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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 463 ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA E PRECEDENTES JUDICIAIS 488 UNIFORMIZATION OF JURISPRUDENCE AND JUDICIAL PRECEDENTS Eduardo Cambi 489 Adriane Haas 490 Nicole Naiara Schmitz 491 Resumo O novo Código de Processo Civil estabelece o dever dos tribunais de uniformizar sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente. A função uniformizadora da jurisprudência visa evitar a existência de mais de um posicionamento na aplicação das normas jurídicas e a oscilação frequente dos julgados, a fim de garantir a racionalidade e a homogeneidade ao sistema jurídico. A alteração da jurisprudência deve estar pautada em critérios rígidos, baseados no interesse social e na segurança jurídica, acompanhado de devida fundamentação. O presente artigo esclarece as diferenças entre jurisprudência, súmula e precedente, destacando a força vinculante deste último no que tange à sua ratio decidendi, bem como evidencia as técnicas do distinguing e do overruling, para a aplicação uniforme do direito pelo Poder Judiciário. 488 Artigo submetido em 08/02/2017, pareceres de análise em 05/03/2017 e 10/03/2017, aprovação comunicada em 13/03/2017. 489 Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Pavia. Doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e da Universidade Paranaense (UNIPAR). Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Assessor da Procuradoria-Geral de Justiça do Paraná. Coordenador do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (CEAF) do Ministério Público do Paraná. Membro colaborador da Comissão de Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). E-mail: [email protected] 490 Mestre em Direito Processual Civil na UNIPAR. Professora da Universidade Paranaense (UNIPAR). Analista Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. E-mail: [email protected] 491 Acadêmica da Universidade Paranaense (UNIPAR). E-mail: [email protected]

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 463

ANAIS DO

SIMPÓSIO BRASILEIRO

DE PROCESSO

CIVIL

UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA E PRECEDENTES JUDICIAIS488

UNIFORMIZATION OF JURISPRUDENCE AND JUDICIAL PRECEDENTS

Eduardo Cambi489

Adriane Haas490

Nicole Naiara Schmitz491

ResumoO novo Código de Processo Civil estabelece o dever dos tribunais de uniformizar

sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente. A função uniformizadora da jurisprudência visa evitar a existência de mais de um posicionamento na aplicação das normas jurídicas e a oscilação frequente dos julgados, a fim de garantir a racionalidade e a homogeneidade ao sistema jurídico. A alteração da jurisprudência deve estar pautada em critérios rígidos, baseados no interesse social e na segurança jurídica, acompanhado de devida fundamentação. O presente artigo esclarece as diferenças entre jurisprudência, súmula e precedente, destacando a força vinculante deste último no que tange à sua ratio decidendi, bem como evidencia as técnicas do distinguing e do overruling, para a aplicação uniforme do direito pelo Poder Judiciário.

488 Artigo submetido em 08/02/2017, pareceres de análise em 05/03/2017 e 10/03/2017, aprovação comunicada em 13/03/2017.

489 Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Pavia. Doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e da Universidade Paranaense (UNIPAR). Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Assessor da Procuradoria-Geral de Justiça do Paraná. Coordenador do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (CEAF) do Ministério Público do Paraná. Membro colaborador da Comissão de Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). E-mail: [email protected]

490 Mestre em Direito Processual Civil na UNIPAR. Professora da Universidade Paranaense (UNIPAR). Analista Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. E-mail: [email protected]

491 Acadêmica da Universidade Paranaense (UNIPAR). E-mail: [email protected]

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 464

Palavras-chave: jurisprudência, precedentes, uniformização, estabilidade, coerência.

Abstract

The Code of Civil Procedure of 2015 brought the duty of the courts to standardize their jurisprudence, maintaining it stable, complete and consistent. The unifying function of the jurisprudence is to prevent the existence of more than one positioning at the moment of the application of the positive norms throughout the national territory, and the frequent oscillation of the judges, in order to guarantee the rationale and homogeneity of the legal system. The changes in the jurisprudence must be based on strict criteria, on social interest and legal certainty, accompanied by appropriate reasons. This article clarifies the differences between jurisprudence, precedent and precedent, highlighting the latter’s binding force in relation to its ratio decidendi, as well as highlights the techniques of distinguishing and overruling, for the uniform application of law by the Judiciary.

Keywords: jurisprudence, precedents, uniformity, stability, consistency.

Sumário

1 - Introdução; 2- Explosão de litigiosidade e previsibilidade na aplicação do direito; 3 - Da necessidade de combater a instabilidade das decisões judiciais e a insegurança jurídica; 4 - Principais diferenças entre jurisprudência, precedentes e súmulas; 5 - Uniformização da jurisprudência; 6 - Vinculação aos precedentes judiciais; 7 - Conclusão; 8 - Referências bibliográficas.

1. Introdução

O novo Código de Processo Civil – CPC trouxe uma série de inovações voltadas a transformar a prestação jurisdicional em um serviço público mais célere, coerente e harmônico. Para tanto, está assentado na segurança jurídica e na igualdade entre os jurisdicionados, como valores supremos e essenciais do Estado Democrático de Direito.

Diante do panorama atual, com um Poder Judiciário cada vez mais

sobrecarregado de processos, o novo CPC prevê técnicas para combater a constante oscilação na aplicação do direito, assegurar estabilidade e a integralidade à ordem jurídica.

O novo CPC, com o intuito de promover maior racionalidade na aplicação do direito, preocupou-se com a uniformização da jurisprudência. Assim, os tribunais devem pautar suas decisões pela unidade, coerência e estabilidade nas decisões judiciais.

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O dever de uniformização da jurisprudência está previsto no art. 926 do CPC. O dispositivo regulamenta as súmulas, para que contenham a ratio decindendi da jurisprudência dominante. O dispositivo também disciplina as técnicas de distinguishing e overruling, importantes para a correta aplicação da jurisprudência uniforme, que se referem a possibilidade de superação do entendimento nela consolidada, fundado no interesse social e na segurança jurídica.

O presente artigo possui como objetivos delinear os problemas decorrentes da ausência de coerência e harmonia nos julgamentos realizados pelo Poder Judiciário, bem como compreender melhor o instituto da uniformização da jurisprudência e a forma como foi disciplinado no novo CPC.

2. Explosão de litigiosidade e previsibilidade na aplicação do direito

Dados do Conselho Nacional de Justiça, publicados no Relatório Justiça em Números de 2015, revelaram que existia no Brasil 99,7 milhões de processos em tramitação492

. A taxa de congestionamento, que é a medida para a efetividade do trabalho produzido pelo Judiciário, leva em conta o total de casos novos que ingressaram em um ano, os casos baixados e o estoque pendente ao final do período anterior ao calculado (no caso, o ano de 2014), é maior na Justiça Estadual de primeiro grau (73%), sendo que a carga média de trabalho por magistrado de primeiro grau é de 7.398 processos e por servidor, de 563 processos. Com efeito, o crescente número de processos é um dos fatores da morosidade da prestação jurisdicional493.

As causas do referido abarrotamento de demandas são as mais variadas possíveis, havendo razões de ordem social, cultural e econômica. Assim, é possível apontar como propulsores desse fenômeno o excesso de litigiosidade, presente na vida dinâmica da sociedade, a globalização, a constitucionalização dos direitos infraconstitucionais, o surgimento de novos direitos, a falência de determinados institutos jurídicos e o nascimento de outros494.

A redemocratização do Estado brasileiro nas últimas décadas, a universalização do acesso à justiça, a inflação legislativa, a consolidação de outros métodos de interpretação, superando o positivismo jurídico e trazendo força normativa aos princípios jurídicos, com novas formas de controle da constitucionalidade e ampliação da efetividade dos direitos fundamentais, são também fatores que contribuíram para o crescimento da litigiosidade495.

492 http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/politica-nacional-de-priorizacao-do-1-grau-de-jurisdicao/dados-estatisticos-priorizacao. Acesso em 04 de fev. de 2017.

493 CAMBI, Eduardo; MARGRAF, Alencar Frederico. Casuísmos judiciários e precedentes judiciais. Revista de processo, vol. 248, out./2015, p. 311-330.

494 CAMBI, Eduardo; HELLMAN, Renê Frederico. Precedentes e dever de motivação das decisões judiciais no novo código de processo civil. Revista de processo, vol. 241, mar./2015, p. 431-438.

495 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Almedina, 2016. p. 624-634.

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O problema se agrava quando o volume excessivo de processos novos ultrapassa a capacidade de o Poder Judiciário dar uma resposta adequada a essas demandas, o que provoca, consequentemente, a morosidade da prestação jurisdicional, colocando em risco a confiança depositada pelos jurisdicionados nos órgãos judicantes e, ao prolongar os dramas contidos nos processos, desapontando os litigantes.

Outro motivo que prejudica a eficiência desse serviço público é a não efetivação da segurança jurídica, que diz respeito a previsibilidade necessária para a aplicação do direito e para o julgamento de casos repetitivos, fator capaz de proporcionar as partes e à sociedade indispensável estabilidade nas relações jurídicas496

.

A palavra “segurança” ganha sentido jurídico pelo artigo 1º da Constituição Federal que institui o Estado Democrático de Direito e é reforçada pelo artigo 5º da CF que coloca o direito à segurança como um direito fundamental ao lado do direito à liberdade, à igualdade e à propriedade, que são valores sociais objetivos, não meros estados psicológicos individuais497

. O aspecto material da segurança jurídica traz consigo um estado de cognoscibilidade (que exige a adoção de critérios e argumentos necessários à sua concretização), de confiabilidade (que exige que o Estado cumpra a sua função planificadora e indutora das transformações sociais) e de calculabilidade (que mitigam a indeterminação da linguagem e reforçam processos argumentativos de reconstrução de sentidos, mesmo diante da impossibilidade de univocidade semântica de certos enunciados jurídicos)498. É importante destacar que segurança jurídica e proteção da confiança são conceitos complementares. A segurança jurídica está ligada aos elementos objetivos da ordem jurídica, voltados à garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito. Já a proteção da confiança se aproxima dos componentes subjetivos da segurança, como a previsibilidade dos indivíduos quanto aos efeitos dos atos499.

A previsibilidade é indispensável para a otimização da administração da justiça e imprescindível para o desenvolvimento de uma sociedade em que o direito é respeitado500.

Nesse diapasão, ocorre a violação da segurança jurídica quando, em casos semelhantes, são proferidas decisões antagônicas ou contraditórias, já que isso viola

496 OLIVEIRA, Pedro Miranda de; ANDERLE, Renê José. O sistema de precedentes no CPC projetado: engessamento do direito? Revista de processo, vol. 232, jun./2014, p. 307-324.

