entrevista a maria elena angeles ricardo goldenberg

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Entrevista de Ricardo Goldenberg a María Elena Ángeles Tudo começou com um mal entendido. A revista Hora Hagá tinha me encomendado uma matéria sobre psicanalistas expatriados, a propósito da pergunta "É possível ser psicanalista em outra língua que não a própria?" Tinha argumentado com a minha editora, Lily Faria, que se existem escritores, como o russo Nabokov ou o polaco (perdão, "polonês") Conrad, que escreviam em inglês; ou o outro polonês (perdão, "polaco"), Gombrowicz, que o fazia em castelhano; ou o irlandês Beckett, em francês, ou Joyce, também irlandês, escritor em uma língua imaginária, então, pensava eu, por que não poderia haver psicanalistas a analisar em línguas que lhes fossem estrangeiras? Porque, tinha me respondido Lily, a psicanálise consiste na exploração das próprias origens, e na origem está a língua materna. O argumento parecia de peso, e foi com esta pauta que consegui uma lista de psicanalistas estrangeiros clinicando em São Paulo. Como tenho o hábito pouco brasileiro de organizar a agenda segundo os sobrenomes, comecei com o primeiro da lista, Goldenberg Ricardo. Mando-lhe um e-mail. Não muito depois recebo uma resposta seca, curta, quase irritada: “Amanhã, 14hs, Ministro Gastão Mesquita 416”. Nunca fiz análise, mas me disseram que antes da primeira sessão com um psicanalista sofremos perturbações inomináveis. Assim, mesmo sendo uma entrevista, incorporei a candidata a paciente e fiquei devidamente angustiada. Ao chegar no local descubro que não existe uma casa cujo número fosse 416. Como frequentemente acordo com a cabeça onde deveriam estar meus pés, apostei no número 419. Touché! (ou bingo!, como depois soube que Goldenberg teria dito). 1

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Psicanalista Ricardo Goldenberg e a psicanalise

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  • Entrevista de Ricardo Goldenberg a Mara Elena ngeles

    !Tudo comeou com um mal entendido.

    A revista Hora Hag tinha me encomendado uma matria sobre psicanalistas

    expatriados, a propsito da pergunta " possvel ser psicanalista em outra lngua que

    no a prpria?" Tinha argumentado com a minha editora, Lily Faria, que se existem

    escritores, como o russo Nabokov ou o polaco (perdo, "polons") Conrad, que

    escreviam em ingls; ou o outro polons (perdo, "polaco"), Gombrowicz, que o fazia

    em castelhano; ou o irlands Beckett, em francs, ou Joyce, tambm irlands, escritor

    em uma lngua imaginria, ento, pensava eu, por que no poderia haver psicanalistas

    a analisar em lnguas que lhes fossem estrangeiras? Porque, tinha me respondido Lily,

    a psicanlise consiste na explorao das prprias origens, e na origem est a lngua

    materna.

    O argumento parecia de peso, e foi com esta pauta que consegui uma lista de

    psicanalistas estrangeiros clinicando em So Paulo. Como tenho o hbito pouco

    brasileiro de organizar a agenda segundo os sobrenomes, comecei com o primeiro da

    lista, Goldenberg Ricardo. Mando-lhe um e-mail. No muito depois recebo uma

    resposta seca, curta, quase irritada: Amanh, 14hs, Ministro Gasto Mesquita 416.

    Nunca fiz anlise, mas me disseram que antes da primeira sesso com um psicanalista

    sofremos perturbaes inominveis. Assim, mesmo sendo uma entrevista, incorporei a

    candidata a paciente e fiquei devidamente angustiada.

    Ao chegar no local descubro que no existe uma casa cujo nmero fosse 416.

    Como frequentemente acordo com a cabea onde deveriam estar meus ps, apostei no

    nmero 419. Touch! (ou bingo!, como depois soube que Goldenberg teria dito).

