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SILÊNCIO, ENTRAVES E OMISSÕES: A ATUAÇÃO DA COMISSÃO INTERAMERICANA
DE DIREITOS HUMANOS FRENTE À DITADURA MILITAR BRASILEIRA
Área Temática: Instituições e Regimes Internacionais
Bruno Boti Bernardi
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)
Trabalho preparado para o 6º Encontro da Associação Brasileira de Relações
Internacionais (ABRI), Belo Horizonte, 25 a 28 de julho de 2017
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Silêncio, obstáculos e omissões: a atuação da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos durante a ditadura militar brasileira
Resumo: O trabalho examina o desempenho da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) durante a década de 1970 frente a denúncias de violações cometidas pela
ditadura militar brasileira. Com base nas contribuições teóricas do institucionalismo histórico
e usando ainda documentos da CIDH recentemente publicados pelo Arquivo Nacional do
Brasil, o artigo analisa como múltiplas condições políticas e institucionais desfavoráveis não
permitiram que a CIDH cumprisse seu papel primordial de proteção dos direitos humanos no
caso do Brasil. Do ponto de vista político, havia a confrontação ideológica da Guerra Fria, o
predomínio dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos, a importância geoestratégica
do Brasil na luta anticomunista, o fato de que a defesa dos direitos humanos não era
prioridade para a OEA, a falta de cooperação e de resposta expedita às críticas pelo Brasil e
a ausência de uma rede transnacional de ativismo em direitos humanos que eventualmente
oferecesse informações de qualidade à CIDH sobre o contexto local além de auxiliá-la a
pressionar e monitorar o Estado. Institucionalmente, a composição conservadora,
suscetibilidade a ingerências externas dos Estados, fraqueza estrutural, falta crônica de
recursos e isolamento institucional da CIDH dentro da OEA tampouco eram conducentes a
uma atuação mais incisiva pró-direitos humanos. Ainda pouco consolidada, com estrutura
débil e sem um histórico prévio importante de atuação, a CIDH não só carecia de
capacidade institucional e de ferramentas para processar denúncias, mas também oferecia
margem para interpretações e aplicações restritivas das regras de admissibilidade e
julgamento das denúncias de violações. Por fim, apesar dessa postura institucional de
negligência e dos inócuos resultados dos poucos momentos de crítica da CIDH,
argumentamos que o caso brasileiro contribuiu decisivamente para a transição do papel da
CIDH de promoção para a proteção dos direitos humanos, dando início à sua transformação
na consciência crítica do hemisfério contrária aos Estados autoritários.
Palavras-chave: Brasil; CIDH; Ditadura
Introdução
O aumento da repressão da ditadura militar brasileira (1964-1985) após 1968 levou
vários grupos e pessoas a enviar denúncias à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) no início da década de 1970. Diferentemente do que ocorreu anos mais
tarde nos casos do Chile e da Argentina, a CIDH não foi capaz de pressionar com o êxito o
Estado brasileiro, deixando de dar visibilidade aos casos de violações da época. Com base
2
nos insights teóricos do modelo de mudança institucional de Mahoney e Thelen (2010), o
objetivo deste artigo é examinar e explicar esse mau desempenho da CIDH.
À época, a CIDH iniciava a transição do papel que lhe havia sido designado, em
1959, de promoção dos direitos humanos via educação, difusão de informações e
elaboração de doutrinas para um novo papel de proteção dos direitos humanos com foco no
naming e shaming dos Estados violadores. Nessa fase inicial de atuação e evolução
institucional, e sem o suporte da rede transnacional latino-americana de direitos humanos do
final da década de 1970, a CIDH não possuía ainda capacidade e ferramentas para
confrontar um Estado violador de direitos humanos de maior projeção geopolítica como o
Brasil. Esse resultado se devia à falta de condições políticas e institucionais para esse
trabalho no interior da própria CIDH, na OEA, na relação com a diplomacia brasileira e ainda
no âmbito internacional e ideológico mais amplo da Guerra Fria, no qual se destacava a
política externa anticomunista do governo Nixon, de apoio à ditadura.
Nesse sentido, argumentamos que o contexto político da época e as características e
fraquezas institucionais da CIDH nesse período impactaram de maneira decisiva e negativa
sua atuação, na medida em que esses fatores eram favoráveis aos defensores do status
quo no interior da Comissão, aqui caracterizados de acordo com o modelo de Mahoney e
Thelen (2010) como parasitas simbiontes ou predadores institucionais, i.e., comissionados
mais preocupados com a defesa dos governos do que com os direitos humanos e com o
fortalecimento institucional da CIDH. Desse modo, o quadro político-institucional da época
permitiu a negligência da CIDH frente a uma série de abusos ao fortalecer o peso desses
comissionados. Explorando a CIDH de acordo com as suas próprias conveniências políticas
e de seus governos, eles eram contrários à promoção efetiva dos direitos humanos e à ação
de inovadores institucionais, i.e., outros comissionados comprometidos com a denúncia das
violações e com a transformação do Brasil em alvo efetivo de críticas.
Enquadramento teórico-analítico
Assim como muitos outros arranjos institucionais domésticos e internacionais, a
CIDH e demais órgãos do sistema interamericano de direitos humanos estão sujeitos a
diferentes padrões de mudanças. Tendo em mente o desafio analítico de entender essas
dinâmicas, com destaque para o papel dos agentes responsáveis por impulsionar ou
dificultar processos de mudança institucional, Mahoney e Thelen afirmam que “as
características tanto do contexto político quanto da instituição em questão direcionam
conjuntamente o tipo de mudança institucional que nós podemos esperar” (Mahoney;
3
Thelen, 2010, p. 15). Nesse sentido, para entender o desempenho da CIDH, é preciso
analisar esses dois vetores.
