeísmo Abstract: The present article presents the religious syncretism in the formation and posterior transformations of the Afro-Brazilians religions in a society where to be Catholic was a first condition to be Brazilian. Introduces the question of polytheism, presented as an important characteristic of the African religions and try to show as polytheism aids syncretism. Discusses, finally, what syncretism and polytheism can represent in the relationship between Afro-Brazilians, Catholics and Evangelicals. Keywords: Afro-Brazilian syncretism; Afro-Brazilian polytheism; Religious intolerance; Monotheism against polytheism. 1 Reginaldo Prandi é professor titular de sociologia da USP, aposentado, e pesquisador do CNPq. Entre seus livros mais recentes estão Mitologia do orixás, Segredos guardados, o romance policial Morte nos búzios e os infanto-juvenis Ifá, o Adivinho, Minha querida assombração, Jogo de escolhas, Feliz Aniversário, Contos e lendas afro-brasileiros e Contos e lendas da Amazônia, todos editados pela Companhia das Letras. Entre outros prêmios, recebeu o Prêmio Érico Vannucci Mendes 2001, outorgado pelo CNPq, SBPC e Minis- tério da Cultura, por sua contribuição à preservação da memória cultural brasileira.

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Sincretismo

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  • Debates do NER, Porto Alegre, ano 12, n. 19 p. 11-28, jan./jun. 2011

    SINCRETISMO AFRO-BRASILEIRO, POLITESMOE QUESTES AFINS

    Reginaldo Prandi1

    Resumo: O presente artigo trata do sincretismo religioso na formao e posteriores transformaes das religies afro-brasileiras numa sociedade em que ser catlico era a condio necessria para ser brasileiro. Introduz a seguir a questo do politesmo, apresentado como caracterstica importante das religies africanas, e discute o favorecimento do sincretismo que o politesmo propicia. Trata, fi nalmente, desses dois aspectos, sincretismo e politesmo, nas relaes entre afro-brasileiros, catlicos e evanglicos.

    Palavras-chave: Sincretismo afro-brasileiro; Politesmo afro-brasileiro; Intolerncia religiosa; Monotesmo versus politesmo

    Abstract: The present article presents the religious syncretism in the formation and posterior transformations of the Afro-Brazilians religions in a society where to be Catholic was a fi rst condition to be Brazilian. Introduces the question of polytheism, presented as an important characteristic of the African religions and try to show as polytheism aids syncretism. Discusses, fi nally, what syncretism and polytheism can represent in the relationship between Afro-Brazilians, Catholics and Evangelicals.

    Keywords: Afro-Brazilian syncretism; Afro-Brazilian polytheism; Religious intolerance; Monotheism against polytheism.

    1 Reginaldo Prandi professor titular de sociologia da USP, aposentado, e pesquisador do CNPq. Entre seus livros mais recentes esto Mitologia do orixs, Segredos guardados, o romance policial Morte nos bzios e os infanto-juvenis If, o Adivinho, Minha querida assombrao, Jogo de escolhas, Feliz Aniversrio, Contos e lendas afro-brasileiros e Contos e lendas da Amaznia, todos editados pela Companhia das Letras. Entre outros prmios, recebeu o Prmio rico Vannucci Mendes 2001, outorgado pelo CNPq, SBPC e Minis-trio da Cultura, por sua contribuio preservao da memria cultural brasileira.

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    Um em cada cinco brasileiros costuma frequentar cultos ou servios religiosos de alguma religio diferente da que professa. uma estimativa aproximada para a cifra de 17% para brasileiros em geral encontrada pelo instituto DataFolha em pesquisa de alguns anos atrs. No mesmo levanta-mento, esse nmero subia a 19% entre os catlicos, crescia para 37% entre os umbandistas e chegava a 48% entre os seguidores do candombl. Mais sectrios, os evanglicos pentecostais mostravam-se numa cifra bem mais modesta: 9% (Folha de S. Paulo, 6/5/2007).

    E o que se vai fazer numa religio que no a sua? Uns vo participar de atos com fi nalidade religiosa. Outros, presenciar ritos como casamento e funeral, numa atividade mais social que religiosa. No raro, a coisa se faz por necessidade religiosa ou mgica, uma religio complementando outra. Uma s religio no basta. Isso comum no Brasil, especialmente pelo carter sincrtico de nossas religies.

