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SIMPÓSIO 3 - Grécia e Roma - da Antiguidade à Atualidade Verdade e justiça em Antígona - Ataide José Mescolin Veloso - (Aeronáutica– CBNB / UNISUAM) RESUMO: Tomando como ponto de partida a tragédia grega Antígona, de Sófocles, este trabalho procurará estudar as questões da verdade e da justiça, sob a ótica da hermenêutica de Martin Heidegger. Questionar os parâmetros que servem de base para tais noções tem sido uma das preocupações fundamentais dos profissionais do direito; entretanto, a fim de que se consiga, de fato, chegar à essência das questões, faz-se necessário que se pense radicalmente. Palavras-chave: Verdade; Justiça; Hermenêutica; Sófocles; Heidegger. 1. INTRODUÇÃO Entre os operadores do direito, ainda predomina uma espécie de pacto de submissão ao sistema jurídico vigente, com raras chances de superação do campo estreito de mobilidade política evocado por ele. As decisões judiciais, muitas vezes, ainda têm como sustentáculo a letra fria da lei, como se esta pudesse dar conta do vigor de ambiguidade intrínseco à realidade. A prática jurídica é vista por muitos como a aplicação objetiva das normas existentes ao caso concreto em análise. Considera-se um corpo teórico abstrato prévio, passível de ser transposto e adaptado sempre que emerge um conflito. A cultura jurídica positivista enfatiza o entendimento do Direito como norma, pretensamente neutro aos valores, o que permite que surja um distanciamento em relação à realidade social. Como consequência disso, fica difícil, quase sempre, que o Direito cumpra o seu ideal maior: o exercício da justiça e a realização da paz social. Em outras palavras, a concepção do Direito como um mero sistema normativo frustra o ideal que sustenta o seu fundamento e a sua própria existência. Reconhecer o papel e o valor da norma é muito diferente de considerá-la o referencial único na interpretação de um caso. Superar o campo conceitual e metódico da lei implica introduzir no Direito o exercício do pensamento essencial. É imprescindível reaver a serenidade dinâmica do Pensamento Essencial, aquele que é o próprio vigor do sagrado e que, portanto, permite acesso a ele. Para tanto, deve-se abandonar o pensamento que se detém na objetividade dos entes e que se deixa absorver pela objetividade e praticidade do real. O Pensamento Essencial é aquele que, pensando a verdade do Ser, dá acesso a uma das possibilidades de experienciação com o sagrado. É esse pensamento que produz uma modificação no modo de ver as coisas. 2. DESENVOLVIMENTO Em geral, a ideia de “justiça” é representada de maneira bem precisa como a Justitia, com olhos vendados e segurando uma balança, em uma das mãos, e uma espada na outra. A sua principal característica – a imparcialidade – é simbolizada pelos olhos vendados. Já a balança está diretamente associada à ideia de igual medida e ponderação. A espada, por sua vez, remete a um caráter definitivo e à autoridade de

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SIMPÓSIO 3 - Grécia e Roma - da Antiguidade à Atualidade

Verdade e justiça em Antígona - Ataide José Mescolin Veloso - (Aeronáutica–

CBNB / UNISUAM)

RESUMO: Tomando como ponto de partida a tragédia grega Antígona, de Sófocles, este trabalho procurará estudar as questões da verdade e da justiça, sob a ótica da hermenêutica de Martin Heidegger. Questionar os parâmetros que servem de base para tais noções tem sido uma das preocupações fundamentais dos profissionais do direito; entretanto, a fim de que se consiga, de fato, chegar à essência das questões, faz-se necessário que se pense radicalmente. Palavras-chave: Verdade; Justiça; Hermenêutica; Sófocles; Heidegger. 1. INTRODUÇÃO

Entre os operadores do direito, ainda predomina uma espécie de pacto de submissão ao sistema jurídico vigente, com raras chances de superação do campo estreito de mobilidade política evocado por ele. As decisões judiciais, muitas vezes, ainda têm como sustentáculo a letra fria da lei, como se esta pudesse dar conta do vigor de ambiguidade intrínseco à realidade. A prática jurídica é vista por muitos como a aplicação objetiva das normas existentes ao caso concreto em análise. Considera-se um corpo teórico abstrato prévio, passível de ser transposto e adaptado sempre que emerge um conflito. A cultura jurídica positivista enfatiza o entendimento do Direito como norma, pretensamente neutro aos valores, o que permite que surja um distanciamento em relação à realidade social. Como consequência disso, fica difícil, quase sempre, que o Direito cumpra o seu ideal maior: o exercício da justiça e a realização da paz social. Em outras palavras, a concepção do Direito como um mero sistema normativo frustra o ideal que sustenta o seu fundamento e a sua própria existência. Reconhecer o papel e o valor da norma é muito diferente de considerá-la o referencial único na interpretação de um caso. Superar o campo conceitual e metódico da lei implica introduzir no Direito o exercício do pensamento essencial.

É imprescindível reaver a serenidade dinâmica do Pensamento Essencial, aquele que é o próprio vigor do sagrado e que, portanto, permite acesso a ele. Para tanto, deve-se abandonar o pensamento que se detém na objetividade dos entes e que se deixa absorver pela objetividade e praticidade do real. O Pensamento Essencial é aquele que, pensando a verdade do Ser, dá acesso a uma das possibilidades de experienciação com o sagrado. É esse pensamento que produz uma modificação no modo de ver as coisas.

2. DESENVOLVIMENTO

Em geral, a ideia de “justiça” é representada de maneira bem precisa como a Justitia, com olhos vendados e segurando uma balança, em uma das mãos, e uma espada na outra. A sua principal característica – a imparcialidade – é simbolizada pelos olhos vendados. Já a balança está diretamente associada à ideia de igual medida e ponderação. A espada, por sua vez, remete a um caráter definitivo e à autoridade de

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um juízo. A partir de tal representação, a justiça é uma virtude político-moral elevada, que torna possível a medida das relações sociais, políticas e jurídicas.

Uma visão mais crítica, todavia, lançará dúvidas em relação a tal paradigma de justiça. É imprescindível que se averigue em que a autoridade normativa do Direito se acha fundamentada. O conceito de justiça varia de acordo com os valores de cada época e cultura. Outro questionamento emerge também a partir da venda nos olhos, que diz respeito à natureza da representação de imparcialidade do Direito: este arroga a defesa do que é justo, sem fazer distinções entre as pessoas.

Caso o pensamento racional se distancie das experiências humanas de caráter concreto, é bem provável que este fique obliterado no que concerne às diferentes necessidades dos indivíduos. Deve-se preconizar uma noção a respeito de justiça social e política que se fundamente moralmente, evitando, assim, não só a rejeição de cegueira diante do contexto, como também a rejeição de um contextualismo que não reconhece a base universal de toda reivindicação por justiça. (FORST, 2010: 8)

A fim de que se esclareça melhor a justiça como questão, torna-se necessário um estudo que desça ao cerne de toda discussão. É imprescindível resgatar a força de alguns vocábulos, valorizando, assim, a dinâmica e a envergadura de um pensamento originário. A estruturação geral da sociedade é delimitada por meio de divisões que se fazem notar por uma determinada quantidade de conceitos e normas que constituem um direito. Até mesmo as sociedades mais primitivas são guiadas por princípios jurídicos no que tange às pessoas e aos bens. Tais regras e normas são impressas no vocabulário de uma língua.

Muitos termos são encontrados para se referir ao “direito”; entretanto, estes são específicos de cada língua. Os mais importantes, todavia, acham-se ligados a itens do vocabulário comum e permitem que se constate uma especificação jurídica que remete à sociedade indo-européia. É possível encontrar um conceito que guarda importância desde o estado indo-europeu. Trata-se do conceito de “ordem”: o vocábulo é representado pelo védico rta e também pelo iraniano arta.

A etimologia do referido vocábulo remete a um dos eixos norteadores do mundo jurídico, moral e religioso dos indo-europeus – a Ordem, a qual tem o poder de governar não só a organização do universo, o movimento dos astros, a regularidade das estações e dos anos, como também as relações existentes entre os homens e os deuses, e dos homens entre eles mesmos. Tudo que diz respeito ao homem e ao mundo se une ao império da Ordem: ela é, destarte, o fundamento moral e religioso de qualquer sociedade. O universo se encontraria imerso no caos se ficasse distanciado de tal princípio.

Percebe-se a relevância desse princípio devido à enorme quantidade de formas lexicais que se derivam delas. No Avesta, ocorre a personificação da noção de ordem por meio de um deus, conhecido como Arta. Émile Benveniste chega à constatação de que, através de uma derivação sufixal de abstrato em –tu-, “o indo-iraniano constituiu o tema véd.rtu, av.ratu, designando especialmente a ordem nas estações, o período de tempo – e também a regra, a norma, de uma maneira geral”. (BENVENISTE, 1995: 102)

As formas supracitadas se ligam a uma raiz muito frequente em inúmeras estruturas fora do indo-iraniano: ar-. Tal raiz pertence ao gr.ararisko, que pode ter como significado “harmonizar, ajustar ou adaptar” – a esta se unem diversos derivados nominais, tais como: com.ti, lat.ars, arts, as quais remetem ao significado de “talento, disposição natural e qualificação”. Também se fazem presentes os elementos mórficos com-tu-, lat.artus (articulação), que se unem não somente aos radicais lat.ritus, que significa “rito ou ordenamento” e gr.artús – do genitivo ardu

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(ordenamento), mas também ao presente artúno (arranjar e equipar); com.-dhmo (junção, elo) e gr.árthron (membro e articulação).

Trata-se de uma noção de ordenamento ou ordem percebida em todas as esferas da sociedade. Tal ideia se aplicava a toda e qualquer parte de um conjunto, ainda que os elementos derivados tivessem se especializado de modos diversos. Desde o indo-europeu, havia um conceito de caráter geral, marcado por uma diversidade lexical, que procurava abarcar os mais diversos aspectos da ordem – o técnico, o religioso e o jurídico. Cumpre ratificar, entretanto, que cada domínio possuía termos distintivos. Destarte, o direito teve de receber expressões mais precisas e que exigem um estudo à parte.

Em primeiro lugar, verifica-se, em sânscrito védico, o radical dharma, cuja forma neutra era dharman, equivalente à lei. Seu sentido específico é “estatuto, maintenance” e, de acordo com as oscilações de contexto, pode remeter a “costume, uso, regra”. Esse vocábulo era largamente empregado na filosofia, na religião e no direito, contudo se limitava à Índia. A raiz indo-iraniana dhar- (manter firmemente) está associada à forma firmus, da língua latina, que tem base estrutural em –m, tal como dharman. Dentro dessa esfera de significação, a lei é aquilo que permanece, que é capaz de se estabelecer de maneira sólida.

O radical thémis também apresenta uma flexão arcaica que pode ser visto na poesia de Homero: o genitivo thémistos, cujo plural é thémista, thémistes, que foram normalizados em acus.thémin e gen.thêmitos. No que tange à questão da formação, thémis pode ser comparado ao avéstico dami-. Tal radical tem como significado “criador” e adquiriu a função de nome de agente.

A thémis é oriunda da divindade e tal acepção possibilita a compreensão e unificação de significados aparentemente distintos. No universo da epopéia, dá-se o nome de thémis à prescrição que estabelece os deveres e direitos de cada um, a partir do poder e autoridade do gêneos – independente de esse poder se referir à vida cotidiana doméstica ou a fatores especiais, tais como: combate, aliança ou casamento: “A thémis é o apanágio de basileús, que é de origem celeste, e o plural thémistes indica o conjunto dessas prescrições, código inspirado pelos deuses, leis não-escritas, compilação de ditos, de decretos pronunciados pelos oráculos, que fixam na consciência do juiz (no caso, o chefe da família) a conduta a seguir sempre que estiver em jogo a ordem do génos.” (BENVENISTE, 1995: 105)

A experiência essencial da verdade foi dada aos gregos como força de desocultação. O termo grego que designa essa experiência é alétheia, que a indica como não-encobrimento. Os gregos tiveram acesso ao esquecimento como uma força numinosa de ocultação e não como um fato psicológico. A palavra alétheia é melhor traduzida como des-ocultação ou não-esquecimento, o que evita que a experiência originária dos gregos seja confundida com o conceito fechado que a palavra “verdade” tem assumido. As revelações as quais as Musas permitem que se ouçam são, na verdade, des-velações. Por meio delas, seres e fatos se afastam do reino do esquecimento e os funda como manifestação.

Na maviosa voz das Musas é que a Memória recolhe o que brilha no momento em que é nomeado, é o não-ausente; entretanto, cabe lembrar que as Musas foram geradas pela Memória também como esquecimento. O ser das Musas, que é oriundo da Memória, faz com que estas sejam, ao mesmo tempo, esquecimento e memória, presença e ausência, luz e noite. “Porque as Musas são o Canto e o Canto é a Presença como a numinosa força da parusia: este é o reino da Memória, Deusa da antiguidade venerável, que surge da proximidade das Origens Mundificantes, nascida do Céu e da Terra.” (TORRANO, 1995: 26)

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Na obra, a verdade está a operar. Em toda a trajetória da metafísica, a ideia de verdade foi sempre associada à justeza de uma proposição, como se aquilo que é verdadeiro pudesse ser expresso por meio de um enunciado. Ou então, o verdadeiro é visto como oposição do que é falso, como é o caso do ouro falso. Verdadeiro é usado como sinônimo de autêntico, como aquilo que encontra uma correspondência no real e o real é o que na verdade é. Habitualmente, a verdade é vista como um ponto de convergência para o qual se dirige tudo que é verdadeiro. Para muitos, a essência da verdade está ligada a um conceito universal e genérico que representa o uno. Tal essência indiferente é, entretanto, a essência inessencial. A essência de alguma coisa consiste naquilo que o ente na verdade é. Só se consegue chegar a uma definição de essência verdadeira a partir da verdade do seu ser.

A verdade deve ser pensada partir da essência daquilo que é verdadeiro. É a desocultação do ente, Unverborgenheit, para os gregos, alétheia. Em sua essência, a verdade é não-verdade. Ela se encontra em um combate constante. A verdade é Lichtung, clareira, é um desvelamento que está a ocorrer. “Mas essa clareira do desvelamento do ente não é cena uniformemente aberta: o desvelamento só é em relação preservada com o velamento.” (DUBOIS, 2004: 172)

O combate entre terra e mundo não é Riss, um rasgão de um abismo. O combate é a intimidade que resulta da reciprocidade dos próprios combatentes, os quais são conduzidos pelo rasgão à sua unidade original a partir de um fundo único. O combate não só é Grundriss, um risco fundamental, mas também Auf-riss, um traçado que esboça os traços fundamentais do desocultar da clareira do ente. Tal rasgão conduz a contrariedade da medida e do limite a Umriss, contorno único que não permite que haja uma ruptura entre os adversários.

O combate que é conduzido ao rasgão é colocado novamente na terra e, assim, ele é fixado. O ser-criado da obra é o ser estabelecido na Gestalt: ela é a forma, a juntura na qual o rasgão está disposto. Forma, aqui, refere-se à Stellen, que é o estatuir, e também à Ge-stell, que é, na verdade, o conjunto de tudo aquilo que estatui. É desse modo que a obra se apresenta à medida que é instalada e produz.

Desde a Grécia Antiga, a questão da verdade tem ocupado lugar de destaque nas discussões filosóficas. Já na época de Platão, a filosofia estava preocupada com algumas questões que, de certa forma, já eram anteriores ao próprio pensamento platônico: O que a arte quer dizer? É ela capaz de ensinar uma verdade a respeito do mundo? Em todos os períodos da história, indagações semelhantes continuaram a preocupar os pensadores: Qual é de fato a medida? O homem? A razão? A arte? Nas tragédias gregas, autores como Sófocles colocaram em cena personagens cujo conflito evidenciava os jogos tensionais que advêm da questão da medida. É exatamente isso que ocorre em Antígona. Nas tragédias de Sófocles, os deuses se fazem presentes a todo instante; entretanto, estes agem de uma forma mais distante por meio de adivinhos e oráculos. Os deuses tinham papel preponderante na vida do homem grego: tudo o que acontecia no mundo era por única e exclusiva vontade dos deuses. Até no âmbito cultural isso ocorria, uma vez que as peças teatrais apresentadas na época eram festividades dedicadas aos deuses. Dentre as divindades presentes nas tragédias sofoclianas, destaca-se a figura mitológica das Moiras: três irmãs que determinavam o destino, tanto dos deuses, quanto dos seres humanos. Trata-se de três mulheres lúgubres, que eram responsáveis por fabricar, tecer e cortar o fio da vida de todos os indivíduos. Durante o trabalho, as moiras colocavam em ação a Roda da Fortuna – tear empregado na tecelagem de fios. As voltas da roda posicionavam o fio do indivíduo no topo, quando ele se encontrava

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em um momento de felicidade ou sucesso; ou no fundo, em possíveis períodos de desfortúnio. Assim, era decidido o destino do homem grego. As três deusas criaram Têmis, Nêmesis e as Erínias: pertencentes aos deuses primordiais (primeira geração divina). A tragédia é uma forma de drama, caracterizado por abordar temas sérios e dignos, os quais envolvem um conflito entre uma personagem ligada à nobreza ou à divindade. É derivada da rica tradição religiosa e poética da Grécia Antiga. Sua origem está associada aos ditirambos, cantos e danças em honra ao deus grego Dionísio. Tais apresentações extáticas e etilizadas foram criadas pelos sátiros, seres semelhantes a bodes que rodeavam Dionísio durante suas orgias. Os vocábulos gregos tragos (bode) mais odé (canto) combinaram-se e deram origem à palavra tragoidia (canções dos bodes), da qual se deriva a palavra tragédia. Um dois eixos temáticos que percorre Antígone é a questão da justiça: o conflito entre o Direito Natural e o Direito Positivo. De acordo com os antigos, havia um tipo de direito de origem divina, que era aceito ipso facto como costumeiro ou consuetudinário – o Direito Natural. Existia, também, um segundo tipo – o Direito Positivo – o qual assume forma jurídica nas leis determinadas pelo governante. Conforme já dito, na cosmovisão grega, a justiça guarda as leis eternas: para uns ela se mostra salutar e para outros, destruidora. Como é somente no íntimo dos limites que cada ação chega a um sentido, a justiça é salutar. Torna-se, entretanto, destruidora, sempre que alguém tenta se lançar para fora do seu campo de atuação, transgredindo, destarte, a ordem imposta pelo Cosmos. Tal ação se aproxima do aniquilamento ou da desarticulação completa. A partir dessa concepção, “as leis não são produções subjetivas do homem, elas se deixam desvelar justamente quando o homem ousa confrontar-se com a experiência mais abissal, mesmo quando se trata da mais perigosa e promissora que o homem pode vir a experimentar.” (WRUBLEVSKI, 2010: 39) Na narrativa sofocliana, depois da desgraça de Édipo, o trono é disputado pelos seus dois filhos: Etéocles e Polinice. Este contrai matrimônio com a filha de Andrastos, rei de Argos, e ambos planejam um ataque contra Tebas, conhecido como “Sete contra Tebas”. Devido à guerra não levar a lugar nenhum, os dois irmãos optam por disputar o trono com um duro combate, onde ambos morreram. Em Antígone, a concepção de justiça que emerge revela o que de mais terrível o homem é capaz de realizar. No conflito trágico, o homem tanto pode se destruir como vir a se encontrar. Ao acolher um mistério terrificante e indevassável, o homem consegue se sobrepor à sua medida, recebendo, assim, um poder que o potencializa de forma infinita. Diante das forças da natureza – rajada sul, o oceano cinza, as ondas amplirrumorejantes e a Terra infatigável –, o homem se assombra ano a ano. Incontáveis são as maravilhas do universo, porém o homem ocupa um lugar de destaque entre todas elas, chegando a ensombrar o próprio assombro. (SÓFOCLES, 2009: 42) Como o homem aprende a linguagem e o que é pensar, ele é o único ser capaz de distanciar-se do seu centro e ultrapassar os princípios norteadores de sua existência. A sua força criativa se faz notar não só quando se deixa mover pelo “afã das leis que civilizam” (SÓFOCLES, 2009: 43), mas também no momento em que visa à transformação de forças destruidoras em oportunidades de criação. Tendo acesso à sabedoria através do sofrimento, ele se aproxima de sua identidade. Em Sófocles, o ser vigora em toda a sua plenitude e o homem se orienta por tal vigor. O maravilhamento e o espanto podem ser notados com maior clareza na e pela tensão,