497 OLIVEIRA, Pedro Miranda de; ANDERLE, Renê José. O sistema de precedentes no CPC projetado: engessamento do direito? Revista de processo, vol. 232, jun./2014, p. 307-324.

498 ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 682.499 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed.

Coimbra: Almedina, 2003. p. 257; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. In: Direito jurisprudencial. Coordenação de Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 2012. p. 33.

500 MARINONI, Luiz Guilherme. Cultura e previsibilidade do direito. Revista de processo, vol. 239, jan/2015, p. 431-450.

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a zona de confiança do jurisdicionado e gera um ordenamento jurídico instável, que contribui para uma jurisprudência lotérica501: a sorte do jurisdicionado é resultante, não dele ter ou não razão, mas do órgão jurisdicional para quem o processo for distribuído.

Causa insegurança jurídica a variação de interpretações feitas a uma mesma regra, gerando decisões judiciais que possuem idêntica base normativa, mas com entendimento diverso das anteriormente proferidas. Aliás, por vezes a hermenêutica jurídica, é resultante da consciência moral do próprio julgador502 e esse “decido conforme a consciência” não dá segurança a ninguém503.

O problema se agrava com a oscilação da interpretação do direito ao longo dos anos e, especialmente, com mudanças repentinas de posicionamentos que levam a um quadro de imprevisibilidade da interpretação da lei pelo Estado-juiz504. Se os tribunais alteram com frequência indesejável suas próprias posições, a respeito de temas jurídicos importantes, torna quase impossível eleger-se a sua jurisprudência como um norte confiável de padrão de condutas.

A ausência de cumprimento de dever de uniformização da jurisprudência contribui para desestabilizar o sistema jurídico, além de aumentar a insegurança jurídica, o que é nocivo ao direito, além de causar enorme prejuízo aos sistemas econômico, social e político505.

É irracional conceber um sistema processual que, mesmo possuindo Cortes Supremas para definir o sentido da interpretação da Constituição e das leis federais, tem de conviver com decisões discrepantes dos tribunais ordinários506

.

O pronunciamento de decisões antagônicas aos jurisdicionados constitui afronta ao princípio da igualdade jurídica, daqueles que esperam receber idêntica solução quando possuem relações jurídicas semelhantes. Esse princípio impõe isonomia de tratamento na análise das demandas pelos juízes, para que seja possível atingir maior equidade na interpretação do direito aos casos semelhantes507

.

501 CAMBI, Eduardo. Jurisprudência lotérica. Revista dos tribunais, vol. 786, abr./2001, p. 108-128.502 DONIZETTI, Elpidio. A força dos precedentes no novo Código de Processo Civil. Disponível

em: http://elpidiodonizetti.jusbrasil.com.br/artigos/155178268/a-forca-dos-precedentes-do-novo-codigo-de-processo-civil. Acesso em: 23 jun. 2016.

503 DONIZETTI, Elpidio. A força dos precedentes no novo Código de Processo Civil. Disponível em: http://elpidiodonizetti.jusbrasil.com.br/artigos/155178268/a-forca-dos-precedentes-do-novo-codigo-de-processo-civil. Acesso em: 23 jun. 2016.

504 DUARTE, Antonio Aurelio Abi-Ramia; BRASIL, Maria Eduarda de Oliveira. O desafio de uniformizar a jurisprudência e o papel do Código de Processo Civil de 2015 – Novos desafios. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/1186838/O-desafio-de-uniformizar-a-jurispud%C3%AAncia-e-o-novo-cpc-via+final.pdf. Acesso em: 29 jun. 2016.

505, MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de pro-cesso civil: teoria do processo civil. Vol. 1. São Paulo: RT, 2015. p. 148.

506 CAMBI, Eduardo; ALMEIDA, Vinícius Gonçalves. Op. cit. p. 282.507  CAMBI, Eduardo; ALMEIDA, Vinícius Gonçalves. Op. cit. p. 282.

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Há discriminação indevida de jurisdicionados quando casos iguais recebem decisões diversas, além de violação ao princípio da legalidade, pois a lei é geral, abstrata e universal, não podendo desigualar, sem justo critério, os iguais508.

Como consequência da falta de rigidez na vinculação de precedentes judiciais, o espaço de incerteza, de imprevisibilidade e de angústias quanto à aplicação das normas jurídicas acentua-se e apresenta-se como um problema para os cidadãos de países de civil law509.

É certo que nos sistemas jurídicos, tanto da common law quanto da civil law, os valores da segurança jurídica e previsibilidade são almejados. No de civil law, tais objetivos estão centrados na aplicação estrita da lei pelos juízes, enquanto que no de common law isso seria proporcionado pela força vinculante dos precedentes510

.

Com a aproximação histórica entre as jurisdições de civil law e de common law511, a prestação jurisdicional deve ser pautada pelos valores da igualdade, da previsibilidade e da estabilidade, a fim de tutelar de forma semelhante as controvérsias jurídicas idênticas e, com isso, levar a sério os direitos assegurados pelo Estado Democrático de Direito.

Deve-se buscar um modelo cooperativo de processo para se trabalhar com uma igualdade real e substancial entre as partes, pois, do contrário, o próprio Estado constitucional não se sustenta512

. Assim, a disfuncionalidade do sistema judicial, pelos seus próprios agentes, e pela sociedade como um todo, foram fatores que fortaleceram o discurso pró-reformas e aceleraram os processos decisórios responsáveis pelas recentes transformações na legislação processual brasileira e na interpretação do direito513.

3. Da necessidade de combater a instabilidade das decisões judiciais e

a insegurança jurídicaO novo CPC possui como um de seus principais objetivos servir como meio

efetivo e rápido para a solução de conflitos, para que a tutela jurisdicional seja prestada

508  TOSTES, Natacha Nascimento Gomes. Uniformização da jurisprudência. Revista de processo, vol. 104, out./dez. 2001, p. 194-218.

509 TOSTES, Natacha Nascimento Gomes. Uniformização da jurisprudência. Revista de processo, vol. 104, out./dez. 2001, p. 194-218.

510  TOSTES, Natacha Nascimento Gomes. Uniformização da jurisprudência. Revista de processo, vol. 104, out./dez. 2001, p. 194-218.

511 MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista da faculdade de direito da UFPR, vol. 47, 2008, p. 29-54.

512  DUARTE, Antonio Aurelio Abi-Ramia; BRASIL, Maria Eduarda de Oliveira. Op. Cit.513 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Mecanismos de uniformização jurisprudencial e a aplicação da súmula

vinculante. Revista dos Tribunais, vol. 865, nov. 2007, p. 20–35.

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de forma adequada514. É, por isso, que já no art. 1o do NCPC se afirma que o processo civil deve ser ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil.

Uma das características mais marcantes das recentes reformas implementadas no novo CPC foi a ampliação da força da jurisprudência para o deslinde das demandas.

Verifica-se a preocupação com a construção de mecanismos para tratar da proliferação de demandas repetitivas, em razão do crescimento da litigiosidade e da incapacidade atual da estrutura judiciária brasileira para lidar com o fenômeno da explosão de litigiosidade.

As demandas repetitivas são fundadas, muitas vezes, em direitos individuais homogêneos515, que possuem como característica a multiplicidade de sujeitos e idêntica controvérsia jurídica. O art. 81, inc. III, do Código de Defesa do Consumidor estabelece que os direitos individuais homogêneos podem ser tutelados por uma só ação coletiva, pois possuem conflitos decorrentes de origem comum, isto é, homogêneos.

Nesse contexto, uma das principais inovações do novo CPC é a posição de destaque que recebe o tratamento dado aos precedentes judiciais e ao incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), com a finalidade de garantir a igualdade e segurança jurídicas, bem como trazer racionalidade à aplicação do direito e contribuir para a diminuição de decisões diferentes aplicadas a casos semelhantes.

A partir da edição da nova lei processual, introduziram-se no ordenamento jurídico brasileiro técnicas para evitar a difusão excessiva da jurisprudência e controlar a aglomeração de processos junto ao Poder Judiciário e, com isso, assegurar a qualidade da prestação jurisdicional.

O sistema processual brasileiro deve ser norteado pela vinculação aos precedentes judiciais como meio de racionalização de processos repetitivos e para promoção da segurança e da isonomia516.

514 TEIXEIRA, Guilherme Puchalski. Incidente de resolução de demandas repetitivas: projeções em torno de sua eficiência. Revista de processo, vol. 251, jan./2016, p. 359-387.

515 MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil comentado. 3ª ed. São Paulo: RT, 2015. p. 1.255.

516 SICA, Heitor Vitor Mesquita. Brevíssimas reflexões sobre a evolução do tratamento da litigiosidade repetitiva no ordenamento brasileiro, do CPC/1973 ao CPC/2015. Revista de processo, vol. 256, jul./2016, p. 269-281. No mesmo sentido, afirma Claudia Aparecida Cimardi: “A função uniformizadora dos tribunais superiores resulta da necessidade de o sistema operar e fazer incidir a mesma regra jurídica para soluções reais semelhantes ou iguais, em observância insculpida na Constituição Federal, que, nos termos do art. 5º, caput, assinala que ‘todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza’ (...) e, logo mais adiante, torna a repetir que a todos é garantida a igualdade. A repetição do direito à igualdade no texto constitucional talvez se deva à circunstância de que se trata de um direito fundamental e, principalmente, um direito nuclear do Estado social, com o que o legislador constituinte emprenhou-se firmemente no propósito de deixá-lo o mais explícito possível” (CIMARDI, Op. Cit., p. 145).

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Dessa maneira, o novo CPC pretende a concretização das garantias fundamentais do acesso à ordem jurídica justa (art. 5o, inc. XXXV, CF) e da razoável duração do processo (art. 5o., inc. LXXVIII).

Compete às Cortes Supremas outorgar unidade ao direito para tornar a ordem jurídica segura e capaz de prover a uniformização na interpretação de questões relevantes e repetitivas517.

O sistema de precedentes obrigatórios potencializa a projeção de um sistema decisório íntegro, onde se possa ter maior previsibilidade das decisões, bem como desestimular a propositura de ações infundadas. Afinal, a jurisprudência oscilante e a irrestrita liberdade de interpretação judicial torna impossível a pacificação de uma única posição jurídica sobre determinada matéria e coloca o ordenamento jurídico em posição de instabilidade, razão pela qual se faz necessário retomar a integralidade do direito e a coerência da ordem jurídica.