    ! 1

  • Trata-se de uma casa amarela no bairro de Perdizes que em nada anuncia a sua

    ocupao. Um lance de escadas me levou at uma porta que se abriu eletronicamente,

    ou, melhor, que no se abriu eletronicamente, j que tive que tocar pela segunda vez e

    recebi instrues de bater nela para que se abrisse. Um comeo a la Jacques Tati,

    pensei (para evocar um francs mais divertido que o docteur Lacan). A sala de espera

    estava mobiliada com antiguidades um pouco desconexas, um tapete persa gasto e

    quadros que com certeza foram adquiridos ou trazidos por pessoas de gostos

    diferentes. Diria que aprenderam a conviver por obrigao, mas no teriam morado

    juntos se tivessem tido escolha. Algumas plantas sugerem um toque feminino, as

    revistas, (nenhuma muito recente), um toque masculino, mas nada demasiado

    estudado. Uma porta entreaberta d para uma sala de atender crianas (h uma

    casinha de madeira sobre uma bancada). No cheguei a sentar porque da metade de

    outra escada que leva para o andar superior, assoma a cabea, quase invertida, do meu

    anfitrio e me faz um gesto com a mo, como quem d uma ordem a um cachorro,

    para subir. No vo da escada h uma enorme aquarela de um leopardo sentado e

    olhando sem curiosidade aos que sobem. Depois soube que se tratava de um Hojnal .

    1

    Dentro da sala qual fui convidada a entrar h dois pequenos desenhos muito

    perturbadores feitos com caneta preta ou com nanquim do mesmo artista. Como para

    contrarrestar o efeito violento e dar uma nota de cor ao lado deles h uma gravura da

    Maria Bonomi em vermelho e preto representando uma rotativa de imprensa. Os trs

    quadros esto na frente do div: uma chaise longue Le Corbusier, de couro preto e

    estrutura cromada. Detrs dela, a poltrona, tambm de couro preto, parecendo um

    assento de primeira classe num voo da British. Sem ainda dizer uma palavra

    ! 2

    Pintor e desenhista hngaro, restaurador oficial da capela Sixtina, no Vaticano.1

  • Goldenberg me indica uma pequena poltrona de tecido preto na qual entendo que

    devo sentar.

    Suponho que a usa quando escreve sobre uma pequena mesa de tampo de

    pedra cinzenta, granulada com pequenas manchas em diversos graus de preto, cinza e

    branco, com ps de ao pintados de preto fosco. A sala, contudo, no tem nada de

    soturna. Trs das paredes so brancas, uma delas com uma janela antiruido e uma

    cortina clara fechada pela metade. Uma luminria de p, feita de dois astes finos

    cromados que sustentam uma pequena canaleta para um tubo de luz dicrica est

    acessa e outra, uma rplica branca das velhas luminrias de escritrio, que viraram o

    cone da Pixar, ilumina vrios cadernos, livros, papeis e um notebook espalhados

    sobre a pequena escrivaninha que, penso, deve ter sido imaginada para servir

    cafezinhos e biscoitos no hall de uma empresa (Tok e Stock, apostaria). Suponho que a

    escolheu pelo tamanho. A sala minscula, o espao porm est bem aproveitado.

    minha esquerda, na posio em que sentei, frente a poltrona onde meu anfitrio se

    refestelou, como um gato na cama do dono, h uma estante repleta de livros,

    cadernos, pastas, revistas que me separa da porta pela qual tinha entrado e que ele

    trancou a chave (notei o gesto porque sou ligeiramente claustrofbica). Claramente

    no se trata de uma biblioteca, mas de material de trabalho rotativo. (fiz uma nota

    mental de perguntar sobre seus livros). A quarta parede, atrs de mim, includa a

    porta, est forrada em cortia. Viro-me para verificar o que nunca imaginei encontrar

    em um consultrio de psicanalista. Um enorme poster reproduzindo a capa do lbum

    Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band. Outro cartaz menor, emoldurado, de Per

    qualche dollaro in piu, assim, em italiano, o filme de Sergio Leone, desde o qual me

    olha com desprezo um muito jovem Clint Eastwood. E, sobre uma prateleira branca,

    pregada em cima da mesinha, um cartaz tamanho publicidade de cinema do filme

    ! 3

  • coreano O Caador, de Hong-jin Na, com os rostos obscuros superpostos de duas

    personagens masculinas. um pouco menos perturbador que os quadros de Hojnal,

    mas o contraste com o poster colorido dos Beatles, vermelho e alegre o mesmo que

    existe na outra parede. Teria ele calculado a repetio do efeito, ou aconteceu por

    acaso? Outras duas, e muito inesperadas figuras esto coladas na parede: um Batman

    desenhado por Frank Miller (Prefiro Frank a Jacques-Alain , disse brincando, quando 2

    fiz um comentrio a respeito), e seu arqui-inimigo, o Curinga, em primeiro plano

    fotografando o espectador: a capa ampliada da histria em quadrinhos The killing

    joke. No pude deixar de observar que o Curinga um psicopata e um assassino.