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advinda da obra de arte. O embate entre vida e morte, entre o vil e o sutil é travado quando, nas sendas da arte, o homem procura ultrapassar o habitual: Seu domínio dos meandros da arte Transcende o esperável; ora o vil ora o sutil se encaminha. Paladino das leis locais e da justiça que jura aos numes, encabeça a pólis; um sem-pólis se, truculento, comete o não-belo: Longe da lareira do meu lar, não divida comigo um único pensamento! (SÓFOCLES, 2009: 44) Entretanto, é somente no momento em que se conscientiza de sua nulidade no Cosmos, que o homem chega a perceber a incomensurável (des-) medida do seu ser. Assim, ele passa a dominar os elementos naturais e a extrair de seus recursos a dinâmica que sustenta a sua própria realidade. É no vigor da ambiguidade de tal desmedida que as relações existentes no Cosmos são postas em uma situação de perigo. Pensar o impossível é também lançar-se no movimento dessa desmedida;

Quem jura que o impossível inexiste? Pensar lança por terra a idéia fixa. Prometi a mim mesmo nunca mais Voltar, depois de ouvir o turbilhão ameaçador; mas como o imprevisível é o sumo do prazer, eu vim, ciente do meu perjúrio. (SÓFOCLES, 2009: 45) O tema supremo para o homem grego era estar diante do Cosmos e ser lançado em meio à desmedida e arbitrariedade do querer. De fato, o que mais importava era a questãodo direito que instaura em qualquer ato praticado pelo homem e não a necessidade interior da ação. Desde o início da peça, Antígona demonstrou estar deveras preocupada com a reação e intervenção dos deuses no que tange à morte dos seus dois irmãos Etéocles e Polinices, bem como ao decreto promulgado por Creonte:

Homossanguínea irmã, querida Ismene, será que Zeus nos poupa, enquanto formos vivas, de algum dos males que abateram Édipo? O rol do horror está completo: dor, despudor e desonor, que dissabor nos falta? O general promulga um decreto à cidade toda. Sabes algo de seu teor ou desconheces os males que inimigos têm causado a quem ambas amamos? Nada ouviste? (SÓFOCLES, 2009: 25)

O conflito de Antígone abre caminho para a discussão dos fundamentos do Direito – não só no que diz respeito à base jusnaturalista, como também aos princípios juspositivistas. Uma leitura atenta do texto permite que se evidencie a tensão entre lei e justiça, assim como a existência de leis justas e injustas. Como para o positivismo jurídico a justiça está relacionada apenas à aplicação da norma ao caso concreto, tal problema não recebe especial atenção e não se torna objeto de pesquisa jurídica. O Direito Objetivo rejeita qualquer influência de elementos extra legem: predomina sempre o legalismo ou o codicismo. Para os adeptos do Direito Natural,

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entretanto, faz-se necessário haver uma aproximação com os imperativos do justo, o que não deve implicar um menosprezo pelo sistema de legalidade. A justiça deve, sim, lançar-se na dimensão de uma instância ética, indo além da ordem positiva, ocupando-se com juízo de valor. O jusnaturalismo estabelece uma conexão entre Direito e Moral, apontando sempre para uma ordem jurídica ideal, tentando chegar, desse medo, às origens dos princípios éticos e antropológicos que fundamentam o Direito. O Direito Natural é regido pelo princípio jus quia justum – ser justo é a própria essência do Direito, pois o Direito é o que é justo. A ilegalidade ou a desordem são preferidas à injustiça. Já segundo os adeptos do Direito Positivo, o princípio que norteia as decisões jurídicas é jus quia jussum. O Direito é aquilo que é exigido enquanto direito. Os juspositivistas dão prioridade à injustiça, em detrimento da ilegalidade ou da desordem. A concepção de justiça que norteia o comportamento de Antígone, desde o início, não impede que ela leve a sua decisão às últimas consequências. Ela tem consciência de que o plano que será colocado em prática causará a sua morte. Nem mesmo os argumentos consistentes de Ismene conseguem fazer com que ela desista da ideia de enterrar o seu irmão Polinice: Nada te impinjo, mas rejeito o auxílio que por ventura me pretendes dar. Age como quiseres, que eu me empenho no enterro! Serei grata se morrer amando quem me amou, concluindo ao lado dele o rito. Mais vale o tempo no ínfero do que na companhia de quem vive: o eterno circunscreve o meu repouso. Desestima o que os deuses sobrestimam! (SÓFOCLES, 2009: 28) Depois da desgraça que ocorreu a Édipo, Etéocles e Polinice passam a disputar a posse pelo trono de Tebas. Há uma luta e os dois irmãos sucumbem no mesmo dia. O tirano Creonte, então líder de Tebas, decide prestar homenagens póstumas a Etéocles e impedir que o suposto traidor Polinice seja enterrado em solo pátrio.

A protagonista, movida por um amor fraternal e por leis naturais internas superiores a qualquer regime político e ditatorial, opta por dar sepultura ao corpo do irmão, impedindo que este fique exposto às aves carniceiras. Para ela, a glória maior reside em enterrar o seu irmão não obstante o furor de Creonte contra tal ato. Ela não se envergonha de honrar um consanguíneo: “Mas quem alcançaria glória maior que a minha, ao sepultar meu irmão Polinices? Se o temor não lhes roubasse a voz, concordariam comigo. Agir, falar o que bem queira são vantagens de que o tirano goza. (SÓFOCLES, 2009: 51)

De uma forma arrogante e opressora, Antígona é interrogada por Creonte a respeito do desparecimento do corpo. O líder se considera duplamente desrespeitado: primeiro, porque desrespeita uma lei vigente e segundo, devido à atitude criminosa vir de uma mulher. “Tu, que inclinas a resta aonde pisas, confessas tê-lo feito ou nega tudo?” / Tens o desplante de pisar em normas?”

Em resposta, Antígone afirma que o decreto de Creonte carece de força, uma vez que não foi proferido por Zeus, nem por outra divindade. Na sua visão, é impossível que um deus determine algo dessa natureza. Para ela, há preceitos divinos perenes, ágrafos, que não são de ontem, pois sempre existiram. “Não pretendo submeter-me ao tribunal divino por temor à petulância de um mortal. Sabia que morreria, mesmo sem o anúncio; o inverso me surpreenderia.” (SÓFOCLES, 2009:

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49) O seu senso de justiça, superior a lei dos mortais, permite que ela enxergue a morte como um ganho. Ela considera o fim precoce um benefício para todos que sobrevivem em um ambiente destituído de escrúpulo: “Quase indolor é a moira derradeira, se comparada à dor de relegar ao relento o cadáver de um irmão. Não sofro dessa dor. Se alguém julgar insano o modo como agi, bem mais insano que esta insana é quem me diz.” (SÓFOCLES, 2009: 49)

Tal passagem é considerada pela crítica literária uma das mais significativas da tragédia de Sófocles. Destemerosamente, Antígone afronte a cólera do próprio rei. Ao rebelar-se contra o decreto e regozijar-se com a morte iminente, a heroína defende a tese de que os deuses demandam que ritos idênticos sejam aplicados a todos os mortais. No momento em que Creonte declara que jamais perdoará um traidor, Antígone retruca que não nasceu para compartilhar o ódio, mas sim o amor.

Uma característica comum nos heróis sofoclianos é a obsessão por valores ideais, o que não significa que sejam modelos de comportamento humano. A dificuldade em se adequar a um mundo regido por regras de caráter ambivalente contribui para que venham à tona a fragilidade e a grandeza de tais personagens. O isolamento em que se colocam é tão grande que estes chegam ao ponto de demonstrar total desinteresse pelos posicionamentos dos seus interlocutores. É tal postura radical que os torna personagens trágicos e dignos de admiração. “Faz disso teu escudo, que eu erijo um sepulcro ao irmão que tanto admiro”. Esta é a resposta de Antígone diante da tentativa de sua irmã Ismene: “Não é que eu destime, mas careço de estofo para contrapor-me ao povo”. (SÓFOCLES, 2009:29) Caso os personagens de Sófocles demonstrassem ser mais maleáveis, o seu heroísmo cairia por terra. Tão vigorosa é a noção de justiça que rege as ações de Antígone que nem mesmo a condição pré-nupcial possibilita que ela reavalie a sua decisão. Uma aura quase sobre-humana reveste o seu distanciamento. Guiando-se por princípios de uma tradição familiar, ela passa a lutar contra a força dos deuses e dos Cosmos: “Problema meu sofrer as punições, com meu projeto louco. O que eu suporte não há de tornar a morte ignóbil”. (SÓFOCLES, 2009:30) Creonte, monarca de Tebas, é regido por princípios completamente distintos dos de Antígone. A tragédia que abate a sua casa ocorre devido ao fato de ter endurecido o seu posicionamento, demonstrando, assim, um comportamento despótico, e não, como pode se pensar, por não permitir que o enterro de Polinices se realize. Creonte chega a estabelecer uma ligação direta entre a morte de Édipo e a de seus dois filhos, afirmando que os três mereceram apreço idêntico e que a moira seria responsável pelo destino trágico da família. Ponderar o que a lei determina e as circunstâncias em que um conflito se deu (no caso da tragédia, a morte de Polinices) não faz parte da visão jurídica de Creonte. O que a letra da lei determina é a bússola à qual ele se apega no momento de uma decisão crucial:

Fiel a tal princípio, decidi sobre os dois mortos o que segue: Etéocles, tombado no combate em prol da urbe, lança de vulto, jaz oculto em túmulo, honrado como hão de ser heróis de seu calibre, enquanto Polinices, o irmão, um pústula que torna ao lar desejoso de atear o fogaréu e de ferir a ferro a terra ancestre e os numes tutelares, desejoso ademais de sorver o sangue irmão

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e encabeçar tebanos subjugados, não obterá exéquias. Proibido chorar por ele! A céu aberto, informe, aves e cães degustam sua carne. Os sórdidos jamais receberão de mim as regalias de um honesto. Quem nutre pela urbe amor, merece o meu louvor na vida e no pós-morte. (SÓFOCLES, 2009: 35)

Creonte se aproxima muito mais da figura de um general do que da de um estadista. Apegando-se à rígida lei de Tebas, age como um tirano insensível. A sua visão a respeito de si mesmo e dos fatos que o circundam é distorcida por uma concepção equivocada a respeito de poder e de justiça. As suas falas acham-se repletas de generalizações banais, frases prontas que poderiam se aplicar a qualquer situação: “O lucro ilude o homem e o arruína” (SÓFOCLES, 2009: 36), “A pena é a paga a quem só apraz a prata” (SÓFOCLES, 2009: 42), “Não sabes que o cabeça dura tomba precocemente e o aço temperado na chama, hiper-rijo, é o que primeiro descasca e se estilhaça?” (SÓFOCLES, 2009: 49), “Ao vil não cabe o lote do homem íntegro” (SÓFOCLES, 2009: 52), “Nem morto um inimigo vira amigo” (SÓFOCLES, 2009: 53) e “Há campos virgens, prontos ao plantio.” (SÓFOCLES, 2009: 57).

Além disso, nos seus discursos, fazem-se presentes diversas expressões ligadas ao universo militar: “Ele devasta a cidadela, arranca a gente da morada, instrui e incita as índoles mais insuspeitas a todo tipo de empreitada sórdida!” (SÓFOCLES, 2009: 40), “Quero detalhes do flagrante: o como!” (SÓFOCLES, 2009: 46), “Tens o desplante de pisar em normas?” (SÓFOCLES, 2009: 48), “Não se permite ao servo que alce o voo do pensamento.” (SÓFOCLES, 2009: 50)

O seu comportamento é obtuso e grosseiro, principalmente quando se dirige a pessoas que são subalternas a ele, como por exemplo, o guarda: “Pois desembucha logo e vai embora!” (SÓFOCLES: 2009, 38), “Poupa-me de elucubrações esdrúxulas, se não queres passar po néscio, além de esclerosado! É insano achar que um deus vá se ocupar de um traste.” (SÓFOCLES, 2009: 39) e “Será que não percebes como estorvas? / Oh, céus! Um palrador fala comigo!” (SÓFOCLES, 2009: 41)

Até mesmo quando trava um diálogo com Hemon a respeito da pena que imputará à Antígone não percebe o vazio que permeia as suas sentenças generalizantes. “A decisão do pai deve ocupar lugar central no coração do filho.” (SÓFOCLES, 2009: 61) Creonte declara a Hemon que, em qualquer tipo de questão, quer seja justa ou injusta, é necessário que a urbe ceda ao homem que a entrona. Ele classifica o comportamento de Antígone como anárquico e, segundo ele, a anarquia reúne o que existe de ruim, permitindo a destruição de cidades e de moradias, enquanto a antianarquia consegue salvar inúmeros corpos de cidadãos corretos. (SÓFOCLES, 2009: 62)

Em contrapartida, Hemon, que é visto como ingênuo e imaturo pelo líder Creonte, profere palavras revestidas de sabedoria. Em seu discurso central, Hemon faz menção ao que torna possível a distinção entre homens e animais: o pensamento. Em suas veredas e (des-) veredas, o homem, enquanto humano, jamais deve se afastar da paisagem do pensamento. Hemon afirma que, apesar de ter pouca idade, é capaz de raciocinar e que jamais o ser humano deve abdicar da razão:

O pensamento, pai, que aflora no homem,

é o dom maior que o deus nos deu. Se falas corretamente ou não, evitarei comentar, mas carece de beleza o que mais das gentes preconiza?

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É meu papel notar o que se diz e o que se faz, as críticas contrárias a ti. O teu olhar oprime a massa, a cuja voz me poupo de aludir. Pela penumbra escuto o pranto que a urbe carpe em favor da moça, e a opinião de que ela é vítima de uma injustiça, sujeita a perecer por ato nobre, ao rejeitar que o irmão tombado em pugna virasse pasto de cachorro ou pássaro, sem túmulo, carniça de rapina. Um prêmio em ouro, não merece Antígone: - É a fala obscura que em silêncio alastra-se. (SÓFOCLES, 2009: 62 e 63) 3. CONCLUSÃO

Em face do exposto neste trabalho, seguindo os passos da hermenêutica, é possível ouvir o apelo exercido pela linguagem, apelo este que coloca o homem diante de questões como a interpretação originária (aquela que visa chegar a origem das questões), a justiça, a verdade e a obra de arte. A obra de arte, como força inauguradora de sentido e como espaço tensional entre o que se mostra e o que se vela, revela seu vigor à medida que é capaz de permanecer intacta diante das intempestivas vicissitudes do tempo e ainda permitir que se inaugurem interpretações surpreendentes.

É exatamente isso o que se dá com a tragédia Antígone, de Sófocles. Escrito no período antigo da Grécia, o conflito entre Creonte e Antígone a respeito de que noção de justiça deve nortear o comportamento do homem tem despertado diferentes tipos de leitores e espectadores, bem como aguçado a curiosidade e a criatividade daqueles que se debruçam sobre o gênero dramático, levando diversos diretores de teatro a uma proposta de remontagem ou adaptação da peça. Uma das últimas releituras da referida tragédia foi a de Edson Zille, da companhia “O cortejo”, realizada no ano corrente, na cidade do Rio de Janeiro.

Ao optar por encenar Antígone, o diretor decide não interferir na estrutura clássica. Ele se orienta por diversas tradições da peça, tendo como fio condutor a tradução de Friedrich Hölderlin. Seu ponto de vista e as sensações suscitadas são resultantes de leituras rigorosas dos estudos de Kathrin H. Rosenfield sobre a tragédia. Na remontagem, busca-se privilegiar uma visão menos polarizada na construção do texto. Antígone e Creonte transcendem o campo simbólico. Creonte não é apenas um tirano sedento de poder e Antígona não é somente uma irmã dedicada que se sacrifica pelo dever religioso. Em relação à sua montagem, Edson Zille declara: “O ritmo da palavra é claro, a própria palavra e se conteúdo são o foco do prazer em encenar Antígona. A simplicidade da cena me parece, em muitos momentos, a chave para que a palavra e seu ritmo sejam percebidos com sua devida força.”

Para a hermenêutica jurídica, estudar a tragédia Antígone é de considerável importância, uma vez que tal estudo permite que o operador do direito vislumbre uma noção de justiça que se projeta para muito além do Direito Positivo (aquele que se norteia única e exclusivamente pela letra da lei e pela norma). O fio condutor da ação dramática da protagonista evidencia que existem leis naturais imutáveis e irrefutáveis, ligadas à Moira e ao Cosmos, que ecoam no interior de cada ser humano. Afastar-se delas implica uma

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dissolução de si mesmo: um caminho que conduz ao esfacelamento, um eterno sem-retorno.

A partir de tal ruptura, implode-se um conceito fechado e predeterminado de verdade. Não existe verdade absoluta. É a obra de arte, no combate entre mundo e terra, no jogo tensional entre velar e desvelar que inaugura a verdade. A verdade é a mútua oposição entre clareira e velamento – só lhe pertence aquilo que é denominado a disposição. Ela não existe em um determinado lugar nas estrelas para, em algum momento, chegar a acomodar-se no sendo. É unicamente a abertura do ente que permite a existência de um lugar cheio de presença. A clareira da abertura bem como a disposição no aberto se pertencem mutuamente. Elas são o mesmo acontecer da verdade, acontecer este que se projeta historicamente e de múltiplas maneiras.