No início dos anos de 1970, as condições políticas não eram propícias para uma
atuação mais pronunciada da CIDH no sentido de emissão de críticas contra o Brasil. No
que tange ao contexto político e ao peso de forças pró-status quo, contrárias a qualquer tipo
de crítica à ditadura militar brasileira, deve-se destacar: a confrontação ideológica da Guerra
Fria; o predomínio dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos; a importância
geoestratégica do Brasil na luta anticomunista; o fato de que a defesa dos direitos humanos
não era prioridade para a OEA; a falta de cooperação e de resposta expedita às críticas pelo
Brasil; e a ausência de uma rede transnacional de ativismo em direitos humanos que
eventualmente oferecesse informações de qualidade à CIDH sobre o contexto local além de
auxiliá-la a pressionar e monitorar o Estado.
Por outro lado, no aspecto institucional, a composição conservadora, suscetibilidade
a ingerências externas dos Estados, fraqueza estrutural, falta crônica de recursos e
isolamento institucional da CIDH dentro da OEA tampouco eram conducentes a uma
atuação mais incisiva pró-direitos humanos. Ainda pouco consolidada, com estrutura débil e
sem um histórico prévio importante de atuação havia ora incapacidade institucional e
ausência de ferramentas para processar as denúncias, ora espaço e margem que
favoreciam interpretações e aplicações restritivas das regras de admissibilidade e
julgamento das petições relativas a denúncias de violações por parte dos comissionados.
Todos esses fatores fortaleciam a posição dos comissionados pró-governos
caracterizados como parasitas simbiontes1 e dificultavam a emissão de críticas, as quais
encontravam fortes resistências institucionais e extra-institucionais de poderosos atores,
ainda mais frente a uma ditadura que se notabilizou pela legalização e judicialização da
repressão (Pereira, 2010), que contribuía para uma percepção internacional mais positiva
sobre o que ocorria no país. Frente a essa confluência político-institucional, tal como
previsto pelo modelo de Mahoney e Thelen, adquiriram força no interior da CIDH os
parasitas simbiontes, “predadores” institucionais que sistematicamente minaram suas
regras, “instrumentaliz[ando] seus dispositivos enquanto violavam seu espírito” (ibidem, p.
13), com vistas sempre a impedir que a CIDH abandonasse seu papel de irrelevância
política e se tornasse crítica das violações da ditadura brasileira.
1 Parasitas simbiontes são atores que “exploram uma instituição em nome de ganhos privados (…)
[engendrando] ações que contradizem o “espírito” ou propósito da instituição, minando-o assim no longo prazo” (Mahoney; Thelen, 2010, p. 24). Buscam a preservação do status quo que lhes favorece, ainda que a expensas do cumprimento do mandato da instituição, que passa a manifestar um comportamento de negligência e omissão frente à sua missão institucional original. As condições políticas e institucionais enfrentadas pela CIDH no início dos anos de 1970, contrárias à defesa dos direitos humanos, deram força para esses atores quando denúncias sobre a ditadura brasileira chegavam ao órgão.
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Diante de tal panorama político-institucional amplamente desfavorável enfrentado
pela CIDH, os comissionados ora decidiram em favor de interpretação restritiva das regras
que justificava a falta de enforcement, de pressões e de críticas, ora sofreram os efeitos de
estratégias e manobras procedimentais dilatórias do Estado e inclusive de membros da
CIDH, ora não foram capazes, nos seus poucos momentos de emissão incisiva de críticas,
de fazer com que elas tivessem acolhida e reverberação nos órgãos políticos da OEA e em
outros espaços internacionais. Confrontada com o caso brasileiro, a CIDH continuou a se
comportar e aplicar suas regras de acordo com sua postura tradicional de irrelevância
política e deferência aos Estados, com apenas dois episódios de notável exceção, como se
nada tivesse ocorrido e fosse possível ignorar a situação. Na próxima seção, destrinchamos
historicamente esse processo.
Os casos da ditadura militar brasileira na CIDH
A análise dos relatórios anuais da Comissão referentes ao período de 1969 a 1973
revela que a CIDH recebeu ao menos 77 petições contra o Brasil, das quais apenas 20
foram aceitas como casos concretos, o que demonstra como o organismo ignorava a
maioria das denúncias relativas ao país (Santos, 2009, p. 479). Do universo desses casos
concretos, para além da petição 1678 e de denúncia contra a lei de imprensa, ambas
consideradas inadmissíveis2, os relatórios anuais da Comissão Interamericana de 1970 a
1975 fazem referência expressa a apenas 16 casos, todos relativos a práticas de violência
política do aparato de repressão estatal3.