    "Tambm adoro Dexter", disse, "alis, me foi apresentado por um paciente" . Sobre a 3

    escrivaninha h uma reproduo de uma publicidade argentina de aspirina da dcada

    de cinquenta: um sorridente careca, com a cabea cheia de pregos e parafusos

    representando a enxaqueca, e a legenda: Venga del aire o del sol, del vino o de la

    cerveza, cualquier dolor de cabeza se cura con un Geniol. Da mesma poca, ao lado,

    h uma reproduo menor de outro cartaz publicitrio, o da RCA-Victor: o conhecido

    cachorro sentado frente vitrola confuso ao escutar "his master's voice" vinda da

    buzina do gramofone. Enfim, sua esquerda est pregada uma foto em preto e branco

    de Bob Dylan, bem novo e de culos escuros, fotografado no estdio enquanto canta.

    Na parede oposta, um belo desenho feito em um trao s de grafite sobre um papel

    barato de rascunho azul, de uma mulher nua agachada, completa o quadro deste

    ! 4

    Refere-se a Jacques-Alain Miller, executor testamentrio e editor das obras 2completas de Lacan.

    Dexter uma srie televisiva americana centrada em Dexter Morgan (Michael C. 3Hall), um assassino em srie que trabalha como analista forense especialista em padres de disperso de sangue no departamento de polcia do Condado de Miami-Dade.!

  • consultrio. "Foi presente do artista, quando terminou a sua anlise", explicou, ao me

    perceber interessada no quadro. O que fazer com esta exposio, o que diz do dono?

    Embora de origem espanhola, seu sotaque no me foi familiar. Ou melhor,

    durante a entrevista descobri um termo freudiano que descreveria melhor minha

    sensao: Unheimlich. Uma sorte de aflio, de desassossego diante de um

    corretssimo portugus que insistia em me fazer escutar em minha lngua uma msica

    vinda de outro lugar; ao mesmo tempo, prximo e distante. Jornalista, fui mordida

    cedo pelo bicho da linguagem. Nunca escondi meu encantamento diante de sotaques e

    regionalismos. uma espcie de alvio saber que, embutido na fala, existe o

    testemunho de lugares longnquos. H uma estrangeira em mim que o uso que ele faz

    da minha lngua me faz escutar.

    Detrs daquela fala agitada pelos bons ares porteos, misturada com termos

    em ingls (pronunciados sem sotaque! Para tornar minha experincia ainda mais

    inquietante), havia um homem charmoso, despenteado, de camisa vinho, cala jeans e

    uma bota cujo bico era mais fino que o da minha.

    O golpe de misericrdia na minha expectativa de encontrar um consultrio

    soturno, com tapetes persas e fotos emolduradas de Freud e de Lacan, algum quadro

    de Escher e de Bosch, foi um minsculo bonequinho plstico de Freud, de charuto na

    mo, do tamanho do Pequeno Polegar, encarapitado orgulhoso na base da luminria

    da escrivaninha. S podia ser uma ironia. Foi a minha primeira observao: "No

    parece consultrio de psicanalista..." Mas a pergunta foi dele: "Ah ? E como 'parece'

    um consultrio de psicanalista?" "Neutro, imagino, annimo, de modo a que os

    pacientes possam projetar o seu teatro interior..."

    ! 5

  • Em primeiro lugar responde , o inconsciente no um teatro, como

    disse h anos Deleuze, o inconsciente uma fbrica. E, em segundo lugar, passo o dia

    aqui. Preciso estar entre coisas que me agradam.

    Fantstico: o objetivo no era deixar o ambiente pronto para o analisando, mas

    sim, convida-lo a entrar (literalmente) em um ambiente que agrada seu analista.

