simplicidade protestante prof. roney ricardo

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Simplicidade Protestante Lendo Laurent Gagnebin, pastor e teólogo protestante francês, em O Protestantismo, fiquei comovido com sua descrição a seguir sobre a simplicidade do Protestantismo: O templo e o culto protestantes não têm de se vestir de ornamentos ilusórios e supérfluos; com efeito, a sua nudez remete para a glória somente de Deus. A precariedade protestante encontra então no provisório uma parte da sua encarnação. Os templos não foram feitos para durar... Num culto demasiado brilhante, o protestante fareja qualquer coisa de adulterado e, sobretudo, uma vaidade sempre possível. “A Deus somente a glória”. No espírito protestante, a riqueza da Igreja e das igrejas é excessiva. Não manifestará ela uma infidelidade chocante face à cruz de Jesus? 1 Ao ler tal descrição da simplicidade histórica do Protestantismo, foi inevitável em meu coração a seguinte indagação: será que aos poucos não estamos perdendo essa simplicidade, seja em nosso modo de viver, seja em nossas liturgias, seja em nossa confissão? Tive o privilégio de crescer em igreja evangélica e de ser educado nos princípios cristãos. Aos 17 anos tornei-me membro da Assembleia de Deus, essa grande denominação genuinamente brasileira e com cara de Brasil! Hoje, com 30 anos de idade e quase 13 como “assembleiano”, tendo lido bastante, convivido e dialogado muito com irmãos de outras denominações e como alguém que vêm ministrando palestras e pregando em várias igrejas, além da Assembleia de Deus, pude agregar à minha experiência um bom conhecimento da realidade evangélica em nosso país, embora reconhecendo a limitação do meu conhecimento do assunto. Todavia, a reflexão a seguir nas próximas linhas não é percepção unicamente minha. Não estou sozinho nas considerações a seguir. Meu desejo com este texto? Provocar nos nossos leitores a ponderação sobre tema tão importante, no sentido de que possamos repensar nossa conduta como servos de Deus, para glória Dele! Nossa vida deve ser para Ele, por Ele e NEle. Ao volver os meus olhos para o que vem ocorrendo em minha denominação e na igreja evangélica como um todo no Brasil, percebo a perca dessa simplicidade. Como? Gostaria de começar citando a pregação evangélica em nossa nação que, infelizmente, está em crise! A maioria dos pregadores evangélicos que estão na TV hoje (e também muitos em nossas igrejas!), já não pregam mais o evangelho de Cristo, o evangelho da cruz, aquele evangelho cantado no clássico hino incluído também na Harpa Cristã e ali numerado como 291: “Rude Cruz”. Já não vemos mais mensagens sobre essa “Rude Cruz”. Por 1 GAGNEBIN, Laurent. O Protestantismo. Lisbôa, Portugal: Biblioteca Básica de Ciência e Cultura, Instituto Piaget, 1997, p. 89.

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Simplicidade Protestante

Lendo Laurent Gagnebin, pastor e teólogo protestante francês, em O

Protestantismo, fiquei comovido com sua descrição a seguir sobre a simplicidade

do Protestantismo:

O templo e o culto protestantes não têm de se vestir de ornamentos ilusórios e

supérfluos; com efeito, a sua nudez remete para a glória somente de Deus. A

precariedade protestante encontra então no provisório uma parte da sua

encarnação. Os templos não foram feitos para durar... Num culto demasiado

brilhante, o protestante fareja qualquer coisa de adulterado e, sobretudo, uma

vaidade sempre possível. “A Deus somente a glória”. No espírito protestante, a

riqueza da Igreja – e das igrejas – é excessiva. Não manifestará ela uma

infidelidade chocante face à cruz de Jesus?1

Ao ler tal descrição da simplicidade histórica do Protestantismo, foi

inevitável em meu coração a seguinte indagação: será que aos poucos não

estamos perdendo essa simplicidade, seja em nosso modo de viver, seja em

nossas liturgias, seja em nossa confissão? Tive o privilégio de crescer em igreja

