o portugues afro brasileiro dante lucchesi

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O Portugus Afro-Brasileiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Reitor Naomar Monteiro de Almeida Filho Vice-Reitor Francisco Jos Gomes Mesquita

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Diretora Flvia Goullart Mota Garcia Rosa Conselho Editorial Titulares ngelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Nin El-Hani Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti Jos Teixeira Cavalcante Filho Maria do Carmo Soares Freitas Suplentes Alberto Brum Novaes Antnio Fernando Guerreiro de Freitas Armindo Jorge de Carvalho Bio Evelina de Carvalho S Hoisel Cleise Furtado Mendes Maria Vidal de Negreiros Camargo

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O Portugus Afro-BrasileiroDante Lucchesi Alan Baxter Ilza Ribeiro(Organizadores)

EDUFBA 2009

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2009, by Autores. Direitos para esta edio cedidos EDUFBA. Feito o depsito legal Projeto grfico, capa e editorao eletrnica Alana Gonalves de Carvalho Arte final de capa Joe Lopes Editorao eletrnica Heloisa O. de S. e Castro Reviso Vera Rollemberg Imagem da capa Seu Jos e Dona Rita, casal de idosos da comunidade de Cinzento, em foto de Sabi, gentilmente cedida pelo filho do casal, Seu Saviano, e sua esposa, Dona Delci. Sistema de Bibliotecas - UFBAO portugus afro-brasileiro / Dante Lucchesi, Alan Baxter, Ilza Ribeiro (Organizadores). - Salvador : EDUFBA, 2009. 576 p. il. ISBN 978-85-232-0596-6 1. Lngua portuguesa - Brasil - Africanismos. 2. Lnguas africanas. 3. Lingstica histrica - Brasil. 4. Sociolingstica - Brasil. 5. Dialetos crioulos Bahia. I. Lucchesi, Dante. II. Baxter, Alan. III. Ribeiro, Ilza. CDD - 469.798

EDUFBA Rua Baro de Jeremoabo, s/n, Campus de Ondina, 40170-115, Salvador-BA, Brasil Tel/fax: (71) 3283-6164 www.edufba.ufba.br | [email protected]

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Aos afro-brasileiros

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Sumrio

Apresentao Os autores IntroduoDante Lucchesi

15 23 27

1 Parte

O contexto scio-histrico e os fundamentos tericos e metodolgicos1 Histria do contato entre lnguas no BrasilDante Lucchesi

41 43 57 59 62 71 75 83 85 86 87 91 92 95 97 98 100

1.1 Panorama da histria sociolingustica do contato entre lnguas no Brasil 1.2 O contato do portugus com as lnguas africanas 1.2.1 A proporo de africanos na formao da sociedade brasileira 1.2.2 Fatores que determinaram a ausncia de um processo representativo de crioulizao do portugus no Brasil 1.3 A transmisso lingustica irregular na formao do portugus brasileiro 2 O portugus afro-brasileiro: as comunidades analisadasDante Lucchesi, Alan Baxter, Jorge Augusto Alves da Silva, Cristina Figueiredo

2.1 As comunidades de fala analisadas 2.2 A comunidade de Helvcia 2.2.1 Caracterizao socioeconmica e demogrfica 2.2.2 Scio-histria 2.2.3 Caracterizao lingustica feita no incio da dcada de 1960 2.2.4 Concluso: o diagnstico do caso Helvcia e suas implicaes para a histria sociolingustica do Brasil 2.3 A comunidade de Cinzento 2.4 Os arraiais de Rio de Contas 2.5 A comunidade de Sap 2.6 Concluso

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3 A transmisso lingustica irregularDante Lucchesi, Alan Baxter

101

3.1 A formao de variedades lingusticas em situao de contato como um continuum de eroso e reestruturao gramatical 3.2 Parmetros scio-histricos 3.3 Aspectos lingusticos 3.4 Mecanismos de expanso lingustica envolvidos na transmisso irregular 3.5 A natureza crioulizante de uma variedade lingustica 3.6 A transmisso lingustica irregular como um processo varivel 4 Teorias da estrutura e da mudana lingusticas e o contato entre lnguasDante Lucchesi, Ilza Ribeiro

102 107 109 114 118 121 125

4.1 A teoria da gramtica e o estudo dos padres coletivos de comportamento lingustico 4.1.1 Estudo dos padres coletivos de comportamento lingustico 4.1.2 A mudana lingustica e a teoria da gramtica gerativa 4.1.3 Sntese dos desenvolvimentos recentes e as alternativas que se colocam para a conjuno dos dois modelos 4.2 A competio entre gramticas nas situaes de contato entre lnguas 4.2.1 A concorrncia entre gramticas na histria sociolingustica do Brasil 4.2.2 O princpio da coeso estrutural 5 A metodologiaDante Lucchesi

126 128 131 140 144 147 150 155 155 157 159 160 162 162 163

5.1 O acervo de fala verncula do portugus afro-brasileiro 5.1.1 A estrutura das amostras de fala verncula 5.1.2 O carter das entrevistas 5.1.3 Os temas das entrevistas 5.1.4 O tratamento do udio 5.1.5 A transcrio 5.2 O suporte quantitativo

2 Parte

A gramtica do portugus afro-brasileiro6 A realizao do sujeito pronominalDante Lucchesi

167 168 170 172 175 177 180 182

6.1 6.2 6.3 6.4

O parmetro do sujeito nulo O parmetro do sujeito nulo nas lnguas crioulas O parmetro do sujeito nulo no portugus do Brasil O parmetro do sujeito nulo no portugus afro-brasileiro 6.4.1 Encaixamento lingustico 6.4.2. Encaixamento social 6.5 Concluso

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7 As sentenas relativasIlza Ribeiro

185 187 187 188 190 190 191 192 193 193 193 194 195 197 197 200 200 201 202 203 204 206 209 210 213 214 214 215 215 216 218 218 219 220 221 222 223 225 228

7.1 Tipologia das sentenas relativas 7.1.1 Sentenas relativas restritivas e no restritivas 7.1.2 Relativas livres e semilivres 7.1.3 Relativas existenciais 7.1.4 Concluses parciais 7.2 Sentenas relativas e restries universais 7.2.1 Funo sinttica do pronome relativo na amostra de fala analisada 7.2.2 Encaixamento da relativa 7.2.3 Estratgias de realizao das relativas 7.2.3.1 Relativa pied piping vs relativa cortadora 7.2.3.2 Relativa com pronome lembrete 7.2.4 Concluses parciais 7.3 Pronome relativo vs. complementador 7.3.1 Distinguindo os relativizadores: pronome relativo vs complementador 7.3.2 Tipo de relativizador: especializao de formas 7.3.2.1 O pronome QUEM 7.3.2.2 A forma relativa O QUE 7.3.2.3 O adverbial ONDE 7.3.2.4 QUANDO, COMO, CUJO 7.3.3 Concluses parciais 7.4 Concluso 8 As construes pseudoclivadas e clivadasIlza Ribeiro, Moacir Crtes Junior

8.1 Tipos de clivagem 8.2 Pseudoclivadas e clivadas: estrutura e estatuto informacional 8.3 Tipos de pseudoclivadas nas comunidades em estudo 8.3.1 Pseudoclivada bsica 8.3.2 Pseudoclivada invertida 8.3.3 Pseudoclivada reduzida 8.3.4 Outros casos de focalizao do tipo pseudoclivada 8.4 Tipos de clivadas nos dados das comunidades em estudo 8.4.1 Clivadas bsicas 8.4.2 Clivadas invertidas 8.4.3 Clivadas sem cpula 8.4.4 Clivadas com dupla cpula 8.4.5 Outros casos de clivagem 8.5 Resultados do estatuto discursivo do foco nas comunidades em estudo 8.6 Concluses parciais 8.7 Para finalizar, um pouco de estrutura e de histria

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9 As construes de tpicoEdivalda Arajo

231 231 233 234 235 236 237 238 240 241 241 242 243 244 244 245 247 247 249 251 251 252 253 256 259 261 263 264 266 269 270 272 274 276 280 282 285 289 293

9.1 Panorama terico 9.2 Metodologia 9.3 Anlise dos dados lingusticos 9.3.1 Topicalizao de Objeto Direto (TOD) 9.3.2 Tpico Pendente com Retomada 9.3.3 Tpico Cpia 9.3.4 Tpico Sujeito 9.3.5 Tpico Pendente 9.3.6 Tpico com Cpia Pronominal ou Duplo Sujeito 9.3.7 Topicalizao Selvagem 9.3.8 Tpico Locativo 9.3.9 Concluses parciais - dados lingusticos 9.4 Anlise da relao dos dados lingusticos com os dados sociais 9.4.1 Estada fora da comunidade 9.4.2 Nvel de escolaridade 9.4.3 Faixa etria 9.4.4 Concluses parciais - dados sociais 9.5 Consideraes finais 10 A negao sentencialRerisson Cavalcante

10.1 Metodologia 10.2 Descrio dos dados: aspectos lingusticos 10.2.1 Negao sentencial e tipo de frase 10.2.2 Negao sentencial e tipo de orao 10.2.3 Negao sentencial e realizao dos argumentos verbais: complementos verbais 10.2.4 Negao sentencial e realizao dos argumentos verbais: sujeito 10.2.5 Negao sentencial e realizao fontica da partcula pr-verbal 10.3 Atuao dos aspectos sociais 10.4 Concluses 11 A concordncia de nmeroAlan Baxter

11.1 11.2 11.3 11.4 11.5 11.6 11.7 11.8 11.9

Enquadramento metodolgico Enquadramento terico Posio e classe gramatical Configurao do SN e marcao do plural em dois dialetos afro-lusfonos O efeito da presena de marcas precedentes sobre a marcao do plural Variveis sociais A relevncia dos processos de aquisio de segunda lngua e a transferncia estrutural O mecanismo formal de atribuio de plural Concluso

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12 A concordncia de gneroDante Lucchesi

295 296 300 301 305 309 309 313 314 315 316 316 319 320 322 322 323 323 323 325 327 328 330 331 336 338 339 343 345 348 349 355 359 360 364 364 366 367 368 370

12.1 12.2 12.3 12.4 12.5

O gnero em portugus O gnero na histria da lngua portuguesa O gnero nos crioulos de base portuguesa O gnero no portugus afro-brasileiro Condicionamentos scio-histricos da variao na concordncia de gnero no portugus afro-brasileiro 12.5.1 A varivel faixa etria 12.5.2 A varivel sexo 12.5.3 A varivel estada fora da comunidade 12.5.4 A varivel nvel de escolaridade 12.5.5 Concluso da anlise do encaixamento social 12.6 Concluso 13 O artigo definidoAlan Baxter, Norma Lopes

13.1 Metodologia e hipteses 13.2 Anlise dos dados 13.2.1 A faixa etria: o perfil diacrnico da varivel artigo definido 13.2.2 Variveis lingusticas 13.2.2.1 Aspectos semnticos do substantivo 13.2.2.2 O nmero do SN 13.2.2.3 Presena de outro constituinte capaz de induzir a referncia definida 13.2.2.4 Interao com o determinante do SN correferencial prvio 13.2.2.5 Funo sinttica do SN 13.3 Concluso 14 A concordncia verbalDante Lucchesi, Alan Baxter, Jorge Augusto Alves da Silva