    Afinal, ele passa bem mais do que 30 minutos naquela sala.

    O inconsciente uma fbrica? digo Muito bem, e o que fazer com o

    seis pelo nove, como produto? Abriu um sorriso embaraado que dizia "garota

    esperta" e respondeu: "Seis o nmero do capeta, e me mandaram acrescentar nove

    na frente de todos os nmeros de celular de So Paulo, o que me deixou bem

    irritado... Serve, por enquanto?"

    Serve digo, enquanto anoto o lapsus calami no meu Molesquine a la

    Hemingway.

    Voc vai anotar? pergunta.

    No, claro que no. Limitaria demais nossa conversa...

    Thats my girl!

    ...mas preciso gravar, se voc no se importa: ossos do ofcio.

    Certo respondeu, no muito entusiasmado, e depois: "Vam' l?"

    Vamos l. Voc se considera um psicanalista argentino?

    No, apesar do sotaque, eu me considero um psicanalista brasileiro.

    Mas voc se formou em Buenos Aires...

    Hm, ta o problema: o que quer dizer formar-se, no caso de um psicanalista?

    Eu estudei psicologia na universidade de Buenos Aires, na Facultad de filosofa y

    letras, durante os Anos de Chumbo. Tive a sorte de ter aulas com o que havia de

    melhor na ditas cincias humanas, antes que o Terrorismo de Estado os empurrara

    ! 6

  • para fora do pas ou da universidade ou, em certos casos, como o de Walsh, o

    jornalista, da vida. Tive a minha primeira experincia de anlise aos dezoito ou

    dezenove, por incentivo de uma namorada, preocupada com o fato de eu no desej-la

    tanto quanto ela desejava que eu a desejasse, Voc me segue?

    Sigo.

    Era uma "psicloga", disse, sem disfarar uma nota de ligeiro desprezo. Ou

    era minha imaginao?

    Era uma psicloga, com um nome bem prximo ao de minha me. Uma

    bela mulher de trinta e poucos, com cabelo precocemente esbranquiado que lhe

    conferiam um certo ar de sofisticao. Atendia na casa em que morava, no bairro de

    Martnez. Para subir at o consultrio voc devia atravessar sua sala de estar e subir

    uma escada atapetada. Lembro de uma vez ter enfiado o p em um monte de coc

    fresco de cachorro. S me dei conta depois de deixar pegadas de merda desde a porta

    da rua at a porta do consultrio. O meu constrangimento, e o gesto dela de se

    embalar debaixo de um poncho de alpaca, com os ps sobre a poltrona e os joelhos

    flexionados quase altura do queixo, tudo que lembro do tempo que frequentei esta

    moa. Estive com ela dois ou trs anos. Acho que me queria bem, ou queria meu bem,

    o que talvez tivesse sido o maior problema deste tratamento.

    Depois disso, eu j tinha recebido meu diploma de Licenciado en psicologa e

    atendia dois pacientes. De favor, no consultrio de minha mentora Vernica Willams,

    psicloga, amiga dos meus pais. [Aqui a palavra "psicloga" soou com outra nota].

    Depois, passei a atender no meu primeiro apartamento, que era tambm meu

    consultrio. Uma quitinete no vigsimo andar de um prdio novo com vista ao rio, em

    Acassusso. Minha cama virava um div durante o dia. Ou, meu div virava uma cama

    durante as noites, como voc preferir. Sorriu um sorriso maroto e continuou.

    ! 7

  • Lembro do sobrenome da minha primeira paciente, e do motivo da sua

    consulta. Do meu primeiro paciente, em compensao, no lembro do nome, mas sim,

    do comentrio que ele me fez um dia. Tratava-se de um bancrio, jovem, porm mais

    velho que eu. "Cara", disse ele, "Cara, eu sei que se eu for embora te fao um rombo

    no oramento". Observao destinada a furar a pose em que eu me sustentava; assim

    como a minar toda autoridade que eu pudesse imaginar que tinha sobre ele. Como era

    a estrita verdade, e no adiantava manter o semblant de "psicanalista experiente" e

    cool, respondi: "Sim, mas o que voc ganharia com isso?" Acho que foi esta resposta

    que fez com que ele ficasse. Tivesse eu permanecido em silncio, como era praxe na

    poca (analista que analista no responde nenhuma interpelao direta do paciente),

    ele certamente teria ido embora. E com razo.