evangélica e de ser educado nos princípios cristãos. Aos 17 anos tornei-me

membro da Assembleia de Deus, essa grande denominação genuinamente

brasileira e com cara de Brasil! Hoje, com 30 anos de idade e quase 13 como

“assembleiano”, tendo lido bastante, convivido e dialogado muito com irmãos

de outras denominações e como alguém que vêm ministrando palestras e

pregando em várias igrejas, além da Assembleia de Deus, pude agregar à

minha experiência um bom conhecimento da realidade evangélica em nosso

país, embora reconhecendo a limitação do meu conhecimento do assunto.

Todavia, a reflexão a seguir nas próximas linhas não é percepção unicamente

minha. Não estou sozinho nas considerações a seguir. Meu desejo com este

texto? Provocar nos nossos leitores a ponderação sobre tema tão importante, no

sentido de que possamos repensar nossa conduta como servos de Deus, para

glória Dele! Nossa vida deve ser para Ele, por Ele e NEle.

Ao volver os meus olhos para o que vem ocorrendo em minha

denominação e na igreja evangélica como um todo no Brasil, percebo a perca

dessa simplicidade. Como? Gostaria de começar citando a pregação evangélica

em nossa nação que, infelizmente, está em crise! A maioria dos pregadores

evangélicos que estão na TV hoje (e também muitos em nossas igrejas!), já não

pregam mais o evangelho de Cristo, o evangelho da cruz, aquele evangelho

cantado no clássico hino incluído também na Harpa Cristã e ali numerado como

291: “Rude Cruz”. Já não vemos mais mensagens sobre essa “Rude Cruz”. Por

1 GAGNEBIN, Laurent. O Protestantismo. Lisbôa, Portugal: Biblioteca Básica de Ciência e Cultura,

Instituto Piaget, 1997, p. 89.

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quê? Por que ela é rude? Por que não “enche igreja?”A tônica da pregação

evangélica hoje nem é evangélica! Como nunca antes se usa “você”, “eu”,

“vitória”, “sucesso” e afins, caracterizando uma mensagem tipicamente

antropocêntrica e de auto-ajuda, ou ainda, como diria o historiador da

UNICAMP, Leandro Karnal, uma “teologia do empreendedorismo”. O triste é

saber que um estudioso não evangélico teve essa percepção (verdadeira) a

nosso respeito! Diante desse novo formato da pregação evangélica

(evangélica!?), pergunto: onde está o “tome a sua cruz e siga-me?” Ou, como

diria o já falecido “João Batista do Século 21”2, não se fala mais em angústia –

nas suas palavras: “Ninguém mais quer ouvir isso!”3 Mas evangelho é também

angústia, renúncia, sofrimento. É alegria sim, mas alegria no sofrimento muitas

vezes! Um paradoxo? Sim, o evangelho é assim paradoxal. Gagnebin afirma que

o templo e o culto protestantes devem remeter somente para a Glória de Deus,

mas ao olhar nossa realidade constato com tristeza que nossos cultos (cultos!?)

tornaram-se “eventos”, “shows”, que visam mais a promoção da denominação,

e não da “Igreja de Cristo”, visam mais a promoção de pessoas, do que da

Pessoa de Cristo na vida dos outros. Recebo na minha página pessoal do

facebook muitos cartazes de vigílias, congressos, seminários, etc., que

transparecem, notadamente, mais a preocupação com a promoção de

indivíduos do que de fato com a difusão do evangelho. Alguns até se ofendem

se não aparecer no cartaz o seu rosto. Não que seja de todo contra a

publicidade, ou que apareçamos em cartazes (eu mesmo apareço com certa

regularidade); minha crítica é que tudo isso seja usado para a promoção do

cantor(a) tal, ou do pregador(a) tal, ou do(a) palestrante tal, do que de fato para

a proclamação da Palavra de Deus. O anonimato é visto como algo rejeitável:

