significante semblante ricardo goldenberg

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Queridos cartelandos e mais-uma: visto e considerando que hei de mancar a nossa próxima reunião, penitencio-me trabalhando um pouco para o bem comum. Está aqui um singelo esforço em destrinchar esta noção de signifiant comme semblant par excellence, que me parece ser a real novidade de Lituraterre. Mais do que a noção de litoral e de letra que dela decorrem. Durante 20 anos o velho insistiu na divergência, na oposição até, entre simbólico e imaginário. Agora diz que o significante, quintessência do simbólico, não só é imaginário, como é “o imaginário por excelência”, e ninguém se coça. Todo mundo acena como se fosse óbvio: “Mais bien sur, Dr Lacan, c’est evident, j’ai toujours pensé ça!Portanto, cabe trinta anos depois perguntar-se: “que porra é essa?”: Fui consultar o Kant, meus amigos, e parece que ajuda. Kantemos seu nome: Antes, lembrete rápido da Escolástica: Transcendente quer dizer além da experiência. Transcendental quer dizer aquém da experiência (ou independente dela), postulado apriori (formalmente, portanto). Isto vem a propósito de que me parece que Frére Jacques está jogando com os conceitos kantianos de objeto transcendental e ideia transcendental. Acabei de ler uma novela de Philip Dick, Time out of joint. O protagonista está sentado ao balcão de uma padaria tomando um suco, deposita uma moeda para pagar, que atravessa o balcão e cai no chão. Imediatamente, tudo em volta desaparece, e ele fica em pé sozinho, num local vazio, com a moeda caída no chão e do lado dela um papel no qual está impresso em letras de forma: PADARIA. Em freudianês (tal como Jacquot o repensa), o papel escrito é o Vorstellungs-Repräsentanz. O representante que está no lugar (tenant-

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psicanalise

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  • Queridos cartelandos e mais-uma:

    visto e considerando que hei de mancar a nossa prxima

    reunio, penitencio-me trabalhando um pouco para o bem comum. Est

    aqui um singelo esforo em destrinchar esta noo de signifiant comme

    semblant par excellence, que me parece ser a real novidade de

    Lituraterre. Mais do que a noo de litoral e de letra que dela decorrem.

    Durante 20 anos o velho insistiu na divergncia, na oposio at, entre

    simblico e imaginrio. Agora diz que o significante, quintessncia do

    simblico, no s imaginrio, como o imaginrio por excelncia, e

    ningum se coa. Todo mundo acena como se fosse bvio: Mais bien

    sur, Dr Lacan, cest evident, jai toujours pens a! Portanto, cabe

    trinta anos depois perguntar-se: que porra essa?:

    Fui consultar o Kant, meus amigos, e parece que ajuda.

    Kantemos seu nome:

    Antes, lembrete rpido da Escolstica:

    Transcendente quer dizer alm da experincia.

    Transcendental quer dizer aqum da experincia (ou

    independente dela), postulado apriori (formalmente, portanto).

    Isto vem a propsito de que me parece que Frre Jacques est

    jogando com os conceitos kantianos de objeto transcendental e ideia

    transcendental.

    Acabei de ler uma novela de Philip Dick, Time out of joint. O

    protagonista est sentado ao balco de uma padaria tomando um suco,

    deposita uma moeda para pagar, que atravessa o balco e cai no cho.

    Imediatamente, tudo em volta desaparece, e ele fica em p sozinho,

    num local vazio, com a moeda cada no cho e do lado dela um papel

    no qual est impresso em letras de forma: PADARIA. Em freudians (tal como Jacquot o repensa), o papel escrito o

    Vorstellungs-Reprsentanz. O representante que est no lugar (tenant-

  • lieu, stand-in) da representao perdida / inalcanvel da padaria. A

    dita cuja, como Ding-an-sich, como coisa-em-si, real e est fora da

    apreenso do sistema da representao. Aqui vai outra ilustrao do

    mesmo ponto, de um contemporneo Belga de Freud:

    Magritte, Personnage marchant vers lhorizon (1928)

    A coisa-em-si dada como ausncia pura: a Ding-an-sich seria o

    lugar designado para permanecer vago devido limitao da nossa

    experincia sensvel. Numeno, como diz Kant, a vida como ela , no

    pode ser objeto da nossa intuio sensvel j que est fora da

    experincia (em algum lugar indefinido e inalcanvel).

    No classicismo a aparncia joga ping-pong com a essncia;

    Kant traduz isso como fenomenal X numenal e nossos manos

    lacanianos como realidade X Coisa.

    O status do Real, enquanto isso, no-substancial; ele o

    produto da tentativa sempre falhada de integr-lo no simblico. De fato

    pode-se tocar no Real: aplicando-se a tentar simboliz-lo at se

    chegar ao ponto em que dita tentativa fracassa; tal ponto indicaria o

    real (Jacquot: Le rel ne saurait sinscrire que dune impasse de la

  • formalisation). Por isso, alis, o cara diz que os telogos so os nicos

    atus verdadeiros: ao tentar formalizar a existncia de Deus encontram

    o impasse lgico na formalizao (contradies, antinomias, aporias,

    paradoxos, inconsistncias) que demonstra a impossibilidade do

    objeto a ser formalizado, isto , a sua condio de Real. Deus

    portanto real neste sentido.