14.1 A concordncia verbal com a primeira pessoa do singular 14.1.1 A varivel dependente 14.1.2 O encaixamento lingustico 14.1.3 O encaixamento social 14.1.4 Concluso 14.2 A concordncia verbal com a terceira pessoa do plural 14.2.1 O encaixamento lingustico 14.2.2 O encaixamento social 14.2.3 Concluso 14.3 A concordncia verbal com a primeira pessoa do plural 14.3.1 O encaixamento lingustico 14.3.1.1 Realizao e posio do pronome sujeito 14.3.1.2 Paralelismo discursivo 14.3.1.3 Salincia fnica 14.3.2 O encaixamento social 14.3.3 Concluso

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15 A concordncia em estruturas passivas e de predicativo do sujeitoDante Lucchesi

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15.1 O contato entre lnguas e a variao na concordncia nominal no portugus brasileiro 15.2 A variao na concordncia nominal em estruturas passivas e de predicativo do sujeito no portugus brasileiro 15.3 A variao na concordncia nominal em estruturas passivas e de predicativo do sujeito no portugus afro-brasileiro 15.3.1 A variao na concordncia nominal de nmero em estruturas passivas e de predicativo do sujeito no portugus afro-brasileiro 15.3.2 A variao na concordncia nominal de gnero em estruturas passivas e de predicativo do sujeito no portugus afro-brasileiro 15.3.2.1 A variao na concordncia nominal de gnero em estruturas passivas e de predicativo do sujeito no portugus afro-brasileiro relacionada com a concordncia nominal de gnero no SN sujeito 15.3.2.2 A variao na concordncia nominal de gnero em estruturas passivas e de predicativo do sujeito no portugus afro-brasileiro relacionada com a indicao do gnero no SN sujeito 15.3.2.3 A variao na concordncia nominal de gnero em estruturas passivas e de predicativo do sujeito no portugus afro-brasileiro relacionada com a referncia ao falante no sujeito da orao 15.3.2.4 Encaixamento da variao na concordncia de gnero em estruturas passivas e de predicativo do sujeito na estrutura social das comunidades rurais afro-brasileiras 15.4 Concluso 16 O emprego do modo subjuntivoVivian Meira

373 375 376 377 379

380

381

383 384 386 389

16.1 O modo subjuntivo 390 16.2 Anlise variacionista do uso do modo subjuntivo no portugus afro-brasileiro, considerando-se o tipo de orao em que a forma verbal empregada 391 16.2.1 Anlise variacionista do modo subjuntivo nas oraes relativas 392 16.2.1.1 Localizao temporal do evento expresso na orao relativa em relao ao momento da enunciao 392 16.2.1.2 Tempo do subjuntivo previsto no uso culto 393 16.2.1.3 Morfologia verbal 394 16.2.2 Anlise variacionista do modo subjuntivo nas oraes completivas 395 16.2.2.1 Tipo da orao em que a completiva est encaixada 396 16.2.2.2 Tempo do subjuntivo previsto no uso culto 397 16.2.2.3 Morfologia verbal 397 16.2.3 Anlise variacionista do modo subjuntivo nas oraes adverbiais 398 16.2.3.1 Nvel de realidade do evento contido na orao adverbial 398 16.2.3.2 Localizao temporal do evento expresso na orao adverbial em relao ao momento da enunciao 399 16.2.3.3 Morfologia verbal 400 16.3 Anlise de conjunto da variao no emprego do modo subjuntivo no portugus afro-brasileiro 400

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16.3.1 O encaixamento lingustico 16.3.2 As variveis sociais 16.3.2.1 Faixa etria 16.3.2.2 Nvel de escolaridade 16.3.2.3 Comunidade de origem 16.4 Consideraes finais 17 O objeto direto anafrico: a categoria vazia e o pronome lexicalCristina Figueiredo

401 403 403 404 405 406 409 411 413 414 415 416 420 420 421 422 424 427 429 435 441 443 448 453 457

17.1 Explicitando as variantes: uma reviso 17.2 Anlise lingustica 17.2.1 O condicionamento semntico 17.2.2 O paralelismo discursivo 17.2.3 A estrutura da frase 17.2.4 Referencialidade do objeto direto anafrico 17.2.5 Forma verbal 17.2.6 Posio da ocorrncia em relao ao antecedente 17.3 Condicionamentos sociais 17.4 Concluso 18 A alternncia dativaDante Lucchesi, Camila Mello

18.1 A alternncia dativa: configuraes e escopo 18.2 A estrutura de dativo nas lnguas crioulas: universais versus substrato 18.3 A alternncia dativa nas comunidades rurais afro-brasileiras isoladas: uma anlise sociolingustica 18.3.1 Condicionamento lingustico da alternncia dativa 18.3.2 O encaixamento social da alternncia dativa nas comunidades rurais afro-brasileiras isoladas 18.4 Consideraes finais 19 A representao da primeira pessoa do pluralDante Lucchesi

19.1 A gramaticalizao de a gente e o quadro atual da variao no Brasil 19.2 O encaixamento lingustico da implementao de a gente no portugus afro-brasileiro 19.2.1 O nvel de referencialidade 19.2.2 O paralelismo discursivo 19.2.3 O tipo de texto 19.3 O encaixamento social da implementao de a gente nas comunidades de fala analisadas 19.3.1 A faixa etria 19.3.2 A escolaridade 19.3.3 As comunidades 19.4 Concluso

458 460 460 462 463 464 464 466 467 468

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20 A flexo de caso dos pronomes pessoaisDante Lucchesi, Elisngela dos Passos Mendes

471 472 477 480 484 489 490 495 496 499 501 504 504 505 506 507 508 508 509 513 523 535 543 547

20.1 A flexo de caso dos pronomes pessoais na norma culta brasileira 20.2 A flexo de caso dos pronomes pessoais nos crioulos de base lexical portuguesa da frica 20.3 A flexo de caso dos pronomes pessoais no portugus afro-brasileiro 20.4 Concluso 21 O sistema de expresso de posseDante Lucchesi, Silvana Silva de Farias Arajo

21.1 Os pronomes possessivos nas lnguas crioulas 21.2 A expresso da posse em portugus 21.2.1 O sistema de indicao de posse no portugus brasileiro culto 21.2.2 O sistema de indicao de posse no portugus afro-brasileiro 21.3 Anlise scio-histrica da indicao de posse com referncia 1 pessoa do plural no portugus afro-brasileiro 21.4 Nosso e da gente no portugus afro-brasileiro: uma anlise variacionista 21.4.1 A comunidade 21.4.2 O paralelismo formal 21.4.3 O tipo de posse 21.4.4 A faixa etria 21.4.5 Estada fora da comunidade 21.4.6 Nvel de referencialidade 21.5 Consideraes finais ConclusoDante Lucchesi

Caracterizao lingustica do portugus afro-brasileiro Caracterizao sociolingustica do portugus afro-brasileiro Palavras finais Referncias

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Apresentao

Este livro se originou em uma disciplina sobre lnguas pidgins e crioulas ministrada por Alan Baxter (na poca, Professor Associado da Universidade La Trobe, na Austrlia), como professor convidado do Mestrado de Lingustica Portuguesa Histrica, coordenado pelo Prof. Dr. Ivo Castro, na Universidade de Lisboa. Nessa disciplina, Baxter apresentou a hiptese das origens crioulas do portugus popular do Brasil, com base nas recentes formulaes de Gregory Guy e John Holm. Um de seus alunos, Dante Lucchesi, contestou tal hiptese, em funo de sua formao estruturalista, recebida durante a graduao, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Segundo essa viso, as mudanas que afetaram a lngua portuguesa no Brasil j estavam prefiguradas na sua estrutura, e o contato com ndios e africanos s teria acelerado essas tendncias seculares. Apesar da divergncia, Alan Baxter orientou o trabalho final da disciplina de Dante Lucchesi sobre os artigos nos crioulos de Cabo Verde e So Tom, que seria publicado no Journal of Pidgin and Creole Languages, em 1993. Alm disso, j em meados do ano de 1992, Alan Baxter convidaria Dante Lucchesi para implementar no Brasil o Projeto Vestgios de Dialetos Crioulos em Comunidades Rurais Afro-Brasileiras Isoladas, com financiamento do Australian Reaserch Council. Mesmo no estando convencido da hiptese da origem crioula do portugus popular do Brasil, Dante Lucchesi aceitou de bom grado o convite para atuar numa pesquisa de campo to significativa, e, j no final do ano de 1992, seria constituda a amostra de fala verncula das comunidades rurais afro-brasileiras isoladas de Barra e Bananal, no Municpio de Rio de Contas, na regio da Chapada Diamantina, no interior do Estado da Bahia. No ano seguinte, Alan Baxter e Dante Lucchesi percorreriam o interior dos Estados da Bahia e do Esprito Santo, em busca de comunidades rurais afrobrasileiras isoladas que exibissem uma variedade de portugus com caractersticas mais notavelmente crioulas, sem sucesso. Foram visitadas aproximadamente dez comunidades nesses dois estados que exibiam um falar bem afastado da norma urbana culta brasileira, mas no uma variedade claramente crioulizada do portugus. Dante Lucchesi ainda visitou e recolheu amostras de fala em comunidades afrobrasileiras no interior do Piau, com as mesmas caractersticas. Alm disso, coordenou a recolha de amostras de fala no interior do Estado da Bahia, com uma equipe da Universidade Estadual de Feira de Santana, dando origem ao Projeto de

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Estudo da Lngua Falada no Semirido Baiano, implementado nessa universidade pelas Profas. Norma Lcia de Almeida e Zenaide Carneiro. Em janeiro de 1994, diante do fato de no haver encontrado caractersticas mais radicais nas comunidades visitadas at ento, Alan Baxter e Dante Lucchesi organizaram uma recolha na comunidade de Helvcia, no Extremo Sul do Estado da Bahia, contando com a valiosa colaborao do antroplogo Marcos Luciano Lopes Messeder, que j havia contribudo com a recolha nas comunidades de Rio de Contas, e com a participao da estudante de Letras da UFBA Nara Barreto. A comunidade de Helvcia tinha um significado especial, porque nela a dialetloga Carlota Ferreira havia identificado, no incio da dcada de 1960, o que chamou de remanescentes de um falar crioulo. As trs dcadas que separaram as duas pesquisas de campo foram suficientes para que a variedade crioulizada que Carlota Ferreira observou na fala de um casal de idosos da comunidade tivesse desaparecido sem que tivesse sido documentada de forma satisfatria.1 Apesar disso, foi possvel recolher, em 1994, amostras de fala que continham caractersticas que ainda individualizam Helvcia mesmo entre as comunidades rurais afro-brasileiras do interior do pas, tais como a variao na concordncia verbal junto primeira pessoa do singular e a variao na concordncia de gnero no interior do Sintagma Nominal (e.g., eu trabalha no roa). Entre 1993 e 1995, o Projeto Vestgios de Dialetos Crioulos em Comunidades Rurais Afro-Brasileiras Isoladas funcionou no Departamento de Letras Vernculas da Universidade Federal da Bahia, envolvendo a participao de estudantes de graduao em Letras com bolsa de Iniciao Cientfica do convnio CNPq-UFBA. Com as leituras, observaes, reflexes e anlises que realizou nesse perodo, Dante Lucchesi criou a convico de que, se o contato entre lnguas no fora suficientemente intenso para produzir no Brasil uma variedade crioula da lngua portuguesa que fosse representativa e duradoura, fora decisivo para desencadear processos de variao e mudana que definiram as caractersticas centrais das variedades populares do portugus brasileiro, particularmente a ampla variao no uso das regras de concordncia nominal e verbal.2 Por outro lado, comeou a sistematizar, com base nos fundamentos tericos da Sociolingustica Variacionista, uma viso da polarizao sociolingustica do Brasil, fundamental para a compreenso

1

No dispondo de gravadores, Carlota Ferreira realizou apenas anotaes fonticas de frases e expresses produzidas por seus dois informantes. Durante anos tentou organizar uma nova expedio cientfica a Helvcia sem sucesso. No se deve descartar, porm, a possibilidade de ter havido processos localizados e relativamente efmeros de crioulizao do portugus na histria do Brasil, particularmente no sculo XVII (ver captulo 1 deste livro). A comunidade de Helvcia pode ter experimentado um desses processos (ver captulo 2 deste livro).