2 A petição 1678 denunciava perseguições sofridas pelo advogado Salomão da Silva por parte da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) do Rio Grande do Sul. Já a denúncia sobre a lei de imprensa, de outubro de 1967, foi a primeira contra a ditadura e alegava que a legislação promulgada pelo general Castelo Branco violava os direitos humanos. 3 Os casos são os seguintes: 1683 (morte de Olavo Hanssen), 1684 (assassinato do Padre Henrique Pereira
Neto e casos de tortura e de prisioneiros políticos), 1697 (detenção arbitrária e maus-tratos contra Heleno Cláudio Fragoso, Augusto Sussekind de Moraes Rego e George Tavares, advogados da cidade do Rio de Janeiro), 1700 (detenção arbitrária do casal de físicos Ernest Wolfgang Hamburger e Amélia Império Hamburguer), 1740 (detenção de dois líderes camponeses no Maranhão), 1746 (condição dos presos políticos do presídio Tiradentes de São Paulo e transferência de muitos deles para outras prisões), 1769 (prisão do sacerdote François Jentel e de outros membros do clero da diocese de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, dentre os quais o bispo Pedro Casaldáliga), 1772 (inúmeros casos de detenções arbitrárias e torturas contra presos políticos), 1788 (detenção do menor Ivan Axelrud de Seixas e enumeração de 104 assassinatos), 1789 (detenção arbitrária do ex-deputado estadual por Santa Catarina Paulo Stuart Wright), 1835 (prisão de 53 pessoas pela polícia política, com atenção especial para a detenção do advogado e oficial do Exército Wellington Rocha Cantal), 1841 (detenção arbitrária da Sra. Maria Mascellani), 1844 (detenção e desaparecimento de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho na cidade do Rio de Janeiro), 1846 (prisões de professores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, CEBRAP), 1897 (detenção arbitrária do casal Wilson Silva e Ana Rosa Kucinsky Silva em São Paulo), 1962 (desaparecimento de Ísis Dias de Oliveira). Com relação ao caso 1962, o relatório anual da CIDH de 1975 não menciona sequer o resumo da denúncia, apresentando apenas a numeração da petição e as datas de troca de comunicações entre o Brasil e a Comissão, de tal modo que se deve ao trabalho de Teles (2005, p. 104) a identificação do caso. Para além desses dezesseis casos, a CIDH instaurou ainda quatro outros casos entre 1970 e 1975 que não aparecem em seus relatórios anuais do período, mas que foram encontrados pelo autor em documento oficial da CIDH de 6 de maio de 2014, enviado à Comissão Nacional da Verdade (CNV) com uma listagem de todos os casos de violações da
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Embora não seja possível definir em que medida exata esse padrão de
comportamento da CIDH de ignorar muitas das denúncias respondia a considerações e
cálculos políticos dos comissionados, à ausência de recursos materiais, a questões relativas
ao não preenchimento dos requisitos formais de admissibilidade ou ainda à falta de
consistência documental dos casos, esse foi o padrão dominante de comportamento que se
repetiria também no período 1976-1980, quando, ainda de maneira mais grave, a CIDH
sequer mencionou o recebimento de denúncias e abertura de 14 casos contra o Brasil em
seus relatórios anuais. Somente em duas oportunidades excepcionais, nos casos 1683 e
1684, a Comissão se opôs frontalmente ao Estado brasileiro, considerando-o culpado pelas
violações relatadas.
O primeiro caso brasileiro de grande repercussão na CIDH referia-se à prisão
arbitrária, tortura e homicídio de Olavo Hanssen, líder sindical, em maio de 1970, morte essa
que foi apresentada como um suicídio pela ditadura. Frente à denúncia, tramitada como
caso 1683, em outubro de 1970, durante sua 24ª. sessão, a CIDH decidiu designar o
comissionado norte-americano Durward V. Sandifer como relator do caso4. Ademais, a
Comissão pediu ao governo brasileiro permissão para que o seu secretário-executivo e
Sandifer realizassem uma visita in loco ao Brasil (ibidem). Em janeiro de 1971, o Estado
brasileiro finalmente respondeu as solicitações e pedidos de informação da CIDH,
reafirmando a versão do suicídio e negando a permissão para a visita dos integrantes da
Comissão (ibidem).
A despeito da recusa do governo brasileiro, Sandifer prosseguiu com a análise do
caso 1683 e apresentou em março de 1971, durante o 25º. período de sessões da CIDH, um
relatório com conclusões e recomendações (Doc. 7-25) (ibidem), o qual foi alvo de
observações de Carlos Alberto Dunshee de Abranches, comissionado brasileiro defensor da
ditadura brasileira que permaneceu na CIDH durante quase todo o regime militar, entre 1964
e 1983, ano de sua morte (Dykmann, 2008, p. 485).
Abranches era professor de Direito Internacional na Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ). Ele era um conservador e forte defensor do princípio de não intervenção
com vínculos com as classes altas brasileiras e o regime militar, para quem atuou de
maneira comprometida, a ponto de ser reconhecido como parceiro confiável (Dykmann,
época da ditadura militar tramitados pelo sistema interamericano. Nesse documento, os casos são identificados da seguinte maneira: 1764 (João Guedes da Silva, recebido em 1973), 1768 (Antônio L. dos Santos, recebido em 1973), 1920 (expulsão do Brasil do reverendo Fred B. Morris, recebido em 11 de abril de 1975) e 1999 (Manoel Conceição dos Santos, recebido em 1975). Na verdade, em razão dos problemas de inconsistência dos dados da CIDH, é possível que a Comissão tenha em algum momento unido no mesmo trâmite os casos 1999 e 1768, enumerando-os como 1740, muito embora não se possa afirmar isso. Desse modo, dada essa dúvida, conclui-se que, no total, entre 1970 e 1975, considerando a petição 1678, a CIDH tramitou 19 ou 21 casos individuais sobre o Brasil. 4 CIDH, ‘Informe Anual de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos 1971’, OAS/Ser.L/V/II/.27, Doc. 11
rev. 6 marzo 1972, Parte III – comunicaciones y reclamaciones, http://www.cidh.oas.org/annualrep/71sp/parte3.htm#2.
6
2008, p. 89; CNV, 2014, p. 208). Desde a adoção do estatuto da CIDH de 1979, os
comissionados têm mandatos de quatro anos e possibilidade de uma reeleição, mas, antes
disso, durante as décadas de 1960 e 1970, essas regras não existiam, o que permitiu o seu
longo mandato. Ademais, nessa época ainda era permitido que um comissionado como
Abranches se pronunciasse a respeito de casos e investigações sobre seu país de origem, o
que só seria proibido em 1985, uma clara evidência da fraqueza e debilidade da CIDH, que
ainda não havia criado regras e salvaguardas institucionais para se proteger de ingerências
externas explícitas e de manipulações dos seus comissionados por parte dos Estados.
Como resultado das observações de Abranches, ainda no 25º. período de sessões
da CIDH, Sandifer apresentou um segundo relatório sobre o caso 1683 (Doc. 37-25), no
qual problematizava pela primeira vez aspectos do suposto suicídio de Hanssen. Tanto o
primeiro quanto o segundo relatório foram aprovados com apenas um voto contrário, de
Abranches5.