    Umas mais, outras menos, toda religio sincrtica. Quando uma igreja pentecostal adota prticas mgicas afro-brasileiras, como o caso do descarrego, mostrado pela televiso evanglica, ela toma por emprstimo de suas maiores rivais um rito mgico muito familiar ao brasileiro, seja ele umbandista, catlico, evanglico etc. Igualmente, o catolicismo carismtico foi buscar no pentecostalismo as prticas do falar em lnguas estranhas e outros dons que, apesar da origem crist comum, so especialmente estru-turadoras do pentecostalismo (Prandi, 1998). O emprstimo aproxima as religies em termos de linguagem e refora sua efi ccia mgica. Se um fi el encontra na sua religio elementos presentes tambm em outras, a outra religio nunca lhe inteiramente estranha. Afi nal, costuma-se dizer que todos os caminhos levam a Deus.

    Por razes histricas de sua constituio, as religies afro-brasileiras so as que mais se aproximam de outras, primeira e especialmente do catoli cismo, e em segundo plano de religies indgenas e do espiritismo kardecista. Pela densidade do sincretismo que se pode observar a olho nu, as religies afro-brasileiras, entre elas o candombl, o xang, o tambor de mina, o batuque e a umbanda, no raro, so classifi cadas numa categoria genrica denominada religies sincrticas.

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    Quando o candombl se formou, o catolicismo era a religio ofi cial do Brasil, e nenhuma outra era tolerada. Todo brasileiro, fosse branco, indgena ou africano, deveria ser batizado catlico.

    Antes de serem embarcados nos navios negreiros, ainda na frica, os escravos eram batizados e introduzidos nas prticas rituais da Igreja catlica. Quando no, a incluso compulsria no catolicismo fazia-se no desembarque. Desse modo, os negros que instituram no Brasil as religies afro-brasileiras eram, por fora da sociedade da poca, e da lei, tambm catlicos. Acabaram por estabelecer paralelos entre as duas religies, iden-tifi cando, por meio de smbolos ou patronagens comuns, orixs com santos catlicos e Jesus Cristo.

    No contexto cultural catlico do Brasil do sculo XIX, o candombl nascido desse encontro se fi rmou como religio subalterna e tributria do catolicismo, do qual ainda hoje tem difi culdade de se libertar para se consti-tuir como religio autnoma. No lado de c do Atlntico, mitos foram adaptados nova realidade social, rituais ganharam feies condizentes com o novo territrio e os novos tempos, deuses africanos tornaram-se santos afro-brasileiros. A umbanda, surgida mais tarde do candombl e do karde-cismo, manteve e reforou esse sincretismo. No estranho umbanda e ao candombl ter seus adeptos frequentando missas e sacramentos catlicos. No fundo, tambm so catlicos. A Igreja catlica faz vistas grossas, assim como fi nge no ver seus fi is buscando nos terreiros e centros ajuda no jogo de bzios, nos despachos e nos conselhos dos caboclos e pretos-velhos.

    II

    A religio africana no Brasil, ainda que resultante de uma reconstruo fragmentada, foi capaz de dotar o negro de uma identidade africana, de origem, que recuperava ritual e simbolicamente a famlia, o grupo tnico e a cidade perdidos para sempre na dispora. Mas foi por meio do catoli-cismo que o negro pde se encontrar e se mover no mundo real do dia a dia na sociedade do branco dominador, que era o responsvel pela garantia de sua existncia, ainda que em condies de privao e sofrimento, e que

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    controlava sua vida quase completamente. Qualquer tentativa de superao da condio escrava, como realidade ou como herana histrica, impli-cava primeiro a necessria incluso no mundo do branco. E logo passava a signifi car o imperativo de ser, sentir-se e parecer brasileiro. Os negros no podiam ser brasileiros sem ser ao mesmo tempo catlicos. Podiam preservar suas crenas no estrito limite dos grupos formados por africanos e descen-dentes muitas vezes reproduzindo simbolicamente a famlia e os laos familiares mediante a congregao religiosa, da a origem dos terreiros de candombl e das famlias de santo , mas a insero no espao maior exigia uma identidade nacional, por assim dizer, uma identidade que refl etisse o conjunto geral da sociedade catlica.

    O fi m da escravido, a formao da sociedade nacional estruturada em classes, o extravasamento das populaes negras pelas amplitudes geo-grfi cas, com a criao de oportunidades sociais as mais diferentes, tudo isso s fez reforar a importncia do catolicismo para os negros. O prprio catolicismo, como cultura de incluso, hegemnica, no fez oposies que no pudessem ser vencidas, ao fato de o negro manter, muitas vezes, uma dupla ligao religiosa2.