A indeterminação do direito, em razão de ser desconhecido e intangível o significado da norma jurídica a ser observada pelos cidadãos, esvazia a função precípua das regras jurídicas que é assegurar a previsibilidade, a igualdade e a imparcialidade às relações sociais, o que acaba por provocar um estado de desordem518.

A força dos precedentes e do dever de uniformidade da jurisprudência foi a forma que o legislador previu para chamar atenção aos operadores do direito, em especial aos juízes, de que a jurisprudência não pode ser alterada de maneira injustificada e repentina519

.

Não é razoável que o entendimento estabelecido dentro de um mesmo Tribunal não seja adotado pelas próprias câmaras ou turmas, muito menos por juízes de primeira instância, que insistem em desconsiderar uma tese já firmada para julgar conforme a sua consciência. Essa situação não pode prevalecer, pois um sistema justo, dialético, efetivo e eficiente não pode prescindir de valores como a igualdade substancial e a segurança jurídica, que para serem alcançadas depende que a solução entregue para casos similares seja a mesma.

Assim, o novo diploma processual civil buscou mecanismos mais eficazes para que os órgãos jurisdicionais respeitem suas próprias decisões, a fim de que o direito pátrio seja realizado com maior grau de uniformidade, previsibilidade, estabilidade,

517  MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 160.

518  PEREIRA, Paula Pessoa. Op. cit. p. 187-222.519  ATAÍDE JUNIOR, Jaldemiro Rodrigues de; PEIXOTO, Ravi. Flexibilidade, stare decisis e o

desenvolvimento do anticipatory overruling no direito brasileiro. Revista de processo, vol. 236, out./2014, p. 279-301..

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isonomia e duração razoável do processo520.

O escopo do novo CPC é impor o respeito aos precedentes judiciais, com a vinculação da decisão dos magistrados ao entendimento consolidado nas instâncias superiores e nos órgãos responsáveis pela uniformização dos julgados, para garantir a racionalização da prestação da justiça e o combate ao congestionamento processual521.

Entretanto, a vinculação aos precedentes não é uma inovação trazida pelo novo CPC, mas sim uma questão de teoria da interpretação do direito, que ganhou autoridade após a superação dos modelos declaratório e descritivo das normas jurídicas, que passou a ser reconstrutivo e adscritivo de sentidos reconduzidos aos textos jurídicos522.

A implementação dessa técnica processual é necessária, mas depende de uma nova cultura jurídica e de uma prática jurisprudencial constante.

4. Principais diferenças entre jurisprudência, precedentes e súmulas

É importante compreender o sentido da jurisprudência, dos precedentes e das súmulas, destacando-se as suas diferenças, com o objeto de tornar mais compreensível o estudo da uniformização jurisprudencial.

A jurisprudência refere-se ao uso reiterado de decisões judiciais, sendo uma fonte indireta, secundária e material do direito, intrinsecamente vinculada aos costumes, não possuindo a força vinculante de uma fonte formal e primária. Dessa maneira, não contém potencialidade obrigatória perante os magistrados, ao contrário das regras legais, que possuem força vinculante por terem se originado de órgãos com atribuição produtiva normativa.

Por jurisprudência, deve-se entender a revelação do direito por meio da sucessão harmônica de decisões dos tribunais, a quem incumbe a função de interpretar e aplicar as normas jurídicas. O termo jurisprudência depende de reiteradas decisões idênticas, envolvendo a mesma questão de direito523

.

520 MORAES, Denise Maria Rodriguez. Uniformização da jurisprudência como mecanismo de efetivação da garantia do acesso à justiça: uma proposta do Projeto do Novo Código de Processo Civil. Revista de processo, vol. 220, jun./2013, p. 239-269..

521  MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, 522 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Op. Cit. p. 149.523 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 167-168. No

mesmo sentido, Rodolfo de Camargo Mancuso explica que a jurisprudência “se apresenta como o produto otimizado da atividade dos Tribunais, configurando-se quando uma coleção de acórdãos acerca de uma dada questão jurídica está alinhada sob uma mesma vertente exegética, cuja reiteração pode agregar à jurisprudência os qualificativos de dominante e pacífica, ou mesmo justificar a emissão de súmula, assim deflagrando importantes efeitos, inclusive panprocessuais. (Sistema brasileiro de precedentes. São Paulo: RT, 2014. p. 113).

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Os precedentes judiciais, por sua vez, são soluções jurídicas expostas após raciocínio argumentativo obtido pelo intérprete a partir do caso precedente com a causa objeto de julgamento. Consiste na decisão jurisdicional proferida em um caso concreto, cujo núcleo (tese jurídica extraída da ratio decidendi) pode servir de norma geral e diretriz para a resolução de demandas semelhantes524

.

Assim, os precedentes judiciais, ao contrário da jurisprudência, não é uma tendência de julgamento adotada por um tribunal à determinada questão jurídica, mas é a própria decisão de determinada matéria, que possui potencial para servir de regra para decisões judiciais de casos futuros envolvendo fatos ou questões jurídicas similares525

.

Uma única decisão judicial pode ser identificada como precedente, não necessitando para a sua formação a reiteração, como ocorre com a jurisprudência (diferença quantitativa)526

.

O precedente pode ser compreendido como pronunciamento judicial que possui controle e consistência para ser adotado por outros juízes como decisão padrão à apreciação de casos semelhantes, uma vez que estabelece a regra para a determinação de um caso subsequente, tornando-se modelo de decisão.

Precedente significa, pois, uma decisão antecedente que contém uma similitude jurídica significativa com relação a um caso concreto que seja posterior527

. O precedente também precisa ter a aptidão para vincular a autoridade julgadora. Logo, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal vinculam todos os órgãos judiciais, enquanto que as emanadas de um Tribunal de Justiça serão consideradas precedentes para os juízes estaduais de primeiro grau.

O precedente condutor é, por vezes, a decisão que dá início à uniformização da jurisprudência528

.

524 REDONDO, Bruno Garcia. Aspectos essenciais da teoria geral do precedente judicial: identificação, interpretação, aplicação, afastamento e superação. Revista de processo, vol. 217, mar./2013, p. 401-418.

525 REDONDO, Bruno Garcia. Aspectos essenciais da teoria geral do precedente judicial: identificação, interpretação, aplicação, afastamento e superação. Revista de processo, vol. 217, mar./2013, p. 401-418.

526 “Parece-nos que deva integrar o conceito de jurisprudência a contemporaneidade das decisões, isto é, devem fazer parte da jurisprudência sobre determinada matéria, de certo tribunal, as decisões proferidas em um período de tempo atual ou relativamente atual. Em suma, o vocábulo jurisprudência é o conjunto de múltiplas decisões contemporâneas, consonantes ou não, resultantes da atividade jurisdicional dos tribunais, sobre um mesmo determinado tema. (...) O precedente judicial (...) corresponde a uma decisão que impõe a regra para o caso concreto decidido, decisão esta que pode se tornar regra também para futuros casos análogos ao que lhe deu origem. (...) Daí de extrai uma primeira diferença, de caráter quantitativo, entre a jurisprudência e o precedente: aquela supõe um conjunto de decisões, enquanto este diz respeito a apenas um” (CIMARDI, Cláudia Aparecida. Op. Cit. p. 90-91).

527 Idem. p. 141.528 Idem. p. 206.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 473

O recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, pelo Supremo Tribunal Federal, por não ter havido a análise de mérito, não pode ser considerado um leading case. Um caso somente será leading case se outros julgados adotarem a tese nele consubstanciada posteriormente, reconhecendo-o como tal a partir da observância do entendimento jurídico nele compreendido. Além disso, a aplicação de um precedente também depende da observância do contraditório e do cumprimento do dever de fundamentação das decisões judiciais529

.

As questões fáticas não podem ser alvo de precedentes, pois cada caso é considerado único, razão pela qual o precedente deve debater uma indagação de direito, capaz de ser aplicado à diversas demandas. No entanto, o precedente deverá defrontar todos os argumentos apresentados, sejam favoráveis ou contrários a tese jurídica exposta de maneira exaustiva, caso contrário não poderá ser utilizado pelos casos seguintes.

Além disso, os precedentes possuem tanto eficácia horizontal, pois obrigam o tribunal que o proferiu a adotar o entendimento nele abordado em todos os casos semelhantes colocados a seu exame, quanto eficácia vertical, ao imporem-se às cortes inferiores, a fim de que se consiga a manutenção da tese nas demais causas a serem apreciadas530.

Por outro lado, a jurisprudência não possui caráter vinculante, mas somente persuasivo, a ponto de ser utilizada pelo julgador a título de convencimento e para que possa identificar o resultado mais satisfatório ao caso submetido ao seu crivo, por meio do comparativo do julgamento de casos análogos.

A jurisprudência deve possuir, portanto, efeito argumentativo, para que possa incutir na convicção e no convencimento do juiz subsequente, tendo em vista que os fundamentos utilizados em decisões já proferidas são os corretos e apropriados ao caso concreto que está sob o seu julgamento531

.

A jurisprudência, em um sistema de precedentes vinculantes, tem a relevante função de evidenciar possíveis interpretações a partir do julgamento de casos concretos, contribuindo para a unidade do direito, além de revelar as tendências interpretativas532

.

A observância do precedente é obrigatória, pois trata-se de interpretação da Constituição ou da legislação federal, realizada pelas Cortes Superiores, em que se consubstancia a norma jurídica. Dessa forma, o precedente judicial dá eficácia

529 MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual civil moderno. Cit. p. 1139-1140.530 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. O

microssistema de formação de precedentes judiciais vinculantes previsto no Novo CPC. Revista de processo, vol. 259, set./2016, p. p. 405-435.

531 CIMARDI, Cláudia Aparecida. Op. Cit. p. 150.532 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Op. Cit. p. 150.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 474

vinculante à própria ordem jurídica533.

O precedente judicial limita-se a uma decisão, enquanto a jurisprudência traz intrínseca a ideia de conjunto, de pluralidade de decisões534

.

As decisões judiciais também não se confundem com precedentes, apesar de todo precedente ser uma decisão judicial, uma vez que os tribunais superiores podem proferir decisões que não sejam consideradas pelo ordenamento jurídico como precedentes535

.

Dentre os critérios para a identificação dos precedentes judiciais, salientam-se: a) não será precedente a decisão que aplicar lei não objeto de controvérsia; b) o julgado que se limita a citar uma decisão anterior, sem fazer qualquer especificação nova ao caso concreto, provoca a vinculação do precedente anterior e não da decisão proferida no caso atual536

.