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da formao histrica da realidade lingustica brasileira e, particularmente, de como o contato entre lnguas afetou cada uma das variedades do portugus no Brasil. Com essas concepes, Dante Lucchesi suspendeu as suas pesquisas na Bahia, e iniciou, em maro de 1996, o seu Doutorado em Lingustica na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orientao do Prof. Anthony Naro. Tratava-se de uma unio surpreendente, pois Anthony Naro e Marta Scherre so as duas grandes vozes que se opem hiptese de que o contato do portugus com as lnguas indgenas e africanas foi um fator decisivo na formao histrica da realidade lingustica brasileira. Apesar de serem dois dos principais nomes da Sociolingustica Variacionista no Brasil, devendo-se dizer que Anthony Naro o responsvel pela introduo, na dcada de 1970, desse programa de pesquisa no Brasil, esses dois eminentes pesquisadores tm resgatado a concepo estruturalista de que as mudanas ocorridas no portugus brasileiro so essencialmente o resultado de uma deriva secular da lngua, acelerada no Brasil por fatores externos, como o contato entre lnguas. Mas o respeito mtuo e a abertura para o debate de ideias como elemento crucial na produo do conhecimento permitiram que Dante Lucchesi obtivesse o seu ttulo de doutor, com distino, em 2000, mesmo defendendo uma hiptese claramente contrria viso do seu orientador. Isso no significa que a relao entre ambos no tenha sido tensa e marcada por conflitos, o que fez com que Dante Lucchesi percebesse que uma pesquisa sociolingustica e histrica sobre o papel do contato entre lnguas no Brasil tem de enfrentar, no apenas as dificuldades objetivas decorrentes da falta de registros histricos e da complexidade das mediaes que enformam a relao entre lngua e sociedade, mas sobretudo um ambiente muito pouco propcio a esse tipo de investigao, em funo da hegemonia secular das concepes imanentistas que encerram a lngua em sua lgica interna. De volta Universidade Federal da Bahia, Dante Lucchesi retomou o seu trabalho de pesquisa, montando o Projeto Vertentes do Portugus Rural do Estado da Bahia, que prev a ampliao do universo de observao, com a recolha de amostras de fala do portugus popular no marcado etnicamente. Por um lado, a comparao dessa variedade rural com a variedade das comunidades rurais afro-brasileiras isoladas (o portugus afro-brasileiro) pode produzir evidncias empricas decisivas sobre o papel do contato entre lnguas, na medida em que se confirme a hiptese de que os efeitos dos processos de mudana induzidos pelo contato so mais notveis no portugus afro-brasileiro do que no portugus rural. Por outro lado, o contraste entre a fala popular da zona rural e dos pequenos centros urbanos do interior do Estado pode fornecer a base para a constituio de um panorama sociolingustico do portugus popular do interior, capturando o processo de nivelamento lingustico a partir da difuso do padro urbano das grandes cidades para todas as regies do pas.

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No obstante a ampliao do programa de investigao, a pesquisa especfica sobre as comunidades rurais afro-brasileiras isoladas continuou predominando nos primeiros anos do novo milnio. Essa pesquisa ganhou um novo impulso com o ingresso de Dante Lucchesi no Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingustica da UFBA. Ao introduzir nesse Programa a disciplina A participao do contato entre lnguas na formao do portugus do Brasil, criou condies bastante favorveis para formar, entre os mestrandos e doutorandos do Programa, pesquisadores preparados teoricamente para enfrentar o tema. Muitos de seus orientandos j eram professores de universidades pblicas do Estado e tiveram uma participao decisiva no desenvolvimento da pesquisa. Um deles, Jorge Augusto Alves da Silva, professor da Universidade Estadual do Sudoeste Baiano, foi o responsvel pela constituio da amostra de fala da comunidade de Cinzento, no Municpio de Planalto, na regio do Semirido baiano, prximo a Vitria da Conquista, em 2003. Da mesma forma, Cristina Figueiredo, hoje professora da Unio Metropolitana de Educao e Cultura (UNIME) e da Universidade Salvador (UNIFACS), realizou, em 2004, a recolha da amostra de fala da comunidade de Sap, no Municpio de Valena, com o apoio de Edivalda Arajo, na poca professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), hoje professora da UFBA. As amostras de fala de Sap e Cinzento, juntamente com as amostras de Helvcia e Rio de Contas, constituem o Acervo de Fala Verncula do Portugus Afro-Brasileiro do Estado da Bahia, que forneceu a base emprica para todas as anlises contidas neste livro. So 48 entrevistas de tipo sociolingustico com doze membros de cada uma das comunidades estudadas. Esse avano da pesquisa tambm s foi possvel em funo dos apoios institucionais obtidos e que criaram as condies materiais necessrias sua implementao. Em janeiro de 2002, Dante Lucchesi recebeu um auxlio do Programa de Apoio Instalao de Doutores do Estado da Bahia (PRODOC), atravs de convnio firmado entre a Fundao de Amparo Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) e a Universidade Federal da Bahia. Os recursos financeiros recebidos possibilitaram a aquisio dos equipamentos utilizados na digitalizao do udio das amostras de fala constitudas em meio magntico (Rio de Contas, Helvcia e Cinzento) e de gravadores digitais, com os quais foi constituda, j em meio digital, a amostra de fala da comunidade de Sap. Paralelamente, as bolsas de Iniciao Cientfica concedidas pela FAPESB e pelo CNPq permitiram a integrao no Projeto de muitos estudantes de graduao que deram uma contribuio fundamental ao desenvolvimento da pesquisa, realizando atividades de digitalizao e transcrio das entrevistas, bem como auxiliando na constituio das amostras de fala. Alm disso, Dante Lucchesi passou a receber, desde maro de 2003, uma bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Nos anos seguintes, o Projeto Vertentes alcanou condies materiais bastante favorveis de funcionamento ao obter uma sala prpria no Instituto de Letras da UFBA, que foi montada com recursos

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provenientes do Edital de Infraestrutura n. 001/2003, lanado por um convnio entre a FAPESB e a UFBA. Esses recursos tambm possibilitaram a confeco da pgina do projeto na Internet (). Com essas condies, foram feitas as recolhas do portugus popular do interior do Estado, que fornecem a base emprica para a segunda etapa do programa de pesquisa. O Acervo de Fala Verncula do Portugus Popular do Interior do Estado da Bahia composto por dois conjuntos de 24 entrevistas de tipo sociolingustico realizadas com moradores de baixa ou nenhuma escolaridade de dois municpios baianos: Poes e Santo Antnio de Jesus; sendo doze entrevistas feitas com moradores da sede do municpio, e doze com moradores da zona rural. Mais recentemente, O Projeto Vertentes recebeu novos recursos do CNPq, por meio do Edital CNPq n 50/2006, para seleo pblica de projetos de pesquisa nas reas de Cincias Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas e do Edital MCT/ CNPq 15/2007 - Universal. Esses recursos j se destinam implementao da terceira fase do Projeto, que focaliza, a partir de 2007, o portugus popular da cidade de Salvador. J foram realizadas 90 entrevistas em quatro bairros da capital baiana (Liberdade, Plataforma, Itapu e Cajazeiras) e em um municpio de sua regio metropolitana (Lauro de Freitas). Em seu corpus base, o projeto, que passou a denominar-se Projeto Vertentes do Portugus Popular do Estado da Bahia, contar com 60 entrevistas de tipo sociolingustico, sendo 12 de cada uma das localidades. Esto em curso os trabalhos de transcrio dessas entrevistas, contando mais uma vez com a imprescindvel colaborao dos bolsistas de Iniciao Cientfica e dos mestrandos e doutorandos da UFBA integrados ao Projeto. Os trs corpora (do portugus afro-brasileiro, do portugus popular do interior do Estado e da capital), que renem 186 entrevistas com durao mdia de 50 minutos, formam a maior amostra de fala popular j constituda no pas para a pesquisa sociolingustica. Com essa base emprica, o Projeto Vertentes pretende elaborar um panorama sociolingustico do portugus popular do Estado da Bahia, focalizando os dois grandes vetores de sua configurao scio-histrica. De um lado, est o contato entre lnguas, de que derivam as variedades bastante divergentes que se observam nas comunidades rurais isoladas do interior do pas e se espalham, por um continuum de variao, at a periferia e os bairros populares das grandes cidades, em funo do xodo rural ocorrido desde meados do sculo XX. De outro lado, est o processo de nivelamento lingustico que se d em funo da crescente influncia das grandes metrpoles brasileiras sobre todas as regies do pas, tendo como grande veculo de difuso os meios de comunicao de massa. Assim, o portugus popular do Brasil se caracterizaria pela tenso entre esses dois vetores contrrios entre si. A composio de um panorama sociolingustico do portugus popular do Estado da Bahia est se completando com dois desdobramentos significativos do Projeto Vertentes em outras universidades pblicas do Estado da Bahia. Adotando