REFERÊNCIAS BENVENISTE, Émile. O vocabulário das instituições indo-européias: poder,

direito, religião. (vol. 2). Trad. Denise Bottmann e Eleonora Bottmann. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Trad. Bernardo Barros Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. FORST, Rainer. Contextos da justiça: filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo. Trad. Denilson Luís Werle. São Paulo: Boitempo, 2010.

SÓFOCLES. Antígone. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2009. TORRANO, Jaa. Teogonia — a origem dos deuses. Estudo e Tradução. São

Paulo: Iluminuras, 1995. WRUBLEVSKI, Sérgio. A justiça na Antiguidade grega: uma reflexão sobre Platão. Teresópolis: Daimon Editora, 2010.

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O herói trágico de Tropa de Elite - Bárbara P. Uliano Shinkawa (IFPR – Paranavaí) RESUMO: Este trabalho analisa o protagonista dos filmes Tropa de Elite, Roberto Nascimento, pela perspectiva trágica. Baseado no gênero da tragédia, no trágico, na ética e arte poética aristotélica, o estudo verifica o percurso trágico e a hybris, suscitada pelo personagem nas obras. Palavras-chave: Tragédia, Trágico, Hybris, Herói trágico.

Admitir que os filmes Tropa de Elite reacenderam a indústria cinematográfica brasileira não é difícil e também é bastante prazeroso observar tal feito. Sem qualquer ranço xenófobo, ouvir os elogios sobre os filmes estrangeiros deixava o brasileiro um pouco carente da produção local e a obra de Padilha fez com que a população passasse a enxergar, sem exageros, com outros olhos os dizeres “filme brasileiro”. Apesar de no primeiro filme ocorrer o vazamento da obra devido à pirataria, a quantidade de pessoas que lotaram as salas de exibição superou todas as expectativas.

Igualmente o segundo filme foi um verdadeiro estrondo e em todos os sentidos. Trouxe uma problemática ainda maior e gerou, sem dúvida, no público uma grande tensão diante dos conflitos expostos pelo enredo, além de abarrotar os cinemas de todo o país mais uma vez.

Os filmes oferecem várias possibilidades de análise. Entre tantas igualmente atraentes, este artigo irá abordar a trajetória do Capitão e depois Tenente-coronel Nascimento pelo viés da tragédia e do trágico.

A priori, aborda-se brevemente a tragédia e o trágico. A seguir, parte-se para a trajetória de Nascimento nos filmes e, por fim, analisa-se o personagem à luz da tragédia e da filosofia do trágico.

1. A tragédia grega: algumas considerações A tragédia, gênero profícuo no século V a.C., teve na Grécia antiga

importância incontestável como forma de expressão daquele povo. Nos festivais gregos, a tragédia atraia um público considerável. Tanto que seu fascínio permeou o tempo e ela se tornou objeto de estudo de vários pesquisadores de renome. Um dos primeiros que considerou estudar a tragédia foi Aristóteles.

Em Arte Poética, Aristóteles faz uma análise sobre o gênero em questão bastante completa. Em seu estudo elenca categorias essenciais para um bom texto de tragédia. Uma delas é aproximar o gênero do ser humano e vê-lo como poesia e não como filosofia. Como bem observa Most, (2001, p. 26), ao analisar Poética, “as personagens que a tragédia traz ao palco se meteram em dificuldades porque cometeram vários tipos de erros evitáveis [hamartemata] — um treino filosófico apropriado teria sem dúvida alguma, lhes poupado de muitos aborrecimentos”.

Além da questão teleológica, a catarse (katharsis), alcança destaque na obra. A tragédia teria um efeito catártico no público e essa liberação de emoções pouco apreciáveis, por assim dizer, faria com que as pessoas ali presentes se livrassem, de certa forma, de seus devaneios, da hybris, daímōn e voltassem ao seu estado de cidadãos normais, pela óptica aristotélica, pessoas dotadas de ética.

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Mesmo sendo estético o olhar de Aristóteles para a tragédia, não pensasse o leitor, que em Poética há um manual de como se fazer tragédias, pelo contrário, Aristóteles faz observações de importância incontestáveis, mas não ensina a produzir tragédias. “É difícil imaginar que ele tivesse a intenção de ser um manual para a cadeira de criação literária (e não se tem notícia de nenhum tragediógrafo jamais tenha estudado com Aristóteles): as instruções não tem a intenção de ser pragmáticas [...] mas imanentemente indicar o que o exame analítico deveria revelar nos próprios textos”. (MOST, 2001, p.28)

De um modo próprio, a tragédia revelou em seu enredo a mudança de propostas políticas e legislativas na Grécia antiga. Na tragédia, o homem é tido como uma incógnita e como tal, sofre a transitoriedade de uma nova ordem a se formar: a transição entre a lei mítica (religiosa), e a consolidação da pólis através do Direito. O que figura como erro no seio familiar, ou pelo menos o que até então era tido como erro, pode não ser assim interpretado pela nova moral, ética: o Direito. Entretanto, uma falta cometida contra o Estado, além de atentar à coletividade, sem dúvida, afeta também o meio familiar do criminoso: “A tragédia [...] situa o homem em um solo totalmente movediço de valores e práticas, em que ele nunca mais poderá encontrar configurações cuja permanência seja garantia de bem-estar. O homem é colocado como um grande problema: sua maneira de proceder na vida em sociedade é um enigma de tal ordem de complexidade que acaba por não comportar soluções”. (MEICHES, 2000, p. 33-34).

Para os gregos daquele momento, a tragédia traz primordialmente o exemplo do que gera “a presunção ofensivamente arrogante de um contra muitos— aquela do herói trágico que se recusa a ser integrado à comunidade”. (MOST, 2001, p. 23). Dessa forma, o homem trágico vivencia um entremeio de duplo sentido na vida privada (religiosa) e social (política). Ou seja, apesar de opostos, os planos religioso e social são inseparáveis. O ambíguo perpassa todo o sentimento, o agir e a linguagem trágica. Agir, verdadeiramente não existe. Especificamente vontade na tragédia é inexistente. Na verdade, na época do vigor do espetáculo trágico, sequer havia a palavra vontade no léxico grego (Vernant, 2005).

Assim, o livre arbítrio não existia no sentido de um sujeito agente: “a noção de livre poder de decisão permanece estranha ao seu pensamento, não tem lugar na sua problemática da ação responsável” (VERNANT, 2005, p. 33-34). Tudo girava em torno de uma conduta exemplar. Aristóteles, em suas lições de ética, entende que o homem deve viver em sociedade porque isto o impede de se entregar aos vícios. O equilíbrio de atitudes é o ideal.Toda essa conduta ética visa o bem coletivo que, se alcançado, consequentemente, trará o privado. A tragédia afirma que “o interesse coletivo [é] irreconciliável com o individual” (MEICHES, 2000, p. 58). Em outras palavras, não se pode suprimir o bem coletivo em função do particular.

Por isso falar em vontade pode não ser apropriado. Mesmo no direito pretensamente laico, mas sem diretrizes consolidadas, absolutas, há o gérmen do religioso. Por exemplo, na legislação há duplicidade no enquadramento de crimes: “o verbo ‘hamartánein’ pode [...] designar [...] o delito intencional, objeto de processo na cidade. De outro lado, porém, a noção de não-intencional, implícita na idéia primitiva [...] de cegueira do espírito” (VERNANT, 2005, p.37). O intencional não se refere à vontade como para os modernos. O agente humano, logo mortal, “não é causa e razão suficientes de seus atos; ao contrário, é sua ação que, voltando-se contra ele segundo o que sobre ela os deuses dispuseram

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soberanamente [...] lhe revela a verdadeira natureza do que ele é, do que ele fez” (VERNANT, 2005, p.49).

Como então se pode julgar o homem? A partir da sua hamártēma tida como falta de espírito e, simultaneamente, moral. Essa poluição é bastante significativa no momento em que a hybris — o excesso, o descomedimento — manifesta-se no herói trágico. A falta de medida encaminha o herói ao julgamento mítico e político, porque esse se entrega, geralmente, a um desejo seu, individual e se sente poderoso para isso. Dá-se seu erro. Como que possuído pela atē, daímōn (delírio, loucura), ele age cego e “só no término do drama que tudo se esclarece para o agente. Ele compreende, sofrendo o que acreditava ter ele próprio decidido, o sentido real daquilo que se realizou sem que o quisesse, sem que o soubesse” (VERNANT, 2005, p.49).

Todo esse jogo de aparência e essência: acredita-se controlador, mas, na verdade, se é controlado, delineia certa dialética de duplos diversos. Entretanto, exatamente, isso a tragédia reúne, conforme Vernant (2005, p.15), “a lógica da tragédia consiste em ‘jogar nos dois tabuleiros’, em deslizar de um sentido para outro, tomando, é claro, consciência de sua oposição, mas sem jamais renunciar a nenhum deles. Lógica ambígua, poder-se-ia dizer”.

2. O trágico: breves apontamentos No Renascimento, a Poética de Aristóteles é redescoberta. A partir dela,

várias considerações são feitas sobre a tragédia. No decorrer do tempo e das análises, tragédia e trágico gradativamente separam-se. Mais que espírito da tragédia, o trágico torna-se pensamento e modo de existência.

Na verdade, quando Aristóteles, ainda na Grécia Clássica, humanizou a tragédia em seus escritos, ele já iniciou, de certa forma, a separação do elemento trágico da tragédia. A interferência religiosa foi deixada de lado e as ações pertencem ao herói. Com o enfoque dado às ações humanas esqueceu-se o enredo. Houve uma espécie de independência: o gênero da tragédia não era mais imprescindível para haver o trágico, agora concebido, filosoficamente, como algo inerente à existência humana. “A palavra ‘trágico’ pretende definir o estado do homem no seu caráter permanente e imutável, não é de fato difícil de entender sua invenção como um sintoma característico da modernidade” (MOST, 2001, p. 35).

A humanização das ações expostas na tragédia no período renascentista trouxe, consequentemente, uma outra interpretação para o vocábulo Tragikon. Compreensível, quando se pensa nos séculos que separaram essas obras do momento em que são redescobertas, além do fator perda de obras e/ou partes dela. Levando em conta outro contexto, tragikon, passou a designar eventos na vida humana enquanto na Grécia antiga, conforme Most (2001), ele era muito mais propício para textos literários que para a existência humana.

Incontestavelmente com o advento do Iluminismo, as razões antigas cujas estruturas mostravam-se na tragédia, foram superadas com a supremacia da razão. Perdeu-se a forma da tragédia, mas manteve-se o sentimento, o pensamento, o sopro dela transformado em modo de existência. Delineia-se, assim, o trágico: “nomear o trágico significa de imediato assumir o risco do labirinto, cair em uma rede de incertezas, ser levado através de um dédalo a procurar até mesmo linguisticamente figuras recompositivas de um conflito [...] que apaziguem temporariamente o perturbante contato do extremo” (VECCHI, 2001, p. 113).

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Segundo Finazzi –Agrò e Vecchi (2004), o trágico não mais se percebe somente como uma encenação, tornou-se pensamento e forma de se pensar. A experiência universal da dor, do conflito extremo constitui a modernidade.

Para Staiger (1974), o trágico se manifesta como o desmoronamento de uma situação plenamente estável e confiada. Em outras palavras “quando se destrói a razão de uma existência humana, quando uma causa final e única cessa de existir, nasce o trágico [...], há no trágico a explosão do mundo de um homem, de um povo, ou de uma classe” (STAIGER, 1974, p. 147).

O fato de estar exposto às arestas dessa vivência deixa o homem refém de seus pensamentos e ações. Na busca pelo entendimento de sua existência e/ou de determinada situação ele fica cada vez mais desorientado que satisfeito com as respostas, ou melhor, incógnitas que encontra uma vez que “o conflito moderno é assim destinado a manter-se aberto, contradição flagrante que não se fecha e não se resolve. [...] É um vazio[...] que deixa os restos de uma presença que foi tentada e não vingou, sinal de um esvaziamento, de um já era que é, na sua irrepresentabilidade, pensamento ausente mais do que ausência de pensamento”. (VECCHI, 2004, p.123).

O “universo ininteligível”, do qual falara Most, foi o espaço escolhido onde, o então indivíduo não mais via como excesso suas atitudes, como no século V a.C.. Esse mesmo espaço, com o tempo, parece que passou a desculpar toda e qualquer ação desmedida. A ética moderna amparou o sujeito em seus atos, transformando seus delitos e arrogância contra o bem comum, em algo passível (GUMBRECHT, 2001). A sensação forte de que absolutamente tudo é negociável e relativo avançou com voracidade incrível sobre a maneira de se encarar os acontecimentos sociais e particulares. Isso resulta em simplificação grotesca de fatos e na inutilidade de qualquer paradoxo.

O velho jogo da aparência X essência se mostra novamente e nesse meio ambíguo que é o da tragédia e do trágico ele se adequou perfeitamente. A cegueira causada pela hybris ou pela vileza (o cenário político brasileiro, o estado em que se encontra a saúde, a educação...) andará de braços dados com o ser e o parecer e independentemente de má interpretação do vocábulo tragikon, no que compete à origem, como defende Most (2001); desligado do texto, o trágico passou a designar as ocorrências e as ações catastróficas da vida humana, todavia, sem o peso da culpa trágica dos heróis da tragédia ática e em certos momentos: “Em um tempo em que o supremo valor e derradeira meta dos mais poderosos indivíduos humanos se tornaram ‘sobreviver politicamente’ (e acho que havia algumas razões para admirar esses indivíduos por fazê-lo), talvez não possamos deixar de ter saudades dos heróis capazes de morrer elegantemente — pelo menos no palco”. (GUMBRECHT, 2001, p.18).

Há, depois da busca por respostas, apenas a aporia própria do homem moderno, multifacetado, muitas vezes, cego e não temporariamente, mas dono da cegueira como condição de vida. Esse homem vive numa espécie de piloto automático. Quando se contesta esse modus operandi de vida, colocam-se as engrenagens da máquina-mundo em atrito intenso. É desse atrito que Camus falará em suas obras.

Camus aponta como saída para essa “não-vida” a revolta, o Absurdo. Segundo Camus (2007), uma das maneiras do nascimento do absurdo se dá quando o homem inicia a busca por respostas ou por algo que lhe preencha e que não é encontrado. “Se expressar aquele singular estado de alma em que o vazio se torna eloquente [...] em que o coração procura em vão o elo que lhe falta, ela é então um primeiro sinal do absurdo” (CAMUS, 2007, p. 27).

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Camus reconhece que o homem é um ser naturalmente contraditório. Mas uma das piores contradições humanas é viver esperando pelo amanhã. Afinal a efemeridade espreita a vivência humana. Sendo assim, o filósofo valoriza o viver um dia por vez, realizar hoje o que puder. Camus exprime o conceito do Carpe diem. “Se recuso obstinadamente todos os ‘mais tarde’ do mundo, é porque se trata em verdade de não renunciar à minha riqueza presente. Não me agrada acreditar que a morte se abre para outra vida. Para mim é uma porta fechada. Não digo que é um passo que cumpre dar e sim que é uma aventura horrível e suja”. (CAMUS, 1964, p.18).

Sendo o absurdo a atitude contrária a toda forma de resignação, eis porque Camus recusa a esperança. Aquele tipo de esperança que consiste em aguardar a melhora de algo futuramente. Também em acomodar-se com tal espera, “pois a Esperança [...] equivale à resignação. E viver não é resignar-se” (CAMUS, 1964, p.33). O absurdo é justamente o não acomodar, não esperar pelo futuro nem se resignar. O absurdo é ação contra um estado de coisas tacitamente aceitas que geram alienação, morte, violência e exploração de inocentes. Enfim, é escolher realmente por uma forma ativa de vida. “Há o bem e o mal, o vencedor e o vencido [...] mas mudar as coisas de lugar é tarefa dos homens é preciso escolher entre fazer isso ou nada” (CAMUS, 1964, p. 65/69-70). Dessa forma, cabe ao homem desejar saber de seu caminho.

E esse é, ao mesmo tempo, seu grande pecado, assemelhado ao de Édipo. Desejar saber, “este justamente, é o único pecado do qual o homem absurdo pode se sentir ao mesmo tempo culpado e inocente” (CAMUS, 2007, p. 61-62). Mas o mal, que é também a dor da solidão e morte, coloca o homem diante de si. Percebe-se então que o mal provém do próprio homem (GUIMARÃES, 1971). Resta ao homem superar esse entrave. Dessa forma, “a grande tarefa camusiana é a da superação do absurdo, o que não quer dizer sua eliminação” (GUIMARÃES, 1971, p. 34).

Assim, o absurdo configura-se como escolha consciente pela vida. Mesmo não agradável, é preciso amá-la. Tem-se uma esperança de enfrentamento à situação de abandono quando se opta pela vida. É por isso que quando trata de Absurdo, Camus deixa marcado em suas obras um grande “não” ao suicídio. Algo lógico dentro da esfera absurda, pois ele significa a eliminação e não superação do absurdo. Claro que a escolha pela vida pensada por Camus — livre de símbolos e convenções— exige coragem e atitude de enfrentamento. Se há recusa de esperança e de qualquer aparência, opta-se pela essência, pela realidade. “Num mundo sem sentido [...] sou obrigado a manter o caos reinante, mas este caos, este inferno, é meu lugar. [...] O confronto do homem com a realidade é favorável ao homem. Ele é o grande inocente. O homem absurdo tem que viver. Viverá sem apelo, sem esperança.[...]. Porém, um absurdo que nasceu da consciência tem que viver como verdade, logo, viver na consciência. É possível viver sem apelo? (GUIMARÃES, 1971, p. 59-60).

Tudo incide na revolta. Ela é responsável por manter o espírito consciente e dar ao homem a noção da realidade. Mesmo sendo uma negação, a revolta revela a afirmação de outro ponto e traça uma nova perspectiva. Assim, é nesse ambiente de conflito, mas nunca de desistência que o homem deve construir sua jornada de vida.

3. A trajetória do herói Como uma espécie de testemunha de si e dos fatos que o cercam, Nascimento

aparece para o público de maneira sutil (apenas a voz), mas já se apresenta, no início do primeiro filme, com um grande impasse entre oíkos (espaço familiar) e a pólis. Ele é pressionado pela mulher para que deixe o BOPE – Batalhão de Operações Especiais

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e esse, representando o âmbito social, a pólis, igualmente exerce pressão para que Roberto Nascimento não abandone suas atribuições.

Vê-se a partir desse problema a delineação de um impasse trágico e de um homem trágico, ambos no sentido do texto da tragédia. Tal impasse suscita aquilo que Aristóteles (2005, p.52), já entendia como um herói trágico: “homem que, não se distinguindo por sua superioridade e justiça, não obstante não é mau nem perverso, mas cai no infortúnio por em consequência de qualquer falta”.