Portanto, não será considerado precedente judicial a decisão incapaz de surtir efeitos jurídicos a casos futuros. Também não se considera precedente a decisão que utiliza a tese contida em caso precedente já existente ou aquela que não fundamenta qual interpretação deve ser dada a uma regra jurídica, bem como a que contiver princípios ou normas genéricas e universalizáveis.

Além disso, nem toda decisão judicial será apta para criar ou definir a aplicação de uma norma jurídica, já que as obsoletas, com entendimentos superados pela doutrina e jurisprudência local, não devem ser seguidas537

.

Os precedentes deverão ser considerados como tais por esclarecerem o sentido dos textos legais ou dos princípios, apontando soluções interpretativas de

533 MITIDIERO, Daniel. Op. Cit. p. 107.534 “Uma a jurisdição, é necessário ao sistema da prestação de Justiça que a lei nacional seja

interpretada de maneira uniforme pelos tribunais superiores nacionais. Assim é que a jurisprudência se forma e se diferencia dos precedentes, universalizando a interpretação da norma jurídica no país. Precedentes são forçosamente individuais, julgamentos de cada um dos casos submetidos à jurisdição; jurisprudência é a substância consolidada, definitivizada, extraída de todos e de cada um dos precedentes” (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit. p.106).

535 “O precedente consiste na decisão jurisdicional tomada em relação a um caso concreto, cujo núcleo é capaz de servir como diretriz para a resolução de demandas semelhantes. Todo precedente é, portanto, uma decisão judicial, mas nem toda decisão pode ser qualificada como sendo um precedente. Como característica fundamental do precedente tem-se o surgimento de uma norma geral construída pelo órgão jurisdicional, a partir de um caso concreto, que passa a servir de diretriz para situações assemelhadas” (REDONDO, Bruno Garcia. Op. Cit. p. 406).

536 ZANETI JUNIOR, H. Precedentes (treatlike cases a like) e o novo código de processo civil. Revista de processo, vol. 235, set./2014, p. 293-349.

537 BERTÃO, Rafael Calheiros. Os precedentes no novo código de processo civil: a valorização da staredecisis e o modelo de corte suprema brasileiro. Revista de processo, vol. 253, mar. 2016, p. 347-385.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 475

questões jurídicas controversas. Aliás, se a decisão judicial aplicar a lei sem agregar conteúdo exegético relevante, a vinculação decorrerá da própria lei objeto de apreciação, uma vez que o julgamento apenas faz a subsunção do direito positivo aos fatos, sem efetuar interpretação relevante para o caso em apreço, não podendo servir de embasamento para casos futuros por ausência de contribuição ao assunto posto em discussão.

O uso do precedente orienta a concretização da norma jurídica e sustenta a motivação da decisão com base no raciocínio de equiparação dos fatos do caso paradigma à situação fática do caso futuro a ser julgado538

.

Assim, precedentes são razões jurídicas necessárias e suficientes resultantes das decisões das Cortes Supremas para solucionar casos concretos, que servirão de base para vincular o comportamento das demais instâncias administrativas e judiciais, além de orientar a própria conduta dos indivíduos e da sociedade civil539

.

Nesse sentido, é possível mencionar a existência de precedentes vinculantes (binding precedents) ou meramente persuasivos (persuasive precedents). O precedente persuasivo é aquele que não obriga os órgãos jurisdicionais, mas pode ser por eles aplicado, uma vez que resolvem uma questão ainda não analisada ou, por terem declinado importantes razões para a não aplicação de precedente vinculante de órgão judicial superior, merece ainda cautela pelos órgãos superiores e inferiores.

As súmulas dos tribunais, por sua vez, são enunciados gerais e abstratos, provenientes da linha de raciocínio utilizada pelos órgãos jurisdicionais no julgamento de determinada matéria. Expressam-se por meio de verbetes que contém, em traços gerais, a orientação jurídica consolidada pelo respectivo Tribunal. É, portanto, resultante da jurisprudência pacificada e manifesta a conclusão adotada, devendo identificar a ratio decidendi da tese sumulada.

As súmulas decorrem, pois, da sedimentação do posicionamento adotado pelos tribunais em relação a determinada questão jurídica, servindo como diretriz hermenêutica para futuros julgamentos. Possui o efeito prático de orientar o órgão julgador a adotar aquele posicionamento sumulado.

Os tribunais, após resolverem suas divergências de interpretação das questões jurídicas entre seus órgãos fracionados (turmas ou câmaras), podem formular súmulas, mediante a redação de enunciados, que se destinam à unificação da jurisprudência e servem de orientação para juízes, membros do Ministério Público, advogados e a

538 CIMARDI, Cláudia Aparecida. Op. Cit. p. 205. No mesmo sentido, Pedro Miranda de Oliveira e Renê José Andrele ensinam que “o precedente judicial delimita os debates e argumentos enfrentados no caso concreto para chegar à determinada tese jurídica de forma coerente, possibilitando sua correta aplicação pelo intérprete da lei” (Op. Cit. p. 309).

539 MITIDIERO, Daniel. Op. Cit, p. 104.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 476

sociedade em geral540.

Observa-se que as expressões “enunciado” e “súmula” não são como sinônimas, pois a súmula é composta por enunciados que representam a forma pela qual a jurisprudência majoritária tem se orientado sobre determinado tema.

A súmula possui função relevante no sistema jurídico, revelando-se uma diretriz hermenêutica capaz de informar e esclarecer qual deve ser a interpretação da lei, geral e abstrata, e que deve prevalecer, quando há duas ou mais interpretações sobre o mesmo assunto. Diante disso, a súmula procura evitar divergências interpretativas e apresentar uma conclusão direta e objetiva aos intérpretes do ordenamento jurídicos.

As súmulas desempenham a função de expressar a orientação jurisprudencial adotada pelos Tribunais, não possuindo, como regra, efeito vinculante. No entanto, o art. 103-A da Constituição Federal, regulamentado pela Lei n. 11.4172006, prevê hipótese de súmula vinculante, a ser editada pelo Supremo Tribunal Federal, quando houver sobre certa matéria constitucional reiteradas decisões da Corte, e têm por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas jurídicas determinadas, desde que haja controvérsia no Poder Judiciário e na Administração Pública capaz de provocar insegurança jurídica e multiplicação de processos.

As súmulas vinculantes foram introduzidas na Constituição Federal pela EC 45 de 2004, da Reforma do Poder Judiciário, na tentativa de agilizar a prestação jurisdicional, sob o entendimento de que a uniformização dos entendimentos por meio de tais enunciados retiraria das pautas as questões já sumuladas pelo STF541. Além de servir à estabilidade e à continuidade da jurisprudência, as súmulas vinculantes visam cessar a possibilidade de julgados contraditórios e contribuir para o descongestionamento do STF. À súmula vinculante é atribuída força obrigatória aos demais juízes e tribunais, porém não impede que o Poder Legislativo legisle em sentido diverso542

.

5. Uniformização da jurisprudência O mecanismo apontado pelo novo CPC, para resolver a instabilidade da

jurisprudência, está expresso por um imperativo categórico no art. 926, que impõe o dever aos tribunais de uniformizar sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente.

540 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 172.541 CHULAM, Eduardo. A função e relevância dos precedentes judiciais no direito brasileiro. Revista

do Instituto dos Advogados de São Paulo, vol. 32, jul – dez./2013, p. 115-150.542 “O Código de 1973 assistiu à instituição de súmulas vinculantes pela Emenda Constitucional 45,

de 2004 (art. 103-A, CF). Com isso, as súmulas deixaram de conter orientações e passaram a veicular normas para todo o Poder Judiciário e para toda a Administração Pública. Em outras palavras, assim como ocorreu com a jurisprudência, também as súmulas adquiriram uma feição preventiva – evitar julgamentos desconformes à jurisprudência assentada” (MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 84).

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 477

Esse dispositivo reconhece a necessidade de resguardar a segurança jurídica das decisões judiciais, por meio da preservação dos entendimentos dos tribunais. O art. 926 do CPC é reforçado pelo sistema de vinculação aos precedentes judiciais, também assentado no novo CPC543.

O dever de uniformização da jurisprudência manifesta-se na inadmissibilidade de qualquer tribunal reconhecer como possível e concomitantemente mais de um posicionamento em determinada matéria. Os tribunais são integrados por diversos órgãos fracionários (Câmaras, Turmas, Órgãos Especiais etc.), mas, apesar dessas divisões funcionais, são apenas uma única instituição judicante e, assim, devem atuar em sua unidade a fim de adotarem apenas uma orientação sobre questões jurídicas idênticas.

A interpretação uniforme dos tribunais acerca de determinada norma jurídica serve para fixar uma conduta-modelo a ser observada seja pelos membros do Poder Judiciário que integram essas cortes, sejam pelos juízes das instâncias inferiores, ou, ainda, pelos demais integrantes do sistema de justiça (servidores, membros do Ministério Público, advogados etc.), além dos próprios cidadãos. Com isso, todos podem direcionar sua atuação profissional e seu comportamento de acordo com as regras fixadas nos textos positivados e na jurisprudência que venha aplicá-los e interpretá-los, gerando uma maior previsibilidade do resultado de eventual confronto levado ao Poder Judiciário544.

Dessa maneira, torna-se necessário que a tese firmada pelo Tribunal seja respeitada pelo próprio órgão judicial que a fixou. Isso confere maior autoridade à jurisprudência, enquanto fonte do direito, porque evita a superação de posicionamentos de forma constante e irrefletida, sem que a matéria seja explorada adequadamente e analisada com um mínimo rigor teórico e argumentativo.

A jurisprudência deve ser uniforme para garantir a homogeneidade na interpretação das normas jurídicas no território abrangido pela competência do Tribunal, de modo a ressaltar o princípio da igualdade e inibir interpretações inadequadas acerca de um mesmo assunto545

.

Faz-se mister frisar que as decisões dos tribunais orientam a sociedade, seja por meio das partes que compõe a relação processual seja da sociedade em geral. Logo, a segurança jurídica deve nortear a aplicação do direito para ampliar a confiança nas regras e nos princípios contidos no ordenamento jurídico.