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o desenho metodolgico do Projeto Vertentes e contando com a assessoria de seu coordenador e auxiliares de pesquisa, professores da Universidade Estadual de Feira de Santana e da Universidade do Sudoeste do Estado da Bahia iniciaram a constituio de amostras do portugus popular de duas cidades de mdio porte do interior do Estado da Bahia: Feira de Santana e Vitria da Conquista. Com esse trabalho, completa-se o conjunto de amostras de todas as variedades do portugus popular do Estado, que podem ser distribudas da seguinte maneira, considerandose distines independentes relativas formao scio-histrica, composio tnica, situao socioeconmica e distribuio espacial: (i) o portugus afro-brasileiro, constitudo a partir da fala de comunidades rurais afro-brasileiras isoladas do interior do Estado (muitas delas oriundas de antigos quilombos); (ii) o portugus popular das pequenas cidades do interior em oposio zona rural que as cerca (amostras dos Municpios de Poes e Santo Antnio de Jesus); (iii) o portugus popular das cidades de mdio porte do interior em oposio zona rural que as cerca (amostras dos Municpios de Feira de Santana e Vitria da Conquista); (iv) o portugus popular da grande metrpole do Estado e de sua periferia urbana (amostras dos Municpios de Salvador e Lauro de Freitas). O livro que aqui se apresenta ao pblico o corolrio de mais de quinze anos de pesquisa sobre a primeira dessas variedades, o portugus afro-brasileiro, conforme definido em seu captulo 2. O estudo da fala das comunidades rurais afro-brasileiras isoladas se justifica por sua importncia histrica, no obstante o seu reduzido peso demogrfico atual. Como argumentado na Introduo deste livro, essas comunidades assumem, no plano lingustico, a condio de verdadeiros stios arqueolgicos, fornecendo um precioso testemunho acerca dos processos histricos que marcaram a formao dos padres de fala da maioria da populao do pas e que refletem genuinamente o carter pluritnico da sociedade brasileira. O amplo conjunto de anlises lingusticas precedido de vrios captulos propeduticos assume, tambm, um significado especial, na medida em que resgata, no plano do interesse cientfico, a voz de um dos segmentos mais marginalizados da sociedade brasileira. Marcadas historicamente por terem a sua origem associada ao abominvel processo da escravido, essas comunidades ainda sofrem com o abandono por parte do Estado brasileiro e pelas relaes de explorao econmica que ainda degradam as relaes sociais no Brasil, conquanto sua situao de penria e abandono tenha sido mitigada pelos programas sociais implementados nos ltimos anos pelo Governo brasileiro, entre os quais se destacam a Aposentadoria Rural e o Bolsa Famlia. A perseguio que a mdia conservadora move contra esses programas nada mais do que o reflexo do profundo desprezo que as elites econmicas brasileiras nutrem pela situao da grande maioria da populao do pas, submetendo no s os meios de comunicao de massa, como todo o aparelho

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de Estado, incluindo o sistema judicirio, em funo da manuteno dos seus interesses e privilgios e da perpetuao de uma absurda concentrao de renda, mesmo que ao custo de conviver com a verdadeira guerra civil que se trava atualmente na periferia das grandes cidades e no campo brasileiro. Ignorando intencionalmente as razes sociais do problema, tratam a violncia urbana e do campo como caso de polcia, buscando criminalizar movimentos sociais legtimos, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o MST, ao tempo em que seus advogados manipulam o Poder Judicirio para manter na impunidade os assassinos dos lderes populares e dos missionrios que abraaram a causa do povo oprimido e explorado. Por acreditar que a cincia no pode fugir aos seus compromissos sociais, este livro se irmana, no apenas s aes afirmativas, que ganharam destaque nos ltimos anos, mas a todos os movimentos que lutam pela justia social e pela verdadeira liberdade neste pas, mesmo que contenha apenas anlises de aspectos da morfossintaxe da fala das comunidades rurais afro-brasileiras isoladas do interior do Estado da Bahia. A elaborao de tais anlises contou com a valiosa contribuio de Ilza Ribeiro, que tambm recebe bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, desde 1996. Especialista em Gramtica Gerativa, ingressou na UFBA no ano de 2002 e, logo em seguida, associou-se ao Projeto Vertentes e comeou a orientar trabalhos de Iniciao Cientfica, Mestrado e Doutorado que utilizavam o corpus do Projeto como sua base emprica. Essa associao foi extremamente importante, na medida em que se assume que a anlise dos processos sociais da lngua no pode ignorar as determinaes gramaticais derivadas do funcionamento da faculdade da linguagem ponto de vista sistematizado no captulo 4 deste livro. Portanto, as anlises que compem este volume renem os trabalhos de seus organizadores, bem como de seus orientandos. Os captulos 8 e 10 resultaram, respectivamente, das dissertaes de mestrado de Moacir Crtes Junior e Rerisson Cavalcante orientadas por Ilza Ribeiro, que tambm orientou a tese de doutorado de Edivalda Arajo, de onde se extraiu o captulo 9. O captulo 13 de autoria de Alan Baxter e de Norma Lopes, sociolinguista brasileira e professora da Universidade do Estado da Bahia, orientada por Baxter em sua pesquisa de doutoramento. Parte do captulo 14 proveniente da dissertao de Jorge Augusto Alves da Silva, orientada por Dante Lucchesi, que tambm orientou as dissertaes de mestrado de Vivian Meira, Cristina Figueiredo (esta co-orientada por Ilza Ribeiro) e Silvana Silva de Farias Arajo, que serviram de base, respectivamente, para os captulos 16, 17 e 21. Os captulos 18 e 20 tm por base a anlise dos dados feita, respectivamente, pelas bolsistas de Iniciao Cientfica Camila Mello e Elisngela dos Passos Mendes, com a orientao e o acompanhamento de Dante Lucchesi. Todas as orientaes de ps-graduao de Dante Lucchesi e Ilza Ribeiro ocorreram no Programa de PsGraduao em Letras e Lingustica da UFBA.

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Esta apresentao objetivou descrever mais de quinze anos de pesquisa emprica e terica que resultou na publicao deste livro. Tal pesquisa no seria possvel sem os apoios institucionais aqui registrados. Dessa forma, fica aqui expresso o reconhecimento e o agradecimento dos organizadores a esses rgos de fomento pesquisa, desde o Australian Reaserch Council, que forneceu o financiamento inicial, at a FAPESB e o CNPq, que tm dado um apoio contnuo e de vrias modalidades ao Projeto nos ltimos anos. Fica aqui tambm o agradecimento ao Instituto de Letras e aos colegas que sempre apoiaram esta pesquisa, bem como EDUFBA, na pessoa da sua diretora, Flvia M. Garcia Rosa, por todo o empenho na edio deste livro. Profa. Vera Rollemberg, que abraou este projeto, o reconhecimento por sua rigorosa e competente reviso final dos textos. E a Helder Reis, do ADN Grupo de Lisboa, que gentilmente recuperou a digitalizao da foto do casal de idosos de Cinzento, possibilitando o seu uso na capa do livro. Por fim, deve-se dizer que esta pesquisa contou com a inestimvel colaborao dos seus informantes, membros das comunidades estudadas e, particularmente, com a ajuda daqueles que serviram como elo entre os pesquisadores e os locais, como Carmo, membro da Pastoral da Terra e lder das comunidades de Barra e Bananal, em Rio de Contas; e Seu Qute, um respeitado e bonacho membro da comunidade de Helvcia, que, do alto dos seus setenta anos, levava os pesquisadores aos informantes de Helvcia. Na pessoa desses indivduos, este livro dedicado aos afro-brasileiros.

Os Organizadores

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Os autores

DANTE LUCCHESI Mestre em Lingustica Portuguesa Histrica pela Universidade de Lisboa (1993) e Doutor em Lingustica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000). Professor Adjunto de Lngua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia e Pesquisador 1-D do CNPq, coordena o Projeto Vertentes do Portugus Popular do Estado da Bahia. Dentre as suas publicaes, destaca-se o livro Sistema, mudana e linguagem (Parbola, 2004). ALAN BAXTER Mestre em Lingustica Hispnica pela La Trobe University (1978) e Doutor em Lingustica pela Australian National University (1985). Professor Catedrtico de Lingustica da Universidade de Macau e coordenador da rea de investigao lingustica. As suas publicaes incluem os livros A grammar of Kristang (Malacca Creole Portuguese) (Pacific Linguistics, 1988), Maquista Chapado: vocabulary and expressions in Macaos Portuguese Creole (em co-autoria com Miguel Senna Fernandes; Instituto Cultural de Macau, 2004) e A dictionary of Kristang (Malacca Creole Portuguese-English) (em co-autoria com Patrick de Silva; Pacific Linguistics, 2004). ILZA RIBEIRO Mestre em Lingustica pela Universidade Federal da Bahia (1988) e Doutor em Cincias pela Universidade Estadual de Campinas (1995). Professor Adjunto de Lingustica da Universidade Federal da Bahia e Pesquisador PQ-2 do CNPq, desenvolve pesquisa na rea de Sintaxe, com especializao em Sintaxe Diacrnica. CAMILA MELLO estudante de Letras da Universidade Federal da Bahia e atua no Projeto Vertentes desde agosto de 2007 com bolsa de Iniciao Cientfica do CNPq. CRISTINA FIGUEIREDO Mestre e Doutora em Letras pela Universidade Federal da Bahia (2004 e 2009, respectivamente). Tambm atuou como Professor Substituto de Lngua Portuguesa nessa universidade. Atualmente, professora de Lingustica e Lngua Portuguesa da Unio Metropolitana de Educao e Cultura (UNIME) e da Universidade Salvador (UNIFACS). Desenvolve seu trabalho de investigao como pesquisadora associada do Projeto Vertentes do Portugus Popular do Estado da Bahia.

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EDIVALDA ARAJO Mestre em Lingustica pela Universidade Federal de Minas Gerais, Doutora em Lingustica pela Universidade Federal da Bahia. Professor Adjunto da Universidade Federal da Bahia, desenvolve pesquisas na rea de Sintaxe. ELISNGELA DOS PASSOS MENDES Mestre em Lingustica pela Universidade Federal da Bahia (2008). Atuou no Projeto Vertentes com bolsa de Iniciao Cientfica no perodo de agosto de 2003 a julho de 2005. JORGE AUGUSTO ALVES DA SILVA Mestre e Doutor em Letras pela Universidade Federal da Bahia (2003 e 2005, respectivamente). Atualmente, Professor Adjunto de Lingustica Romnica e Latim da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, lecionando tambm a disciplina Sociolingustica Aplicada no Curso de Especializao Teoria e Ensino. pesquisador do Projeto Vertentes e j orientou diversos trabalhos acadmicos que envolvem a aplicao de pesquisas de campo em prticas pedaggicas. MOACIR CRTES JUNIOR Mestre em Lingustica pela Universidade Federal da Bahia (2006) e professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). NORMA LOPES Mestre pela Universidade Federal da Bahia (1981) e Doutora em Letras e Lingustica por essa mesma universidade (2002), com Bolsa Sanduche em Macau, na China, onde foi orientada por Alan Baxter na rea de scio-histria do portugus, com financiamento do CNPq. Professor Colaborador da PsGraduao em Letras e Lingustica da Universidade Federal da Bahia, Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e Professor Permanente do Programa de Ps-Graduao em Estudo de Linguagens (PPGEL) da UNEB, onde atualmente representa a linha II Linguagens, Discurso e Sociedade, orientando e sendo responsvel pela rea de Sociolingustica. Desenvolve pesquisas na rea dos estudos da variao do portugus contemporneo e a sua contribuio para o entendimento da formao do portugus brasileiro. RERISSON CAVALCANTE Mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia (2007) e doutorando em Semitica e Lingustica Geral pela Universidade de So Paulo, com projeto financiado pela FAPESP Foi Professor Substituto de Lingustica . na Universidade Federal da Bahia, professor de Lingustica e Lngua Portuguesa da Unio Metropolitana de Educao e Cultura (UNIME) e Professor Visitante de Lngua Portuguesa na Universidade de Leiden, Holanda. SILVANA SILVA DE FARIAS ARAJO professora de Lngua Portuguesa da Universidade Estadual de Feira de Santana, onde coordena a Especializao em Estudos Lingusticos, sendo vice-coordenadora do Colegiado do Curso de PsGraduao Lato Sensu em Letras. Mestre pela Universidade Federal da Bahia (2005), coordena o projeto de pesquisa A concordncia verbal no portugus falado na regio de

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Feira de Santana-BA: elementos para a caracterizao da realidade sociolingustica do portugus do Brasil. VIVIAN MEIRA Mestre em Lingustica pela Universidade Federal da Bahia (2006) e doutoranda em Lingustica pela Universidade Estadual de Campinas. Professora Assistente de Lingustica da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), desenvolve pesquisas na rea de Sintaxe Gerativa e Sociolingustica.