    Assim, as religies afro-brasileiras sempre foram devedoras e depen-dentes do catolicismo, ideolgica e ritualmente. S muito recentemente as religies de origem negra comearam a se desligar do catolicismo, j numa poca em que a sociedade brasileira no precisa mais do catolicismo como a grande e nica fonte de transcendncia que possa legitim-la e fornecer-lhe os controles valorativos da vida social. Mas isso um projeto de mudana nos referenciais de identidade que mal comeou e que exige, antes, outras expe-rincias de situar-se no mundo com mais liberdade e direitos de pertena.

    A partir do Rio de Janeiro, l pela dcada de 1930, a umbanda, que ento nascia, retrabalhou muitos elementos religiosos de origem africana, que acabaram incorporados cultura brasileira por um estamento negro que se dilua e se misturava aos brancos pobres na constituio das novas classes

    2 Ainda hoje, frequentar mais de uma religio, ao menos circunstancialmente, costume que se pode observar em parcela expressiva da populao, sobretudo porque a religio pode ser vista tambm como servio (Negro, 2008).

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    sociais numa cidade, ento a capital federal, que era branca, mesmo quando proletria, era culturalmente europeia, valorizava a organizao burocrtica da qual vivia ento boa parte da populao residente e premiava o conhecimento pelo aprendizado escolar em detrimento da tradio oral, to cara tradio africana. Ao mesmo tempo, propiciava vigoroso processo de valorizao de elementos nacionais, como o caboclo e o preto velho, que so espritos de indgenas e escravos.

    Tratava-se de limpar a religio nascente de seus elementos mais compro-metidos com a tradio inicitica secreta e sacrifi cial, tomando por modelo o kardecismo, que expressava ideais e valores da nova sociedade capitalista e republicana, ali na sua capital. Os passos decisivos na formao da um-banda foram a adoo da lngua verncula, a simplifi cao da iniciao, a eliminao quase total do sacrifcio de sangue. Manteve-se o rito cantado e danado dos candombls, bem como um panteo simplifi cado de orixs, j havia muitos anos sincretizados com santos catlicos, reproduzindo-se um calendrio litrgico que segue o da Igreja catlica. Entretanto, o centro do culto no seu dia a dia estar ocupado pelos guias, caboclos, pretos velhos e mesmo os exus masculinos e femininos, as pombagiras, j cultuados em antigos candombls baianos e fl uminenses, frutos de um sincretismo cujas fontes esto tambm fora do catolicismo (Camargo, 1961; Lewgoy, 2009; Prandi, 1996).

    Assim, entre 1930 e o fi nal dos anos 1950, mais ou menos, a histria das religies afro-brasileiras est centrada no apagamento de caracters-ticas de origem africana e no sistemtico ajustamento cultura nacional de preponderncia europeia, que branca. Na contrapartida do processo de branqueamento, entretanto, muitas prticas e concepes religiosas de origem negra acabaram por contribuir decisivamente para a formao de uma identidade mestia construda para o pas no perodo, sobretudo no mbito das artes, como foi no caso do samba (Prandi, 2005).

    Mais adiante, a partir dos anos 1960, com a larga migrao, sada do Nordeste em busca das grandes cidades industrializadas do Sudeste, o candombl da Bahia comeou a penetrar o bem estabelecido territrio da umbanda, e velhos umbandistas comearam a iniciar-se no candombl,

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    muitos deles abandonando os ritos da umbanda para se estabelecer como pais e mes de santo das modalidades mais tradicionais de culto aos ori-xs. Nesse movimento, a umbanda foi remetida de novo ao candombl, sua velha e verdadeira raiz original, considerada pelos novos seguidores como sendo mais misteriosa, mais forte, mais poderosa que sua moderna e embranquecida descendente. Tratava-se de recuperar o que a umbanda desprezara, mas sem abandonar elementos da umbanda muito valorizados no mercado mgico e religioso. Foi o caso dos cultos quimbandistas dos exus e pombagiras agregados a amplo segmento no novo candombl, num movimento sincrtico que junta candombl e umbanda, formando-se o que muitos chamam de umbandombl. A umbanda dotou, por assim dizer, a religio tradicional afro-brasileira de todo um panteo, ritualstica e viso de mundo da chamada esquerda da umbanda, ou quimbanda. Hoje difcil encontrar um terreiro de orix, vodum ou inquice sem os exus e pombagiras, em qualquer regio do Brasil, seja qual for o nome que localmente se d religio afro-brasileira.