543 CIMARDI, Cláudia Aparecida. Op. Cit. p. 159544 CIMARDI, Cláudia Aparecida. Op. Cit. p. 144.545 CAMBI, Eduardo; HELLMAN, Renê Francisco. Jurisprudência – A independência do juiz ante aos

precedentes judiciais como obstáculo à igualdade e a segurança jurídicas. Revista de processo, vol. 231, maio/2014, p. 354.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 478

O arbítrio judicial é um dos fatores mais nocivos à eficácia do Estado Democrático de Direito, não se podendo tolerar a indiferença quanto a observância da jurisprudência e dos precedentes judiciais. Caso contrário, estaria se estimulando a jurisprudência546. O juiz não tem o poder de julgar como quiser sob o argumento de ser independente. As decisões judiciais devem ser corretamente construídas, com a observância das garantias constitucionais, cabendo aos magistrados responder aos argumentos e provas trazidos pelas partes de forma completa, sem subterfúgios, com a utilização de expressões sem sentido ou desconectadas com as questões discutidas no processo. O magistrado deve possuir compromisso com a higidez técnico-formal do processo, com a consistência jurídica da decisão e com a efetividade prática do quanto decidido, pois tudo isso contribuiu para respostas judiciárias capazes de promover a ordem jurídica justa e a celeridade da prestação jurisdicional, impondo a uma certa regra ou princípio significado definitivo, em um determinado espaço-tempo547

.

O art. 926 do novo CPC, ao tratar do dever de uniformização da jurisprudência, afirma que cabem aos tribunais mantê-la estável, íntegra e coerente.

Quando se trata de uniformização e estabilidade jurisprudenciais, procura-se a adoção de soluções jurídicas similares a casos semelhantes. A busca pela uniformidade indica que sobre uma mesma controvérsia é indispensável consolidar uma posição jurídica para que não permaneça o debate sobre posicionamentos jurisdicionais conflitantes548

.

A uniformidade da jurisprudência está relacionada com a obrigatoriedade dos precedentes judiciais. Nesse sentido, ressaltar o Enunciado nº 316 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, pelo qual “A estabilidade da jurisprudência do tribunal depende também da observância de seus próprios precedentes, inclusive por seus órgãos fracionados”. Portanto, para que a vinculatividade dos precedentes possa assegurar a estabilidade, integridade e coerência de uma jurisprudência uniforme, é indispensável que os precedentes deixem de ser utilizados apenas como argumento retórico de autoridade549

(isto é, meros precedentes persuasivos, a que o próprio Tribunal e os órgãos judiciários inferiores não estão obrigados a seguir550), para se tornarem obrigatórios.

546 CAMBI, Eduardo; HELLMAN, Renê Francisco. Jurisprudência – A independência do juiz ante aos precedentes judiciais como obstáculo à igualdade e a segurança jurídicas. Revista de processo, vol. 231, maio/2014, p. 354.

547 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit. p. 106.548 CAMBI, Eduardo; ALMEIDA, Vinícius Gonçalves. Op. cit. p. 287.549 CUEVA, Ricardo Cillas Bôas. Técnica de julgamento de recursos repetitivos e a constitucionalidade

das decisões vinculativas e outras novidades do NCPC. Revista de processo, vol. 257, jul./2016, p. 315.

550 GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Considerações acerca do modelo de vinculação às decisões judiciais: os precedentes no Novo Código de Processo Civil. Revista de processo, vol. 257, jul./2016, p. 348.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 479

Entretanto, uniformidade e estabilidade não são sinônimos de imutabilidade551. Aliás, a possibilidade de alteração dos entendimentos consolidados está prevista no art. 927, §3º, do CPC, que é complementado pelo §4o, segundo o qual a modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia. Mudanças na interpretação jurídica podem se mostrar benéficas para a proteção dos direitos. A dinâmica das relações humanas, especialmente daquelas projetadas juridicamente, bem como o advento de novas leis ou da revogação de leis antigas, pode exigir alterações das posições doutrinárias e jurisprudenciais sedimentadas. A técnica argumentativa inspirada em precedentes judiciais implica o confronto constante das conclusões dos casos pretéritos sobre as realidades apresentadas nos casos presentes e futuros552.

Já o dever de integralidade pode ser entendido como uma virtude política, que implica observar a totalidade do ordenamento jurídico e assegurar a ideia de unidade do Direito, concebido como um sistema complexo (formado por princípios e regras constitucionais, legais e infralegais), para tratar a todos do mesmo modo e, assim, promover justiça na aplicação do Direito553. Por exemplo, não observa o dever de integridade a decisão que nega ao Ministério Público legitimidade para a propositura de mandado de segurança coletivo, com fundamento na interpretação literal do art. 21 da Lei 12.016/2009, por desconsiderar a existência do microssistema de tutela coletiva de direitos (exegese do art. 129, inc. III, da CF)554

. Tampouco respeita o dever de integridade a decisão que nega poderes de investigação ao Ministério Público, por considerar que a investigação criminal é exclusiva da polícia judiciária (exegese dos arts. 5º, incisos LIV e LV, 129, incs. III e VIII, e 144, inc. IV, § 5o, da CF)555

.

O dever de coerência, por sua vez, impõe a vedação pelos tribunais de posicionamentos inconsistentes e contrários aos que foram outrora aplicados, com

551 CAMBI, Eduardo; ALMEIDA, Vinícius Gonçalves. Op. cit. p. 299.552 Nesse sentido, vale salientar os Enunciados nº 332 (“A modificação de precedente vinculante

poderá fundar-se, entre outros motivos, na revogação ou na modificação da lei em que ele se baseou, ou em alteração econômica, política, cultural ou social referente à matéria decidida”) e nº 324 (“Lei nova, incompatível com o precedente judicial, é fato que acarreta a não aplicação do precedente por qualquer juiz ou tribunal, ressalvado o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, a realização de interpretação conforme ou a pronúncia de nulidade sem redução de texto”) do Fórum Permanente de Processualistas Civis.

553  CAMBI, Eduardo; ALMEIDA, Vinícius Gonçalves. Op. cit. p. 296.554 STF, RE 593727, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR

MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 14/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-175 DIVULG 04-09-2015 PUBLIC 08-09-2015.

555 A propósito, o Enunciado nº 583 do Fórum Permanente de Processualistas Civis expressa que “a estabilidade a que se refere o ´caput´ do art. 926 consiste no dever de os tribunais observarem os próprios precedentes”.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 480

a finalidade de garantir a racionalidade da jurisprudência556. Havendo a necessidade

de alteração do entendimento de certos julgamentos, é preciso assumir o ônus da argumentação. A inércia argumentativa serve para a preservação do status quo; logo, qualquer modificação na jurisprudência impõe razões extras até então não cogitadas ou enfrentadas557. Assim, a coerência deve ser compreendida como dever de justificar qualquer discordância, e será observado tanto pelo tribunal que proferiu entendimento diverso da tese antigamente adotada, como também de qualquer outro órgão jurisdicional que se deparar com entendimento diverso daquele por si adotado. A jurisprudência deve integrar um contexto harmonioso, coeso e conexo, razão pela qual os tribunais devem sempre zelar pela unicidade de seus julgados, justificando a colisão de orientações e de teses jurídicas opostas. Conforme prevê o Enunciado 584 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, “uma das dimensões da coerência a que se refere o caput do art. 926 consiste em os tribunais não ignorarem seus próprios precedentes (dever de autorreferência)”. A observância do dever de coerência assegura à resolução isonômica das controvérsias, ao invés de alimentar os casuísmos judiciários558.

Para tanto, o art. 926, §1º, do CPC determina a edição pelos tribunais de enunciados de súmula equivalentes à sua jurisprudência dominante, com o objetivo da orientação firmada ser seguida pelos seus próprios órgãos internos e para que os demais juízes também observem o entendimento ali consagrado. Busca-se, com a utilização das súmulas, a supressão de divergências para alcançar a uniformização da jurisprudência.

Já o art. 926, §2º, do CPC demonstra como deverá ser elaborada a súmula, que será desenvolvida observando as circunstâncias fáticas que motivaram a sua criação. Isso para que os tribunais evitem utilizar assertivas demasiadamente genéricas559. Com isso, o art. 926, §2º, do CPC faz com que a súmula não contenha enunciado abstrato, devendo sua elaboração estar inspirada nos fatos que ocasionaram os processos-alvo de reiteradas decisões560

. Aliás, pelo Enunciado nº 166 do Fórum Permanente de

556 DIDIER JR., Fredie. Sistema brasileiro de precedentes judiciais obrigatórios e os deveres institucionais dos tribunais: uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência. In: Precedentes. Coord. Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha, Jaldemiro de Ataíde Jr. e Lucas Buril de Macêdo. Salvador: JusPodivm, 2015.p. 386.

557 CAMBI, Eduardo; MARGRAF, Alencar Frederico. Op. cit. p. 311-330558 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Jurisprudência e precedentes vinculantes no novo código de

processo civil – demandas repetitivas. Revista de processo, vol. 255, abr./2016, p. 371.559 CARVALHO, Sabrina Nasser de. Decisões paradigmáticas e dever de fundamentação: técnica

para a formação e aplicação dos precedentes judiciais. Revista de processo, vol. 249, nov./2015, p. 421-448.

560 “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados”.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 481

Processualistas Civis, a “aplicação dos enunciados das súmulas deve ser realizada a partir dos precedentes que os formaram e dos que os aplicaram posteriormente”.

O caput do art. 927 do CPC afirma que os juízes e tribunais devem observar o rol de decisões estabelecido em seus incisos561. A relação presente nesse dispositivo é de observância obrigatória a todos os órgãos jurisdicionais e, portanto, não se trata de mera recomendação aos juízes e tribunais; caso contrário, não se conseguiria a observância do dever de uniformidade da jurisprudência e o respeito aos precedentes judiciais. Aliás, o art. 927 do CPC não faz distinção entre juízes e tribunais, o que evidencia que tal imposição é universal e abarca inclusive os Tribunais Superiores, que estão sujeitos também à vinculação aos precedentes.

É certo que o legislador, ao prever no art. 927 do CPC o rol de decisões a ser observado pelos membros do Poder Judiciário, regulou a forma de cumprimento específico do art. 926 do CPC. Todavia, o dever geral de segurança jurídica enraizado no direito brasileiro – contido no art. 1º da CF, ao instituir o Estado Democrático de Direito, e reforçado pelo art. 5º da CF, que coloca o direito à segurança como um direito fundamental ao lado do direito à liberdade,

à igualdade e à propriedade - pode fazer com que outras situações que não foram elencadas no art. 927 do CPC sejam também respeitadas, apesar de não possuírem previsão específica, desde que necessárias para garantir o dever de uniformização jurisprudencial562

.