Como já visto, o erro no meio familiar pode não atentar contra o Estado, mas um erro no âmbito social, certamente trará graves consequências ao convívio familiar. Roberto Nascimento parece pressentir isso, porque tenta conciliar dialeticamente essas arestas. Tal intento se arrasta até o momento em que o mesmo se percebe numa encruzilhada tal qual Édipo se achara. Nascimento então é obrigado a optar por um dos caminhos. Aparentemente existe a possibilidade de escolha, pois a mesma se anula, já que o capitão do BOPE é deixado pela mulher e pelo filho. Nessa situação de Nascimento “a noção de livre poder de decisão permanece estranha ao seu pensamento, não tem lugar na sua problemática da ação responsável” (VERNANT, 2005, p. 33-34).

Como o próprio capitão retrata: “a guerra sempre cobra o seu preço e quando preço fica alto demais, é a hora de pular fora. Se você deixa a hora passar, pode perder a última chance de sair inteiro”. E ele perdeu essa chance.

Empurrado pela decisão de outro, da mesma forma como Riobaldo é por Diadorim, o personagem trilha pelo caminho que cria como o correto. Basta lembrar as duras palavras do capitão para sua esposa. Como toda situação ambígua, aliás característica da tragédia, ao mesmo tempo em que a mulher o faz escolher, ele já se mostra tendencioso a seguir o caminho que depois acaba por perfazer. Entretanto, cabe ressaltar que no evento trágico, não há escolha individual, principalmente, se essa significar um acinte aos outros, à sociedade. Assim, se o batalhão é para Nascimento como a pólis, não resta dúvida de que “a cidade deve prevalecer para o melhor de todos, o que não exclui o pior para alguns: exatamente o que desenha para nós sua condição trágica” (MEICHES, 2000, p. 57).

Arrasado pelo abandono, mas ao mesmo tempo extremamente pressionado pelo mesmo, porque se resolvesse a questão de um sucessor, surgiria, a chance de ter a família novamente; Roberto Nascimento vai para a batalha urbana com toda sua garra, toda sua ira, a hybris.

A hybris alcança em Tropa de Elite um lugar de destaque. Todos os personagens em algum momento são acometidos por essa desmesura. Naquele instante que se dirigiu à esposa como um verdadeiro tirano defendendo sua pólis, provavelmente sem possuir noção exata dos seus atos, Nascimento deixa-se cegar pela hybris. A partir daí, guiado por ela, o capitão comanda perfeitamente seus homens, alcançando êxito nas missões. De certa maneira, inicia um processo de resgate do local (o Rio de Janeiro) em relação à peste (a violência, o bandidismo que o domina). Édipo fizera isso com Tebas e foi rei, Nascimento igualmente ascenderá a um trono.

Segundo Meiches (2000, p. 94), “é preciso esquecer para viver” e o personagem tenta alçar isso, no entanto, continua o autor: “mas é desse esquecido que o espetáculo trágico nos fala, afirmando que ele faz parte de nós”. Quando se esquece da família, ele desenvolve plenamente suas atividades de liderança, de homem forte, porém ele não elimina a família totalmente. Apesar de conquistar o respeito e a admiração de seu comando, falta para o capitão o aconchego do lar e na pretensão de recuperá-lo, a hybris o cega ainda mais.

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Édipo ao desvendar o segredo dado pela Esfinge, livrou Tebas da peste que a dizimava, tornou-se rei e o tempo passou. Nascimento conseguiu apaziguar seu coração e mente, dedicou-se ainda mais ao BOPE e o tempo fez seu papel: passou. Como em Tebas os transtornos voltam e para o capitão não é diferente.

O erro do soldado André Matias é a peste que retorna para Nascimento. O Sistema, do qual o Capitão já aborda no primeiro filme, torna-se muito mais intenso no segundo. Uma espécie de cidade “torta” é o Sistema, mas que com ou sem ética, interfere fortemente na vida de seus cidadãos.

Se por um lado a hybris é causa da cegueira do herói trágico, por outro é a força que o mantém vivo, que o impulsiona, é a revolta da qual Camus falara. O capitão é esse homem revoltado que se obstina contra todos os “não” do mundo, contra as injustiças, talvez de uma maneira não muito correta— a ética de Nascimento permite alguns excessos, mas ele não é desonesto, não admite desvios como corrupção, falta de caráter, por exemplo. Tanto quanto abomina o tráfico e quer exterminá-lo, ele quer extirpar a corrupção. Tomado pela cegueira, consequentemente pela revolta, o capitão prossegue sua saga no batalhão.

Não bastasse a corrupção alarmante que, como uma doença, apossa-se de todos os meios possíveis, os problemas familiares retornam com Fraga, marido de Rosane — ex-mulher do agora tenente-coronel. Esse vê aquele como um obstáculo, assim como via os estudantes (do primeiro filme) que prestavam “assistência social” na favela e usavam drogas.

Da mesma forma com que Matias desfaz do desespero de Maria devido ao desaparecimento dos amigos dizendo que não se preocupasse, pois “o Baiano [“dono” do morro] tem consciência social”; Roberto Nascimento, no segundo filme, não suporta a maneira como Fraga aborda a questão dos direitos humanos. Nesse caso, especificamente, há o fato do ativista ser casado com Rosane, e no primeiro filme, Nascimento deixa claro o intuito de reconquistar a mulher e o filho; e o outro é que Fraga se expressa de maneira a influenciar o filho do capitão, Rafael, a se indispor com o pai, que não se ajuda muito, pois passa muito tempo sem falar com o filho.

Fraga, em contrapartida, também não vê com bons olhos Nascimento. Infelizmente, tanto um quanto outro não passam de seres manipulados. Ao se dispor a negociar com o bandido rebelado, o ativista nem imagina que sua presença ali era única e exclusivamente para evitar uma mácula na imagem do governador.

A sede pelo poder é intensa e, na maioria das vezes, sem escrúpulos. Fraga percebe, antes do tenente-coronel, todas as ardilosas acrobacias de pessoas ligadas ao poder e em busca do poder. O ativista não é um cego que tudo vê, nem é tão nobre, também quer o poder — ingressou na política —; mas o fato é que Fraga é uma espécie de Tirésias que tenta abrir os olhos de Nascimento, (Édipo), mas igualmente fracassa. Também, o então capitão, André Matias, fala ao tenente-coronel sobre sua desmesura quando esse se denomina aquele pode fazer algo para melhorar o batalhão do BOPE.

Ao se tornar subsecretário, Roberto alcança o topo do sucesso em sua carreira. Alheio às vontades das pessoas que, naquela ocasião, comandavam o sistema, mas por apelo popular, assim como foi com Édipo. Pretende arrumar a cidade, mantê-la próspera e livre de pestes, mas mal sabe ele que “o desconforto da transitoriedade faz do passado um assunto que volta”. (MEICHES, 2000, p. 95).

O tenente-coronel, ao constituir a secretaria de segurança é, conforme Sterzi, (2004, p.111), “o homem inseguro de ainda sê-lo”, porque vive a angústia do “quase”. Vive a iminência de Ser, mas não alcança. Ainda mantendo os traços de um herói de tragédia, o personagem passa a adquirir as feições de quem se expõe ao conflito

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trágico moderno que é “assim destinado a manter-se aberto, contradição flagrante que não se fecha e não se resolve” (VECCHI, 2004, p.123). Vale lembrar a tentativa de “salvar” Matias — outra vez a tentativa, o quase e outra vez, só o quase.

O encontro com Rosane contribui para o desmoronamento do mundo criado pelo coronel. Para o subsecretário, a ex-mulher dizer: “você vai ter que falar a verdade para ele. Eu não vou mentir para o meu filho. Você vai ter que dar um jeito pra explicar pra ele o que você faz da vida, Beto”; soou como se ele fosse um bandido da pior estirpe. Como ele mesmo disse: “eu tinha que ficar deprimido, parceiro. Só que eu não fiquei. A minha missão era mais importante do que os meus problemas pessoais”. O coronel busca na sua hybris, na sua revolta, a força para continuar sendo um homem da pólis. Roberto transforma o BOPE e para a população é um herói, mas para o Sistema e para a falta cometida, que ele mesmo não sabe, Nascimento é um óbice grande.

Nascimento passa pelo mesmo tormento edipiano: o não saber. “Eu não sei o que está acontecendo. Eu vou descobrir” (Nascimento). A falta de conhecimento corrói o tirano de Tebas, assim como atormenta o coronel. Para Green (apud MEICHES, 2000, p. 33): “é preciso que se forje uma mistura estranha de uma certa responsabilidade do homem e de sua inocência no interior de um jogo que ele não controla mas que ele sofre”.

Se a falta de conhecer gera uma ânsia incontrolável pela descoberta, o conhecimento produz, talvez, dor pior. Não foi, senão pela dor da verdade, do conhecimento, que Édipo se mutilou. Tem-se aquilo que Vecchi (2004, p.116) aponta como “o elo da dor com o conhecimento, o conhecimento da dor [...] que é um núcleo fundamental do trágico”.

Tropa de Elite II se inicia pela narração de Nascimento relembrando fatos de quatro anos e retorna ao momento atual da ficção. Aliás, o fato de o personagem ser o contador nos dois filmes já agrega a ele característica trágica, conforme Mulinacci, (2004, p. 169), citando Zambrano: “a confissão não passa de um método com que a vida se liberta de seus paradoxos e vem coincidir consigo mesma”. Como num divã, o coronel Nascimento confessa suas angústias, perdas, em especial, àquelas ocorridas pelo não saber, ou pior, crer absolutamente que soubesse: “só no término do drama que tudo se esclarece para o agente. Ele compreende, sofrendo o que acreditava ter ele próprio decidido, o sentido real daquilo que se realizou sem que o quisesse, sem que o soubesse” (VERNANT, 2005, p.49).

Duramente, Roberto Nascimento começa a se inteirar da verdade, como toda grande verdade é. Ao perder seu amigo André, Nascimento começa a perceber que sua obra será sua perdição. É como se ele tivesse uma visão por meio de um oráculo. Vale lembrar as palavras do coronel: “É, eu ajudei a criar o monstro que ia me engolir. E o pior é que só uma pessoa percebeu isso... o deputado Diogo Fraga. [...] É claro que eu não queria ouvir o que o Fraga estava dizendo sobre as milícias. Era difícil separar as coisas. E por isso eu não consegui perceber o que estava acontecendo... [...] Eu demorei muito pra perceber que o meu trabalho no Governo não tinha nada a ver com segurança pública. Era tudo estratégia para ganhar voto”.

Mas o grande “soco”, como o subsecretário mesmo revela, é o atentado que era para Fraga e acerta em Rafael. Se até então a ira não fora liberada totalmente, agora seria. E num dos momentos emblemáticos do filme, quando o coronel espanca o político corrupto e seu ex-chefe, há um dos maiores instantes catárticos do filme. O expectador, dada uma distância segura, sente alívio e por que não dizer prazer, quando Nascimento volta à ativa.

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A dor do saber se uni ao estado instável de saúde do garoto e Nascimento chora a aporia irreparável dos extremos ao mesmo tempo que paga pelas faltas. Grande parte delas, sem saber que eram erros. Ele cria ter o controle, mas era o controlado. Há que se lembrar da lógica ambígua, o jogo em dois tabuleiros, como já dito por Vernant.

Roberto Nascimento é castigado, mas não carrega a culpa trágica, por isso, não fura os olhos nem comete suicídio ou é morto, permanece vivo e se recupera parcialmente, como o homem multifacetado que é. Com tantos meios e apoios para aniquilar os paradoxos da existência, como lembra Gumbrecht (2001), o herói tem fugas, cujas saídas eram inexistentes na tragédia. “Por outras palavras, [a estória romanesca] foge à radicalização das antinomias da tragédia [...] se contentando agora com uma atitude menos heroica, porém, talvez, mais produtiva e racional, conforme condiz com uma época dominada pelo espírito capitalista.” (MULINACCI, 2004, p. 165).

Nascimento, pode-se dizer, configura-se, ao final do filme, como um herói anti-trágico. Como reitera Mulinacci, (2004, p. 165), “diferentemente da tragédia, que punha o seu clímax na morte como ato conclusivo da crise trágica (no sentido de um ato que conclui a crise, concluindo-se nela), o desenrolar romanesco corre ao encontro do seu desfecho justamente através da superação daquela crise donde ele mesmo tinha origem...”.

A tragédia, enfim, se perde com Nascimento, pois o herói escapa do que seria o seu fim clássico, mas mantém o trágico na maneira que vive e com que se expressa especialmente ao final do segundo filme. O homem antes possuído pela revolta, parece ter deixado a pedra rolar ao pé da montanha e não foi buscá-la. Aparentemente, um Sísifo que cansou de seu castigo eterno. O homem multifacetado sobrepõe-se ao homem absurdo, mas mesmo assim não anula o trágico. A impossibilidade de aparar os extremos permanece. A essência trágica está justamente na duplicidade e como o homem sofre a ação que acredita perfazer. Não há clareza, a ambiguidade ganha realce e torna a situação do mundo dúbia. Qualquer que seja a interpretação há de se pagar, pois sempre haverá um excesso. Nas palavras de Meiches (2000, p. 94): uma “inconsciência para cada pedaço iluminado de uma história. Sempre haverá matéria-prima para reeditar o trágico”. Afinal, “missão dada é missão cumprida” (Tropa de Elite I). Referências ARISTÓTELES. Arte Poética. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005. CAMUS, A. Bodas em Tipasa. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964. _____________. O Mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. 4 ed. Rio de Janeiro, 2007. FINAZZI-AGRÒ, E.; VECCHI, R. Introdução. In: Vários autores. Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil. FINAZZI-AGRÒ, Ettori; VECCHI, Roberto (Org.). São Paulo: Unimarco Editora, 2004, p.05-08. GUIMARÃES, C. E. As dimensões do homem: mundo, absurdo, revolta; (Ensaio sobre a filosofia de Albert Camus). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971. GUMBRECHT, H. U. Os lugares da tragédia. Trad. Lawrence Flores Pereira. In: Vários autores. Filosofia e Literatura: o trágico. ROSENFIELD, K. H.; MARSHALL, F. (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 09-19. MEICHES, M. P. A travessia do trágico em análise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

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MOST, G. W. Da Tragédia ao Trágico. In: FINAZZI-AGRÒ, E.; VECCHI, R. (Org.). Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil. São Paulo: Unimarco Editora. 2004. p.20-35. MULINACCI, R. No encalço do trágico. A tragédia, o romance e os paradoxos da modernidade literária. In: FINAZZI-AGRÒ, E.; VECCHI, R. (Org.). Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil. São Paulo: Unimarco Editora. 2004. p. 161-74. STAIGER, E. Conceitos Fundamentais da Poética. Trad. Celeste Aída Galeão. Col. Biblioteca Tempo Universitário, 16, dir. Eduardo Portella. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974. STERZI, E. Formas residuais do trágico: alguns apontamentos. In: Vários autores. Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil. FINAZZI-AGRÒ, E.; VECCHI, R. (Org.). São Paulo: Unimarco Editora, 2004, p.103-111. TROPA de Elite. Direção.: José Padilha. Produção: Marcos Prado e José Padilha. Intérpretes: Wagner Moura; André Ramiro; Caio Junqueira; Maria Ribeiro; Fernanda Machado e outros. Roteiro: Rodrigo Pimentel, Bráulio Mantovani e José Padilha. Música: Pedro Bromfman. Rio de Janeiro: Universal Pictures do Brasil, 2007. 1 DVD (118 min), cor. Baseado na obra “Elite da Tropa” de André Batista; Rodrigo Pimentel e Luiz Eduardo Soares. TROPA de Elite II. Direção.: José Padilha. Produção: Marcos Prado e José Padilha. Intérpretes: Wagner Moura; André Ramiro; Maria Ribeiro; Irandhir Santos e outros. Roteiro: Bráulio Mantovani e José Padilha. Música: Pedro Bromfman. Rio de Janeiro: Zazen Produções/ Globo Filmes, 2010. 1 DVD (116 min), widescreen anamórfico, cor. Baseado na obra “Elite da Tropa 2” de André Batista; Rodrigo Pimentel, Cláudio Ferraz e Luiz Eduardo Soares. VECCHI, Roberto. O que resta do trágico. Uma abordagem no limiar da modernidade cultural brasileira. In: FINAZZI-AGRÒ, E.; VECCHI, R. (Org.). Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil. São Paulo: Unimarco Editora. 2004. p. 113-26. VERNANT, J-P. Édipo sem complexo. Trad. Filomena Y. H. Garcia. In: VERNANT, J-P; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia antiga. Trad. Anna L. A. A. Prado et alli. São Paulo: Perspectiva. 2005. p. 53-71. ____________. Esboços da vontade na tragédia grega. In: VERNANT, J-P; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia antiga. Trad. Anna L. A. A. Prado et alli. São Paulo: Perspectiva. 2005. p. 25-52. ________________________. O sujeito trágico: historicidade e transistoricidade. In: VERNANT, J-P; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia antiga. Trad. Anna L. A. A. Prado et alli. São Paulo: Perspectiva. 2005. p. 211-20. ____________. Tensões e ambigüidades na tragédia grega. In: VERNANT, J-P; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia antiga. Trad. Anna L. A. A. Prado et alli. São Paulo: Perspectiva. 2005. p. 07-24.

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Quando a Via Ápia cruza a Rua do Ouvidor: crônicas machadianas de antigamente - Brunno V. G. VIEIRA (UNESP)

RESUMO: O passado e o presente se misturam em Machado de Assis numa loucura mansa: “Subo a Via Ápia, dobro a Rua do Ouvidor”, diz ele em uma de suas colunas de A semana em 1892. Esta fala pretende explorar essa e outras citações da Antiguidade romana nas crônicas machadianas, revelando o modo crítico e contemplativo através do qual o autor se apropria da tradição clássica. Palavras-chave: Machado de Assis, Literatura Latina Clássica, Recepção

Um leitor de Machado de Assis que seja ao mesmo tempo latinista já pensou,

retomou, ou, mesmo, releu aquela declaração feita por Brás Cubas no célebre capítulo XXIV “Curto, mas alegre” de suas memórias

Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação... (ASSIS, 1960, p. 155-6)

Ora, o que se encontra aí é justamente uma postura bastante crítica sobre o uso

que as elites fazem do latim. Essa ideia do latim, como decoração, como simulacro de erudição, como verniz, ainda hoje se pode ler nos jornais e se ouvir nas conversações, como as páginas iniciais do livro Uma estranha língua de Alceu Dias Lima documentam largamente. É inegável que o próprio Machado fizesse uso desses ornamentos, mas quase sempre essa prática foge ao caráter contemplativo e servil de seus contemporâneos. Essa prática, como apontarei no decorrer deste breve artigo, é constituída no horizonte de reescritura e paródia habituais na escritura machadiana.