    Os anos durante os quais o candombl instalou-se em So Paulo, entre meados dos 1960 e os primeiros anos da dcada de 1970, marcam um perodo de vital efervescncia no plano da cultura e das mentalidades. Profundas foram as mudanas em relao aos modos de vida e aos cdigos intelectuais, quando a racionalidade foi posta sob suspeio, assim como a crena completa no conhecimento universitrio e seus modelos fechados de explicao do mundo. Antevia-se o que viria mais tarde dar no chamado ps-moderno. O movimento de contestao dos anos 60 do sculo XX, que se iniciou na Europa e nos Estados Unidos, logo chegou ao Brasil, sobrema-neira ao Sudeste, s grandes cidades, ganhando adeptos entre intelectuais e estudantes secundaristas e universitrios.

    So os anos da contracultura, da recuperao do extico, do diferente, do original. Nesse perodo de intensa renovao cultural e agitao poltica basta lembrar o golpe militar de 1964, os movimentos que o precederam e os longos anos de represso ditatorial e de resistncia por parte de estudantes, intelectuais, artistas e operrios , os movimentos da juventude de esquerda tiveram intensa atuao em reas como teatro e msica, ao mesmo tempo que

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    se desenvolvia uma concepo de sociedade que implicava a valorizao do pobre, do negro, do explorado e do marginalizado, em que se inclua a favela e o morro cariocas, que passaram a ser cantados pelos compositores e intr-pretes da msica popular de elite como polos de luta contra a injustia social. A intelectualidade brasileira de maior legitimidade nos anos 60 parti cipou ativamente de um projeto cultural de recuperao de origens, que remetia muito diretamente Bahia e ao candombl. Muitos elementos do sincretismo religioso afro-brasileiro foram incorporados cultura brasileira no religiosa.

    No plano religioso, comeava o que chamei de processo de africani-zao do candombl (Prandi, 1991), em que o retorno deliberado tradio impli cava o reaprendizado da lngua, dos ritos e mitos que foram deturpados e perdidos na adversidade da dispora; voltar frica no para ser africano nem para ser negro, mas para recuperar um patrimnio cuja presena no Brasil era agora motivo de orgulho, sabedoria e reconhecimento pblico. De certo modo, esse movimento de africanizao, de volta s razes, supunha a negao de elementos umbandistas recentemente incorporados ao novo can-dombl. Mas no foi bem isso que se deu: expurgos e adoes, as duas coisas aconteciam ao mesmo tempo, numa poca em que falar de contradies e dialtica era mais do que moda. No fi nal, o sentimento sincretista parece ter falado mais alto, e os novos candombls africanizados acabaram encontrando um lugar onde manter com legitimidade os caboclos, exus e pombagiras que destoavam do que pudesse ser considerado genuinamente africano. Decorreu desse processo, em grande parte, uma umbanda atual que agrega elementos das mais diferentes religies e prticas mgicas, ao lado de um candombl, sobretudo nas regies conquistadas mais recentemente, que cultiva elementos marcadamente umbandistas ou quimbandistas (Prandi, 2001; 2005).

    Em suma, o culto aos orixs primeiro misturou-se ao culto dos santos catlicos para ser brasileiro forjou-se o sincretismo. Depois apagou ele-mentos negros para ser universal e se inserir na sociedade geral gestou-se a umbanda. Finalmente procurou seguir o caminho da africanizao e dessincretizao preocupado em estabelecer sua autonomia em relao ao catolicismo o candombl se transformou em religio para todos e em todas as partes do pas.

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    A religio tradicional que migrou e que se refez na cidade moderna foi assim se mostrando como espelho da sociedade da diferena e do plura-lismo. Nessa sociedade secularizada, em que no h mais lugar para a religio nica e hegemnica, capaz, como no passado recente, de ditar regras para a sociedade como um todo, nessa sociedade que no precisa mais de deu-ses, que seguem cultuados em vista agora das necessidades dos indivduos, nessa sociedade o candombl foi se expandindo como uma das inumerveis religies da metr pole contempornea.

    A religio agora depende das foras de oferta e procura, devendo adaptar-se a novas situaes e novas demandas. Reage s suas concorrentes, lanando mo da propaganda e dos meios eletrnicos de comunicao, simplifi cando sua linguagem em funo de produtos religiosos cuja propa-lada efi ccia o atrativo dos neodevotos que a religio arrebata em massa. Sobretudo especializa-se, abrindo mo de sua velha natureza de cultura e instituio totalizadora, vocacionada para dar conta de todas as coisas. A religio se esparrama e se fragmenta, perde sua origem, que deve ser refeita a cada nova demanda, ganha espaos e mercado. agora religio do mundo, onde tudo se sabe e onde tudo se consome, se vende e se compra. Para ser um dia, quem sabe, a religio do mercado sem fronteiras. A se pode observar a presena da religio dos orixs, aos quais se juntaram deuses africanos de outras procedncias e entidades de origem brasileira, num jogo que refaz tradies e oferece novas possibilidades de culto como nunca se viu, e como prprio da sociedade secularizada e pluralista.