561 “A exigência de integridade, estabilidade e coerência dos precedentes inserida no art. 926 impõe que, em certos casos, haja ampliação do rol constante do art. 927 de forma a ser possível uma unificação do entendimento de todos os tribunais pátrios. A coerência e a integridade do direito devem ser preservadas pelo Poder Judiciário, sendo necessária a compreensão de que “os juízes e tribunais são organismos que servem a um Poder e ao sistema de distribuição de justiça, pouco importam suas ‘opiniões’. A coerência e a integridade fazem referência a um todo e, havendo posicionamento de um tribunal superior adequado para uniformizar o entendimento sobre determinada matéria, os demais órgãos jurisdicionais devem adotar tal posicionamento. Do contrário, seria ignorar a função de Cortes de precedentes de tais tribunais, valorizada pelo CPC/2015” (PEIXOTO, Ravi. O sistema de precedentes desenvolvido pelo CPC/2015 - uma análise sobre a adaptabilidade da distinção (distinguishing) e da distinção inconsistente (inconsistent distinguishing). Revista de processo, vol. 248, out./2015, p. 336).

562 “A exigência de integridade, estabilidade e coerência dos precedentes inserida no art. 926 impõe que, em certos casos, haja ampliação do rol constante do art. 927 de forma a ser possível uma unificação do entendimento de todos os tribunais pátrios. A coerência e a integridade do direito devem ser preservadas pelo Poder Judiciário, sendo necessária a compreensão de que “os juízes e tribunais são organismos que servem a um Poder e ao sistema de distribuição de justiça, pouco importam suas ‘opiniões’. A coerência e a integridade fazem referência a um todo e, havendo posicionamento de um tribunal superior adequado para uniformizar o entendimento sobre determinada matéria, os demais órgãos jurisdicionais devem adotar tal posicionamento. Do contrário, seria ignorar a função de Cortes de precedentes de tais tribunais, valorizada pelo CPC/2015” (PEIXOTO, Ravi. O sistema de precedentes desenvolvido pelo CPC/2015 - uma análise sobre a adaptabilidade da distinção (distinguishing) e da distinção inconsistente (inconsistent distinguishing). Revista de processo, vol. 248, out./2015, p. 336).

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 482

Além disso, incumbe aos tribunais superiores garantir a unidade ao direito nacional, isto é, zelar pela plenitude e harmonia do sistema jurídico, uma vez que são tribunais de vértice e, em decorrência, suas decisões repercutem em todo o território nacional. Extrai-se, dessa forma, a importância dessas Cortes para o sucesso da aplicação dos arts. 926 e 927 do CPC; ou seja, para que a função institucional da magistratura se compatibilize com a finalidade almejada com a criação de um sistema que observe a uniformização jurisprudencial e a vinculação aos precedentes judiciais563.

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, pela posição que ocupam no sistema processual, produzem decisões que têm projeção e importância em todo o território nacional. Logo, tais Cortes devem ser as primeiras a garantir a uniformidade ao entendimento manifestado em sua jurisprudência e em seus precedentes, a fim de nortear os demais integrantes do sistema de justiça para a aplicação e interpretação do direito em situações futuras.

A jurisprudência uniforme dos tribunais superiores deve ser aplicada aos casos subsequentes, mesmo se o órgão julgador ou o magistrado possuir entendimento

563  “(…) 3. O papel de Corte de Vértice do Supremo Tribunal Federal impõe-lhe dar unidade ao direito e estabilidade aos seus precedentes. 4. Conclusão corroborada pelo Novo Código de Processo Civil, especialmente em seu artigo 926, que ratifica a adoção – por nosso sistema – da regra do stare decisis, que “densifica a segurança jurídica e promove a liberdade e a igualdade em uma ordem jurídica que se serve de uma perspectiva lógico-argumentativa da interpretação”. (MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016). 5. A vinculação vertical e horizontal decorrente do stare decisis relaciona-se umbilicalmente à segurança jurídica, que “impõe imediatamente a imprescindibilidade de o direito ser cognoscível, estável, confiável e efetivo, mediante a formação e o respeito aos precedentes como meio geral para obtenção da tutela dos direitos”. (MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Revista do Tribunais, 2013). 6. Igualmente, a regra do stare decisis ou da vinculação aos precedentes judiciais “é uma decorrência do próprio princípio da igualdade: onde existirem as mesmas razões, devem ser proferidas as mesmas decisões, salvo se houver uma justificativa para a mudança de orientação, a ser devidamente objeto de mais severa fundamentação. Daí se dizer que os precedentes possuem uma força presumida ou subsidiária.” (ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiro, 2011). 7. Nessa perspectiva, a superação total de precedente da Suprema Corte depende de demonstração de circunstâncias (fáticas e jurídicas) que indiquem que a continuidade de sua aplicação implicam ou implicarão inconstitucionalidade. 8. A inocorrência desses fatores conduz, inexoravelmente, à manutenção do precedente já firmado. (...)”(STF, RE 655265, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 13/04/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-164 DIVULG 04-08-2016 PUBLIC 05-08-2016).

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 483

diverso564.

O art. 927, § 1º, do CPC afirma, ainda, que, quando os tribunais e os juízes forem observar as decisões elencadas no caput desta regra jurídica, devem atender ao disciplinado nos arts. 10 e 489, §1º do CPC; ou seja, devem justificar a adequação do posicionamento ao caso concreto, além de possibilitar às partes o direito de questionar referida aplicação, garantindo o contraditório. Com isso, é mitigado os brocardos jurídicos do iura novit curia e do naha mihi factum dabo tibi ius, fazendo com que a garantia constitucional do contraditório se estenda às questões de direito que, em tese, são do conhecimento do juiz e que poderiam ser aplicadas de ofício. Assim, o art. 927, § 1º, do CPC estabelece premissas para formação dos precedentes, em especial sobre a necessidade de se estabelecer o contraditório prévio às partes, na linha do dever de cooperação, contido no art. 6o do novo CPC.

O novo CPC pretende que a tese presente na jurisprudência uniformizada e o precedente judicial se mantenham estáveis, a fim de garantir a integralidade das decisões judiciais. No entanto, podem ocorrer situações que levam ao abandono de determinado posicionamento ou até mesmo sua superação.

Por isso, o art. 927, § 2º, do CPC preceitua que deverão ser realizadas audiências públicas, com participação de pessoas, órgãos ou entidades que contribuam na rediscussão da tese jurídica firmada. Isso impede que sejam realizadas mudanças aleatórias, devendo haver a participação de especialistas e da sociedade no processo de alteração do precedente.

Assim, possibilita-se a intervenção do amicus curiae, conhecido como auxiliar do juízo, regulamentado pelo art. 138 do CPC, que pode se tratar de entidade pública ou privada que pratica atividades relacionadas àquelas que estão sendo discutidas no precedente, com a finalidade de expor argumentos, dados, estatísticas ou elementos que contribuam na convicção dos julgadores.

564 “De maneira também louvável posicionou-se o Ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.306.393/DF. Nesse recurso, discutiu-se se os técnicos a serviço das Nações Unidas, contratados no Brasil para atuar como consultores no âmbito do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, estariam isentos do imposto de renda sobre os seus rendimentos. Não obstante o Ministro Relator ter sustentado que não fariam jus à isenção do imposto de renda, pois seu enquadramento jurídico deveria ser o mesmo dos peritos de assistência técnica dos organismos internacionais, adotou o entendimento contrário assentado em julgamento anterior (REsp 1.159.379/DF, rel. Min. Teori Albino Zavascki). De maneira expressa, consignou o Ministro Mauro Campbell que ‘considerando a função precípua do Superior Tribunal de Justiça – de uniformização da interpretação da legislação federal infraconstitucional – e, com a ressalva do meu entendimento pessoal consignado no voto-vista que proferi no REsp 1.159.379/DF, deve ser aplicada ao caso a orientação firmada pela Primeira Seção.’ Com esse posicionamento, votou de acordo com interpretação diversa da sua convicção pessoal, para que se cumprisse o desígnio maior do tribunal do qual faz parte” (CIMARDI, Cláudia Aparecida. Idem. p. 153). Verificar, ainda: MITIDIERO, Daniel Op. Cit. p. 99-93.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 484

Portanto, o art. 927, §2º, do CPC é importante porque resguarda os princípios da isonomia e da segurança jurídica, ao garantir inclusive a participação de entidades legitimadas à tutela de interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, as quais possuem representação adequada para poder influir no debate.

Além disso, a modificação da tese jurídica, contida em enunciado de súmula, jurisprudência pacificada ou adotada em julgamento de casos repetitivos, exige fundamentação adequada e específica (art. 927, § 4º, CPC), que considerem os princípios da segurança jurídica, da proteção, da confiança e da isonomia. Tais princípios também devem ser considerados quando da alteração da tese jurídica, para que os Tribunais, justamente para não causarem surpresas nem prejudicarem a boa-fé objetiva, possam modular os efeitos dessas modificações (art. 927, § 3o, CPC).

6. Vinculação aos precedentes judiciais

A força vinculante dos precedentes judiciais decorre da necessidade de manter estável, íntegra e coerente às decisões judiciais produzidas no sistema jurídico.

Contudo, para compreender o dever de obediência aos precedentes, cumpre destacar dois elementos que compõe a sua fundamentação: a ratio decidendi e a obiter dictum.

A precisa fixação do que constitui a ratio decidendi e a obiter dictum é relevante para se compreender a tese jurídica efetivamente decidida, a fim de fazer a comparação com o novo caso em apreciação, bem como encontrar o ponto de equilíbrio entre a manutenção da segurança jurídica e a evolução do pensamento jurídico565.

A ratio decidendi refere-se às razões de decidir, isto é, aos motivos que levaram os julgadores a tomar referida decisão. Trata-se da essência do pronunciamento, não se limitando ao dispositivo da decisão, uma vez que constituem todos os fundamentos essenciais para a correta compreensão da solução apontada ao caso precedente. A ratio decidendi é a regra de direito que foi utilizada como fundamento direto da decisão sobre os fatos específicos do caso, em que se fixou a decisão-paradigma566.

Em outras palavras, a ratio decidendi faz menção aos fundamentos determinantes da decisão, sem os quais não se teria deliberado da seguinte maneira como resposta ao caso em exame. Pode ser entendida, também, como o conteúdo essencial para a decisão judicial ser considerada como precedente.

Pelo Enunciado nº 173 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis, fundamento determinante é aquele, presente na decisão paradigma, capaz de resolver de forma eficaz a questão jurídica futura. Em decorrência, tem-se que os fundamentos

565 TOSTES, Natacha Nascimento Gomes. Op. Cit. p. 204.566 CAMBI, Eduardo; MARGRAF, Alencar Frederico. Op. Cit. p. 316.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 485

que servem para solucionar satisfatoriamente o caso precedente podem ser adotados na solução dos processos futuros.