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IntroduoDante Lucchesi

Assiste-se, atualmente, na sociedade brasileira, a um movimento de tomada de conscincia de sua condio pluritnica. Em 1988, a Constituinte, em um ato extremamente significativo, assegurou, no Artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias, o direito propriedade da terra s comunidades rurais afro-brasileiras remanescentes de antigos quilombos. Desde ento, vrios rgos do Governo tm-se mostrado sensveis a essa problemtica. Paralelamente, os movimentos negros e indgenas conquistam, a cada dia, mais espao no cenrio poltico. Recentemente, como medida de maior impacto, o Governo Federal e algumas universidades pblicas instituram cotas tnicas de acesso ao ensino superior, como instrumento de incluso social de segmentos historicamente marginalizados. E as polmicas e as controvrsias que tais iniciativas despertaram revelam a tenso e a complexidade que derivam da diversidade tnica da sociedade brasileira. De qualquer forma, no se pode negar que esse movimento reflete a necessidade de uma reparao histrica em relao aos segmentos de indiodescendentes e de afrodescendentes, que, tendo participado ativamente da construo das riquezas materiais e do patrimnio cultural do pas, tm sido, ao longo dos sculos, alijados de seus direitos sociais e excludos dos espaos institucionais e da cidadania. No plano lingustico, a contribuio dos segmentos indgenas e africanos para a formao da realidade lingustica brasileira tem sido menosprezada, ora por razes ideolgicas, determinadas por uma viso de superioridade cultural do colonizador europeu, ora por opes tericas imanentistas, que circunscrevem lgica interna do sistema lingustico as motivaes para as suas mudanas. Os obstculos ideolgicos e teorticos se somam s dificuldades de realizar pesquisas de campo que possam recolher evidncias empricas consistentes da ocorrncia no portugus brasileiro de processos de variao e mudana efetivamente induzidos pelo contato entre lnguas, de modo que subsiste a lacuna acerca do real papel dos segmentos indiodescendentes e afro-brasileiros na histria lingustica do pas. Em seu passado de colnia agroexportadora, o Brasil guarda muitas semelhanas scio-histricas com outras regies do continente americano, como o Caribe e o Sul dos EUA, onde emergiram boa parte das lnguas crioulas

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conhecidas atualmente no mundo. Essas lnguas resultaram do contato massivo, radical e abrupto desencadeado pelo sequestro e escravizao de cerca de dez milhes de africanos, trazidos para o continente americano pelos colonizadores europeus, entre os sculos XVI e XIX. S para o Brasil, vieram aproximadamente 40% desses africanos escravizados, produzindo situaes de contato lingustico muito semelhantes quelas em que, no Caribe e no Sul dos EUA, vicejaram as lnguas crioulas. Entretanto, no h registros conclusivos da existncia de uma comunidade crioulfona no Brasil. A nica especificidade objetivamente atestada no comportamento lingustico das comunidades rurais afro-brasileiras a utilizao, em algumas delas, de um cdigo de base lexical africana na comunicao intragrupal, em situaes muito particulares, como uma espcie de lngua secreta. Mas os antroplogos que documentaram essas lnguas secretas afirmam que, nas situaes normais de interao lingustica, a comunidade usa uma variedade comum de portugus popular rural.1 Assim, apesar de reunir condies scio-histricas, em princpio, muito propcias crioulizao da lngua do colonizador europeu, no ocorreu no Brasil um processo estvel, duradouro e representativo de crioulizao da lngua portuguesa. Mas, se a crioulizao do portugus no Brasil foi, na melhor das hipteses, um fenmeno historicamente efmero e localizado, no se pode pensar seriamente que a lngua portuguesa no foi diretamente afetada pelo contato do portugus com as lnguas africanas de uma forma bem ampla e representativa, at porque os afrodescendentes se integraram em todos os segmentos sociais e nos mais diferentes ramos da atividade econmica, em todas as regies do pas; concentrando-se, porm, na base da pirmide social, em funo das adversidades histricas que tiveram de enfrentar. A dimenso do contato lingustico na proporo das situaes desencadeadas pelo trfico negreiro pode ser medida pelo fato de que, at meados do sculo XIX, os portugueses e seus descendentes diretos constituam apenas um tero da populao brasileira. Os outros dois teros eram constitudos por africanos e ndios e seus descendentes, com larga predominncia dos primeiros na maior parte do territrio brasileiro. A grande maioria desses indivduos tinha de aprender o portugus nas condies mais adversas, trabalhando como escravos nas grandes plantaes do interior do pas, de modo que o conhecimento que adquiriam da lngua do colonizador se restringia a um vocabulrio reduzido, praticamente desprovido de estrutura gramatical. E as crianas que nasciam nessas condies sub-humanas no tinham, normalmente, acesso lngua nativa dos seus pais, muitas vezes falantes de lnguas mutuamente ininteligveis, tendo aquelas de

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Essa questo retomada no captulo 2 deste livro.

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desenvolver a sua linguagem a partir do modelo altamente defectivo de portugus falado como segunda lngua por estes. Essa a situao prototpica da crioulizao. Contudo, provvel que pelo menos uma boa parte dos filhos dos escravos africanos, os chamados crioulos, tenha conseguido inserir-se de forma mais favorvel na sociedade do colonizador, tendo mais acesso aos modelos da lngua dominante, mitigando, assim, a violncia da segregao, que determina a gnese das lnguas crioulas. Os modelos disponveis para a transmisso lingustica geracional nesses contextos certamente apresentavam deficits em relao s situaes normais, em que uma nova gerao desenvolve sua lngua materna a partir dos modelos fornecidos pela lngua nativa dos seus pais. A diferena reside crucialmente no fato de que, na situao normal, as crianas dispem, como modelo, de uma lngua plena, dotada de todos os seus mecanismos gramaticais, enquanto, nos casos em que ocorre o que aqui se denominar de transmisso lingustica irregular, as crianas tm de atender aos requerimentos de marcadores de tempo, modo e aspecto, de regncia e ligao, operadores pronominais, etc., inerentes ao desenvolvimento de sua lngua materna, a partir de dados lingusticos primrios que provm, no caso da maioria dos adultos que as cercam, de uma segunda lngua desprovida da maior parte desses elementos e mecanismos gramaticais. Segundo as mais profcuas teorias acerca da mudana lingustica atualmente disponveis, mesmo que esse processo no acontea em um nvel tal de intensidade que faa com que surja, na lngua materna da nova gerao, uma gramtica inteiramente original, como ocorre na crioulizao, ele certamente produzir profundas alteraes na gramtica das variedades lingusticas que dele derivem, pois as mudanas gramaticais encontram o seu momento crtico exatamente na transmisso geracional. Considerando que as variedades de portugus faladas por pelo menos dois teros da populao brasileira passou em sua histria por um processo de transmisso lingustica irregular (mais ou menos intenso conforme o caso), seria bastante razovel pensar que esse processo estivesse no centro das pesquisas acerca da histria lingustica do Brasil. Entretanto, a grande maioria das anlises publicadas sobre a histria do portugus brasileiro sequer menciona o contato entre lnguas e, quando o fazem, para neg-lo, fundamentando-se metafisicamente em uma deriva secular, que regeria uma estrutura lingustica hipostasiada e abstrada das relaes histricas que a enformam e das suas condies concretas de uso e transmisso. Em sua verso mais extremada, a posio que tem mobilizado seus mais valorosos esforos para refutar a relevncia do contato entre lnguas na formao das variedades atuais do portugus brasileiro chega at a negar a prpria realidade dos fatos, questionando diferenas qualitativas notveis entre os processos de variao e mudana que afetaram a lngua portuguesa no Brasil e os que tm se sucedido em Portugal, com base na interpretao equivocada

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dos testemunhos histricos do portugus arcaico e de dados fragmentados da pesquisa dialetal portuguesa. Se no tarefa difcil demonstrar a falta de consistncia terica e os equvocos metodolgicos de observao emprica dessas posies extremadas e cada vez mais anacrnicas em face dos quarenta anos de desenvolvimento da pesquisa sociolingustica, ergue-se como grande desafio superar quase um sculo da hegemonia do formalismo que se estabeleceu na Lingustica Moderna, desde 1916, com a publicao do Curso de lingustica geral de Ferdinand de Saussure, cuja grande insgnia era a viso de lngua como uma estrutura encerrada em sua lgica interna. E coloca-se, sobretudo, como tarefa central da historiografia lingustica no Brasil superar as limitaes dos registros histricos que, em sua grande maioria, se restringem lngua da elite colonial e do Imprio, de indivduos que adquiriam o portugus como lngua materna a partir de modelos de falantes nativos dessa lngua. Grande parte das anlises diacrnicas da lngua portuguesa em tempo real tratam apenas do que aconteceu com um tero da populao do Brasil, ignorando o que se passou com os outros dois teros de descendentes de africanos e indgenas. A polarizao sociolingustica que marca a formao histrica da realidade lingustica brasileira, apartando a fala de uma elite que sempre teve os olhos voltados para a Europa, em busca de seus modelos culturais e lingusticos, da fala da grande maioria da populao que, no cadinho de sua pluralidade tnica, cultural e lingustica, forjou os elementos definidores da originalidade cultural e lingustica do Brasil, que tanto assombram e encantam o mundo ocidental, desautoriza todos os estudos que apresentam uma histria nica para o portugus brasileiro. Assim como o portugus so dois, a sua histria igualmente bifurcada. O que animou os mais de quinze anos de pesquisa em localidades remotas do interior do pas e os esforos empreendidos na elaborao de anlises lingusticas consistentes, cujo grande corolrio este livro que agora leva a pblico as anlises de dezesseis aspectos da morfossintaxe do portugus afro-brasileiro fundamentadas em uma slida base emprica, foi resgatar a histria lingustica da grande maioria da populao brasileira, que, apesar de serem os protagonistas da construo das riquezas do pas e do seu patrimnio cultural, sempre foram discriminados e excludos, tendo a sua voz calada ou recalcada pelo preconceito que se renova a cada dia, como um mecanismo poderosssimo de dominao poltica e ideolgica da maioria da populao por parte de uma minoria que envida todos os esforos para legitimar como nica voz digna aquela que se submeta aos ditames da lngua da ex-metrpole. Mesmo custa de cultivar um profundo complexo de inferioridade lingustica, porquanto os modelos de uso do portugus europeu so em muitos aspectos estranhos realidade de uso da lngua no Brasil, a submisso ao cnone lingustico coimbro constituiuse como alternativa histrica das classes dominantes brasileiras para engendrar um poderoso mecanismo ideolgico de dominao e excluso social, dirigindo toda a