Frente a informações adicionais proporcionadas pelos peticionários, Sandifer
apresentou, no 26º. período de sessões (outubro-novembro de 1971), um terceiro relatório
propondo a continuação do exame do caso6. A medida foi aprovada pelos integrantes da
CIDH com exceção de Abranches, contrário ao andamento do caso. Assim, apesar dessa
tática obstrucionista, no 27º. período de sessões (fevereiro-marco de 1972), Sandifer
formulou um quarto relatório sobre o caso que continha diversas recomendações e um
projeto de resolução. Porém, ao final, a CIDH concordou novamente em postergar a decisão
terminativa sobre o tema, e solicitou a Sandifer a preparação de um novo informe que
levasse em consideração as observações dos demais comissionados (ibidem).
Consequentemente, em razão desse acordo, no 28º. período de sessões (maio de
1972), Sandifer apresentou o quinto relatório sobre o caso 1683, o qual serviria de
fundamento para a resolução final da CIDH (CIDH, Informe Anual 1973). Nesse informe, o
relator criticava, em primeiro lugar, a negação do pedido de visita in loco pelo governo
brasileiro e considerava que a denúncia “configurava “prima facie” um caso gravíssimo de
violação do direito à vida” (ibidem). A CIDH confirmou tais conclusões e aprovou uma
resolução que solicitava o julgamento dos culpados e oferta de reparação aos familiares de
Hanssen (ibidem).
Mais uma vez, Abranches foi o único dos comissionados a se opor a essas decisões,
solidificando sua posição de defensor da ditadura militar brasileira no âmbito da CIDH. Em
27 de abril de 1973, durante seu 30º. período de sessões, os membros da Comissão 5 CIDH, ‘Informe Anual de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos 1973’, OEA/Ser.L/V/II.32, Doc. 3
rev. 2, 14 febrero 1974, Parte 3 – observaciones respecto de comunicaciones recibidas, Brasil, http://www.cidh.oas.org/annualrep/73sp/sec.1.Brasil.htm. 6 CIDH, ‘Informe Anual de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos 1972’, OEA/ Ser.L/V/II/.29, Doc. 41
rev. 2, 13 marzo 1973, Parte 3 – comunicaciones y reclamaciones, http://www.cidh.org/annualrep/72sp/sec.2a.htm.
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decidiram manter sua resolução original, com exceção de Abranches. A decisão foi
transmitida ao governo brasileiro, cujo embaixador perante a OEA apresentou à Comissão
uma nota de repúdio estridente em 12 de outubro de 1973.
Em seu 31º. período de sessões, ocorrido em outubro de 1973, tendo em vista a não
adoção das medidas recomendadas na resolução de maio de 1972 que haviam sido
confirmadas em 27 de abril de 1973, a Comissão decidiu publicar a sua decisão sobre o
mérito do caso Hanssen no seu relatório anual de 1973, o qual foi posteriormente
encaminhado à Assembleia Geral da OEA em abril de 1974. Tal resolução foi transmitida ao
governo brasileiro em 8 de janeiro de 1974, mais uma vez com voto contrário de Abranches.
Além do episódio envolvendo a morte sob tortura de Olavo Hanssen, a CIDH
também incluiu nesse seu mesmo relatório de 1973 à Assembleia Geral da OEA uma série
de recomendações relativas ao caso 1684. Aberto a partir de três comunicações distintas
enviadas à CIDH em junho e julho de 1970, essa petição abordava dezenas de episódios de
tortura, a situação de milhares de presos políticos no Brasil e o caso de detenção arbitrária,
tortura e assassinato, em 1969, do padre Antônio Henrique Pereira Neto, assistente do
arcebispo Dom Hélder Câmara em Recife.
Em 18 de setembro de 1970, juntamente com o caso 1683, Sandifer, relator do caso,
enviou uma solicitação de informações e pedido para visita in loco ao governo brasileiro
(CIDH, Informe Anual 1973). Porém, assim como no caso Hanssen, o governo brasileiro
negou não só o quadro de violações e o pedido de visita, mas a própria existência de presos
políticos no país. Valendo-se do contexto político da Guerra Fria, da importância geopolítica
do Brasil na confrontação bipolar e do grande peso da agenda anti-comunista no âmbito da
OEA, avalada pelo governo Nixon, a ditadura buscava legitimar suas práticas e evadir-se
das críticas.
Encarregado de elaborar um relatório com conclusões e recomendações a respeito
da denúncia, Sandifer adotou um tom combativo nas suas considerações de março de 1971.
O comissionado Abranches se opôs às considerações, mas seu voto foi vencido e
prevaleceu o relatório de Sandifer, ao qual o Estado brasileiro respondeu em agosto de
1971 com um pedido de prorrogação do prazo para o envio das informações requeridas, um
claro indício de manobra protelatória da diplomacia brasileira para alongar as discussões,
ganhar tempo e tentar dissipar as pressões, a qual se coadunava com as negativas de
pedidos formulados pela CIDH e não reconhecimento de suas críticas por parte do Estado.
A extensão foi concedida e, durante o seu 27º. período de sessões (fevereiro-março
de 1972), a CIDH voltou a examinar o caso 1684. Sandifer apresentou então um terceiro
relatório sobre a denúncia, a qual ele caracterizou como “um dos mais extensos e
complicados expedientes submetidos à Comissão” (ibidem). Defrontada até então apenas
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com casos de menor relevância, era de fato um desafio novo para uma CIDH ainda na sua
infância e permeada por tantos problemas políticos e institucionais se pronunciar a respeito
de um novo fenômeno na América Latina, as políticas de terrorismo de Estado em larga
escala. Dada a complexidade do caso, a Comissão decidiu celebrar um período
extraordinário de sessões para examinar a matéria entre 1 e 5 de maio de 1972, quando
Sandifer apresentou, com a ajuda de Justino Jiménez de Aréchaga, um quarto relatório
sobre a petição.
Nessa ocasião, a Comissão decidiu, em primeiro lugar, que o caso 1684 era um
“caso geral” de violações de direitos humanos que dispensava o esgotamento dos recursos
jurisdicionais internos para ser apreciado (ibidem). Logo em seguida, aprovou-se, com o
voto contrário de Abranches, uma resolução que, dentre outros aspectos, declarava existir
uma “veemente presunção de que ocorreram no Brasil graves casos de tortura, vexações e
maus tratos” (ibidem).