O conceito de ratio decidendi é tão importante que o art. 489, § 1º, inc. V, do CPC considera não fundamentada qualquer decisão judicial (seja interlocutória, sentença ou acórdão) que apenas se limita a invocar um precedente sem identificar seus fundamentos determinantes ou que deixa de demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.

Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.460, considerou constitucional a Emenda Constitucional nº 45/2004 que exigiu que o triênio de atividade jurídica privativa de bacharel em Direito, para ingresso na carreira da magistratura (art. 93, inc. I, CF), deve ser comprovado no momento da inscrição definitiva (e não na posse). Mantidas as premissas fáticas e normativas da ADI nº 3.460, reafirma-se as conclusões da Corte (ratio decidendi) nos demais processos que versam sobre a mesma questão jurídica567.

Por outro lado, compreende-se por obiter dictum os argumentos da decisão que não influenciaram significativamente na solução encontrada. São os elementos úteis para assimilar o raciocínio apresentado na construção do precedente, embora não façam parte de seu fundamento jurídico. Portanto, integra o conceito de obiter dictum as afirmações que não têm o condão de interferir diretamente no dispositivo da decisão proferida e, por isso, não podem ser arguidos como fundamentos determinantes na apreciação fática de casos futuros a fim de demonstrar a presença de identidade entre eles568.

Por isso, quando uma determinada discussão é desnecessária à solução do caso concreto ou quando determinado argumento não foi aprovado pela maioria do tribunal, como justificativa para a solução dada a uma demanda, tais elementos não se prestam a compor a ratio decidendi e, portanto, não produzem efeitos vinculantes para julgados futuros569.

Em virtude disso, somente é elemento vinculante do precedente a ratio decidendi, possuindo a obiter dictum condão para meramente persuadir o seu aplicador. Nesse sentido, dispõe também o Enunciado nº 318 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “os fundamentos prescindíveis para o alcance do resultado fixado no dispositivo da decisão (obiter dicta), ainda que nela presentes, não possuem efeito de precedente vinculante”.

567  STF, RE 655265, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 13/04/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-164 DIVULG 04-08-2016 PUBLIC 05-08-2016.

568 CAMBI, Eduardo; HELLMAN, Renê Francisco. Precedentes e dever de motivação das decisões judiciais no novo código de processo civil. Cit. p. 423.

569 MELLO, Patrícia Perrone Campos; BARROSO, Luiz Roberto. Trabalhando uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/artigo-trabalhando-logica-ascensao.pdf. p. 23. Acesso em 8 de fev. de 2017.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 486

A ratio decidendi expressa os fundamentos relacionados aos fatos relevantes do caso e que tenham contado com voto da maioria dos membros do colegiado. Já a obiter dictum se constitui no argumento que, apesar de constante na fundamentação do acórdão, afigura-se prescindível ao alcance do resultado fixado em seu dispositivo ou que não contou com o voto da maioria dos membros do órgão colegiado.

Por exemplo, a 2º Turma do STJ não conheceu do recurso especial nº 1.554.594/MG, fundado no art. 105, inc. III, alínea “a”, da CF, em razão de não ter havido comprovação da divergência entre o acórdão recorrido e o paradigma, fazendo incidir os arts. 541, par. ún., do CPC-1973 (equivalente ao art. 1.029, § 1o, do NCPC) e 255 do Regimento Interno do STJ, bem como o Súmula 284 do STF570. Apesar disso, o Ministro Relator Herman Benjamin acrescentou, em obiter dictum, que a responsabilidade civil do Estado pela morte de detento em delegacia, presídio ou cadeia, é objetiva, pois é dever do Estado prestar vigilância e segurança aos presos sob sua custódia571.

Desse modo, a obiter dictum refere-se ao que “foi dito de passagem”, a título de exemplificação, para enriquecimento do julgado, não constituindo, porém, a coluna de sustentação da decisão tomada572.

Contudo, a obiter dictum não é de todo irrelevante para o sistema jurídico, já que pode servir para indicar futura orientação do tribunal ou de elemento de persuasão em posterior tentativa de superação do precedente. Também o voto vencido de um julgamento colegiado pode caracteriza-se como obiter dictum, sendo relevante para fundamentar eventual recurso subsequente573

.

No entanto, a parte da decisão que realmente importa, para fins de vinculação do precedente judicial, é a ratio decidenti que equivale à rule, aquela abstratamente considerada que adquire força de lei para todos. Em outras palavras, a eficácia obrigatória dos precedentes é, a rigor, a eficácia obrigatória da ratio decidendi574. Assim, não é todo o conteúdo de uma decisão precedente possui igualdade de peso para o julgamento de casos futuros575.

570 “É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência de fundamentação na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia”.

571 STJ, REsp 1554594/MG, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/09/2016, DJe 29/09/2016.

572 TOSTES, Natacha Nascimento Gomes. Op. Cit. p. 204.573 REDONDO, Bruno Garcia. Op. Cit. p. 406.574 MARINONI, Luiz Guilherme. Eficácia vinculante - a ênfase à ratio decidendi e à força obrigatória

dos Zprecedentes. Revista de processo, vol. 184, jun. 2010, p. 26.575 LADEIRA, Aline Hadad; BAHIA, Alexandre Melo Franco. O precedente judicial em paralelo a

súmula vinculante: pela (re)introdução da faticidade ao mundo jurídico. Revista de processo, vol. 234, ago/2014, p. 279.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 487

Entretanto, conseguir distinguir dentro de uma mesma decisão os fundamentos determinantes e os que não são essenciais para a solução da divergência não é uma simples tarefa.

A complexidade dessa análise é maior, quando cada integrante do órgão colegiado do tribunal dirige seu voto com fundamentos completamente diferentes dos demais, com linhas argumentativas distintas576. Afinal, o tribunal pode chegar a um consenso sobre a solução a ser dada à situação apreciada, mas divergir quanto aos fundamentos determinantes dessa decisão.

Desse modo, a ratio decidendi deve ser analisada em correspondência com a questão fática e jurídica que foram solucionadas na decisão paradigma, envolvendo o exercício hermenêutico e argumentativo.

Com efeito, a complexidade para identificar dentro do caso concreto a(s) ratio decidendi e o(s) obiter dictum impossibilita a formulação de conceitos precisos e objetivos, sendo que, pela ausência de exatidão, muitas vezes, o reconhecimento de cada um destes institutos deve se dar pela negativa; ou seja, estabelece-se o que seria a ratio decidendi, recaindo a obiter dictum na esfera residual.

Apesar de os tribunais terem o dever de uniformizar a jurisprudência e de respeitarem os precedentes judiciais, o direito, em uma sociedade em constante transformação, é dinâmico e precisa acompanhar o desenvolvimento político, econômico, cultural, tecnológico e social.

Por isso, é importante compreender as hipóteses de distinção (distinguishing) ou de modificação (overruling), total ou parcial, dos precedentes.

Quando o precedente judicial é elaborado, a solução nele apontada refere-se ao caso concreto posto à apreciação. Com isso quer-se dizer que, no momento de sua criação, o precedente não possui a intenção de resolver casos futuros, uma vez que a decisão judicial se adéqua às peculiaridades e especificidades da demanda sob exame. Assim, a decisão judicial será considerada precedente quando em momento posterior outros órgãos judiciais resolverem adotar a tese nele manifestada, competindo a eles verificar se o precedente arguido pela parte se aplica ou não à causa posta em discussão.

O precedente judicial exterioriza uma regra universal e abstrata e, em consequência, é capaz de ser aplicado como critério de decisão a casos futuros, mas, para isso, deve estar presente a identidade fática entre a decisão paradigma (precedente) e o caso ulterior. Portanto, é papel do julgador averiguar se existe identidade entre o caso julgado e o posto em julgamento, ou, ainda, se há diferenças fática e/ou jurídica entre ambos. Incumbe-lhe dizer se existe ou não precedente, razão

576 BERTÃO, Rafael Calheiros. Op. Cit. p. 351.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 488

pela qual conclui-se que é o intérprete dos casos posteriores quem cria o precedente577.

A questão de saber se uma determinada situação é igual ao precedente é situação de extrema importância, pois nenhum caso é igual ao precedente sob todos os aspectos. A igualdade pode residir no fato de a situação coincidir em certos pontos essenciais, o que, por força da interpretação e da argumentação, pode ser suficiente para, com um raciocínio baseado na analogia, dar extensão geral à decisão judicial anterior, adotando-a como precedente, com a finalidade de decidir o caso sucessivo da mesma forma que o anterior578

.

Por outro lado, a decisão anterior não servirá de precedente judicial para o caso concreto subsequente quando entre eles desigualdades em pontos essenciais. Nesta hipótese, afasta-se o entendimento consagrado anteriormente

e outra solução deverá ser encontrada, independentemente da tese jurídica consubstanciada no precedente.

O chamado distinguishing consiste em relativizar os precedentes de acordo com peculiaridades do caso concreto, justificando assim uma aplicação diferenciada579

. Por meio do distinguishing, opera-se profunda cognição e pesquisa entre o caso posto em exame e os anteriores, para se averiguar se a situação fática-jurídica é diversa ou similar da anteriormente decidida. Caso os pontos essenciais de ambos os casos sejam diferentes, afasta-se a aplicação do precedente, surgindo uma nova solução jurídica580

.

Com efeito, aplicar um precedente envolve a individualização dos pressupostos fático-jurídicos essenciais que dão vida aos casos e a incessante busca por semelhanças ou distinções relevantes581

.

Embora não incida na solução de determinado caso concreto, o precedente judicial continua a existir e a ser válido. O que ocorre é apenas a sua não aplicação na resolução da causa presente, por conter características distintas que impedem o compartilhamento da mesma ratio decidendi. Dessa forma, a aplicação do distinguishing não significa a superação ou a revogação do precedente invocado pela parte, nem, tampouco, que a decisão anterior está equivocada582

.

577 “Como se vê, o magistrado, ao decidir determinada questão, cria duas normas jurídicas: (a) uma, de cunho individual, consistente na solução específica para a controvérsia concreta que lhe foi posta para resolução, única apta a ser alcançada pela coisa julgada material; e (b) outra, de caráter geral, fruto da interpretação e compreensão dos fatos envolvidos na causa e de sua adequação ao direito positivo, identificada como a ratio decidendi do precedente” (REDONDO, Bruno Garcia. Op. Cit. p. 404).