    Nesse contexto, as religies afro-brasileiras no dependem mais do catolicismo como mecanismo de identidade para seus devotos. No mais preciso ser catlico para ser brasileiro; pode-se ter qualquer religio, ou nenhu ma. O sincretismo no faz mais sentido, e para muitos dos adeptos do candombl, sobretudo sua liderana mais esclarecida, em todas as regies do Brasil, retirar dessa religio afro-brasileira os elementos catlicos faz parte desse retorno origem, dessa volta frica, que uma retomada de prticas e smbolos religiosos e no o desejo de retornar s condies de vida do negro, do escravo, do antigo.

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    Ao negar o sincretismo, deixando para trs a religio da Igreja catlica, seus ritos e santos, o novo candombl tenta se pr em p de igualdade com o catolicismo, quer deixar de ser religio subalterna, j no se v a si mesmo como a religio do escravo. Mas sempre vai esbarrar em oponentes poderosos, incomodados com sua presena no cenrio religioso e dispostos a elimin-lo.

    III

    No passado recente, o candombl sofreu intensa perseguio por parte de autoridades do governo, da polcia e de muitos rgos da imprensa, que mantiveram nas pginas de jornais campanhas odiosas contra uma prtica religiosa que julgavam, preconceituosamente, magia negra, coisa do diabo, coisa de negro, enfi m. Como se fosse uma praga prejudicial ao Brasil e sua civilizao , que devesse ser erradicada (Reis, 2008; Braga, 1995). O preconceito racial, que considerava o negro africano um ser inferior ao homem branco, desdobrou-se em preconceito contra a religio fundada por negros escravos e livres. Ao longo de mais de um sculo, em diferentes partes do pas, terreiros foram invadidos, depredados e fechados, pais e fi lhos de santo presos, objetos sagrados profanados, apreendidos e destrudos. Isso obrigou o candombl a se esconder, buscando lugares distantes, s vezes no meio do mato, para poder realizar suas cerimnias em paz. Transformou-se numa religio de muitos segredos, pois tudo tinha que ocultar dos olhares impiedosos da sociedade branca e da sanha policial. O sincretismo catlico, serviu-lhe tambm de guarida e disfarce. A presena de um altar com os santos catlicos ocupando um lugar de relevo no barraco do candombl indicava, e em muitos terreiros ainda indica, que as pessoas ali reunidas eram catlicas, antes de mais nada.

    Nada disso novidade: quem estuda as religies afro-brasileiras sempre encontra a questo da intolerncia. Quando a perseguio por parte do gover no, da imprensa e da polcia arrefeceu, por fora de lei e mudanas sociais, inimigos religiosos revelaram-se mais fortes e intransigentes. Surgiam os neopentecostais, e a intolerncia evanglica, j atuante, cresceu muito. Os ataques sistemticos de muitas igrejas pentecostais s religies afro-brasileiras

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    ganharam tamanho vulto e visibilidade que muitos autores no se intimi-daram de os chamar de guerra religiosa (Soares, 1990; Mariz, 1997; Oro, 1997; Rabelo, 2005). Como resultado, o Brasil de hoje, em termos relativos, religiosamente menos afro-brasileiro do que foi h vinte ou trinta anos. Nesta que hoje, alm de predominantemente catlica, a maior nao pentecostal do mundo, o espao relativo das religies afro-brasileiras vem diminuindo dramaticamente (Mariano, 2001; Prandi, 2005).

    Derrotar as religies afro-brasileiras item explcito do planejamento expansionista pentecostal. Certas igrejas, copiando prticas empresariais comuns em nossos dias, estabelecem metas, e entre as metas que um pastor deve alcanar est o fechamento de um dado nmero de terreiros existentes no lugar. No basta converter membros dos terreiros: preciso fechar seus templos, cortar o mal pela raiz. Entre um afro-brasileiro e outro, o alvo preferencial para a investida que visa converso so as lideranas, os pais e mes de santo; sabem que a famlia de santo no sobrevive sem a cabea.