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sua energia discricionria do preconceito para as marcas lingusticas mais notveis do carter pluritnico da sociedade brasileira. Este livro se fundamenta na viso de que, no cenrio polarizado da formao histrica da realidade lingustica brasileira, o contato entre lnguas afetou diretamente a formao dos padres coletivos de fala da maioria da populao do pas (o que se denomina aqui norma popular) e s indiretamente a fala das classes economicamente privilegias, tradicionalmente chamada de norma culta. E os mecanismos gramaticais em que os efeitos do contato lingustico so mais notveis so exatamente os mecanismos da concordncia nominal e verbal, de modo que a falta de concordncia constitui a grande fronteira sociolingustica da sociedade brasileira. sobre ela que incide, em sua forma mais virulenta, o preconceito lingustico. E ela que tomada como o parmetro definidor das capacidades profissionais, intelectuais e polticas de cada indivduo. A imprensa conservadora reiteradamente invocou a falta de concordncia na fala do presidente Lula da Silva para demonstrar a sua incapacidade para exercer a Presidncia da Repblica. assim que se manifesta a intolerncia dos segmentos mais reacionrios diante do fato de um operrio governar o pas, mesmo que o governo desse operrio no comprometa, nem confronte, no fundamental, os interesses dos grandes grupos econmicos nacionais e estrangeiros. Ficam, ento, evidentes as razes histricas do preconceito lingustico, elemento central da ideologia dominante e um poderoso mecanismo na engrenagem da grande excluso social, econmica e poltica que esgara a sociedade brasileira at o paroxismo da violncia urbana desenfreada e da misria que degrada a periferia das grandes cidades do pas. Ao reunir evidncias consistentes sobre as relaes histricas entre polarizao sociolingustica do Brasil e o carter pluritnico de sua populao, com base na descrio sistemtica da gramtica de um de seus segmentos mais marginalizados historicamente, as comunidades rurais afro-brasileiras isoladas, este livro se integra nas efetivas aes afirmativas de reparao histrica, contribuindo para resgatar a legitimidade da fala popular brasileira em seu carter pluritnico. Ampliar o conhecimento sistemtico acerca da realidade lingustica de setores to marginalizados da sociedade contribui, por um lado, ao fornecer subsdios para a elaborao de polticas pblicas, para que o ensino de lngua portuguesa se ajuste mais a realidade da diversidade da lngua, tornando-se mais eficaz e democrtico, mas esta pesquisa visa, sobretudo, a desarmar o preconceito lingustico, diminuindo os seus nefastos efeitos discricionrios. Esses so objetivos deste livro que constitui a primeira grande descrio de conjunto do que se denomina aqui portugus afro-brasileiro, com o significado que se vai explicitar agora. O conceito de portugus afro-brasileiro fundamenta-se, no em parmetros tnicos, mas em parmetros scio-histricos. No se reconhece no Brasil uma fronteira lingustica determinada por fatores tnicos, como ocorre, por exemplo,

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nos EUA, onde o chamado Black English constitui uma variedade especfica do ingls empregada pelos afro-americanos. Mas o portugus afro-brasileiro no o portugus empregado pelos afro-brasileiros em geral. Estima-se, por exemplo, que aproximadamente 85% da populao da cidade do Salvador seja constituda por afrodescendentes. Entretanto, pode-se dizer que muito provavelmente nenhum deles falante do portugus afro-brasileiro, no sentido em que esse termo empregado aqui. Se o afrodescendente tem curso universitrio e filho de pais tambm de nvel superior, ele certamente ser um falante da norma culta brasileira. Entretanto, infelizmente, a maioria dos afrodescendentes ainda se situa na base da pirmide social, sendo geralmente falantes da norma popular urbana, ou rurbana. O portugus afro-brasileiro designa aqui uma variedade constituda pelos padres de comportamento lingustico de comunidades rurais compostas em sua maioria por descendentes diretos de escravos africanos que se fixaram em localidades remotas do interior do pas, praticando at os dias de hoje a agricultura de subsistncia. Muitas dessas comunidades tm a sua origem em antigos quilombos de escravos foragidos e ainda se conservam em um grau relativamente alto de isolamento. Dessa forma, o portugus afro-brasileiro guardaria uma especificidade no universo mais amplo do portugus popular rural brasileiro (ou, mais precisamente, norma popular rural do portugus brasileiro), no apenas pelas caractersticas scio-histricas prprias s comunidades em que ele falado, mas, sobretudo, pelas caractersticas lingusticas que o distinguiriam das demais variedades do portugus popular do Brasil (ou melhor, da norma popular brasileira). Um levantamento recente estima que existam cerca de 800 comunidades rurais afro-brasileiras isoladas no Brasil e aproximadamente 250 se situam no Estado da Bahia (ANJOS, 2000). So normalmente pequenos agrupamentos que agregam umas poucas centenas de indivduos. Nesse sentido, no chegam a 1% da populao brasileira, constituindo uma reduzida frao dos 20% da populao brasileira que ainda vive no campo. Assim sendo, qual seria a importncia de conhecer esse microcosmo do universo sociolingustico brasileiro? A grande concentrao da populao brasileira nos centros urbanos um fenmeno recente e resulta do grande xodo rural ocorrido desde meados do sculo XX. At o incio desse sculo, mais de 80% da populao vivia no campo. O deslocamento massivo da populao rural para a periferia das grandes cidades transformou em variao diastrtica o que antes era variao diatpica. Tradicionalmente, o campo mais refratrio normatizao lingustica, um fenmeno em grande medida urbano. No cenrio da polarizao sociolingustica do Brasil, a chamada norma culta teria se formado e se concentrado nos reduzidos ncleos urbanos fixados quase que somente no litoral. Em oposio s cidades, o portugus popular brasileiro ia se constituindo no interior do pas, onde se instalaram os

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engenhos, as plantaes de fumo, algodo e mandioca, e onde avanavam a atividade da minerao e a pecuria. Nessa interlndia multilngue, que concentrava a maioria da populao do pas formada sobretudo por africanos (e indgenas) e seus descendentes mestios e endgamos, secundados por um reduzido ncleo de capatazes, senhores, trabalhadores livres e colonos pobres de origem europeia, variedades muito alteradas da lngua portuguesa iam-se formando em funo da aquisio imperfeita do portugus como segunda lngua em situaes muito adversas por parte de uma grande populao de falantes adultos e da socializao e nativizao desse modelo defectivo de segunda lngua, atravs de sucessivas geraes. Assim, a norma popular brasileira atualmente, mesmo em sua variante urbana, exibe ainda os reflexos dos processos de variao e mudana induzidos pelo contato entre lnguas que marcaram a sua origem histrica no interior do pas. Porm, se os retirantes levaram para as cidades os seus padres lingusticos e culturais, foram adquirindo forosamente, em seu processo de integrao, os padres urbanos de maior valor simblico, dando origem ao indivduo rurbano, marcado por seu carter hbrido. Se o objetivo da investigao for identificar os efeitos mais notveis do contato lingustico, o seu universo de observao deve ser ento o interior, e no os centros urbanos. Entretanto, mesmo o panorama sociolingustico da interlndia brasileira tem mudado muito nas ltimas dcadas, em funo da ampliao da malha rodoviria, da massificao do sistema de educao pblica e da poderosa ao dos meios de comunicao de massa. Assim, assiste-se no interior do pas a um grande processo de nivelamento lingustico com a difuso dos padres urbanos cultos, ou semicultos, de modo que as marcas mais notveis do contato lingustico do passado tendem a um progressivo desaparecimento. Nesse contexto, as comunidades rurais afro-brasileiras isoladas constituem um espao nico para a pesquisa em lingustica scio-histrica que visa a rastrear os reflexos do contato entre lnguas na estrutura gramatical das variedades atuais do portugus brasileiro, pois os efeitos dos processos de transmisso lingustica irregular sobre a estrutura gramatical da lngua no Brasil seriam mais notveis exatamente nessas comunidades, em funo da combinao das condies histricas em que elas se formaram com o isolamento em que se conservaram at recentemente. Ao reunir essas caractersticas, essas comunidades de fala ocupariam um papel especfico no cenrio das variedades rurais do portugus brasileiro. Essa especificidade seria atestada com a identificao nelas de processos de variao que estariam ausentes em outras comunidades rurais. Por outro lado, considerando que muitos processos de variao e mudana induzidos pelo contato se alastraram para todas as variedades do portugus no Brasil, inclusive a sua norma culta, de se esperar que esses processos se apresentem com um maior nvel de intensidade nessas comunidades rurais afro-brasileiras isoladas, mesmo em face das demais comunidades rurais.

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No se pode pensar em qualquer variedade lingustica historicamente determinada, sem levar em conta a sua heterogeneidade inerente. No obstante a sua especificidade, as comunidades rurais afro-brasileiras isoladas no apresentam um comportamento lingustico uniforme. natural que umas comunidades tenham passado por um processo de transmisso lingustica irregular mais intenso em sua formao do que outras e/ou tenham se conservado em um grau maior ou menor de isolamento. Portanto, natural que os efeitos do contato entre lnguas sejam mais notveis em umas comunidades do que em outras. O que se espera que, no geral, os efeitos sejam nelas mais notveis do que nas demais comunidades rurais, o que justificaria o conceito de portugus afro-brasileiro aqui proposto. Este livro rene anlises lingusticas de dezesseis tpicos da morfossintaxe da gramtica de quatro comunidades rurais afro-brasileiras isoladas, situadas em diferentes regies do interior do Estado da Bahia, com base em amostras de fala verncula recolhidas entre 1992 e 2004. O conjunto de anlises e reflexes aqui reunidas tem por objetivo dar fundamentao emprica especificidade do portugus afro-brasileiro como uma variedade do portugus que foi particularmente afetada pelo contato entre lnguas em sua formao histrica. Com isso, este livro pretende colocar no centro da pauta da pesquisa sobre a histria sociolingustica do Brasil o contato entre lnguas, estabelecendo uma ntida clivagem entre os processos de formao das variedades populares do portugus brasileiro, ocorridos em contexto de multilinguismo, e os processos de formao da chamada norma culta brasileira, em que os efeitos de mudanas de ordem discursiva ou presses estruturais se fazem mais presentes, pois essa variedade do portugus s teria sido afetada de forma indireta pelo contato entre lnguas atravs do contato dialetal com as variedades populares. Para cumprir esses objetivos, este livro, dividido em duas partes, se estrutura da seguinte maneira. A primeira parte rene cinco captulos em que so apresentados os fundamentos tericos e metodolgicos da pesquisa, bem como a viso histrica que a embasa. A segunda parte contm dezesseis captulos, cada um dedicado anlise de um tpico da morfossintaxe da gramtica das comunidades de fala estudadas. No primeiro captulo do livro, traado um panorama da histria do contato entre lnguas no Brasil, com base na seguinte hiptese: se as condies em que o contato do portugus com as lnguas indgenas e africanas ocorreram no Brasil no deram ensejo a processos de crioulizao do portugus duradouros e representativos, elas foram bastante propcias a que processos de variao e mudana desencadeados pelo contato lingustico afetasse, direta ou indiretamente, todas as variedades histricas do portugus brasileiro, sem atingir a intensidade necessria para produzir uma variedade lingustica qualitativamente distinta das demais, pois tal processo (a crioulizao) deve ter ocorrido, mas de forma localizada e efmera,