578 OLIVEIRA, Pedro Miranda; ANDERLE, Rene José. Op. Cit. p. 311.579 CHULAM, Eduardo. Op. Cit. p. 118.580 TOSTES, Natacha Nascimento Gomes. Op. Cit. p. 212.581 MITIDIERO, Daniel. Op. Cit. p. 99-116.582 OLIVEIRA, Pedro Miranda; ANDERLE, Rene José. Op. Cit. p. 315.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 489

É importante salientar que dificilmente um caso concreto será absolutamente igual ao outro. O que importa na análise da aplicação do precedente é se as circunstâncias fáticas gerais sejam análogas, podendo existir aspectos acessórios diversos583

. As causas serão por vezes análogas, podendo divergir em alguns pontos e coincidir em outros, sendo que tais semelhanças e diferenças podem ser obtidas a partir da identificação da ratio decidendi do precedente judicial, de onde se extrai os fundamentos determinantes e aspectos marginais (obiter dicta). Esse exame constitui a tarefa da interpretação das decisões paradigmas e sua aplicação para o caso em julgamento584

.

Assim, somente é possível fazer as distinções (distinguishing) entre o caso em exame e o precedente judicial por meio da interpretação analógica, capaz de averiguar se existem ou não semelhanças substanciais. Vale repetir que,

para a vinculação do precedente judicial, não há a exigência de identidade absoluta entre ambos os casos, pois o que importa é a presença, na causa posta a apreciação, de fatos jurídicos que estavam presentes no caso precedente. Portanto, se os casos são suficientemente similares, aplica-se o precedente; do contrário, deve-se distingui-los585.

O distinguishing tem como objetivo impedir que o sistema de precedentes passe a significar o engessamento das decisões judiciais e transformasse o juiz em um mero repetidor do entendimento dos tribunais sem análise fática-jurídica criteriosa586

. O distinguishing confere ao juiz do caso presente margem de liberdade, para reconhecer variações no contexto em que esteve inserido o caso que originou o precedente e o que aguarda sua análise, possibilitando que a aplicação do precedente judicial seja ajustada de acordo com a verificação da presença dos elementos essenciais entre eles.

No entanto, o distinguishing apenas poderá ser utilizado pelo órgão julgador, quando vier acompanhado da rigorosa exposição dos fundamentos que o levaram a afastar o precedente, assumindo o ônus argumentativo de demonstrar que a situação fática alvo de apreciação é distinta daquela sobre a qual o precedente foi elaborado ou que o fundamento jurídico constante no presente caso não foi incorporado no precedente.

Quando o magistrado analisa a equiparação ou a distinção de causas semelhantes ou diferentes, faz nascer uma decisão que, para ser válida (ou não arbitrária), precisa ser adequadamente fundamentada. O juiz tem o dever de indicar, na fundamentação, a razão pela qual os casos são diferentes, não bastando simples

583 CAMBI, Eduardo; MARGRAF, Alencar Frederico. Op. Cit. p. 326.584 LADEIRA, Aline Hadad; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Op. Cit. p. 284.585 MITIDIERO, Daniel. Op. Cit. p. 99-117.586 CAMBI, Eduardo; MARGRAF, Alencar Frederico. Op. Cit. p. 321.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 490

invocação de caso diverso587. É, por isso, que o art. 489, §1º, inc. VI do CPC, traz a

previsão do distinguishing, determinando que não será considerada fundamentada a decisão judicial que deixar de seguir precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. Dessa maneira, é na fundamentação que se poderá saber se o precedente foi aplicado conscientemente ou se tratou de uma mera reprodução mecânica588

.

A aplicação dos precedentes não é automática. Pelo contrário, depende de uma análise técnica do julgador, para possibilitar o desenvolvimento do direito, ao se definir se o precedente se aplica ou não ao caso concreto589

. Portanto, a técnica do distinguishing não tem como objetivo dar margem ao juiz para ignorar a aplicação de precedentes que não lhe convém, uma vez que deve o magistrado, assim que identificar a distinção, agir com prudência e fundamentar plenamente o não aproveitamento do precedente invocado pela parte, a fim de garantir a estabilidade, integralidade e coerência do sistema jurídico.

No entanto, é possível que, em face das transformações culturais, científicas, tecnológicas, sociais, econômicas ou políticas, o precedente judicial outrora criado não seja mais compatível com as circunstâncias fáticas e jurídicas da sociedade contemporânea. Diante disso, o precedente pode se mostrar superado e, neste caso, deve ser abandonado.

Denomina-se overruling à técnica utilizada para que se reconheça a existência de fundamento suficiente para o abandono do precedente anteriormente estabelecido, devido às mudanças nas razões que autorizaram sua edição590.

Haverá a necessidade de adequação da decisão judicial às mudanças produzidas no ordenamento jurídico, visto que o posicionamento até então adotado deixou de ser o mais justo a exigir mudança na interpretação e na aplicação do direito para ajustar-se às novas realidades.

Assim, conforme o Enunciado nº 322 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, “a modificação de precedente vinculante poderá fundar-se, entre outros motivos, na revogação ou modificação da lei em que ele se baseou, ou em alteração econômica, política, cultural ou social referente à matéria decidida”.

A revogação dos precedentes deve ser norteada pelas mudanças na concepção geral do direito e na congruência com as relações sociais, aliada à necessidade de se preservar valores essenciais, com especial ênfase para a segurança jurídica e a

587 MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 99-119.588 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Compreendendo os “precedentes” no Brasil: fundamentação de

decisões com base em outras decisões. Revista de processo, vol. 226, dez./2013, p. 365.589 BERTÃO, Rafael Calheiros. Op. Cit. p. 366.590  TOSTES, Natacha Nascimento Gomes. Op. Cit. p. 212.

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 491

igualdade591.

Além disso, a incongruência social, isto é, quando o precedente se torna errado, injusto ou antigo, e a inconsistência sistêmica, quando os fundamentos do precedente a ser superado passam a ser incompatíveis com os fundamentos afirmados em outros precedentes, também são fatores que podem justificar o overruling592.

Todavia, a superação de um precedente apenas poderá ocorrer após profunda avaliação de sua necessidade e também da impossibilidade de se prosseguir com a aplicação da tese jurídica. Cabe ao órgão julgador um ônus argumentativo maior593 de demonstrar que o precedente vigente conduz a injustiças e que a realidade social não é mais a mesma da época de sua criação. As razões relevantes capazes de levar à superação do precedente firmado594 precisam integrar a fundamentação da decisão, sob pena dela não ser válida, por não cumprir o disposto no art. 489, § 1º, inc. VI, do CPC.

Ademais, no art. 927, § 3º, do CPC, prevê que o Supremo Tribunal Federal, os tribunais superiores e as cortes que julgarem casos repetitivos, quando modificarem a sua jurisprudência dominante, podem modular os efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica. Com efeito, para que haja mudança de posicionamento consolidado, os tribunais devem agir com probidade e boa-fé objetiva, a fim de impedir abusos e alterações desnecessárias e prejudiciais aos litigantes, tendo como norte evitar a estagnação do direito, mas sem causar modificações abruptas que possam causar mais instabilidade social. Nesse sentido, o Enunciado nº 320 do Fórum Permanente de Processualistas Civis aponta que “os tribunais poderão sinalizar aos jurisdicionados sobre a possibilidade de mudança de entendimento da corte, com a eventual superação ou a criação de exceções ao precedente para casos futuros”.

O art. 927, § 4º, do CPC acrescenta e enfatiza que, além de fundamentação adequada e específica, a modificação da jurisprudência deve considerar os princípios da segurança jurídica, da proteção, da confiança e da isonomia595

.

591 LADEIRA, A. H; BAHIA, A. M. F. O precedente judicial em paralelo a súmula vinculante: pela (re)introdução da faticidade ao mundo jurídico. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 234/2014, p. 275-301, ago. 2014.

592  OLIVEIRA, Pedro Miranda; ANDERLE, Rene José. Op. Cit. p. 322.593 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Op. cit. p. 380.594 MITIDIERO, Daniel. Op. Cit., p. 99-112.595 “Assim, dispositivo expresso do projeto estabelece que devem os tribunais velar pela uniformização

e pela estabilidade da jurisprudência, devendo editar enunciados de sua súmula de jurisprudência dominante e seguir a orientação firmada em precedentes de seus próprios órgãos internos e dos tribunais superiores. A mudança de entendimento sedimentado na jurisprudência há de observar a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando a estabilidade das situações jurídicas” (CUNHA, Leonardo Carneiro. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de processo, vol. 193, mar./2011, p. 259).

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No art. 927, § 5º, do CPC, por sua vez, está consolidado o dever dos tribunais em dar publicidade a seus precedentes, devendo tal divulgação ser preferencialmente realizada pela rede mundial de computadores. Cumpre destacar que a maioria dos tribunais já disponibiliza em suas páginas na internet

os enunciados de súmula editados. Essa regra jurídica é uma exigência do bem comum e está interligada com os princípios da publicidade e da eficiência, estampados no art. 8º do CPC, dirigido aos juízes, quando for realizar a aplicação do direito ao caso concreto.

Diante do exposto, o novo CPC destacou a força obrigatória dos precedentes judiciais, trazendo técnicas de distinção e de alteração, em sintonia com os valores jurídicos da segurança jurídica e da igualdade.

7. Conclusão

A nova legislação processual civil buscou extirpar do ordenamento jurídico pátrio decisões judiciais discricionárias e minimizar o fenômeno da variação da jurisprudência, criando técnicas processuais tendentes a alcançar a universalização de teses jurídicas, pela imposição do dever de uniformização dos julgados e da força vinculante dos precedentes judiciais.

A padronização de teses jurídicas vem acompanhada da necessidade de garantir a publicidade, o contraditório e a motivação das decisões judiciais em todo o seu processo de formulação, para que se amplie o grau de legitimação da jurisdição.

Assim, é importante que o sistema de precedentes se efetive no Brasil, a fim de que a prestação jurisdicional se torne mais célere e a sociedade possa identificar qual é a interpretação das normas jurídicas, o que confere maior estabilidade, integridade e coerência ao ordenamento jurídico, elevando o grau de previsibilidade e segurança jurídicas.

Portanto, o novo CPC modernizou o direito processual brasileiro, por meio de técnicas jurídicas que podem contribuir com o descongestionamento do sistema judicial, ampliar a resolução consensual dos conflitos, tornar o serviço público de Justiça mais eficiente e elevar o cumprimento dos deveres e dos direitos.

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