Quando classicistas contemporaneamente têm se debruçado sobre a recepção da Antiguidade no Novo Mundo, em um contexto que tem sido denominado de pós-colonial, é muito comum se chamar a atenção à situação diaspórica do legado clássico, uma vez que ele sai do “Velho Mundo” e migra para novos lugares e se mistura a novos povos e culturas. Nesse sentido, o meio em que Machado escreve está inserido em um contexto recentemente pós-colonial, isto é, se considerarmos o tradicional marco da nossa Independência como 1822. O modo como Machado recebe e reutiliza reminiscências greco-romanas tem algo daquilo que Lorna Hardwick chamou de “situação paradoxal dos textos clássicos em contextos pós-coloniais” (2007, p. 18). O autor brasileiro, por um lado, reutiliza a valiosa tradição clássica em sua sua criação no sentido positivo de um enriquecimento literário, por outro lado, ele também critica o uso do mesmo legado porque essa tradição às vezes se torna um instrumento de opressão da elite pós-colonial, como podemos auferir das declarações de Brás Cubas lidas acima.

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Identifica-se em Brás Cubas uma reflexão coerente e uma bem fundamentada crítica sobre os enganosos usos do latim, expondo ao ridículo um certo tipo de elite e de discurso. Todavia, a evidente seriedade de Machado ao se valer também de boas traduções latinas – como são as encontradas em sua biblioteca – revela que esse latim desonesto não era o único que pairava nas crônicas e na obra machadiana como um todo. Machado se coloca contra um mau uso do legado clássico, mas isso não o leva a bani-lo em absoluto. É verdade, que, a despeito desses maus usos, Machado não deixará de se servir de citações e reminiscências latinas e gregas, porque via nelas algo mais que pura erudição e moda.

Na descrição da casa de Matacavalos, no capítulo II de Dom Casmurro, ao falar das efígies de César, Augusto, César e Massinissa, que enfeitavam a sala, o narrador, considerando-as como algo démodé, diz: “já ela [a casa] estava assim decorada: vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas” (ASSIS, 1969, p. 68). No entanto, em uma leitura metaliterária dessa mesma passagem, fica evidente na própria citação dos célebres romanos, que, na nova literatura das Américas, havia lugar para o antigo, mesmo que ele, à primeira vista, figurasse ultrapassado e de mau gosto.

Poucos parágrafos depois, o mesmo narrador recobra em tom de invocação – e a inuocatio da epopeia está claramente aludida – os mesmos generais: “Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo” (1969, p. 69). Mesmo que essa interpelação a César, em vista do comentário anterior, soe irônica, escrever memórias “inevitavelmente” traz à mente de Dom Casmurro uma referência de um autor cuja autoridade no gênero é amplamente conhecida– o próprio Machado em crônica de 1863 traça uma resenha de uma tradução portuguesa da Guerra Gaulesa de César feita pelo maranhense Sotero dos Reis (ASSIS, 2008b, p. 102) Escrever memórias nos trópicos requer “inevitavelmente” César. As pinturas da sala de Matacavalos dão testemunho, portanto, do método de invocação dos clássicos exercitado por Machado. O passado clássico para ele surge entremeado por e refletido em muitos acontecimentos presentes, de modo que sua alusão e sua rememoração são recorrentes.

Uma outra semelhante declaração desse método vem em crônica já tardia de 11/11/1894 que se abre com o seguinte pensamento: “A antiguidade cerca-me por todos os lados. E não me dou mal com isso. Há nela um aroma que, ainda aplicado a coisas modernas, como que lhes troca a natureza” (ASSIS, 2008b, p. 1118). Depois dessa afirmação tocante, vem uma galhofa de alguém que parece querer desfazer o que disse:

Os bandidos da atual Grécia, por exemplo, têm melhor sabor que os clavinoteiros da Bahia. Quando a gente lê que alguns sujeitos foram estripados na Tessália ou Maratona, não sabe se lê um jornal ou Plutarco. Não sucede o mesmo com a comarca de Ilhéus. Os gatunos de Atenas levam o dinheiro e o relógio, mas em nome de Homero. Verdadeiramente não são furtos, são reminiscências clássicas.

O cronista, então, ao exemplificar seu pensamento anterior com a história dos

bandidos gregos, dizendo que seus atos não são furtos, mas reminiscências clássicas, parece estar banalizando sua tocante impressão anterior. É, novamente, a ironia

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machadiana querendo rir de si mesma e com o leitor. Todavia, na sequência da crônica depois de lembrar de uma tradução da Eneida recém lançada na Inglaterra; depois de resenhar sumariamente os Cenários, livro de poemas de um jovem que para ele tem “um banho enorme de antiguidade”; depois de dizer que os Estados Unidos compraram uma coleção recém-descoberta de papiros gregos; depois de dizer que a França adquirira duas estátuas de Apolo encontradas em Delfos; o cronista se sente na obrigação de retomar o pensamento que abria a crônica e diz:

A antiguidade é boa, mas é preciso descansar um pouco e respirar ares modernos. Reconheci então que tudo hoje me anda impregnado do antigo, e que, por mais que busque o vivo e o moderno, o antigo é que me cai nas mãos. (ASSIS, 2008b, p. 1119)

À beira dos sessenta anos Machado reconhece, como o jovem poeta de outrora reconhecera nos Versos a Corina, o verdor e o vigor da antiguidade no seu cotidiano. A própria crônica ademais ilustra em jornal o que já havia sido figurativizado ficcionalmente em Dom Casmurro, como apontado acima.

Nem sempre, todavia, esse contato com o antigo se dá positivamente. Se Machado parece ter em grande conta a literatura do passado, não mantém o mesmo apreço aos usos do latim por seus contemporâneos. Daí a paródia e a deturpação de frases e reminiscências latinas em suas crônicas.

O próprio Machado exerce essa deturpação em crônica de Bons dias! de 26/01/1889. O cronista que assumira em crônica de 06/06/1888 ignorar profundamente o latim, raramente fica sem citar máximas nessa língua e chega a abrir três crônicas com citações latinas. Talvez devido a essa “ignorância” – mas nem sempre só por ignorância – as máximas vêm alteradas. Em uma delas a atitude é declaradamente paródica. Ao invés da máxima vanitas vanitatum et omnia vanitas (Ecl. 1:2, “vaidade das vaidades e tudo é vaidade”), o cronista assustado com a febre amarela abre seu texto assim: sanitas sanitatum et omnia sanitas (“saúde das saúdes e tudo é saúde”). Segue-se a isso uma interessante reflexão sobre a prática das citações. Reproduzo esse começo:

Sanitas sanitatum et omnia sanitas. Gracioso, não? É meu; quero dizer, é meu no sentido de ser de outro. Achei esta paródia de Eclesiastes em artigo de crítica de uma folha londrina. Já veem que não são só os queijos daquela naturalidade que merecem os nossos amores; também as folhas, e principalmente as que escrevem com sabor e graça. A parte minha neste negócio é aplicar melhor a frase, porque lá só trata de um livro, e cá tratamos da cidade inteira. Creio que saiu-me um verso decassílabo: “e cá tratamos da cidade inteira”. Não me sobra tempo para transpô-la em prosa. Repito o que disse, e acrescento que já alguém afirmou que citar a propósito um texto alheio equivale a tê-lo inventado. Creio que é tolice; mas, fiado nela, é que ousei dizer no princípio que a paródia era minha. (ASSIS, 2008a, p. 223)

Note-se que Machado usa a licença de sua persona-cronista para versar sobre

a incorporação de citações em seu texto. Ele declara a paráfrase e a explica, confessando que seu reaproveitamento “aplicará melhor a frase”, de modo que alterar

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o contexto das citações é como as ter inventado, como parece perceber o próprio cronista. Curioso ainda nessas práticas paródicas é a necessária reescrita em latim que elas demandam. Evidentemente alguém que substitui vanitas por sanitas precisa ter uma noção razoável de latim, diferentemente do que declara a persona-cronista.

Há outros momentos de declarada reelaboração, o que mostra que, se Machado não traduzia diretamente do latim, ele ao menos possuía uma noção propedêutica, já que para estas interferências isso parece necessário. Vejamos dois exemplos de reescrituras de Machado em citações latinas:

Donde os filósofos podem concluir com segurança que as vozes não são a mesma coisa que os nabos. Credo, quia absurdum era a máxima de Santo Agostinho. Credo, quia carissimum é a do verdadeiro dilettanti. (ASSIS, 2008b, p. 310 [História de Quinze dias, 01/08/1876])

Imitemos este homem polido e econômico. Vamos acender os charutos no castelo de Hugo, enquanto ele arde. Vamos todos, havanas e quebra-queixos, finos ou grossos, e os mesmos cigarros, e até as pontas de cigarro. Nunc est fumandum. (ASSIS, 2008b, p. 612 [Balas de estalo, 28 de maio de 1885])

Na primeira passagem, apesar de a terminação -um de neutro singular

exatamente a mesma em absurdum e carissimum não é tão espontânea a inserção do superlativo carum/carissimum. No trecho de Balas de estalo, pode-se perceber uma paródia do famoso hemistíquio de Horácio nunc est bibendum, que abre a Ode I, 37. Neste caso a alteração do verbo bibere de terceira conjugação por fumare de primeira, também requer algum fundamento de latim, ainda que fumare, no sentido de fumar cigarros, seja latinório ridículo.

Um exemplo de uso desonesto da erudição latina, é manifestado em crônica da série Notas semanais de 01/09/1878. Diante da negativa da Câmara em atender a demanda do procurador do Judiciário para que fosse servido jantar quando as reuniões do Tribunal do Júri se estendessem até tarde, Machado é implacável na crítica:

Teve razão a Câmara, e teve-a duas vezes; a primeira, porque a lei o veda, e a obediência à lei é a necessidade máxima; a segunda, porque o jantar é, de certo modo, um agente de corrupção. Não me venham com sentenças latinas: primo vivere, deinde judicare. Não me venham com considerações de ordem fisiológica, nem com rifões populares, nem com outras razões da mesma farinha, muito próprias para embair ignorantes ou colher descuidados, mas sem nenhum valor ou alcance para quem olhar as coisas de certa altura. A questão é puramente moral; e a presença do rosbife não lhe diminui nem lhe troca a natureza. Não me venham também com o jantar na política; porque, em certos casos, não há incompatibilidade entre o voto e o prato de lentilhas; e, politicamente falando, o paio é uma necessidade pública. O caso dos jurados é outra coisa. (ASSIS, 2008b, p. 468)

“Não me venham com sentenças latinas” expressa uma indignação contra a

forma do discurso vigente tantas vezes desprovida de conteúdo. É como se os bordões

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latinos por si só garantissem a lisura do pedido. Machado coloca-se ao lado dos homens ilustrados que veem “as coisas de uma certa altura” e que não se deixam levar por essas erudições vãs.

A se considerarem as crônicas arroladas acima, há nelas uma reflexão coerente e uma bem fundamentada crítica sobre os enganosos usos do latim, expondo ao ridículo um certo tipo de elite e de discurso dos quais Brás Cubas era parte integrante. Todavia, a evidente seriedade de Machado ao se valer também de boas traduções latinas – como são as encontradas em sua biblioteca (JOBIM, 2001) – revela que esse latim desonesto não era o único que pairava nas crônicas e na obra machadiana como um todo.

Eis a situação paradoxal desse legado também em Machado o que confirma a intuição de Lorna Hardwick em a recepção dos clássicos em contexto pós-colonial apresentada no início do presente artigo. Ao mesmo tempo que a cultura e a literatura romanas são trazidas para dentro de seus textos como um método, há o amesquinhamento do uso dessa mesma cultura e literatura pelas elites.

Em poética crônica de 07/01/1894, o cronista reporta um sonho em que se identificara com Virgílio, o grande épico latino. O verbo identificar aqui talvez seja pouco: o narrador no sonho encarna Virgílio. A crônica começa com o incômodo das cigarras que o não deixavam dormir. O narrador está na cama entre o sono e a realidade:

Quem será esta cigarra que me acorda todos os dias neste verão do diabo. (…) Nisto entra um galo. O galo é um maometano vadio, relógio certo, cantor medíocre, ruim vianda. Entra o galo e faz com a cigarra um concerto de vozes, que me acorda inteiramente. Sacudo a preguiça, colijo os trechos de sonho que me ficaram, se algum tive, e fito o dossel da cama ou as tábuas do teto. Às vezes fito um quintal de Roma, de onde algum velho galo acorda o ilustre Virgílio, e pergunto se não será o mesmo galo que me acorda, e se eu não serei o mesmíssimo Virgílio. É o período de loucura mansa, que em mim sucede ao sono. Subo então pela Via Ápia, dobro a Rua do Ouvidor, e esbarro com Mecenas, que me convida a cear com Augusto e um remanescente da Companhia Geral. Segue-se a vez de um passarinho que me canta no jardim, depois outro, mais outro. Pássaros, galo, cigarra, entoam a sinfonia matutina, até que salto da cama e abro a janela. (ASSIS, 2008, p. 1036)

Interessante nessa crônica é a mistura entre Roma e Rio. “Subo a Via Ápia, dobro a Rua do Ouvidor” é um achado. O passado e o presente se misturam numa loucura mansa. A antiga Roma estava presente com todos os seus signos mais destacados, Virgílio, Via Ápia, Mecenas e Augusto. Roma frequenta Machado, portanto, porque ele era e sempre foi um cultor/leitor de literatura romana, não apenas porque a etiqueta ou a moda do tempo requisesse. Essa evocação do passado como universal identidade entre homens e culturas parece se firmar a despeito dos maus usos desse mesmo passado. A força de uma frase tal como “tudo hoje me anda impregnado do antigo” parece não provir de superficial verniz, mas de um escritor que, por vezes, sentia-se possuído por uma antiga mente como a de Virgílio, o que lhe servia de contraste constante na leitura de seu presente. Referências bibliográficas

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ASSIS, M. de. Bons dias! Introdução e notas de John Gledson. Campinas: Ed. Unicamp, 2008a. ASSIS, M. de. Dom Casmurro. Ed. crítica a cargo da Comissão Machado de Assis. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1969. ASSIS, M. de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Ed. crítica a cargo da Comissão Machado de Assis. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1960. ASSIS, M. de. Obra completa em quatro volumes. Organizada por A. Leite Neto, A. L. Cecilio e H. Jahn. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008b. Vol. 4 Crônica LIMA, A. D. Uma estranha língua? Questões de linguagem e de método. São Paulo: Edunesp, 1995. HARDWICK, L.; GILLESPIE, C. (eds.). Classics in Post-Colonial Worlds. Oxford: University Press, 2007. JOBIM, José Luís. (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: ABL/Topbooks, 2001.

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A sacralidade e a poeticidade do Salmo 22 em a Harpa d’ Israel de Sanctos Saraiva - Elaine C. Prado dos Santos (UPM) - Marcel Mendes (UPM)

RESUMO: Pretende-se apresentar, nesta comunicação, uma leitura do Salmo 22, segundo a tradução da Harpa d’Israel (1898), de Francisco Rodrigues dos Sanctos1 Saraiva, utilizando-se como fundamentação teórica a Poética da Tradução de Mario Laranjeira (2003). A intenção primordial deste trabalho é demonstrar de que forma o latinista e hebraísta Sanctos Saraiva transpõe o salmo para a língua portuguesa, enaltecendo sua poeticidade, seu encanto e seu lirismo. Palavras-chave: Sanctos-Saraiva; Harpa d’Israel; Salmo 22

Conforme Sanctos Saraiva, sua proposta, ao traduzir os Salmos, foi apresentar uma nova tradução com o intuito de prestar serviço às Letras Divinas e Humanas, segundo uma conduta de cotejo das duas versões Bíblicas: 1) a de João Ferreira de Almeida (1877), feita com base nos textos hebraicos e, 2) a do padre Antonio Pereira de Figueiredo (1808), realizada a partir da Vulgata Latina. Embora sua tradução tenha o cotejo como referência para pesquisa e crítica, sua contribuição principal foi oferecer uma nova tradução para o vernáculo, a partir da língua em que foi escrito o Saltério. O texto hebraico consultado por Sanctos Saraiva foi o de Baer, prefaciado por Francisco Delitzsch, de 1880. Escolheu-se o Salmo 22, como Corpus desta pesquisa, para apresentar a leitura feita por Saraiva, pela extensão, pela força poética e histórica, pela carga profética e messiânica. Desta forma, adotar-se-á, neste trabalho, como conduta de análise do Salmo 22, o percurso de Saraiva, isto é, o cotejo, como referência, como crítica, como estudo a fim de demonstrar e concluir que a tradução que se pretendia “nova” continua viva, como obra literária, permanecendo imortal por meio de seus leitores, por sua sacralidade, veracidade e historicidade.

Para se atingir este propósito, o percurso do trabalho será: 1. fazer uma breve apresentação de Sanctos Saraiva e de sua obra Harpa d’Israel; 2. descrever a estrutura dos salmos; 3. apresentar uma análise de cotejo comparativa entre a Vulgata Latina Iuxta Vulgatam Versionem e as versões de Almeida (1819) e de Figueiredo (1821)2. Da mesma forma, o texto hebraico a ser utilizado para confrontação e referência será a tradução e transliteração de Vitor e Jairo Fridlin (2007). Para se proceder ao diálogo entre os textos e estabelecer entre eles uma relação dialógica, será feita uma análise tendo como alicerce as teorias do escritor russo Mikhail Bakhtin (2010).

Em suma, este trabalho pretende ser um recorte dialógico entre a Vulgata Latina, a versão de Almeida (1819), encontrada pelos autores do artigo, e a de Figueiredo (1821), a fim de demonstrar, por meio do Salmo 22, que Sanctos Saraiva continua uma referência literária e histórica, pela estrutura, pelo ritmo, pelo tom, pelas imagens, enfim, por seu encanto e beleza.

SANCTOS SARAIVA e a Harpa d’Israel

A vida e a obra do latinista e hebraísta português Francisco Rodrigues Sanctos Saraiva (1834-1900) inserem-se em um daqueles desvãos da historiografia que, ao serem iluminados por novas pesquisas, proporcionam descobertas instigantes                                                                                                                          1  Adota-­‐se  aqui  a  forma  Sanctos  e  não  Santos,  pois  se  pretende  seguir  a  que  foi  registrada  nas  obras  da  época  do  autor.  

2  Será  utilizada  esta  versão,  pois  é  a  que  mais  se  aproxima  à  época  de  Sanctos  Saraiva.  

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e suscitam reelaborações de escalas valorativas. No caso em pauta, trata-se de resgatar a figura e o legado de um cidadão de dois países (Portugal e Brasil), crente de dois ramos do Cristianismo (Católico e Protestante) e, quiçá, de uma terceira religião monoteísta, o Judaísmo; intelectual versado em três línguas clássicas (hebraico, latim e grego), possivelmente em quatro ou cinco (sânscrito e chinês); linguista, escritor, jornalista, cientista natural – um verdadeiro erudito.