    Umbanda e candombl e demais modalidades religiosas de origem africana esto sempre na mira evanglica como religies do diabo, que eles acreditam ser preciso combater a qualquer custo. As religies afro-brasileiras, de certo modo, oferecem munio aos evanglicos: por conta do sincretismo catlico, entidades espirituais como os exus e pombagiras do panteo quimbandista so vistas e promovidas por muitos dos prprios seguidores do candombl e da umbanda como formas do diabo. Ainda que se explique que no contexto doutrinrio afro-brasileiro a dualidade crist do bem contra o mal superada pela viso africana que enxerga o bem e o mal como princpios constitutivos presentes em toda ao e seus agentes, o fato que a iconografi a dos exus e pombagiras usa exausto traos e smbolos caractersticos do diabo catlico. A fi gura de exus de rabo, chifres e tridente funciona como emblema acirrante da causa evanglica. Pombagiras no fi cam atrs na exibio de seus dotes erticos. Difcil abandonar a imagem demonaca que o sincretismo forjou para essas entidades e que agora se vira contra seus prprios criadores, como um tiro no p. Na sua perseguio obstinada pelo diabo, o evanglico imagina que o tem bem mo, ali no terreiro vizinho, incorporado na fi lha de santo, ao alcance de seu brao.

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    IVO candombl desde sua origem foi capaz de criar mecanismos efi cazes

    de sobrevivncia em meio hostil, no caso a sociedade brasileira catlica. Mudou, adaptou-se, sincretizou-se, se escondeu e se mostrou com dissi-mulao e disfarces efi cientes. Sobreviveu procurando no competir com a religio dominante, mas se mostrando como uma espcie de conjunto ritual e doutrinrio complementar justifi cado culturalmente pela memria africana do Brasil. Sempre foi visto mais como cultura do que como religio propriamente. Talvez como magia, sobretudo como folclore. O fato que o candombl aceitou plenamente o catolicismo.

    Teria sido uma estratgia de sobrevivncia? crena generalizada que sim. Como a crena de que o sincretismo nasceu como disfarce, como uma mentira usada pelos escravos para enganar seus senhores, cantando e danando para o santo catlico quando, na verdade, estariam cantando e danando para o orix. Defendo a ideia de que a origem do sincretismo afro-catlico est assentada em sentimentos sinceros, de que o sincretismo se instituiu no como artimanha, mas como resultado de relaes de tole-rncia e assimilao decorrentes da condio politesta da religio africana, que em solo brasileiro se encontrou com o politesmo residual, difuso, mas efetivo do catolicismo ibrico e de seu culto aos santos3.

    Essa relao no poderia se reproduzir igualmente no encontro das religies afro-brasileiras com as religies evanglicas, originadas de um protes-tantismo estritamente monotesta. A anlise do embate entre afro-brasileiros, catlicos e evanglicos se repe assim sob um outro ngulo, o das relaes entre politesmo e monotesmo.

    Faz parte da doutrina afro-brasileira acreditar que o mundo gover-nado pelos orixs, cada um cuidando de uma parte, numa espcie de diviso do trabalho divino. Alm da regncia que cada orix desempenha sobre um aspecto da natureza, a cada um reservada uma atividade especfi ca no cuidado da sociedade, da cultura ou da psicologia do ser humano. Essa ideia de que o mundo governado por diferentes deuses com poderes especfi cos

    3 Para outras interpretaes e aspectos do sincretismo catlico nas religies afro-brasileiras, ver Valente, 1977; S. Ferretti, 1995; Sanchis, 1995.

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    politesmo (Chevitarese; Cornelli, 2007; Segato, 2005). Tambm h uma diviso do trabalho sagrado entre os santos catlicos resqucio do velho paganismo politesta em que medrou o catolicismo primitivo em pases da Europa. Esse poder de cada um sobre determinadas dimenses do mundo natural e social juntou santo e orix numa s devoo. Tambm so unidos num s por seus feitos mitolgicos notveis e por smbolos de sua iconografi a.

    Aqui se desenha talvez a principal diferena entre as religies afro-brasi-leiras e as evanglicas: o politesmo dos afro-brasileiros, que junta diferentes crenas e adota santos e deuses de outras origens atravs de mecanismos como o sincretismo, versus o monotesmo radical evanglico, tributrio do protestantismo da Reforma, sectrio, intolerante e combativo, que rejeita completamente a crena do outro, demoniza divindades, santos e entidades espirituais de outras origens e se prope como misso religiosa a destruio do que lhe religiosamente estranho.

    da natureza do candombl aceitar o outro, assimilar a diferena. J era assim na frica, e assim no Brasil. prprio das religies politestas.