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no produzindo uma variedade lingustica que se conservasse em uso at os dias de hoje. O segundo captulo aprofunda a definio de portugus afro-brasileiro, fazendo tambm uma descrio das quatro comunidades rurais afro-brasileiras isoladas, que constituem o universo de observao desta pesquisa, em termos histricos, socioeconmicos e culturais. A constituio de um acervo com amostras de fala verncula recolhidas em quatro comunidades de regies diferenciadas do interior do Estado da Bahia foi feita com vistas a capturar a heterogeneidade do portugus afrobrasileiro, enquanto variedade lingustica historicamente determinada. O terceiro captulo dedicado ao conceito de transmisso lingustica irregular, que se refere fundamentalmente ao processo de socializao e nativizao de um modelo defectivo de segunda lngua adquirida por uma populao de indivduos adultos, de forma precria, em situaes de contato lingustico abrupto, massivo e radical. A reestruturao gramatical desse modelo defectivo, em situaes de segregao com acesso restrito aos modelos da lngua-alvo, pode gerar uma variedade lingustica qualitativamente distinta da lngua-alvo, no que se definiu como pidginizao e crioulizao. Mas a transmisso lingustica irregular no implica necessariamente pidginizao/crioulizao, podendo resultar na formao de uma variedade histrica da lngua-alvo que se caracteriza por exibir processos de variao e mudana induzidos pelo contato entre lnguas. A sistematizao terica acerca de como o contato entre lnguas afeta a estrutura gramatical da lngua-alvo crucial para que as anlises aqui reunidas possam atingir o seu objetivo. Mas ainda persistem muitas lacunas na teoria sobre o contato lingustico, de modo que nem sempre o analista dispe de uma teoria que defina como o contato afeta aquele aspecto especfico da estrutura lingustica. O quarto captulo aborda outro desafio enfrentado tambm nas anlises aqui apresentadas: utilizar uma teoria gramatical consistente em anlises variacionistas de padres coletivos de comportamento lingustico. E no quinto captulo, que fecha a primeira parte do livro, so apresentados os procedimentos metodolgicos empregados na constituio da base emprica das anlises. A segunda parte do livro, por sua vez, est subdividida em quatro partes, cada uma correspondendo a um nvel da estrutura lingustica em que se situam os tpicos analisados: a Sentena, o Sintagma Nominal, o Sintagma Verbal e os pronomes. No nvel da Sentena, so analisados: a realizao do sujeito pronominal, no captulo 6, que apresenta uma anlise com base na teoria gerativa do parmetro do sujeito nulo, conjugada com uma abordagem sociolingustica do encaixamento social do processo de variao; as oraes relativas, no captulo 7, no qual o uso de estruturas de relativizao entre os membros das comunidades rurais afro-brasileiras isoladas so analisadas segundo o enfoque gerativista, a partir dos princpios da

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Gramtica Universal; as oraes clivadas e pseudoclivadas, no captulo 8; as construes de tpico, no captulo 9, que exibe uma detalhada taxonomia das estruturas de tpico encontradas nas comunidades analisadas em confronto com o que j se observou em outras variedades do portugus brasileiro; e a negao sentencial, no captulo 10, que identifica as trs variantes da negao sentencial no portugus, bem como o seu condicionamento lingustico e social, nas comunidades rurais afro-brasileiras isoladas. No nvel do Sintagma Nominal, so analisadas: a concordncia de nmero, no captulo 11, que contm um estudo contrastivo entre a variao observada em uma comunidade rural afro-brasileira isolada e uma comunidade de fala formada por descendentes de trabalhadores braais africanos que foram levados para as empresas agroexportadoras de caf e cacau de So Tom, entre os finais do sculo XIX e o incio do sculo XX; a concordncia de gnero, no captulo 12, que traa um paralelo entre a variao na concordncia de gnero no interior do SN em uma comunidade rural afro-brasileira isolada e a violenta eroso da morfologia de gnero nas lnguas crioulas de base lexical portuguesa da frica, em contraste com o processo de expanso da morfologia do gnero que se observa na histria da lngua portuguesa, e apresenta ainda uma ampla anlise dos condicionamentos sociais da variao lingustica na comunidade de fala analisada; e os artigos, no captulo 13, que contm uma anlise variacionista do emprego do artigo em SNs de referncia definida, revelando um processo de mudana aquisicional dessa partcula gramatical, bem como paralelos interessantes com o que se observa nos crioulos de Cabo Verde e So Tom, no que concerne ausncia do artigo. No nvel do Sintagma Verbal, so analisadas: a concordncia verbal, no captulo 14, com a anlise de trs variveis lingusticas a concordncia verbal com a 1 pessoa do singular e com a 1 e 3 pessoas do plural , reunindo evidncias empricas muito significativas em favor da polarizao sociolingustica do Brasil e da relevncia do contato entre lnguas na formao das variedades populares do portugus brasileiro; o emprego do subjuntivo, no captulo 15, que revela um processo recente de substituio de formas do indicativo, que se generalizaram no passado em funo do contato entre lnguas, por formas do subjuntivo em contextos contrafactuais, hipotticos e de incerteza; a concordncia em estruturas passivas e de predicativo do sujeito, no captulo 16, com novos dados empricos sobre a polarizao lingustica do Brasil e os efeitos do contato entre lnguas; o objeto direto anafrico de 3 pessoa, no captulo 17, com uma anlise que procura identificar o estatuto da categoria vazia nas comunidades de fala analisadas; e a alternncia dativa, no captulo 18, que aborda um dos efeitos mais radicais do contato entre lnguas nas comunidades analisadas, as construes de objeto duplo, que so gerais entre as lnguas crioulas e no fazem parte do repertrio lingustico das lnguas romnicas.

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Na parte dedicada aos pronomes, as anlises tm por objeto: no captulo 19, a forma do pronome da 1 pessoa do plural, afetada por um processo de substituio da forma cannica do pronome pessoal ns pela expresso a gente, que parece estar mais avanada na norma popular e rural do que na norma urbana culta; e a flexo pronominal de caso e o sistema de indicao de posse, nos captulos 20 e 21, respectivamente; esses dois captulos revelam como processos distintos e independentes de variao e mudana afetaram a norma popular e a norma culta, configurando historicamente a polarizao sociolingustica do Brasil. A concluso do livro contm uma sistematizao dos resultados das anlises realizadas com o objetivo de traar o perfil lingustico e sociolingustico do portugus afro-brasileiro. No perfil lingustico, so identificados os processos de variao que seriam privativos dessa variedade especfica do portugus brasileiro, bem como as caractersticas que a individualizam nos casos em que a variao atinge as outras variedades lingusticas brasileiras, tendo como corolrio estabelecer relaes empiricamente motivadas entre os processos de variao e mudana aqui analisados com o contato entre lnguas que marca a formao histrica dessas comunidades de fala. O perfil sociolingustico tem por objetivo identificar os processos de mudana em curso nas comunidades de fala analisadas, definindo suas caractersticas, tais como: se a mudana interna comunidade ou decorre de influncias externas; se a variao est situada acima ou abaixo do nvel de conscincia; e como a mudana est se difundindo na comunidade. O perfil do portugus afro-brasileiro que se constitui com este livro est na base da prxima etapa desta pesquisa: uma comparao sistemtica dos resultados aqui obtidos com os de anlise que j esto em curso focalizando outras variedades do portugus popular do interior do Estado da Bahia, com o objetivo de precisar as correlaes empiricamente motivadas entre o contato lingustico e os processos de variao e mudana observados. Com isso, espera-se lanar novas luzes sobre a histria sociolingustica do Brasil.

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1 ParteO contexto scio-histrico e os fundamentos tericos e metodolgicos

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1 Histria do contato entre lnguas no BrasilDante Lucchesi

A compreenso da realidade sociolingustica brasileira atual, bem como de sua formao histrica, constitui um amplo campo de pesquisa ainda a ser devidamente explorado pelos sociolinguistas. As significativas diferenas estruturais entre as variedades da lngua portuguesa no Brasil e em Portugal, que levaram os linguistas de orientao gerativista a afirmar a existncia de gramticas distintas de cada lado do Atlntico, tm sido objeto de investigaes coletivas sistemticas como as levadas a cabo no mbito do Projeto Anlise Contrastiva de Variedades do Portugus VARPORT (BRANDO; MOTA, 2003). Em aspectos importantes da morfossintaxe, como o paradigma da flexo verbal, a cliticizao, o parmetro do sujeito nulo e o movimento na formao das oraes interrogativas, o portugus europeu conserva as caractersticas assentes entre as lnguas romnicas, enquanto o portugus brasileiro exibe mudanas que afetam esses parmetros em funo de valores no marcados e que so tpicas dos processos de crioulizao (ROBERTS, 1997). Por outro lado, sabe-se que, na virada do sculo XVIII para o sculo XIX, o portugus europeu passou por um profundo processo de mudanas fonolgicas, com uma violenta reduo das suas vogais tonas, que tambm teve fortes implicaes no plano da morfossintaxe, como a fixao da nclise como colocao pronominal praticamente categrica. A partir da, descortina-se o campo scio-histrico, no qual emergem, para alm do plano da anlise formal da estrutura lingustica, indagaes acerca das condies sociais que desencadearam tais mudanas no Brasil e em Portugal. Pagotto (1998, p.53) faz referncia ascenso da burguesia como o contexto histrico que propiciou a difuso do novo padro fonolgico em Portugal. No Brasil, o contato dos colonizadores portugueses com milhes de aloglotas, falantes de mais de mil lnguas indgenas autctones e de cerca de duzentas lnguas que vieram na boca de cerca de quatro milhes de africanos trazidos para o pas como escravos, , sem sombra de dvida, o principal parmetro histrico para a contextualizao das mudanas lingusticas que afetaram o portugus brasileiro. E processos como esses no devem ser levados em conta apenas para a compreenso das diferenas entre as variedades lingusticas nacionais. O prprio mapeamento