A resposta brasileira à resolução foi remetida à CIDH apenas em 3 de abril de 1973,
quase um ano após a comunicação da Comissão, o que demonstrava claramente o
empenho do Itamaraty e do regime militar de mais uma vez dificultar e alongar o processo
de investigação para emperrar as atividades da CIDH, na expectativa de que as críticas se
dissipassem com o tempo. Em sua nota, o Estado solicitava a reconsideração da resolução
e revisão do caso. Em resposta, a CIDH decidiu considerar a reclamação em razão da
complexidade da matéria. De toda forma, apesar dessa aparente concessão, em 27 de abril
de 1973, a Comissão decidiu aprovar o relatório de Aréchaga sobre o caso, confirmando
assim todas as recomendações de sua resolução original de maio de 1972, a despeito do
contundente pedido de revisão do governo brasileiro e do voto contrário de Abranches
(ibidem).
Em resposta, em de 12 de outubro de 1973, o embaixador brasileiro ante a OEA
manifestou o repúdio do Estado. Ainda nesse mesmo mês, frente à nota da diplomacia
brasileira, a CIDH aprovou um novo relatório sobre o caso 1684 no qual manteve suas
recomendações. Redigido pelo comissionado argentino Genaro R. Carrió, esse informe foi
aprovado pela maioria dos integrantes da CIDH, com exceção novamente de Abranches
(ibidem).
Tal como no caso 1683, a postura desafiante do Estado brasileiro de não adotar as
medidas sugeridas levou a Comissão a publicar suas recomendações no seu relatório anual
de 1973, posteriormente encaminhado à Assembleia Geral da OEA em 1974. Todavia,
embora as conclusões da CIDH nesse caso e no de Olavo Hanssen sinalizassem críticas
importantes, seus efeitos foram praticamente nulos e inócuos, em grande medida devido
aos inúmeros constrangimentos políticos e institucionais enfrentados pela CIDH que, ao
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final, contribuíram para o sucesso dos esforços obstrucionistas de Abranhes e da diplomacia
brasileira. Desde o ingresso dos casos 1683 e 1684 na CIDH, em 1970, passaram-se quase
quatro anos até a decisão final desse organismo, período no qual a estratégia
procrastinadora do governo brasileiro havia conseguido atrasar ao máximo a resolução das
investigações por meio da hábil instrumentalização das regras de tramitação das petições,
as quais permitiam a apresentação de vários recursos e concediam aos governos longos
períodos para a resposta às acusações (Green, 2009, p. 303).
No âmbito institucional, o processo deliberativo da CIDH era bastante lento e países
acusados de violações de direitos humanos dispunham em geral de 180 dias para
responder as denúncias e entregar o material correspondente à CIDH (ibidem, p. 286), o
que gerava espaço para esse tipo de táticas. Ademais, o Itamaraty havia instruído
Abranches a emperrar a investigação, tal como fica evidente nos seus repetidos votos
contrários e tentativas de protelar ao máximo as discussões. Em documento do grupo de
trabalho interministerial, instância criada em 1974 com o Itamaraty e outros órgãos para
propor diretrizes e manobras de atuação diplomática dentro da ONU, OEA e contra críticas
internacionais relativas a violações de direitos humanos que ameaçavam sua imagem, a
ditadura deixava claro que
“embora tanto na OEA quanto na ONU se sustente a ficção da representação, nos órgãos em apreço, em caráter pessoal, os membros brasileiros, embora mantendo as aparências, atuarão como agentes do governo, zelando por que as alegações e denúncias contra nós sejam rejeitadas, desacreditadas ou tenham seu exame adiado, levantando todas as suspeições cabíveis sobre sua credibilidade”7.
Sobre a atuação específica de Abranches frente aos casos 1683 e 1684, o Ministro
das Relações Exteriores Azeredo da Silveira considerava que “tem tido procedimento
correto na comissão, com relação aos casos que envolvem o Brasil. Caso venha a assumir
a Presidência do órgão, pelo sistema de rodízio, o professor Dunshee de Abranches poderá
tornar-se elemento-chave para impedir a publicação dos dossiers”8. Nesse cenário, “o
governo brasileiro passou a ter como objetivo geral impedir ou, senão, protelar a divulgação
do documento [com as conclusões sobre os casos 1.683 e 1.684]” (CNV, 2014, p. 208). Em
documento oficial da época sem data e sem assinatura, revela-se de maneira clara essa
estratégia: “Efetivamente, quanto maior for o tempo decorrido entre os fatos tratados nos
7 Processo DICOM nº 59.947, de 11 de julho de 1975 (Arquivo Nacional, DSI/MJ:
BR_RJANRIO_TT_O_MCP_PRO_432, p. 6). 8 Arquivo CNV, 00092.000272/2015-12: Informação para o presidente da República, assinada pelo ministro de
Estado das Relações Exteriores, Antonio F. Azeredo da Silveira, Índice: CIDH. Casos nos 1.683 e 1.684. p. 23.
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casos 1.683 e 1.684 e a divulgação dos relatórios que sobre eles pretende publicar a CIDH,
menor será sua repercussão internacional”9.
Além disso tudo, em colusão com a ditadura, Abranches tinha a estratégia não só de
prolongar a discussão dos casos, mas de também promover um adensamento burocrático e
processual, aumentando ao máximo o volume de material probatório repetitivo e inútil
enviado pelo Estado à CIDH. Abranches exigia que os casos 1683 e 1684 fossem
publicados por extenso e com a totalidade dos vastos documentos da defesa brasileira com
vistas a dificultar sua publicação. Aproveitando-se da debilidade estrutural da CIDH e da sua
crônica falta de recursos materiais, Abranches esperava gerar embaraços para a divulgação
dos casos pela Comissão em seu relatório, problema real que inclusive levou Luis Reque,
secretário executivo da CIDH, a buscar fontes alternativas de financiamento e a considerar
repassar o material para divulgação da imprensa10.