    No politesmo clssico, como acontecia no Egito, na Grcia, no imp-rio Romano, a religio um agregado de cultos de deuses diversos, nem sempre provenientes de uma mesma origem. As divindades convivem em relativa harmonia, cada uma com seus poderes, seus territrios e patronatos. Dispem de templos prprios e sacerdotes particulares. O culto no o mesmo para todos, nem os sacrifcios que lhes so devidos, nem os tabus, nem os demais preceitos e obrigaes. Os deuses e deusas, como os mortais, competem entre si e tentam alargar os limites de seu poder divino. Ainda assim, deuses estrangeiros so facilmente assimilados e adotados em terras estranhas. Deuses locais podem se transformar em divindades nacionais, migram com seus devotos, tm seu culto ampliado com a vitria de seu povo sobre outros povos, declinam junto com sua gente.

    Porque cada deus desempenha um papel diferente na diviso do traba-lho divino, as diferentes religies politestas em contato umas com as outras acabam estabelecendo paralelo entre seus deuses, s vezes os igualando como manifestaes de uma mesma divindade. A maioria dos deuses romanos, muitos deles herdados dos etruscos, podia ser cultuada como manifestaes

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    dos equivalente deuses gregos olmpicos. Nesse jogo de equivalncias, tam-bm podemos situar os orixs.

    No Brasil, os negros estabeleceram conhecida correspondncia dos orixs com os santos catlicos: Xang com So Jernimo, pelo domnio do trovo; Oxssi com So Jorge, pela luta mitolgica contra o drago da maldade; Ogum com Santo Antnio, pela capacidade guerreira de cada um; Nan com Santana, pela senioridade; Logum Ed com So Miguel Arcan-jo, por causa da balana que os simboliza; Iroco com So Francisco, pelo convvio com a natureza; Iemanj com Nossa Senhora, pela maternidade; Ians com Santa Brbara, pelo poder contra o raio; Exu com o Diabo por atributos erticos e comportamento transgressivo; Oxal com Jesus Cristo, pela posio superior de cada um nas duas religies etc.

    Da Oxum, deusa do amor do candombl, pode-se apontar grande aproximao com a Vnus romana, a Afrodite grega e a Htor egpcia, assim como Xang, senhor da justia, remete a Jpiter, Zeus e Amon, enquanto Omulu lembra Esculpio e Amon. Para cada deus daqui haver um deus de l, e em muitos casos divindades de culturas diferentes so representadas pelo mesmo smbolo, como o espelho de Vnus e Oxum, o machado duplo de Zeus e Xang, o arco e fl echa de Artmis e Oxssi.

    Exemplo emblemtico da difuso de um culto e incorporao de sua divindade a pantees de outras religies o caso da deusa egpcia sis, que junto com seu irmo e marido Osris ocupou o lugar de maior relevo no panteo egpcio. Dali foi levada para a Grcia e da Grcia para Roma. Foi cultuada em quase todo o territrio do imprio romano. Desapareceu com a queda de Roma e a ascenso do catolicismo, para ressurgir, quase dois mil anos depois, como divindade de desaparecidas e agora restauradas religies da Inglaterra antiga, ocupando recentemente lugar de honra na recm-criada wicca, a religio da deusa, que prolifera no Brasil. Pois h quem creia tratar-se do orix Ians, do vodum Sob, do inquice Matamba. E por que no de Santa Brbara? Se no a mesma divindade, um de seus avatares, uma outra manifestao da mesma deusa.

    No Brasil, na formao das chamadas naes de candombl (Lima, 1984), divindades de diferentes etnias africanas tambm sincretizaram-se

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    entre si. A correspondncia entre orixs, voduns e inquices divindades iorubs, fons e bantas quase completa, o nome de um se referindo ao de outro e incluindo o de santos catlicos. Xang, assim, tambm Zzi, Luango, Bad, So Jernimo, So Joo e So Pedro. Oxssi ou Od Gongobira, Mutacalombo, Azac, Agu, So Sebastio e So Jorge. Ogum Roximucumbe, Dou, Santo Antnio e So Jorge. Exu Aluvi, Bombo-gira, Elegbara, o Diabo e tambm So Gabriel Arcanjo. Ians ou Oi Sob, Matamba, Bamburucema e Santa Brbara. Iemanj Cai, Ab e Nossa Senhora, enquanto Oxal pode ser referido como Lemb, Liss e Jesus Cristo. E assim por diante, podendo o Deus cristo ser invocado como Zmbi, Avievodum, Olorum e Olodumare.