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das variedades lingusticas contemporneas do portugus europeu e, sobretudo, do portugus brasileiro, tanto no plano diatpico quanto no plano diastrtico, depende crucialmente de uma apurada compreenso do processo histrico de sua formao. Quando se pensa a realidade lingustica do Brasil em seu conjunto, no se pode deixar de ter em linha de conta, com a proeminncia que lhe deve ser conferida, o grande abismo que separa uma minoria, que desfruta de bens e servios do universo da cidadania, da grande maioria, que pouco ou nenhum acesso tem aos bens de consumo, aos servios sociais e aos direitos sociais bsicos uma situao que coloca o Brasil no rol das naes que elevaram ao paroxismo o exerccio da desigualdade e da explorao social. E se levarmos em conta que esse fosso tem sido contnua e persistentemente escavado desde quando se inicia a colonizao do Brasil em 1532, temos motivos suficientes para pensar a realidade lingustica brasileira como um sistema polarizado, constitudo por dois grandes subsistemas uma norma dita culta e uma norma popular , cada um deles com sua lgica prpria, com suas respectivas tendncias de mudana lingustica e seu sistema particular de avaliao subjetiva (LUCCHESI, 1998, 2001a, 2002b, 2006a). A norma culta seria, ento, constituda pelos padres de comportamento lingustico dos cidados brasileiros que tm formao escolar, atendimento mdicohospitalar e acesso a todos os espaos da cidadania e tributria, enquanto norma lingustica, dos modelos transmitidos ao longo dos sculos nos meios da elite colonial e do Imprio; modelos esses decalcados da lngua da Metrpole portuguesa. A norma popular, por sua vez, se define pelos padres de comportamento lingustico da grande maioria da populao, alijada de seus direitos elementares e mantida na excluso e na bastardia social. Na medida em que grande parte de seus antepassados eram peas (seres humanos reduzidos condio de coisa, para usufruto de seus senhores), deve-se pensar que esses falares se formaram no grande cadinho que fundiu, na fornalha da escravido em massa, as etnias autctones e as etnias africanas na forma do colonizador europeu. Dessarte, se uma variedade da lngua do colonizador a que se impe na fala dos segmentos sociais a formados, no se pode deixar de perceber as marcas de sua aquisio precria e de sua nativizao mestia. Assim sendo, o panorama da histria sociolingustica do Brasil que se apresenta neste captulo focaliza as condies histricas que determinaram essa clivagem na realidade lingustica brasileira, com particular destaque para as situaes de contato entre lnguas que esto na base da formao da norma lingustica popular, o padro lingustico atual da grande maioria da populao do pas.

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1.1 Panorama da histria sociolingustica do contato entre lnguas no BrasilOs primeiros povoadores portugueses que, no incio do sculo XVI, vieram para o Brasil entraram em contato com as tribos indgenas que habitavam a costa e, por falarem lnguas muito aparentadas do tronco tupi, eram capazes de se comunicarem entre si utilizando uma espcie de koin, decalcada da lngua tupinamb. Essa lngua franca, que viria a ser denominada lngua geral da costa brasileira ou simplesmente lngua geral foi o instrumento de comunicao adotado pelos portugueses para integrar a fora de trabalho indgena inicialmente na extrao do pau-brasil e posteriormente no cultivo da cana-de-acar, do tabaco e do algodo. O expediente do escambo para se obter a fora de trabalho indgena rapidamente cedeu lugar ao emprego da fora, e logo se iniciou o processo de escravizao do ndio. Paralelamente ao trabalho de submisso material do ndio levado a cabo pelos colonizadores portugueses, os missionrios da Companhia de Jesus, os jesutas, realizavam o trabalho de sua submisso espiritual, atravs da catequese. Para uma maior eficcia na converso do gentio, os jesutas tambm adotaram a lngua geral, chegando mesmo a codific-la e dar-lhe feio escrita, empregando o modelo da gramtica portuguesa de ento. Desse modo, pode-se perceber que o termo lngua geral recobre uma diversidade de situaes lingusticas: (i) a koin empregada na comunicao entre as tribos de lnguas do tronco tupi da costa brasileira; (ii) (iii) (iv) a sua verso como lngua franca usada no intercurso dos colonizadores portugueses e indgenas; a verso nativizada predominante nos ncleos populacionais mestios que se estabeleceram no perodo inicial da colonizao; e a verso gramaticalizada pelos jesutas sob o modelo do portugus e utilizada largamente na catequese, at de tribos de lngua no tupi chamados por estes de tapuias, que significa brbaro, em tupi.

A sujeio das tribos indgenas foi perpetrada sobremaneira pelos ncleos povoadores de So Paulo, que penetraram pelos sertes de Minas Gerais e do Centro-Oeste, organizando expedies, denominadas bandeiras, que mobilizavam vastos contingentes humanos, o que levou a que fossem definidas como cidades em movimento. A composio tnica da sociedade bandeirante de So Paulo, nesse perodo, se definiu a partir do cruzamento entre os colonizadores portugueses, na sua esmagadora maioria homens, com as mulheres indgenas. E foram os filhos desses cruzamentos, os chamados mamelucos, aqueles que se tornaram

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os mais sagazes caadores de ndios, escravizando aqueles que poderiam ser at seus parentes, numa busca obstinada de se afirmar na sociedade dos brancos e superar a sua condio de mestio, renegando-a (RIBEIRO, 1997). Sendo majoritariamente mestia e tendo a esfera domstica da criao dos filhos, muitos deles bastardos, entregue s mulheres ndias, a sociedade paulista foi logo tomada pelo uso massivo da lngua geral, em sua verso nativizada conforme referido no item (iii) acima.1 O largo predomnio da lngua geral em So Paulo perdurou at o incio do sculo XVIII, quando o advento do ciclo da minerao alterou esse estado de coisas.2 Situao semelhante se observou tambm no Maranho, para onde, entre 1560 e 1580, afluram os tupinambs afugentados das demais regies do litoral brasileiro, espalhando-se desde a Serra de Ibiapaba at as regies banhadas por afluentes do Rio Amazonas. Por outro lado, as bandeiras difundiram o uso da lngua geral pelo interior do pas at entre as tribos de lngua no tupi, o que define uma quinta situao recoberta pelo termo lngua geral: (v) lngua franca de base tupi utilizada como lngua segunda por tribos de lngua no tupi (podendo tambm nesses casos ocorrer a sua nativizao). Por essa outra via, a lngua geral tambm chega at a Amaznia, sendo adotada por tribos no tupi, basicamente dos grupos aruaque e macro-j, e l se mantm em uso, sob uma forma bastante diferenciada (e denominada nheengatu, ou seja, lngua boa), at meados do sculo XX, em funo da populao dessa regio ser amplamente constituda por ndios e seus descendentes mestios.3 Entretanto, a resistncia cultural intrnseca do ndio ao trabalho forado, sobretudo ao trabalho agrcola (que na sua cultura nmade extrativista ocupava uma posio subalterna, sendo entregue s mulheres e crianas), aliada s campanhas contra a escravido indgena movidas pelos jesutas, fez com que se fizesse necessrio1

Para A. Rodrigues (1986), a lngua geral paulista era diferente da lngua geral da costa, embora fosse baseada em uma lngua do mesmo tronco lingustico, o tupi, estreitamente aparentada com a lngua tupinamb, que servira de base para a formao da lngua geral da costa e que foi codificada pelos missionrios. Esse predomnio da lngua geral em So Paulo atestado pelo padre Antnio Vieira, que, em 1694, reconhecia que as famlias dos portugueses e ndios em So Paulo esto to ligadas hoje umas com as outras, que as mulheres e os filhos se criam mstica e domesticamente, e a lngua, que nas ditas famlias se fala, a dos ndios, e a portuguesa a vo os meninos aprender escola (apud SILVA NETO, 1951 [1963, p.55]). Mas, em 1751, a sua decadncia atestada quando o padre Manuel da Fonseca falava do uso do Tupi como coisa remota, pois afirmava que naqueles tempos [do padre Belchior que evangelizou de 1644 a 1719] era comum a toda Comarca (SILVA NETO, 1951 [1963, p.58]). O nheengatu ainda hoje falado em diversas localidades da regio amaznica, tendo-se tornado uma das lnguas oficiais do Municpio de So Gabriel da Cachoeira, do Estado do Amazonas, ao lado da lngua portuguesa e das lnguas indgenas tukano e baniwa, atravs da Lei Municipal n. 145, de 11 de dezembro de 2002.

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buscar uma outra fonte de mo de obra para atender as crescentes demandas dos emergentes e muito prsperos engenhos de cana de acar, que comearam a se instalar no Nordeste brasileiro, j no sculo XVI, e se converteram muito rapidamente no setor econmico mais dinmico do empreendimento colonial do Brasil.4 Assim, o sequestro e transporte de populaes africanas que passou histria com a denominao de trfico negreiro forneceu a fora de trabalho para a implementao da cultura agroexportadora do acar, que viveria o seu apogeu durante o sculo XVII.5 E, certamente, os fabulosos lucros proporcionados pelo trfico de escravos africanos para servirem aos senhores de engenhos, vidos por mo de obra para impulsionar o seu prspero empreendimento, falou mais alto do que qualquer resistncia cultural indgena ou campanha humanitria de bem intencionados missionrios. No se sabe ao certo quando os primeiros escravos africanos foram introduzidos no Brasil. Na ausncia de informaes precisas, Prado Jr. (1974, p.37) alude a referncias de sua vinda j na primeira expedio oficial de povoadores, em 1532. Oficialmente, o trfico negreiro para o Brasil autorizado por um alvar de D. Joo III, datado de 29 de maro de 1549, facultando aos donos de engenho do Brasil o resgate de escravos da Costa da Guin e da Ilha de So Tom, por sua prpria conta, at o limite de cento e vinte peas para cada engenho montado (RAIMUNDO, 1933, p.26-27). A partir da a importao de escravos africanos para o Brasil cresce de forma vertiginosa, principalmente em Pernambuco e na Bahia, onde, j no final do sculo XVI, os africanos ocupavam majoritariamente a base da sociedade colonial brasileira; situao que iria se acentuar no sculo XVII.6 Assim, enquanto em So Paulo, no Maranho e no interior do pas (ou seja, nas zonas perifricas da Colnia) a lngua geral predominava em funo da submisso e aculturao das populaes indgenas, a lngua portuguesa avanava a partir da Bahia e de Pernambuco, os centros mais dinmicos e mais intimamente ligados economia mercantilista, na qual se integrava o projeto colonial brasileiro.74

Gabriel Soares de Souza, em 1587, registra que havia 50 engenhos de cana-de-acar em Pernambuco e 44 na Bahia, contra apenas 3 em So Vicente e 2 no Rio de Janeiro (apud ELIA, 1979, p.50). Cf. Mattoso (2003, p.54): Como os ndios se revelaram inadaptveis s tarefas sedentrias, fezse indispensvel aumentar o volume do trfico africano. Para Mendona (1933, p.32-33), Pernambuco e Bahia, nos dois primeiros sculos da histria colonial, so os grandes centros de condensao africana. Nas palavras de Silva Neto (1951 [1963, p.60]): ainda se falava a lngua geral no Maranho quando na Bahia, em Pernambuco e no Rio de Janeiro ela j entrava em franca decadncia. E