“Deus te chamou para brilhar”, é o que ouvimos algumas vezes. Mas esse

brilhar não é brilhar de Mateus 5.14, e sim o “brilhar” do sucesso, da fama, do

estrelato! Esquecemo-nos do “importa que Ele cresça e eu diminua” e que

“longe esteja de mim gloriar-me a não ser na cruz de Cristo”. E se o sucesso não

vir, e se a fama não chegar, continuaremos servindo? Estamos dispostos a fazer

como Maria, que aprendia aos pés de Cristo, ou faremos como os discípulos que

disputavam para saber quem era o mais importante dentre eles? Esquecemo-

nos que a Igreja evangélica no Brasil cresceu em grande parte pelo trabalho

incansável de anônimos: pastores, missionários, professores de Escola

Dominical, líderes de grupos nas igrejas, professores de teologia, etc., que como

Paulo, “gastaram e se deixaram gastar” pelo Reino. Pessoas cujos rostos nunca

apareceram na TV, ou no Youtube, ou sequer em algum cartaz. Foi no

anonimato que fizeram grandes coisas para Deus e pelo Reino. Dia desses, um 2 Referência ao pastor assembleiano David Wilkerson.

3 Essa fala é parte do seu memorável sermão intitulado “Um Chamado para a Angústia”, disponível no

Youtube. O link é: https://www.youtube.com/watch?v=qRFDse-A_cc

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amigo disse-me: “Roney, seu nome está ecoando!” Isso é preocupante! Muitos

nomes estão ecoando na igreja evangélica, mas um só e por um só podem os

homens ser salvos – esse nome é JESUS, você se lembra?

Por muitos anos criticamos com veemência os católicos por sua idolatria

e culto ostentoso, pomposo, mas e hoje, nós, evangélicos, não estamos

incorrendo nos mesmos erros que eles? Creio que nosso pecado é ainda maior:

nossos ídolos são pessoas reais, famosas, que estão no estrelato gospel. Nossos

cultos (cultos!?) tornaram-se pomposos e um espaço para a exibição humana,

vaidosa, inútil, fútil. Chego a pensar que a situação se reverteu: nós agora é que

temos que aprender com os católicos. Sua liturgia não abre espaço para tanta

exibição humana como vemos hoje em nossas igrejas evangélicas. As pessoas

querem “trazer uma saudação”, cantar, pregar no culto não mais para glorificar

o nome do Senhor, mas para aparecerem. Acontece muitas vezes (muitas vezes,

pode acreditar!) que se um obreiro, cantor(a), pregador(a), etc., chega numa

igreja e não recebe a oportunidade, ou no mínimo não é apresentado perante a

igreja, ele sai chateado e criticando a liderança da igreja. Isso é um reflexo da

perca dessa simplicidade do culto evangélico. Já não nos contentamos em

simplesmente participar do culto e “com” e “como” toda a congregação

alegremente adorar ao Senhor, rendendo-lhe graças e louvores. Exigimos um

espaço de destaque! Gagnebin afirma, como lemos acima, que “Num culto

demasiado brilhante, o protestante fareja qualquer coisa de adulterado e,

sobretudo, uma vaidade sempre possível”. Todavia, penso, não estamos

perdendo esse “farejar”? Oremos a Deus para que possamos ter nosso olfato

espiritual restaurado. Concluo com a lancinante indagação de Gagnebin, citada

acima: “No espírito protestante, a riqueza da Igreja – e das igrejas – é excessiva.

Não manifestará ela uma infidelidade chocante face à cruz de Jesus?”.

Em Cristo,

Professor Roney Ricardo

Vila Velha, Abril de 2014.

Roney Ricardo é membro da AD capixaba,

graduado em teologia, psicanalista clínico, cursando

Segunda Licenciatura em Pedagogia, escritor,

professor de teologia e palestrante nas áreas de

Família, Bíblia e Teologia.