Assim, em meio a tantos obstáculos, as observações que denunciavam a tortura e os
assassinatos no Brasil só foram encaminhadas à Assembleia Geral da OEA em 1974, no
momento em que o mais brutal dos generais, Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), já
havia deixado o poder e quando a atenção internacional se concentrava na ditadura chilena
(Green, 2009, p. 304). Porém, como se não bastasse, a Assembleia Geral da OEA
simplesmente arquivou as recomendações e observações finais da CIDH sobre os dois
casos após recebê-las (ibidem, p. 303), e a Comissão não tomou novas medidas a fim de
impulsioná-las (ibidem, p. 304).
Mais uma vez, o contexto político da época – ou, mais especificamente, a
confluência da política externa norte-americana e da agenda anticomunista –, quando
somado às relações institucionais distantes entre a CIDH e os órgãos políticos da OEA,
compunha um quadro que não favoreceu a atuação da Comissão, ajudando a explicar o
destino dos dois casos e o desempenho institucional da CIDH, tal como pretendido por
Abranches, o parasita simbionte por excelência. Diferentemente do que viria a ocorrer anos
mais tarde, já sob a presidência de Jimmy Carter, o embaixador dos Estados Unidos seguiu
a diretriz do governo Nixon de bloquear as críticas ao Brasil, importante aliado geopolítico, o
que sepultou de vez qualquer possibilidade de que a Assembleia Geral levasse em
consideração as conclusões da CIDH (Green, 2009, p. 304). Como resultado, a CIDH não
foi capaz de conceder maior publicidade aos seus relatórios sobre os abusos cometidos pela
ditadura militar brasileira nessa fase, e na Assembleia Geral da OEA de 1974 os esforços da
9 Arquivo CNV, 00092.000272/2015-12: Regulamento da CIDH, item 2, artigo 57: “Se a Assembleia Geral ou a
Reunião de Consulta não formularem observações às recomendações da comissão e se o governo aludido no relatório não tiver adotado as medidas recomendadas, a comissão poderá publicar seu relatório”. pp. 20-21. 10
Cf. Arquivo CNV, 00092.000272/2015-12: Arquivo do MRE, Referência: Informações ao Presidente, 1976. A edição de 2 de junho de 1974 do Washington Post divulgou informações sobre os casos 1683 e 1684, o que foi interpretado pelo governo brasileiro como vazamento de informações por Luis Reque.
11
Comissão no sentido de atrair atenção para os casos do Brasil não foram bem-sucedidos
(Dykmann, 2008, p. 217).
Ademais, do ponto de vista institucional, Dykmann (2008) observa que, até meados
da década de 1970, prevalecia também um acordo informal no âmbito da OEA que teria
dificultado ainda mais os esforços da CIDH de conceder uma maior visibilidade à situação
dos direitos humanos no Brasil. Até 1976, “a CIDH tinha sido isolada dentro do Secretariado
Geral e também ignorada pelo Conselho Permanente e Assembleia Geral” (Dykmann, 2008,
p. 201), de tal modo que até essa data os relatórios da CIDH não eram ainda discutidos nas
sessões dos principais órgãos políticos da OEA. Dado o peso da agenda da OEA, dominada
pela pauta anticomunista de rechaço ao “terrorismo político de esquerda”, “A Assembleia
Geral costumava comentar os Relatórios Anuais da CIDH com uma simples fórmula
padronizada, com a qual meramente agradecia sem especificações a Comissão por seu
valioso trabalho” (Dykmann, 2008, p. 188). Debates de tópicos controversos eram evitados,
bem como a prática de condenar Estados membros, e apenas resoluções vagas eram
adotadas nos temas de direitos humanos.
Além disso, no âmbito político-diplomático, a atuação do Brasil também emperrava a
atuação da CIDH. O governo brasileiro pressionou diretamente o Secretário-Geral da OEA
para que os casos 1683 e 1684 não fossem publicados e pediu ainda o afastamento do
secretário executivo da CIDH, Luis Reque11, além de desenvolver uma estratégia claramente
obstrucionista que consistia em
“gestões não somente junto ao representante da Bolívia [na OEA], para que fossem feitas “pressões moderadoras” sobre o cidadão boliviano Luiz Reque, como também gestões junto aos representantes de cada país de que era nacional cada um dos seis outros membros da CIDH: Venezuela (Andrés Aguilar, então presidente da CIDH), Argentina (Genaro Carrió), Chile (Manuel Bianchi), Estados Unidos (Robert E. Woodward), México (Gabino Fraga) e Uruguai (Justino Jiménez de Aréchaga)” (CNV, 2014, p. 210).
Porém, para além desses fatores políticos, institucionais e diplomáticos, vale
ressaltar que a correlação de forças e prevalência de acordos informais entre os próprios
comissionados no interior da CIDH também impediram que o Brasil fosse criticado de
maneira mais enfática pelo órgão entre 1970 e 1975, fortalecendo o papel de comissionados
mais conservadores e de Abranches enquanto parasita simbionte. Quando da chegada dos
casos brasileiros à Comissão, no início dos anos 1970, era ainda bastante forte dentro da
11
Segundo o informe da CNV, “o representante permanente do Brasil na OEA, o embaixador Paulo Padilha Vidal, foi instruído a manifestar ao secretário-geral da organização, o diplomata argentino Alejandro Orfila, que o Brasil não aceitaria a publicação de nenhum fato relacionado com os casos 1.683 e 1.684, e que era desejo do governo brasileiro o arquivamento do dossiê sobre o Brasil. Além disso, houve também instruções no sentido de solicitar ao secretário-geral da OEA o afastamento para outras funções do sr. Luis Reque, secretário executivo da CIDH” (CNV, 2014, p. 210).