    "Supervisionava" (odeio o termo, mas "controle" ainda pior) meus dois casos

    com Pablo Kovaloski, membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires. Lembro que

    este paciente, caixa de banco, ficava enfurecido com os clientes que bufavam na fila

    em castelhano se diz: "los que suspiran en la cola". Vivia falando disso. Eu disse

    pro meu supervisor: "deve ter problemas com as pessoas que peidam (cola "rabo",

    alm de "fila")". Ele ficou encantado de que eu escutasse esse tipo de coisa. Era uma

    poca em que ser psicanalista consistia em isolar o significante. Eu tinha dito aquilo

    como uma piada, e no diria nada pro cara porque me parecia um delrio. Enfim, o

    caso que o rapaz identificava aqueles clientes do banco que se irritavam por ele

    faz-los esperar, e demorava ainda mais para atend-los, de propsito. Depois da

    sesso de superviso em que estas coisas foram discutidas, e sem eu ter dito uma

    palavra sobre os que "bufam no rabo", meu paciente comea a criticar a grossura do

    pai, que vivia peidando e envergonhando todo mundo. A me, principalmente, que

    reclamava, no s pelas flatulncias indevidas, como pelo fato de ter sempre que ficar

    ! 8

  • aguardando por ele, que nunca estava pronto quando devia. A cena familiar e a cena

    do banco no tem nada em comum a no ser o bufido como sinal de irritao pela

    espera. El suspiro en la cola indica ao mesmo tempo o pai irritante e a me irritada.

    Era a mesma cobrana materna em relao ao pai, que era encenada com aqueles que

    reclamavam por ele faz-los aguardar sem atend-los. E tem mais, eu no tinha sala

    de espera. Meus dois pacientes interfonavam e eu os fazia subir. S que, ele chegava

    sistematicamente cedo e eu o fazia esperar, canonicamente, pela sua hora no hall de

    entrada do edifcio. Portanto, sempre entrava reclamando por eu t-lo feito aguardar...

    "mesmo sem ter nada melhor pra fazer". Como vos, a los que suspiran en la cola,

    disse. Acho que foi ali que comecei a entender porqu Freud chamava a relao entre

    o analista e seu paciente de "neurose de transferncia".

    Eu mesmo tinha me tornado membro havia pouco da Escuela, que imitando a

    cole Freudienne de Paris era a primeira instituio lacaniana da Argentina, fundada

    por Oscar Masotta, a quem eu no conheci porque quando entrei l ele j tinha

    emigrado para Espanha. Estamos no ano de 1978. Era uma honra e um privilgio pra

    mim ter sido admitido nela. Naquela poca no havia muitas alternativas, ou voc se

    encaminhava para a APA, filiada internacional freudiana e para isso tinha que

    fazer medicina antes ou ento, depois que abriram para os psiclogos entrar (acredito

    que por uma questo de mercado), dispor de uma fortuna para encarar uma "anlise

    didtica", ou entrava para a contestao lacaniana que, para ns, jovens e sem

    grana, era o futuro e a renovao de uma psicanlise estagnada e kleiniana.

    Quem me entrevistou foi Enrique Milln. Ele me perguntou porqu eu queria

    entrar na Escuela e eu no sabia o que dizer. Disse o primeiro que me ocorreu: "estava

    aqui pensando naquela frase de Groucho Marx: no quero ser membro de um clube

    que queira um cara como eu como membro". Enrique soltou a maior gargalhada que

    ! 9

  • eu j tenha ouvido na vida: Groucho respondia isso no carto de recusa aos clubes

    que o convidavam a ser membro; eu estava dizendo isso ao cara que me entrevistava

    para entrar no clube em que eu mesmo tinha escolhido entrar!