Entre as produções literárias de Sanctos Saraiva destaca-se o Novíssimo Dicionário Latino-Português, com 1.298 páginas, que se tornaria obra de referência permanente ao longo do século XX, com sucessivas edições e reimpressões. Escreveu, também, o Novo Método de Gramática Latina e Lições Práticas de Gramática Portuguesa. São de sua pena, ainda, os títulos Origens do Cristianismo, a Burla Católica Romana e Subsídios de Hermenêutica Bíblica. Nesse último contexto, o das letras sacras, é que se insere a Harpa d’Israel, uma versão do livro bíblico dos Salmos, rigorosamente estruturada em versos e vertida diretamente do hebraico para o vernáculo. A edição primitiva dessa obra, constituída de 2.000 exemplares, foi produzida pela Typografia de Vanorden, em 1898, sob a responsabilidade do Rev. George W. Chamberlain, fundador da Escola Americana, em São Paulo.

Esse empreendimento literário e editorial de Sanctos Saraiva teve como objeto oferecer uma alternativa – comentada, crítica e comparativa – aos textos então utilizados nos países de língua portuguesa, especialmente a versão do Padre Antonio Pereira de Figueiredo, baseada na Vulgata Latina de São Jerônimo (1821), e a de João Ferreira de Almeida, de 1819, elaborada a partir dos textos hebraicos e gregos em que o Antigo e o Novo Testamento foram produzidos, respectivamente. Enquanto a primeira dessas versões era mais familiar ao ambiente eclesiástico católico-romano, a segunda desfrutava de nítida preferência do público protestante.

Dentro do complexo universo bíblico, a opção de Sanctos Saraiva pelo livro dos Salmos – o Psalterio de Israel – é de fácil compreensão, pois se trata, historicamente, de uma das porções prediletas do leitor dos textos sagrados, tanto da tradição judaica como das multifacetadas tradições cristãs. A variedade dos gêneros literários, a beleza da arquitetura poética e o profundo lirismo religioso que impregna suas páginas fazem do livro dos Salmos uma obra singular e incomparável para estetas e literatos, mas, sobretudo, para quem busca inspiração para dialogar com o Criador, com o mundo e consigo mesmo.

No tocante à poesia hebraica, cabe ressaltar que sua flexibilidade formal é relativamente espontânea e não se organiza pela sonoridade das rimas e pela métrica das sílabas. Existe sonoridade, sim, mas sua característica fundamental são os paralelismos, onde a segunda linha (ou, às vezes, o segundo versículo) reforça a primeira com o peso das analogias e a beleza das ideias símiles, seja pela conjugação das semelhanças ou pelo contraponto dos contrastes. Os especialistas falam de paralelismos culminantes, que resultam de formas sinônimas, e de paralelismo antitéticos, constituídos de antíteses.

SALMOS Quanto às formas literárias dos textos dos Salmos, cabe destacar que do ponto

de vista estilístico distinguem-se três gêneros: os hinos, as súplicas e as ações de graças. Essa classificação não é rigorosa nem exaustiva, pois existem formas secundárias ou mistas, e até textos que não se enquadram nos paradigmas já mencionados. Segundo essa maneira de classificar as 150 unidades do Psalterio de Israel, 32 salmos apresentam fórmula quase fixa de introdução, desenvolvimento e

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fechamento, constituindo os hinos. Quanto às súplicas, essas podem ser coletivas ou individuais. Ao contrário dos hinos de louvor e adoração, as súplicas não cantam as glórias de Deus, mas se dirigem a ele com expressões de sofrimento profundo, lamentações sentidas, confissões sinceras, pedidos de perdão e invocações de socorro. Já os poemas de ações de graças, que não são tão numerosos, tanto podem ser de caráter coletivo, como de expressão individual: cerca de duas dezenas apresentam conteúdo laudatório ou gratulatório.

Para a escolha do Salmo 22 como texto fundamental do presente trabalho concorreram alguns critérios, a começar pela extensão do texto (31 versículos). Pesou, também, sua poeticidade demonstrada no forte ritmo do poema, na abundância das metáforas de afirmação, de reforço e de contraste. Contudo, a razão determinante para a escolha foi a carga dramática desse Salmo, que constitui essencialmente uma súplica. Essas profundas expressões de angústia não constituem apenas um “grito da alma” de um dos poetas ou hinólogos mais inspirados de Israel, provavelmente o rei Davi. A suprema intensificação desse traço dramático deu-se por ocasião da morte de Cristo, que do alto da cruz fez ecoar as palavras de abertura do Salmo 22: “Deus meu! Deus meu! Por que me abandonaste?” 3 Daí dizer-se que se trata de um Salmo Messiânico, ou Profético, cujo personagem é o próprio Filho de Deus. Portanto, a sacralidade desse Salmo impõe-se como elemento diferenciador, de absoluto realce na perspectiva devocional e teológica. Explicam-se, assim, as razões da escolha do Salmo 22 como corpus do presente trabalho.

ANÁLISE do Salmo 22

A tradução é o ideal de uma expressão de leitura, segundo Thamos (2008, p.330), para que se estabeleça uma realização vernácula desejável de equivalência com o ideal. Toledo Prado (1997, p.250) afirma que o texto em língua materna deve dar conta de produzir as equivalências rítmicas e os isomorfismos de conteúdo e expressão, presentes no de origem, sem o que não existirá tradução do poema de origem para o português. Seguindo tal afirmação, intenciona-se estabelecer as relações dialógicas entre os textos que já foram citados a fim de que se possa chegar à conclusão de que Sanctos Saraiva deixou, primorosamente, uma Harpa d’Israel que continua a ecoar sua sonoridade sacra.

Para Laranjeira (2003, p.12), a tradução do poema deve, pois, ultrapassar o patamar do “sentido” com referencialidade exterior ao texto, que enfatiza o significado, para atingir o nível da geração interna de sentidos mediante o trabalho do sujeito na cadeia dos significantes. Traduzir o poema sem perder a poeticidade será, então, traduzir a sua “significância”.

A partir das afirmações desses estudiosos, procede-se ao seguinte percurso: o cotejo entre as seguintes traduções: a de Sanctos Saraiva; a do Pe. Antonio Pereira de Figueiredo (1821), que é baseado no texto da Vulgata; a de João Ferreira de Almeida (1819), que é baseada no texto hebraico, e a de Fridlin (2007), com tradução e transliteração direta do hebraico, tendo por base referencial a Vulgata Latina a fim de que se possa fazer uma análise descritiva dos versículos. Apresentam-se os versículos de todos os textos inseridos em quadros para uma análise comparativa. A partir da observação dos verbos, tempo, número, pode-se começar a se fazer uma comparação, alicerçada em uma estrutura de arranjo oracional de cada versículo traduzido.

                                                                                                                         3 Evangelho de Mateus, cap. 27, versículo 46 – Tradução Almeida, Revista e Atualizada.

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S. Saraiva Pe Figueiredo (1821) vul J.F. Almeida (1819) –heb. Fridlin (2007) 1. Deus meu! Deus meu! Porque me desamparaste? Porque Tu afastado de me auxiliar, E de meu sentido clamor?

Deus, Deus meus, respice in me, quare me dereliquisti? 2.Deos, Deos meu, olha para mim: porque me desamparaste tu? Os clamores de meus peccados são causa de estar longe de mim a salvação.

2.Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste? Alongando te de minha redemção, das palavras de meu bramido.

2. Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Por que deixaste tão distante minha salvação e ignoraste meu gemido angustiado?

2.Deus Deus meus respice me: quare me dereliquisti Longe a salute mea verba delictorum meorum

2. Deus Deus meus quare dereliquisti me Longe a salute mea verba rugitus mei

Ao se observarem as quatro traduções: a de Sanctos Saraiva, a de Pe P. de

Figueiredo (1821), a de João F. Almeida (1819) e a de Fridlin (2007), verifica-se que todos se iniciam, preservando o mesmo Vocativo: Deus meu! Nos textos de Saraiva, Figueiredo e Almeida, a interrogação é a mesma: Por que me desamparaste? (Quare dereliquisti?). Apenas em Fridlin, há uma mudança de verbo – desamparaste para abandonaste, apenas uma alteração lexical, sem qualquer comprometimento da estrutura da oração. No latim, vindo do grego ou do hebraico, o verbo é o mesmo, dereliquisti, ou seja, abandonaste. Na sequência do versículo, as quatro traduções se apresentam estruturalmente de forma diversa, em todas houve acréscimos de verbos: 1. Afastado de me auxiliar; 2. são causa de estar; 3. alongando-te; 4. Deixaste e ignoraste. Pode-se concluir que, em todos eles, há uma reformulação ou adaptação em termos de tradução, ou melhor, uma paráfrase, ao conservarem-se as ideias originais, pois em latim, traduzir-se-ia: por que estás longe das palavras de meus gemidos e da minha salvação? Longe a salute mea verba dictorum meorum.

Não será possível apresentar uma análise de cotejo de todos os versículos, conforme realmente se fez, porém demonstrar-se-á o que for mais expressivo para se chegar a uma conclusão mais precisa e mais significativa. Sanctos Saraiva Pe P. de Figueiredo (1821) João F. Almeida (1819) Fridlin (2007) 2. Ó Deus meu! Por Ti grito de dia, e não me respondes; também durante a noite, mas não há para mim refrigério.

3.Meu Deos, eu clamarei de dia, e tu não me ouvirás: clamarei de noite, e ninguém mo imputará a loucura.

3. Deus meu, clamo de dia, e não me respondes: e de noite, e não tenho sossego.

3. De dia clamo e à noite não silencio, e tu não me escutas.

3. Deus clamabo per diem et non exaudies Et nocte et non ad insipientiam mihi

3. Deus meus clamabo per diem et non exaudies Et nocte nec est silentium mihi

No texto latino, o verbo está no futuro – clamabo: clamarei, apenas Pe.

Figueiredo segue o tempo verbal latino, os demais tradutores empregam o verbo no presente. João Almeida e Fridlin preservam o verbo clamar, mas Saraiva o traduziu por gritar. Quanto ao verbo exaudies, Saraiva e Almeida traduzem por respondes; Fridlin por escutas, e Almeida, ouvirás. No término do versículo, os tradutores mais uma vez se utilizam da paráfrase em relação ao texto latino - ad insipientiam mihi; silentium mihi : 1. não há para mim refrigério, 2. e ninguém mo imputará a loucura, 3. e não tenho sossego, 4. não silencio. Pode-se dizer que, até aqui, Sanctos

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Saraiva foi fiel e próximo ao texto latino, mesmo que em momentos tenha feito paráfrases. Sanctos Saraiva Pe P. de Figueiredo (1821) João F. Almeida (1819) Fridlin (2007) 3. Comtudo Tu és Sancto, habitando entre os louvores de Is’rael

4. Tu porém, tu habitas no lugar santo, tu, quês es o louvor de Israel.

4.Porem tu ES sancto: o que habitas entre os louvores de Israel.

4. Mas Tu és o Santo, e a Ti se dirigem os louvores de Israel.

4. tu autem in sancto habitas Laus Israhel 4. et tu sancte habitator Laus Israhel

Nas traduções, seguiu-se a frase Tu és Santo, menos em Figueiredo que apresenta a estrutura habitas no lugar santo. No latim, a expressão é in sancto habitas e sancte habitator. Pode-se concluir que a tradução de Sanctos Saraiva é muito próxima a de João F. Almeida. Sanctos Saraiva Pe P. de Figueiredo (1821) João F. Almeida (1819) Fridlin (2007) 9. Comtudo Tu és quem me fizera nascer; quem me preservou ao seio de minha mãe.

10. Tu es o que me tiraste do ventre: tu foste a minha esperança dês do tempo, que eu me alimentava aos peitos de minha mãi.

10. Tu ES porém o que me tiraste do ventre: o que me fizeste confiar, estando a os peitos de minha mãe.

10. Tu me tiraste do ventre materno e me fizeste sentir seguro, contra seu peito.

10. quoniam tu es qui extraxisti me de ventre Spes mea ab uberibus matris meae

10. tu autem propugnator meus ex útero fidúcia mea ab uberibus matris meae

Neste versículo, todos traduzem por tiraste do ventre, apenas Saraiva faz uma

paráfrase – fizera nascer. Saraiva acrescentou o verbo preservou, retirando o substantivo esperança. Saraiva tem um timbre todo próprio de tradução. Embora a comparação seja feita a partir das edições de 1821 e 1819, o mais interessante é verificar que pela tradução de Almeida, da Bíblia Revisada e Atualizada, é : “contudo, tu és quem me fez nascer; e me preservaste, estando eu ainda ao seio de minha mãe”, o que comprova a influência de Almeida na tradução de Saraiva. Sanctos Saraiva Pe P. de Figueiredo (1821) João F. Almeida (1819) Fridlin (2007) 10. A Ti me entreguei desde meu nascimento; desde as entranhas de minha mãe. Tu és meu Poderoso Deus.

11. Nos teus braços fui lançado ao sahir das suas entranhas: tu es o meu Deos dês do ventre de minha mãi.

11. Sobre ty fuy lançado desda madre: desdo ventre de minha mãe tu ES meu Deus.

11. Desde meu nascimento, em teus braços, fui entregue, antes mesmo, já eras meu Deus.

11. in te proiectus sum ex útero de ventre matris meae Deus meus es tu

11. in te proiectus sum ex vulva de ventre matris meae Deus meus es tu

Neste versículo, Saraiva traduz o verbo proiectus sum por entreguei, quanto os outros traduzem por fui lançado. Apenas Fridlin que traduz por fui entregue. A expressão ex útero, Saraiva a traduz por desde meu nascimento; Figueiredo, ao sahir das suas entranhas; Almeida, desda madre; Fridlin, desde meu nascimento. A expressão de ventre matris meae – Saraiva a traduz por desde as entranhas de minha mãe; Figueiredo, ao sahir das suas entranhas; Almeida, desdo ventre de minha mãe; Fridlin suprime a expressão. Saraiva se aproxima mais de Almeida do

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que Figueiredo, e muito mais da tradução que é revisada e atualizada. O que se pode dizer que a tradução saraivana, que por ser antiga, é uma tradução atual, repleta de poeticidade. Sanctos Saraiva Pe P. de Figueiredo (1821) João F. Almeida (1819) Fridlin (2007) 14. Estou-me derramando, como água, e todos os meus ossos estão desconjunctados como cera se tornou meu coração; derrete-se no meio de minhas vísceras.

15. Eu me derramei como água: e todos os meus ossos se desconjuntarão: o meu coração no meio das minhas entranhas fez-se como cera, que se derete.

15. Como agoa me derramei, e desconjuntarão se todos meus ossos: meu coração He como cera; derreteo se em meyo de minhas entranhas.

15. Sinto-me como água derramada que não pode voltar a seu recipiente, meus ossos fraquejam, meu coração parece ser de cera, de tal forma se derrete dentro de mim.

15. sicut aqua effusus sum et dispersa sunt universa ossa mea factum est cor meum tamquam cera liquescens in médio ventris mei

15. sicut aqua effusus sum et separata sunt omnia ossa mea Factum est cor meum sicut cera liquefacta in médio ventris mei

A expressão effusus sum aqua foi traduzida por Saraiva: estou-me

derramando como água; Figueiredo, eu me derramei; Almeida, eu me derramei; Fridlin, sinto-me água derramada. Parece que Fridlin amplia sua tradução, em diversos momentos, por exemplo: Sinto-me como água derramada que não pode voltar a seu recipiente. Pode-se dizer que a tradução de Fridlin é mais parafraseada que as demais. Pelo cotejo que se faz, a tradução saraivana se apresenta fiel à latina e muito próxima à de Almeida. Mesmo sendo uma tradução antiga, está muito próxima em termos de linguagem à de Almeida revisada. A partir desse levantamento, pode-se dizer que se preservam as ideias originais, em uma tradução que conserva a estrutura frásica em uma forma muito próxima à estrutura latina; percebe-se que em muitos momentos há escolhas lexicais que não comprometem a tradução, pois esta é totalmente fiel à original. O texto saraivano é muito próximo à tradução de João Ferreira de Almeida, feita com base nos textos hebraicos, o que se comprova a proposta de Sanctos Saraiva: fazer sua tradução direta do hebraico. Embora a tradução de Saraiva seja de 1898, pode-se dizer que ela é atual, em termos literários e poéticos, pois corresponde à tradução de Almeida, atualizada e revisada. Harpa de Israel enaltece sua poeticidade, ao traduzir direto do hebraico, em sua proposta de uma linguagem nova, por meio do cotejo, em uma linguagem elaborada de Salmo, que se propõe poética, e se cumpre em versículos, e não em prosa, em uma linguagem trabalhada poeticamente, como se exemplifica:

14: “Estou me derramando como água, E todos os meus ossos estão desconjunctados Como cera se tornou meu coração, derrete-se no Meio de minhas vísceras”. Pode-se afirmar que Sanctos Saraiva é uma referência de tradução, com a obra

Harpa d’Israel, pela estrutura, pelo ritmo, pelo encanto, pela beleza alcançados em seu texto, marcado pela força poética e pela carga profética e messiânica, conforme tradução:

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18:”Repartem entre si meus vestidos, E deitam sortes sobre minha vestidura! 19. Tu, porém, IAH’VÉH, não te afastes! Ó força minha! Dá-Te pressa em socorrer-me!”

Referências Bibliográficas:

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BÍBLIA. Trad. João Ferreira D’Almeida. Londres: Officina de R.e.a. Taylor, 1819. BÍBLIA. Trad. Pe. Antonio Pereira de Figueiredo; Londres: Oficcina de B. Bensley, 1821. BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. Barueri, São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil: São Paulo: Cultura Cristã, 2009. BÍBLIA ECUMÊNICA. São Paulo: Edições Loyola, 1994. BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Edições Paulinas, 1973. FRIDLIN. Victor; GORODOVITS, David; FRIDLIN, Jairo. Salmos. São Paulo: Editora e Livraria Sêfer Ltda, 2007. LARANJEIRA, M. Poética da tradução. São Paulo: EDUSP, 2003. PRADO, João Batista Toledo. Canto e encanto, o charme da poesia latina: contribuição para uma poética da expressividade em língua latina. 272f. Tese/ Doutorado em Letras, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 1997. SANCTOS SARAIVA, Francisco Rodrigues dos. Harpa D’Israel. (Editor G. W. Chamberlain). São Paulo: Vanorden, 1898. THAMOS, Márcio. O decassílabo camoniano como modelo métrico para uma tradução da Eneida. In: Anais, XXIII, SEC, Araraquara, 2008. IN: http://www.fclar.unesp.br/ec

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A estética grega intensificada nas mídias como um modelo inatingível de corpo - Isabel Orestes Silveira (UPM)

RESUMO: A indústria cultural; conceito cunhado por Benjamin (1892-1940), Adorno (1903-1969) e Horkheimer (1895-1973); atualizaram e difundiram o repertório das artes clássicas gregas em que se destacaram padrões de beleza relacionados ao corpo idealizado. Um corpo esteticamente belo e perfeito deveria ser saudável, atlético, proporcional e possuidor de um intelecto brilhante; mentalidade que contamina na sociedade através das comunicações de massa. Palavras-chaves: Indústria cultural; Estética grega; Corpo. Introdução

Este artigo nasce da reflexão acerca de alguns aspectos da complexa relação entre o modelo de corpo que vem sendo divulgado pelas mais variadas formas de mídias (revistas, jornais, televisão, rádio, cinema etc.) e que provoca na maioria dos receptores, um sentimento de inadequação diante do modelo de corpo proposto por esses meios.