12
CIDH a ala dos comissionados conservadores e defensores dos Estados, composta por
Abranches, Manuel Bianchi, comissionado chileno, e Gabino Fraga, comissionado
mexicano, cujos nomes haviam sido propostos conjuntamente e de maneira articulada,
como parte de uma aliança trilateral, por Brasil, Chile e México durante o processo de
eleição de comissionados em 1968. Em meio a esse ambiente interno da CIDH, no qual não
era raro o favorecimento e proteção dos governos (Dykmann, 2008, p. 97), havia um
aparente “acordo de cavalheiros” que dificultava a realização de relatórios críticos e
controversos a respeito dos dois maiores países latino-americanos, Brasil e México, em
razão da sua importância geoestratégia na região e, sobretudo, para a política externa norte-
americana (Dykmann, 2008, pp. 150; 160-161; 217).
Essa situação de resistências no interior da CIDH, sustentada pelos vários fatores
políticos, institucionais e diplomáticos que dificultavam as atividades da Comissão,
direcionava o órgão no sentido da negligência silenciosa frente às denúncias. Nesse
sentido, o fato de que a estrutura institucional da Comissão fosse ainda muito precária, sem
recursos e com poucos funcionários bem treinados apenas contribuiu para reforçar esse
padrão (Dykmann, 2008, p. 95). Entre 1970 e 1975, havia, para além do Secretário
Executivo, apenas dois advogados trabalhando na Secretaria da Comissão, sem mencionar
o resto da equipe que era claramente alheia às questões de direitos humanos (ibidem, p.
95). Esse quadro só começaria a mudar a partir de 1977, com os esforços do governo
Carter de fortalecer a estrutura organizacional da Comissão (ibidem, p. 94).
Consequentemente, em razão desse contexto institucional, da composição da CIDH
e do cenário político e diplomático da época, não prosperou a tentativa de transformar o
Brasil em uma prioridade da agenda da Comissão. Para além dos casos 1683 e 1684, o
Brasil não foi alvo de nenhum relatório especial da Comissão e mesmo no andamento dos
demais casos tramitados ficava visível a incapacidade da CIDH de explorar a potencialidade
das denúncias a fim de pressionar com mais força o regime militar. Dos 14 outros casos
recebidos por esse organismo a respeito de violações cometidas pelos agentes da
repressão da ditadura militar sobre os quais há informações publicadas nos relatórios anuais
da CIDH desse período, dois foram considerados inadmissíveis (casos 1740 e 1746), cinco
foram arquivados (casos 1700, 1697, 1772, 1789 e 1841) e os restantes sete casos (1769,
1788, 1835, 1844, 1897, 1846, 1962) não tiveram qualquer tipo de análise conclusiva, o que
muito provavelmente deve ter redundado no seu arquivamento maciço, já que depois do
relatório anual de 1975 da CIDH não são feitas quaisquer referências ou menções ao seu
andamento.
13
No entanto, dados propiciados pela CIDH para a Comissão Nacional da Verdade
(CNV) em 201412 revelam que, apesar desse silêncio absoluto sobre o Brasil a partir de
1976, a Comissão recebeu várias outras denúncias de abusos de direitos humanos que a
levaram a tramitar novos casos individuais até o final da década de 1970, os quais, de todo
modo, não mereceram qualquer publicação ou menção em seus relatórios anuais
correspondentes. No total, entre 1976 e 1980, a CIDH recebeu uma série de queixas que a
levaram a instaurar catorze casos adicionais, dos quais onze se referiam a violações
cometidas no Brasil e três eram relativos à Operação Condor13. Apesar do caráter
emblemático e da importância política que alguns desses casos adquiriram, como no que diz
respeito ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog, a CIDH não tornou público o
andamento dessas petições e nem exerceu qualquer tipo de pressão observável contra o
Brasil.
A despeito dessa postura institucional de negligência silenciosa e dos inócuos
resultados dos únicos dois momentos de crítica mais explícitos da CIDH nos casos 1683 e
1684, é preciso reconhecer que, embora restrito em seus efeitos, o trabalho da CIDH
fortaleceu as campanhas de denúncia realizadas no exterior contra o regime militar
brasileiro e demonstrou a disposição que pelo menos alguns comissionados possuíam de
denunciar os abusos de direitos humanos e de conceder à CIDH um papel de maior
protagonismo e independência que poderia eventualmente afastá-la da agenda
anticomunista da OEA. Desse modo, se, durante a chegada dos casos brasileiros, no início
dos anos 1970, a rede latino-americana de direitos humanos que ganharia destaque nos
casos das ditaduras do Chile (1973-1990), Argentina (1976-1983) e Uruguai (1973-1985)
ainda não havia se formado (Sikkink, 2006), o exemplo da experiência e postura da CIDH
frente ao Brasil, embora limitado, tímido e débil, gerou um efeito de aprendizado tanto para a
Comissão quanto para os ativistas de outros países, que passaram a enxergar no sistema
interamericano um espaço possível de denúncia e shaming contra governos autoritários.
Até então, a CIDH havia se ocupado ora de episódios menores e sem grande
repercussão, ora de uma pauta vinculada estritamente à agenda hemisférica anticomunista
dos Estados Unidos, como nas reiteradas denúncias contra Cuba. As divisões no interior da
12
‘Memorando de entendimento entre a Comissão Nacional da Verdade da República Federativa do Brasil e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos para o acesso à documentação para o esclarecimento de graves violações aos direitos humanos’, 6 de maio de 2014. 13
Os casos de violações ocorridas no Brasil são os seguintes: 2014 (José Manuel Fiel, recebido em 1976), 2028 (Moisés Wainstein, cuja data de recebimento não está disponível), 2065 (Lysaneas Maciel, recebido em 1976), 2067 (Ieda Santos Delgado, recebido em 1976), 2085 (Teodoro Ghercoy, recebido em 1976), 2572 (Vladimir Herzog, recebido em 1977), 2577 (presas políticos de Bangu, recebido em 1977), 2626 (João Drummond, recebido em 1977), 2627 (Newton Líbano da Silva, recebido em 1978), 3547 (Edval Nunes da Silva, recebido em 1978) e 7497 (Jorge Oscar Adur, recebido em 1980). Já os casos concernentes à Operação Condor, sobre os quais a CIDH não possui as datas de recebimento, possuem a seguinte numeração: 13409 (Norberto Armando Habegger), 24453 (Jorge Alberto Basso) e 32019 (Sidney Fix Marques dos Santos). Vale observar que muito possivelmente o caso 2014 tenha sido mal grafado pela CIDH e refira-se ao assassinato de Manoel Fiel Filho, operário metalúrgico.