    Obs. antinomias, para Kant, so noes vazias; que no tem

    objetos intuitivos para preench-las, como Alma, Deus ou Mundo (o

    mundo, como totalidade, no uma dado intuvel: podemos

    devemos pens-lo, mas no intu-lo; ele no pode ser objeto da

    experincia, logo no pode ser conhecido, mesmo sendo uma coisa de

    pensamento: Gedankending). So objetos transcendentes, esto alm

    do limite da nossa experincia sensvel (espao-temporal).

    1) A oposio Forma / Essncia: concepo clssica e intuitiva

    desde os gregos: haveria uma essncia imutvel debaixo das

    formas mutveis. Ditados Al que nace barrign es al udo

    que lo fajen; Pau que nasce torto morre torto; A leopard

    cant change the spots

    2) A oposio Forma / Matria: deriva-se da anterior, a essncia

    informe seria o substrato que d consistncia forma: a SUB-

    stncia. A matria seria o fundamento, a base passiva da

    forma que a determina ativamente (seguimos em Aristteles),

    que faz com que ela seja o que . Obs. substncia, em

    grego, se diz hypokeimenon, frequentemente traduzido como

    sujeito, no sentido de suporte dos atributos do predicado.

    3) A relao entre Forma e Contedo j carrega uma mudana

    de paradigma (passamos a Kant): a forma aquilo que faz de

    algo in-forme uma coisa particular formada. Por exemplo, a

    forma faz da argila um vaso. Entretanto, ao mesmo tempo, a

  • forma o universal abstrato comum a uma poro de coisas

    particulares diferentes (um vaso de gesso, de vidro, de metal,

    de madeira ou de porcelana sempre um vaso, por causa

    da sua forma).

    De outro modo, a forma o universal que unifica

    contedos diferentes (aqui, contedo quer dizer matria

    formada, no o suco que a gente bota dentro do vaso). O

    acontecimento assassinato de Jlio Csar pode ser

    apresentado por Plutarco, por Shakespeare ou por Cecil B. de

    Mille. Mesmo contedo, diferentes narrativas, como diria

    Christian Dunker.

    O gnero romance noir, por exemplo, seria uma forma;

    um conjunto abstrato de regras simblicas que se aplica a

    contedos diferentes. De Agatha Christie, em Mouse-trap e

    Raymond Chandler, em Farewell, my lovely a Ridley Scott, em

    Blade Runner ou Alan Parker, em Angel Heart, passando por

    John Ford, em The Maltese Falcon e Otto Preminger, em

    Laura. O nico que eles tem em comum a forma.

    A forma seria o significante como semblant de

    Lituraterre.

    Seria interessante refletir sobre o point de capiton (ponto

    de estofamento). o ato que faz o significante cair no

    significado.

    (The) Jaws, do judeu Spielberg, o Tubaro, do filme, o

    continer de todos os medos que flutuam por a (a fora da

    Natureza selvagem, o desequilbrio ecolgico provocado pelo

    excesso capitalista, as pulses desembestadas).

    (The) Jews, do austraco Hitler, semblant para o homem

    comum entender o motivo da dissoluo dos laos sociais em

    1930 (inflao, carestia, desemprego, corrupo e

  • degradao moral). O Compl Judaico Internacional d uma

    razo unificada. No acrescenta um contedo novo ao S2,

    mas, como suplemento, nomeia e unifica os contedos, os

    temas, os subjects, dispersos da ansiedade generalizada no

    Zeitgeist. Isso tudo passa a ser, a partir dali, uma nica

    substncia cuja forma O Compl Judaico Internacional.

    Esta forma o S1, nonsense em si mesmo, mas eficaz pela operao. Acrescentar este S1 um ato. O point de capiton da ordem do ato.

    Quanto ao referente daquele significante, a sua denotao,

    a sua Bedeutung (em termos de Frege); o estofo daquele

    semblant: no basta dizer: odio os judeus porque so sujos,

    sovinas, intrigantes, exploradores, mentirosos, cobiosos e

    fios. O passo a ser dado poder afirmar que so assim

    (sujos, sovinas, intrigantes, exploradores, mentirosos,

    cobiosos e fios) porque so judeus. Haveria um X dentro

    do judu que o faz odioso. Este X do dio o objeto

    transcendental kantiano, um Denkending, que Lacan

    denomina objeto (a), ou agalma (no caso do amor).

    pensvel mas no intuvel, j que no faz parte das

    propriedades fenomnicas positivas dos judeus, o je ne sais

    pas quoi que vc tem e pelo qual te amo (ou te odio). Obs. Falta-nos um nome para designar esta funo do objeto no

    dio (o anti-agalma), o objeto-judeu, o objeto de judiao...

    Por isso s vezes se confundem as manifestaes

    fenomnicas que fazem as vezes de objeto (a) no desejo, no

    gozo, no amor, no dio ou no medo com o prprio objeto

    transcendental que ele e que, enquanto tal no pode ser

    intudo, mas deve ser postulado logicamente.

  • J a letra seria a inscrio da forma-semblant-significante

    em qualquer superfcie, no apenas no papel.

    Voil o que pude pensar. Vcs diro

    R