A ênfase aqui engloba algumas permanências subjetivas que, com o passar do tempo, foram se consolidando a partir das referências estéticas gregas as quais culminam no culto ao corpo perfeito visibilizado nos meios de comunicação.

Vale lembrar que a palavra estética vem do grego aisthesis, e possui um significado voltado ao apelo para os sentidos. Pode significar também, percepção ou conhecimento mais sensível da realidade. Outros contornos do termo versam para uma interpretação da estética como ramo da reflexão filosófica sobre a arte. O conceito é alvo do pensamento da Grécia Antiga e perpassa os séculos como objeto de estudo e pesquisa.

Nesse horizonte de observações, a presente reflexão torna-se relevante na medida em que procura aquecer o debate em torno do tema corpo e sua visibilidade nos meios de comunicação e nas práticas culturais ligadas ao consumo a partir da dilatação do conceito de estética que se intensifica a partir da segunda metade do século XVIII.

As mídias atualizam e difundem determinados padrões de beleza, especialmente os relacionados ao corpo idealizado. Se no passado o corpo esteticamente belo e perfeito deveria ser saudável, atlético e proporcional segundo os conceitos da Antiguidade clássica grega; hoje a preocupação com a imagem do corpo se intensifica especialmente quando se pensa em ver e ser visto nos meios de comunicação - o corpo deve ser belo, saudável, jovem e acima de tudo magro. 1 – Corpo: concepções diversas

Nessa reflexão, o corpo pode ser pensado a partir do paradigma da estética clássica grega relacionada à beleza, pois há cerca de 2.500 anos a.C a aparência e o físico eram tão importantes quanto o intelecto e nesses parâmetros a busca pela perfeição ainda se vê intensificando cada vez mais.

A antiga frase memorável resume o passado: “mens sana in corpore sano” (mente saudável em corpo são).

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Se o corpo humano se relacionava com uma saúde física e mental, hoje em dia fica possível voltar para trás e verificar que o corpo mais do que nunca, tem sido objeto de apreciação, discussões acadêmicas e alvo de publicações em âmbitos diversos.

Ao longo da história da humanidade foi permeado por diversas concepções religiosas, científicas e por vezes foi definido com diferentes estratégias discursivas: ora considerado intocável, outras vezes, considerado local em que se aprisionava a alma.

O corpo é um campo de convergência de inúmeros enunciados e tido como “Templo do Espírito Santo” do ponto de vista cristão, ou seja, em Cristo, o corpo do cristão convertido, possui um status valorativo ao se tonar a habitação do próprio Deus e por isso, deve ser cuidado, preservado e mantido em santidade.

Com ao avanço da ciência e da tecnologia se ganha à consciência da complexidade e da fragilidade do corpo humano, mas também se desmistificam muitos tabus em torno dos assuntos relacionados especialmente a sexualidade. Todavia cresce cada vez mais o discurso acerca da necessidade de se cuidar do corpo e da sua aparência. Obviamente o que se é celebrado culturalmente como sinal de sucesso e reconhecimento social são os aspectos relacionados à beleza, a virilidade e a jovialidade: é o corpo do excesso ou da compulsão.

A divulgação midiática de um modelo inatingível de corpo enfatiza o sujeito-corpo-objeto. Um corpo que se presta para ser apreciado, invejado, consumido pelo olhar do outro. Sodré (1994: p.32), vem confirmar este pensamento quando afirma: “o olhar é um meio de possuir ou ser possuído, completamente análogo aos órgãos sexuais, que possuem e são possuídos”.

Certos padrões fomentados por uma pressão social de classe como hoje se vê massificados por conta dessa ditadura de idealização da beleza, reduz o corpo a objeto de admiração e desejo e de forma muito acentuada registrada no inconsciente coletivo o ideal dos heróis e dos deuses gregos. Personagens revestidos de beleza, força, talentos, grandiosidade, aventuras, fantasias, sonhos, vitorias, poder e exaltação se tornam ideais inatingíveis.

É interessante observar como as personagens dos mitos gregos representavam um princípio integrador e sagrado para o homem antigo, e podem nos dizer muito acerca da natureza humana, dentro da ideia da palavra narrada como elemento de alto poder poético que reflete questões sobre o jogo simbólico. Na mitologia tudo ganha vida de tanto significar, tudo é simbólico, quer as esfinges, quimeras, medusas e górgonas.

A busca pela perfeição do corpo levou o personagem Pigimaleão do mito grego, a uma obsessão. Vale lembrar, que o mito de Pigmaleão, escrito por Ovídio em seu livro Metamorphoses, por ocasião de seu exílio por volta do ano 8 a. C. em que esculpe a imagem do corpo de uma mulher.

Ovídio conta histórias de transfiguração, de deuses e de homens, entre ficção e realidade e nos apresenta Pigmaleão, um homem culto e importante em Chipre e que também era escultor. Por ser avesso as mulheres e por considerá-las imperfeitas, certa vez imaginou em lavrar na pedra o corpo de uma que representasse a ideia da mulher perfeita.

Ao terminar à obra, percebeu que esta se parecia com Vênus considerada pelos antigos gregos e romanos como a deusa do erotismo, da beleza e do amor. Pigmaleão apaixonou-se perdidamente pela pedra.

O episódio de Pigmaleão é um dos tantos exemplos que ilustram bem esse jogo entre desejo e representação do desejo, quando trata de tentar encontrar um

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significado para o mito. Pigmaleão toma posse do mármore e como artista ele imagina, esboça, dá forma. Faz surgir da pedra bruta um corpo de mulher nua, bela e delicada como uma deusa (padrão de beleza clássica grega).

Ocorre imediatamente uma dinâmica pulsional do personagem que se vê apaixonado pela presença corporal de Galatéia (nome que fora dado à escultura de pedra). O que gera angústia no artista é o corpo criado que se encontra passivo, petrificado, não responde, não age, não move. É inerte e submisso e do seu amor então, ficam excluídas qualquer satisfação física. Para Pigmaleão resta o olhar que contempla. Contemplar é uma modalidade de satisfação que o leva a fixação interna e duradoura, até que a deusa Vênus concede vida à imagem criada.

Este famoso mito de Ovídio, foi por diversas vezes, traduzido ou reinventado em outras linguagens como no teatro, no cinema e nas artes visuais. Dentre tantas reinvenções do mito, destacamos a obra do pintor e escultor Jean-Léon Gérôme (1824-1904), que retratou o instante da transformação, quando a estátua ganha vida.

Metaforicamente, podemos atribuir ao artista ou a qualquer que contempla

uma imagem e que se sente despertar suas paixões, a mesma relação de impulso afetivo e contentamento que dominava a vida mental de Pigmaleão.

Dada às devidas diferenças, os corpos vistos hoje e cultuados transformam-se em objeto e muitos especialmente em objeto visual: uma imagem. É pelo olhar que o homem transforma o outro em objeto, disponível para o seu consumo, a semelhança de um produto.

Vale, no entanto considerar que a beleza grega e todo conceito que ela abarca foi ao longo do tempo sendo modificado especialmente nos meios de comunicação. Temos que levar em conta que no pensamento clássico, o imperativo de Pindaro se fazia valer: “venha a ser o que tu és”. Diante dessa máxima, tornar-se belo era ser natural, mas também tornar-se excelente baseado no fato de que já se era. Dito de outro modo, um ente possui a plenitude da beleza e reflete brilho próprio. O imperativo é ser virtuoso no sentido de “vir a ser o que se é”, isto significa o mesmo que “vir a ser o mais belo que se pode ser”.

Esse ideal, nos dias de hoje está longe de ser ainda um paradigma, afinal o referencial divulgado na sociedade é o de “parecer ser”. O pensamento grego redime o corpo hoje tiranizado pelos meios de comunicação que apela para ser o que não se é; posicionando-nos novamente acerca da necessidade de se valorizar o que

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demasiadamente humano em todos nos: o corpo e com ele sua subjetividade, virtudes e fraquezas.

2 - Modelo inatingível de corpo intensificado nas mídias Adorno (1985) que pensava filosoficamente a realidade em que vivia,

considerava que a mesma estava sofrendo várias transformações, de ordem econômica e política. Para ele, a ideologia de vida propunha uma sobrevivência às leis impostas pelo padrão do mercado que passou a reger a sociedade e a ditar modos e tendências, e quem não acompanhasse esse ritmo e estilo de vida, estaria à margem da sociedade. O modo individualista era a corrida pelo ter, fruto de que Adorno considera Indústria Cultural4 , em que tudo se torna “negócio” para fins comerciais.

Tudo é falso em uma sociedade em que as relações dos homens com a natureza e dos homens entre si são fundamentalmente viciadas pela dominação natural e ideológica. O motor desta dominação é o desejo de posse, constantemente renovado pelo progresso cientifico e técnico, e sabiamente controlado no mundo administrado pela Kulturindustrie (cultura industrial) (JIMENEZ,1977: p.89).

Para Adorno o homem havia perdido a sua autonomia e tornava-se

instrumento de trabalho e de consumo, ou seja, objeto. A humanidade como um todo, estava cada vez mais se tornando desumanizada e influenciada por esta cultura. Todas as transformações que ocorrem no universo da cultura são consideradas por ele de forma crítica como “o retorno à barbárie”. Esta cultura, na visão de Adorno, estava relacionada a emergência das massas, que ganhava expressão em todos os campos da atividade humana, seja ela política, econômica ou social. Juntamente ao fenômeno da massificação desenvolvia-se o processo da tecnologia, que multiplicava a produtividade de materiais que por sua vez acelera os processos de reprodução simbólica, violentando desta forma a esfera do individual.

Na sua análise sobre as Indústrias da Cultura, Adorno (1985: p.114), argumenta que todos os indivíduos estão de alguma forma ameaçados pelo poder da técnica sobre a sociedade e sobre isto afirma: "a racionalidade da técnica hoje é a racionalidade da própria dominação, é o poder dos economicamente mais fortes que se faz sentir sobre a sociedade". Neste sentido os gostos são padronizados, pois a técnica aprimora a produção em série tentando oferecer uma diversidade de produtos. Essa diversidade não passa de uma mera aparência, pois a indústrias culturais, introduzem a uniformização.

O individuo de forma passiva, recebe o objeto com a presença respectiva da marca. A marca traz consigo o engodo de que é original e única, e desta forma a indústria cultural, não passa de um simulacro, pois vai dar a aparência de originalidade a um produto, escondendo o fato de que a imitação é sempre possível. Para que o mundo das aparências e da imitação possa funcionar nesta engrenagem da indústria cultural, há de se excluir o novo e dar ao produto aparência e o encanto da novidade. (JIMENEZ, 1997:33) prossegue citando Adorno:

                                                                                                                         4  Para o leitor interessado em uma discussão mais aprofundada sobre o tema Indústria Cultural remetemos o leitor aos textos de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. A Indústria Cultural- O Iluminismo como mistificação das massas. In: A Dialética do Esclarecimento. Tradução de César Bloom. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 [1969] p.155 a 201.  

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Não pode ser de outro modo em uma sociedade tecnocrática, em que tudo deve ser pesado, medido, etiquetado, vendido e consumido imediatamente, segundo normas cultuais elaboradas por organizações cientifica e pelos meios de difusão.

Contrariando o pensamento de Adorno de que a sociedade retrocedia à

barbárie, Benjamin (1992: p.73) era atraído pelo novo, pelas potencialidades abertas da tecnologia que surgia de forma crescente. Considerava que a modernidade que se avistava atraía algo de belo e se deixava encantar pelo mundo as aparências. De igual modo estava fascinado com o esplendor das máquinas. Ele entendia que as forças de dominação se alastravam em todos os níveis da atividade humana, mas de forma otimista compreendia que “este mundo novo” que surgia, poderia ser gerador de novas possibilidades e de fascínio.

Na visão de Benjamim surgia um caminho que rompia com a tradição, mas que poderia vir a ser trilhado pelo homem nas novas formas de arte que estariam ao seu dispor, renovando desta forma a humanidade. Para sustentar seu pensamento dedicou-se a investigação acerca do conceito das transformações da cultura. Sobre isto considerou: “A transformação da superestrutura, que decorre muito mais lentamente do que a da infraestrutura necessitou de mais de meio século para tornar válida a alteração das condições de produção, em todos os domínios da cultura”.

A discussão sobre o consumo enquanto prática cultural não limitada ao fator econômico é uma característica diagnosticada por Bauman (2003, p: 97) e no seu ver o que determina a marca da contemporaneidade é a do interesse próprio e o da busca da felicidade. Sobre as relações humanas Bauman, reflete que amar o outro, ou ao próximo é factual se este ou esta trouxer algum tipo de beneficio.

Com efeito, é suficiente perguntar “por que devo fazer isso?. Que benefícios me trará?” Para sentir o absurdo da exigência de amar o próximo – qualquer próximo – simplesmente por ser um próximo. Se eu amo alguém, ela ou ele deve ter merecido de alguma forma... “Eles o merecem se são tão parecidos comigo de tantas maneiras importantes que neles posso amar a mim mesmo; e se tão mais perfeitos do que eu que posso amar neles o ideal de mim mesmo”... Mas, se ele é um estranho para mim e se não pode me atrair por qualquer valor próprio ou significação que possa ter adquirido para a minha vida emocional, será difícil amá-lo.

Quando pensamos na sociedade atual marcada por valores como a competição,

o individualismo e o consumismo exagerado ficam notórios que para se autoafirmar o sujeito cede por vezes (se não sempre), aos apelos midiáticos que evocam a beleza como adequação a um modelo relacionado à boa forma, afinal se tornam irresistíveis.

As clínicas de estéticas e de cirurgias crescem e ganham adeptos para as plásticas simples até as radicais. Os salões de cabeleireiros e academias de ginástica estão cada vez mais superlotados e de forma assustadora também vem crescendo o consumo de remédios para emagrecer, anabolizantes e outros. Ainda é alto o índice de doenças como anorexia, bulimia e outras tantas; resultado da busca exagerada pela perfeição de acordo com os padrões.

[...] o corpo está em alta! Alta cotação, alta produção, alto investimento [...] alta frustração. Alvo do ideal de completude e perfeição, veiculado na pós modernidade, o corpo parece servir de forma privilegiada, por intermédio da valorização da magreza, da

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boa forma e da saúde perfeita, como estandarte de uma época marcada pela linearidade anestesiada dos ideais (FERNANDES, 2005, p.13)

A maioria absoluta das informações que o homem moderno recebe lhe vem

por imagens: “o homem de hoje é predominantemente visual” (BOSI, in apud NOVAES 1999, p. 61). Para justificar a venda e induzir o consumo, as diferentes mídias investem nas mensagens visuais, propondo a fascinação pelo corpo seja do homem como o da mulher.

Na televisão, por exemplo, o corpo encontra espaço dedicado às mulheres e dá voz ao público feminino em programas de auditório os quais exaltam a independência da mulher, seu espaço no mercado de trabalho e sua liberdade ao reforçarem o discurso da beleza, da preocupação com o corpo, do trabalho, maternidade e casamento, e constantemente veicularem ideais contraditórios. Obviamente as atrações são apresentadas por mulheres belas e sensuais e auxiliam na criação de um ideal feminino.

Como formador de opinião; a televisão é um dos meios de comunicação que possui grande e rápido alcance na população e leva desde informação até entretenimento, além de ser extremamente sedutora pois mistura o ficcional e a realidade, reforça paradigmas e firma os estereótipos influenciando no comportamento do telespectador.

Mais do que nunca, crianças, adolescentes, jovens, homens e mulheres, independente de classe social ou idade, estão expostos aos vários códigos e convenções socioculturais de representação e, de igual modo, vão reconhecendo-os, identificando-se com eles e processando uma percepção de tudo o que os cerca.

As diferentes linguagens vistas no cinema, na televisão, nos games, na internet estão ao alcance de todos e são exploradas e acessadas de forma corriqueira, lúdica e prazerosa. Esses novos meios com todo hibridismo proposto pelas diferentes mídias também seduzem e apontam um novo modo de pensar o corpo.

Isso é mudança de comportamento, mudança de sociedade que caminha numa nova articulação que expande as manifestações culturais e alcança a todos, tornando-nos conectivos, imersivos e participativos no universo das novas mídias.

A forma não linear de ver o mundo, a velocidade das hipermídias e todas as potencialidades que o meio digital oferece nos obrigam a prestarmos atenção à comunicação que perde sua característica unívoca de um para um, para tornar-se plural com múltiplos significados de leitura possíveis.

A semelhança mercadológica do atendimento segmentado, o usuário online pode estabelecer relações fragmentadas de troca, de interação dissimuladas e pode ser seduzido por mensagens oferecidas pelas comunidades e indivíduos.

É nesse novo espaço virtual (redes eletrônicas) que também percebemos a necessidade generalizada e urgente que as pessoas têm de serem vistas, atendidas e de manter o intercâmbio de informações pessoais.

Um detalhe interessante desse universo é que a tecnologia se torna cada vez mais eficientes. É por isso, que, atualmente, os celulares modernos possuem mais conexões com diversas redes sociais, para que cada usuário possa estar, em tempo real e a qualquer momento, a par de tudo que ocorre. A mobilidade técnica dos suportes tecnológicos funciona então como uma espécie de extensão do sujeito, agora enredado pelas possibilidades de interação dos indivíduos neste espaço público multidirecional. O corpo ao ser postado torna-se imagem compartilhada e acessado por muitos.

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O corpo então passa a ser visto também de forma ágil entre os indivíduos independentemente da localização geográfica. O computador torna-se diversão e interatividade, marcas da chamada "sociedade em rede".

Conclusão

O valor do pensamento grego se mantém atualizado nos meios de comunicação como juízo de valor ainda nos dias de hoje e se intensifica ainda mais a tirania da aparência relacionada ao corpo quando na maioria das estratégias de venda, impõe-se um modelo de corpo que pertence a pessoas ricas, luxuosas, jovens e belas, que, portanto deve ser invejado por representar “o ideal de felicidade”.

Nesse cenário, é criado o ideal do imaginário de consumo do mercado pós-moderno, e a publicidade se torna essencial por trazer ao público os produtos e soluções que dão, muitas vezes, sentido à própria vida.

O consumo passa a ser um meio das pessoas de modo geral, resolverem os problemas e conflitos que possuem nas mais diversas áreas. Os meios de comunicação imprimem enquanto discurso a possibilidade de se alcançar o desejo dá ao consumidor a ilusão de haver conseguido corresponder os padrões e às expectativas sociais.