14
CIDH, suas fraquezas institucionais, o contexto político desfavorável ao tema dos direitos
humanos na OEA e as práticas da diplomacia brasileira restringiram, de fato, tanto o alcance
e teor das decisões da Comissão quanto a eficácia das suas críticas, o que fomentou o
descrédito da CIDH entre muitos familiares das vítimas da ditadura e impediu a aproximação
e estruturação de uma relação mais sólida entre a Comissão e atores domésticos
brasileiros. Todavia, a articulação transnacional dos grupos denunciantes e atuação da
CIDH diante dos abusos da ditadura brasileira, embora incipientes e sem impacto
significativo, foram precursores da rede latino-americana de direitos humanos.
Considerações Finais
O golpe militar no Brasil em 1964 foi um prenúncio da onda autoritária que varreria
toda a América Latina, e o país se converteu no primeiro grande teste para a CIDH que, em
1969, completava apenas dez anos de uma existência opaca e pouca expressiva. Entre
1970 e 1980, a CIDH tramitou ao menos 33 casos de abusos cometidos pela ditadura
brasileira, muitos dos quais nunca foram sequer publicados14, e nos dois únicos casos em
que emitiu recomendações contrárias ao Brasil não conseguiu pressionar o país no sentido
de mudanças das suas práticas e políticas contrárias aos direitos humanos.
Em uma fase ainda anterior ao surgimento da rede transnacional latino-americana de
direitos humanos, marcada pela confrontação ideológica da Guerra Fria e pelo predomínio
dos interesses geopolíticos norte-americanos, vários fatores político-institucionais contrários
à proteção dos direitos humanos se combinavam para emperrar a atuação da Comissão
frente ao Brasil: o isolamento político da CIDH frente à Assembleia Geral, Conselho
Permanente e Secretaria Executiva da OEA até meados da década de 1970; sua debilidade
institucional, estrutura precária, falta de recursos e de pessoal treinado; correlação de forças
no interior da Comissão favorável à posição de parasitas simbiontes, comissionados
conservadores alinhados à agenda anti-comunista de direita, os quais defendiam a
prevalência do princípio de não-intervenção em favor dos Estados; e pressões diplomáticas
do Brasil, que tinha ascendência ainda sobre o comissionado Abranches. Como resultado
de todos esses constrangimentos institucionais e políticos favoráveis aos defensores do
status quo e contrários à proteção dos direitos humanos, as estratégias e ações de
lideranças mais progressistas e inovadores institucionais no interior da CIDH como Sandifer
e Jiménez de Aréchaga se viram limitadas por “predadores” institucionais como Abranches,
e nem mesmo a chegada posterior de uma nova ala de comissionados capitaneada por Tom
14
Entre 1970 e 1975, 19 ou 21 casos foram abertos, com base em ao menos 77 petições, e só os casos 1683 e 1684 tiveram recomendações publicadas, enquanto todos os outros foram considerados inadmissíveis ou arquivados. Entre 1976 e 1980, a situação foi ainda pior: 14 casos adicionais foram abertos pela CIDH, cujo silêncio foi absoluto, já que eles não foram sequer mencionados em seus relatórios.
15
Farer foi capaz de conceder atenção às petições sobre o Brasil enviadas após 1976, quando
a agenda da Comissão já se havia deslocado para os abusos cometidos no Chile e
Argentina.
A incapacidade da CIDH de confrontar a ditadura brasileira e seu silêncio frente a
dezenas de casos de denúncias produziram, por fim, efeitos de longo prazo na postura não
só de grupos de familiares de mortos e desaparecidos políticos, que levaram muito tempo
para redescobrir e apostar de novo no sistema interamericano (Bernardi, 2015), mas
também na posição de grupos brasileiros de direitos humanos, impactando negativamente o
grau de transnacionalização desses atores no âmbito hemisférico. O Brasil é um país
marcado pelo desconhecimento a respeito do SIDH, causado, dentre muitos fatores, pela
falta histórica de relevância do direito internacional e do direito internacional dos direitos
humanos na agenda de atores políticos e judiciais, com destaque para o Supremo Tribunal
Federal. Nesse sentido, o silêncio da CIDH não contribuiu para que ela se convertesse,
como ocorreu no Chile e Argentina, por exemplo, em um locus privilegiado de mobilização
política e legal de organizações brasileiras de direitos humanos (cf. Santos, 2007, p. 37;
Cavallaro, 2002), o que poderia ter ao menos tensionado esse padrão histórico de descaso
com o regime internacional de direitos humanos..
Em outras palavras, a incapacidade da CIDH de transformar o Brasil em caso
prioritário da sua atuação na primeira metade dos anos 1970 não levou à criação de uma
relação estruturada entre vítimas, militantes, ativistas e membros do sistema interamericano,
a qual poderia ter ajudado a desafiar o papel secundário e resistências em torno das normas
e mecanismos internacionais de direitos humanos no país. Ainda que decisões recentes da
CIDH e da Corte Interamericana de Direitos Humanos tenham tido expressiva visibilidade,
como no caso da lei Maria da Penha e da sentença da Guerrilha do Araguaia, persiste ainda
entre muitos grupos e atores domésticos o desconhecimento e percepção de irrelevância do
sistema interamericano de direitos humanos.
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16
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