    A caracterstica politesta da religio dos orixs contribuiu enormemente para a formao do candombl como religio sincrtica. Adotar santos, que identifi ca com suas divindades ou seus avatares, incorporar rituais e aceitar valores catlicos se deu de modo to normal como a anterior incorporao, ainda na frica, de muitos voduns, divindades fons, ao panteo dos orixs iorubanos. Na concepo politesta, o deus estrangeiro fortalece a religio; no visto como um concorrente, mas como um poder a mais com que se pode contar. No fundo, a outra religio no muito diferente. Vem das origens pags o politesmo catlico, sobretudo quando se pensa na religio do povo, no na religio dos telogos, rgos ofi ciais e cnones que afi r-mam, atestam e impem a religio como monotesta, de um deus supremo e nico. Tambm na religio dos orixs h um deus supremo, Olorum ou Olodumare, mas quem exerce de fato o poder divino sobre o mundo so os orixs, os outros deuses (Verger, 1996). E os santos fazem o qu? Tambm no se especializaram em resolver causas especfi cas?

    Um politesmo explcito, o africano, encontrou-se no Brasil com um politesmo residual, formalmente inexistente, mas bem preservado no ima-ginrio catlico. Foi bom para ambas as religies. Serviu para acomodar na Igreja catlica os membros dos terreiros de candombl, e para dar aos seguidores dos orixs a identidade catlica necessria sobrevivncia na sociedade de ento, quando a condio primeira de ser brasileiro era ser catlico, no custa repetir.

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    outra a base doutrinria dos evanglicos: um efeito decisivo da Re-forma protestante sobre a natureza do cristianismo foi acabar de vez com o politesmo disfarado que vicejou no catolicismo. At a Virgem Maria, to cara aos catlicos, foi banida das celebraes protestantes. Essa marca monotesta explcita foi sempre enfatizada tambm pelos evanglicos que vieram depois. Alm de monotesta, o evangelicalismo, nascido como opo-sio doutrinria ao catolicismo, constituiu-se como uma espcie de religio de reviso permanente de verdades teolgicas. E desde sempre se comporta como seita, no mais estrito sentido sociolgico da palavra em termos webe-rianos. Seitas julgam-se portadoras da nica verdade.

    Enquanto as religies afro-brasileiras aceitam as outras religies, assimi-lam seus valores e prticas, adiciona emprstimos a seu panteo, ampliando cada vez mais os limites do sincretismo hoje muito alm do catolicismo, como mostra a umbanda Nova Era , o pentecostalismo radicaliza sua defi nio monotesta e orienta seu trabalho de converso com o sentido de promover uma espcie de limpeza espiritual do mundo, combatendo o que para ele so os falsos deuses j inadmissveis por sua pluralidade numrica. Refora com determinao seu carter sectrio, de que se abastece em guerra aberta contra seus inimigos preferenciais, os afro-brasileiros. orientao de que todo o mal resulta da ao do diabo, que deve ser combatido a cada instante, em todo lugar, por todo cristo, soma-se concepo de que o demnio se personifi ca nos orixs, nas entidades e nos guias espirituais cultuados pela umbanda e pelo candombl.

    E como reagem os afro-brasileiros? No reagem. A guerra de que so vtimas para eles no faz sentido. Tm at difi culdade em admitir sua exis-tncia.

    As religies afro-brasileiras no fazem proselitismo nem so capazes de enxergar as outras religies como oponentes, no veem nelas ameaa sua prpria sobrevivncia. Em matria de convivncia com outras religies, as afro-brasileiras so especialmente tolerantes. O candombl, o xang, o tambor de mina, o batuque e a umbanda so religies de pequenos grupos, os terreiros afro-brasileiros, cada um deles organizado em torno de um pai ou me de santo. Tendo como modelo o culto domstico, os terreiros

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    se constituram como autnomos e autossufi cientes, no contando com nenhuma organizao institucional efi caz que os unifi que ou que permita uma ordenao mnima capaz de estabelecer planos e estratgias comuns na relao da religio afro-brasileira com as outras religies e o resto da socie-dade. No h autoridade acima do pai ou da me de santo, cada um em seu terreiro. H grande competio entre os terreiros, e os laos de solidariedade entre eles so frgeis e circunstanciais, meramente protocolares. Cada chefe preocupa-se com a sobrevivncia de seu prprio grupo de culto, sem que os diferentes grupos se organizem e se juntem para reagir s ameaas religio como um todo. As iniciativas j experimentadas para se defenderem conjun-tamente do ataque de outras religies so tmidas e incipientes.

    Por tudo isso, a convivncia estabelecida no passado entre as religies dos orixs e o catolicismo dos santos no se repetiu quando as religies afro-brasileiras se encontraram com as igrejas evanglicas. Nem poderia. No enfrentamento com os aguerridos evanglicos, o recurso do sincretismo lhes de nenhuma valia.

    REFERNCIAS

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