Este ensaio é em primeira instância, uma tentativa de aproximação entre a estética grega intensificada nas mídias como um modelo inatingível de corpo, pelo viés dos processos históricos de apreciação do corpo que encontra eco na mitologia e se amplifica pela publicidade a tirania da aparência nos dias atuais. Referências ADORNO, Theodor W. Dialéctica do Esclarecimento, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985. BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. 2003. BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, col. Antropos, Relógio díÁgua, Lisboa, 1992. BOSI, Alfredo. Machado de Assis : o enigma do olhar. In: NOVAES, Adauto, (Org.) Aguiar, Flavio [et Al.] O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. FERNANDES, Maria H. Corpo. Clinica psicanalítica. São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo. Livraria e editora Ltda, 2005. HORKHEIMER. Max E THEODOR W. Adorno. A Indústria Cultural- O Iluminismo como mistificação das massas. In: A Dialética do Esclarecimento. Tradução de César Bloom. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 [1969] p.155 a 201. JIMENEZ, Marc. Para ler Adorno. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1977. SODRÉ, M. TV e psicanálise. São Paulo, 1994

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O rapto de Europa: apontamentos para uma comparação entre Ovídio e Ticiano - Márcio Thamos (UNESP)

RESUMO: Nas Metamorfoses, obra máxima de Ovídio, o relato mítico é descrito em tantos detalhes e fixado numa poética tão expressiva, que o célebre pintor renascentista Ticiano pôde tomar a narrativa do poeta romano como modelo para pintar O rapto de Europa, fazendo então um verdadeiro exercício de tradução intersemiótica ao procurar interpretar signos verbais através de signos pictóricos. Ressalta-se aqui a expressão da temporalidade narrativa do poema a partir do tratamento dado à noção de perspectiva no quadro. Palavras-chave: Ovídio; Ticiano; Metamorfoses; Temporalidade narrativa; Perspectiva.

1. O mito na poesia e na pintura O rapto de Europa, famoso mito da Antiguidade Clássica, ganhou a mais

conhecida de suas expressões literárias no estilo vigoroso de Ovídio (43 a. C.-17 d. C.). Nas Metamorfoses, o poeta latino apresenta em quinze livros (a que chamaríamos propriamente cantos ou capítulos), uma longa série de acontecimentos encadeados em que desfilam os principais mitos gregos e romanos. A impressionante arquitetura da obra dispõe, em sucessão ininterrupta, mais de duzentos e cinquenta episódios variados, escritos em versos hexâmetros5. É nesse contexto que se insere, no final do Livro II, a fábula da transformação de Júpiter em touro a fim de seduzir a princesa fenícia, por quem estava tomado de um amor ardente.

O eminente poeta português Bocage (1765-1805) dedicou-se à tradução de vários trechos selecionados das Metamorfoses, dentre eles, o que traz a narrativa do rapto famoso, que aparece então intitulado como “O roubo de Europa por Júpiter”:

O grão Jove no Céu Mercúrio chama,

E sem lhe declarar o amor, que o fere, “Vai, ministro fiel dos meus decretos, Vai, filho meu, coa sólita presteza; Desce à Terra (lhe diz) donde se avista Tua mãe reluzindo à sestra parte, E que os seus naturais Sídon nomeiam. O armentio real, que ao longe a relva No monte anda a pascer, dirige à praia”.

Disse, e já da montanha o gado expulso Caminha à fresca praia, onde costuma A do sidônio rei mimosa filha Espairecer, folgar coas tírias virgens.

A majestade, e amor não bem se ajustam: Jamais o mesmo peito os acomoda. Do cetro a gravidade enfim depondo O pai, e o rei dos deuses, Jove, aquele Que armada tem do raio a sacra destra, E que ao mínimo aceno abala o mundo, Veste forma taurina entre as manadas

                                                                                                                         5 O hexâmetro é o modelo de verso tradicionalmente empregado nas epopeias clássicas, tais como a Ilíada e a Odisseia de Homero ou a Eneida de Virgílio.

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Muge, e pisa formoso as brandas ervas. É cor da neve, que nem pés calcaram,

Nem coas asas desfez o Sol chuvoso; Alteia airosamente o móbil colo; Das espáduas lhe pende, e bambaleia A cândida barbela, as breves pontas De industriosa mão lavor parecem, Ganham no lustre à pérola mais pura. Não tem pesado cenho, olhar terrível, Antes benigna paz lhe alegra a fronte.

A filha de Agenor admira o touro, Estranha ser tão belo, e ser tão manso. Ao princípio, inda assim, teme tocar-lhe; Vai-se depois avizinhando a ele, E as flores, que apanhou, lhe aplica aos beiços.

Ei-lo já pela relva salta, e brinca, Já põe na fulva areia o níveo lado. À virgem pouco a pouco o medo extingue, E agora of’rece brandamente o peito Só para que lho afague a mão formosa, Agora as pontas, que a real donzela De recentes boninas lhe engrinalda.

Ela, enfim, que não sabe a que se atreve, Ousa nas alvas costas assentar-se.

De espaço à beira-mar descendo o Nume, Põe mentiroso pé n’água primeira, Vai depois mais avante... enfim, nadando, Leva a presa gentil por entre as ondas. Ela de olhos na praia, ela medrosa Segura uma das mãos numa das pontas, Sobre o dorso agitado a outra encosta; Enfuna o vento as sussurrantes vestes.

Despida finalmente a falsa imagem, Eis aparece o deus, eis brilha Jove, E em teus bosques, ó Creta, Amor triunfa!

(OVÍDIO, 2007, p. 99 e 101).

As Metamorfoses atravessaram os tempos como um verdadeiro tesouro da mitologia clássica. Durante o período da Renascença, a obra de Ovídio, e especialmente seu poema das Metamorfoses, transformou-se em exuberante fonte de inspiração não só para a literatura mas também, notadamente, para as artes plásticas e sua nova concepção humanista. Assim, o episódio do rapto de Europa ganhou uma dramática expressão pictórica nas pinceladas do mestre veneziano Ticiano Vecellio (c. 1488/9-1576), que no ápice da maturidade criativa interpretou vários mitos clássicos em suas telas.

Observe-se O rapto de Europa, pintado por Ticiano (figura 1). Entre a narrativa do antigo poeta latino e o quadro do renascentista italiano, como se percebe, há evidentemente muitas relações. Explicitar alguns dos vínculos formais que ligam essas duas obras numa comparação, ainda que sem qualquer pretensão exaustiva, pode ser útil à medida que oferece uma invulgar oportunidade para a compreensão de certos recursos expressivos empregados de maneira análoga tanto pelo poeta quanto pelo pintor.

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FIGURA 1. Ticiano Vecellio. O rapto de Europa (1560-62). 2. O mito em perspectiva Para além do relevo dramático, é notável que a escolha de tal cena pelo pintor

não se dá apenas pela oportunidade que oferece de apresentar o momento de maior tensão no desenrolar da fábula, mas, sobretudo, pela virtude precisa que tem de condensar significativamente, em uma única imagem, todo o percurso narrativo do mito – eis o que aproxima com clareza Ticiano de Ovídio.

Conforme observa Hegel (1954, p. 96),

A pintura não pode oferecer o desenvolvimento de uma situação, de um acontecimento, de uma ação, como a poesia ou a música, em uma sucessão de estados diversos, senão em um só momento. Daí nasce uma reflexão simples: e é a de que o conjunto da situação ou da ação, de certo modo sua essência, deve representar-se por este único instante. Por conseguinte, é preciso eleger o momento no qual o que precede e o que segue se concentram em um único ponto.6

Assim, o pintor deve selecionar, dentre as possibilidades figurativas que o

enredo lhe põe à disposição, um instante especial capaz de mostrar a série de ações encadeadas que formam o acontecimento como um todo, um instante no qual a narrativa inteira se resume e através do qual se pode sugerir a sucessão de imagens que a compõem antes e depois desse preciso instante – um momento em que se dá a ver ainda o passado, ao mesmo tempo em que o futuro se projeta no presente fugaz fixado na tela. Em outras palavras, vale dizer que, nesse caso, a fim de poder representar a ocorrência sequencial de eventos parciais que compõem um todo narrativo, a pintura deve necessariamente incorporar a seus meios de expressão características próprias das chamadas “artes temporais”, como a poesia e a música. É de fato o que faz Ticiano em sua transposição d'O rapto de Europa a partir do poema de Ovídio, buscando “a equivalência na diferença”, alicerce e ponto de partida para todo tipo de tradução – seja interlingual, intralingual ou intersemiótica –, conforme o clássico postulado de Roman Jakobson (2001, p. 64-65).

                                                                                                                         6 A tradução das citações, quando não explicitamente indicado nas Referências, é de responsabilidade do autor deste trabalho.

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Tendo em mente tais considerações, perceba-se que na tela do mestre veneziano, há um movimento narrativo que se constrói claramente da esquerda para a direita, isto é, da praia, onde estão “as tírias virgens” para o alto-mar, onde aparece o touro branco que “Leva a presa gentil por entre as ondas”. Tal percurso se insinua com toda a força pelo uso particularmente expressivo da perspectiva linear nesse quadro, impondo-lhe de maneira indelével a marca da temporalidade.

A perspectiva linear, que passou a ser estudada sistematicamente a partir do Renascimento, é um recurso de base matemática que produz o efeito de profundidade no desenho, simulando a impressão visual de afastamento ou aproximação entre objetos representados num mesmo plano. Assim, as figuras que são, na verdade, postas ao lado umas das outras, diminuem ou aumentam de tamanho na tela, de acordo com a sensação de distanciamento real no espaço percebida pelos olhos (por isso, na descrição de pinturas é usual a distinção entre “primeiro plano” (representado abaixo na tela) e “fundo” (representado acima na tela). Vale dizer que a perspectiva linear é capaz de comunicar a aparência de realidade tridimensional a uma superfície bidimensional.

Esse efeito realista da composição pictórica clássica criado a partir da perspectiva linear traz duas consequências fundamentais que interessam diretamente à comparação aqui estabelecida com o texto de Ovídio: cria-se assim um ponto de vista externo, ao mesmo tempo em que se desenvolve um verdadeiro processo de montagem de planos, responsável pela própria estruturação narrativa do quadro.

Com relação ao ponto de vista na pintura, atente-se para o seguinte comentário de B. A. Uspênski (1979, p. 170): “Antes de mais nada, a utilização de um ponto de vista interno ou externo manifesta-se no sistema de perspectiva que o pintor aplica. Na realidade, a perspectiva clássica linear (direta) apresenta uma imagem tal como ela é percebida de fora (de lado), com um ponto de vista fixado externamente em relação à realidade representada”.

Trata-se, pois, da visão que se teria a partir de uma janela aberta. Esse ponto de vista de um observador externo projetado pelo quadro de Ticiano corresponde perfeitamente ao foco narrativo em terceira pessoa, ou seja, ao ponto de vista de um narrador que se situa fora dos acontecimentos e os transmite, portanto, como se fosse também um observador externo. Não é outra a perspectiva do narrador reconhecível no poema de Ovídio, como se pode facilmente constatar pela leitura do episódio traduzido por Bocage.

Devido aos hábitos culturais e às dominâncias estéticas desenvolvidos pela modernidade ocidental, talvez pareça inteiramente natural ou quase óbvia a perspectiva linear adotada pelo pintor na transposição da narrativa mitológica das Metamorfoses. Mas sabe-se que, na tradição da pintura, nem sempre o ponto de vista externo foi a solução expressiva encontrada pelos artistas para a composição de suas obras. Nesse sentido, citando ainda Uspênski (1979, p. 169), é interessante observar que, “Se, desde os tempos da Renascença, era comum nas artes plásticas europeias a posição externa do artista em relação ao objeto representado, nas velhas escolas de pintura o artista antigo ou medieval situa-se como que dentro do quadro a ser pintado, representando o mundo em sua volta, e sem partir de nenhuma posição alheia – de modo que ela em lugar de ser externa é interna em relação ao quadro”.

De um modo geral, pode-se compreender que na pintura o ponto de vista interno corresponde a um tratamento mais subjetivo do tema retratado, uma vez que aí não se busca um efeito de ilusão referencial fundado na imitação minuciosa de caráter realista (como, por exemplo, num quadro em que determinada figura aparece com um tamanho exagerado em relação às outras, recebendo assim maior destaque e

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importância). Para manter-se o paralelo com o texto literário, caberia pensar, nesse caso, em certa aproximação com o foco narrativo em primeira pessoa, isto é, com o ponto de vista de um narrador situado dentro dos acontecimentos.

A fixação de um ponto de vista externo e o tratamento objetivo dado ao espaço a partir daí, observando-se a relação proporcional entre as figuras de acordo com a perspectiva linear, acentua naturalmente a noção temporal que se projeta na composição, contribuindo para o efeito de realidade então produzido.

Além do reconhecimento de um ponto de vista externo nas duas obras comparadas, perceba-se que no texto de Ovídio, o tempo da narração é simultâneo aos fatos narrados, isto é, o narrador descreve aquilo que vê no momento mesmo em que a sequência de ações acontece. Esse efeito de presentificação dos acontecimentos narrados no poema está também analogamente realçado no quadro de Ticiano por conta da perspectiva linear e da forte sensação de realismo que ela produz.

Contudo, apenas o ponto de vista adotado pelo pintor e o estilo realista de sua tela não explicam por si sós a acentuada noção de temporalidade que advém da cena retratada. É preciso observar ainda o procedimento de montagem responsável por esse dinamismo imagético-narrativo irradiado pelo quadro. A simplicidade do método, quando analisado, chega a ser desconcertante diante do enfático efeito emotivo que um grande mestre dele pode extrair.

O quadro de Ticiano está organizado de modo a dividir a superfície única da tela em planos justapostos que, com o emprego da perspectiva linear, parecem se sobrepor, isto é, na relação proporcional que contraem entre si compondo uma mesma imagem, criam o efeito de profundidade. Assim, vê-se no primeiro plano, ocupando uma grande porção de tela mais à direita e para baixo, com todo o destaque descritivo que o texto de Ovídio lhes confere, o touro branco e a princesa raptada, já em alto-mar. Num segundo plano, à esquerda, preenchendo um pequeno espaço no alto da metade inferior do quadro, mal distintas na distância, postam-se à beira do mar as amigas de Europa, que ficaram na praia, em desespero chamando por ela.

Aqui é interessante notar que Ovídio não se refere diretamente às moças que ficam à beira do mar, como vemos no quadro. Essa sugestão, no entanto, é dada no início da narrativa, quando se diz que a princesa costumava brincar na praia com “as tírias virgens”. Ficarem aflitas junto ao mar chamando pela amiga raptada é, pois, uma possibilidade que permanece, por assim dizer, em “segundo plano”, isto é, que se infere naturalmente da leitura. Apreendendo com clareza a sugestão, Ticiano atualiza tal possibilidade, e em sua composição as moças fenícias de fato aparecem “atrás” na perspectiva de planos do quadro, permitindo assim a eloquente expressão da temporalidade narrativa na tela.

Assim, pondo em grande destaque, no primeiro plano, as figuras do touro e da princesa e acentuando sobremaneira o recuo das moças na praia, no segundo plano, cria-se uma verdadeira sucessão de planos de montagem. A simples justaposição desses dois planos, à direita e à esquerda, já sugere, pela relação de contiguidade, a noção de sequência temporal da narrativa. Trata-se basicamente do mesmo processo estudado por Eisenstein (2002, p. 16) para o desenvolvimento de qualquer narrativa no cinema, cujo princípio é: “a justaposição de dois planos isolados através de sua união não parece a simples soma de um plano mais outro plano – mas o produto. Parece um produto – em vez de uma soma das partes – porque em toda justaposição deste tipo o resultado é qualitativamente diferente de cada elemento considerado isoladamente”.

Mas, entenda-se, com o próprio realizador de O encouraçado Potenkim, entre outros filmes marcantes na história cinematográfica, que

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Esta não é, de modo algum, uma característica peculiar do cinema, mas um fenômeno encontrado sempre que lidamos com a justaposição de dois fatos, dois fenômenos, dois objetos. Estamos acostumados a fazer, quase que automaticamente, uma síntese dedutiva definida e óbvia quando quaisquer objetos isolados são colocados à nossa frente lado a lado. Por exemplo, tomemos um túmulo, justaposto a uma mulher de luto chorando ao lado, e dificilmente alguém deixará de concluir: uma viúva. (EISENSTEIN, 2002, p. 14).

Assim, ao associar duas imagens parciais, mais ou menos autônomas, em sua

tela, Ticiano instaura um procedimento de montagem, do qual resulta uma nova qualidade significativa para o quadro. Como produto da relação criada entre os dois diferentes planos, percebe-se o efeito da temporalidade narrativa.

Mas não será demais ressaltar ainda que a própria criação dos planos de montagem no quadro do mestre veneziano está fundamentada no uso saliente e contrastante da perspectiva linear, projetando para a frente, quase como a saltar do quadro, o touro com sua presa, ao mesmo tempo em que faz retroceder extraordinariamente as moças na praia. Nesse sentido, como exemplo em contraponto, vale observar o fascinante quadro homônimo de Rembrandt (1606-1669), em que tanto Europa e o touro quanto as moças na praia aparecem enquadradas no primeiro plano (figura 2). É notável que a temporalidade narrativa aí já não se impõe com tanta

expressividade como na tela de Ticiano.

FIGURA 2. Rembrandt Harmensz van Rijn. O rapto de Europa (1632). Referências

CONTE, Gian Biagio. Latin Literature. 9a. ed. Trad. Joseph B. Solodow. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1999. EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

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HEGEL, G. W. F. Estética (tomo II). Trad. de la edición francesa de Charles Bénard por H. Giner de los Ríos. Buenos Aires: El Ateneo, 1954. (Clásicos inolvidables). JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. 18a. ed. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2001. OVIDE. Les métamorphoses. Texte établi et traduit par Georges Lafaye. Paris: Les Belles Lettres, 1985 (v.1), 1989 (v.2), 1991 (v.3). OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. M. M. B. du Bocage (Introd. João Angelo Oliva Neto). São Paulo: Hedra, 2007. USPÊNSKI, B. A. Elementos estruturais comuns às diferentes formas de arte. Princípios gerais de organização da obra em pintura e literatura. Trad. Aurora Fornoni Bernardini. In: SCHNAIDERMAN, Bóris (org.). Semiótica russa. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 163-218. SÉGUIER, Jaime de (dir.). Dicionário prático ilustrado (tomo III: história e geografia). (Edição actualizada e aumentada por José Lello e Edgar Lello). Porto: Lello & Irmão, 1966. Ilustrações Figura 1: TICIANO. O rapto de Europa. 1560-62 (óleo sobre tela, 178 x 205 cm). Museu Isabella Stewart Gardner, Boston. Disponível em <http://www.gardnermuseum.org/collection/browse?filter=room:1773>. Acesso em 15 de julho de 2012. Figura 2: REMBRANDT. O rapto de Europa. 1632 (óleo sobre painel). Museu J. Paul Getty, Malibu. Disponível em <http://www.getty.edu/art/gettyguide/artObjectDetails?artobj=1069>. Acesso em 15 de julho de 2012.