    Este o sintoma que me determinou a vida e de cuja transformao me ocupei

    de uma ou outra maneira nas anlises que fiz. Primeiro, com um analista kleiniano,

    membro da APA; depois, com um membro da Escuela, que terminou quando decidi

    vir embora pra c. E aqui, durante vrios anos, com um lacaniano que tambm vinha

    da cole de Lacan. Esta anlise teve muita influncia sobre meu modo de trabalhar e

    de ser analista. E, agora, estou de novo deitado em um div lacaniano, mas esta vez

    meu modo de trabalhar no est em questo, ou antes, est em questo como sempre

    esteve, mas o motivo de eu estar outra vez dirigindo-me a uma analista, trata-se de

    uma mulher, porque estou indo atrs da questo que a minha angstia me coloca.

    E voc foi admitido mesmo depois de soltar aquela frase do Groucho na

    entrevista de admisso? Parece um conhecido meu que foi entrevista de trabalho

    vestindo uma camiseta que dizia "se trabalho fosse bom, no teria esse nome". [Risos]

    Pra voc ver! Acho que o Enrique me respondeu como um analista.

    Devolveu ao remetente uma carta que no fundo lhe estava dirigida, no a ele ou

    Escuela. E como o remetente a tomou dele de volta pra si, sem rejeit-la, por que no

    seria acolhido a uma comunidade onde questes como esta so a sua razo de ser?

    Mas a minha alegria de ter encontrado minha turma durou pouco. Alguns

    meses depois, a Escuela rachou em uma briga sangrenta entre os filhos reconhecidos e

    os deserdados de Oscar Masotta. Os legtimos perderam judicialmente o nome e

    abandonaram a Escuela Freudiana de Buenos Aires, para fundar outra qual

    denominaram Escuela Freudiana de la Argentina. (No podiam largar mo da

    palavra: "escuela", ponto de honra lacaniano). Os bastardos, os no reconhecidos,

    ! 10

  • ficaram legalmente com o nome, mas desconhecidos pelo pai fundador. Eu fiquei com

    estes ltimos, mas mesmo dentro deste grupo havia duas turmas. Uma de situao e

    outra de oposio. Eu escolhi, claro, a dos dissidentes, o que me custou um certo

    isolamento interno, logo no incio.

    Por que "claro"? [Sorriso]

    Porque me era irresistvel o apelo da oposio e porque Alejandro Ariel

    estava entre eles. Alejandro foi quem me fez descobrir Lacan. Ele era supervisor no

    Hospital de San Isidro, um hospital municipal em cujo servio de psicopatologia eu

    trabalhava ad honorem depois de me formar. O que no era um problema porque

    ramos um grupo inquieto e muito interessante e interessado. Aprendi muito com

    aquela turma de analistas e de psiquiatras.

    Mas foi na faculdade que conheci Freud. Tnhamos aula com analistas didatas

    da APA. Leon Ostrov, fundador da psicanlise em argentina, dava a introduo a

    Freud e aos ps-freudianos que se chamava "Psicologia Profunda" um e dois. Sou

    muito grato ao seu ensino at hoje. Mauricio Abadi, outro medalho da APA dava

    aulas de clnica; Mauricio Knobel, um dos mais importantes psicanalistas kleinianos

    de crianas nos dava psicologia evolutiva. Eu no entrei na psicanlise pela porta

    aberta por eles, contudo, mas pela minha formao estruturalista, como discpulo da

    Emilia Ferreiro e de Rolando Garcia, que nos ensinavam Piaget, epistemologia

    gentica e psicologia gentica. To encantado fiquei que fui trabalhar no instituto que

    eles tinham fora da universidade, IPSE. Foi ali que conheci Chomsky, primeiro, e

    Lacan, depois. E atravs de Lacan me interessei em Freud. Posso dizer que o meu

    percurso foi "De Lacan a Freud, e retorno". Poderia ser o ttulo de um programa de

    formao! [Risos]

    ! 11

  • Acho que esta particularidade que faz com que eu interrogue at hoje a

    doutrina lacaniana de um modo diferente ao da maioria dos colegas que conheo. Ou,

    de outra maneira, faz com que eu tenha uma maior afinidade com o modo de

    interrogar a doutrina lacaniana pelos filsofos que pelos psicanalistas. O que me d,

    de certo modo, uma vantagem sobre eles, porque eu tenho a experincia clnica, como

    analisante e como analista, que em muitos casos lhes falta.

    Queria te perguntar, porque estamos indo um pouco longe no tnel do

    tempo, sobre o que significou para a tua vida e a tua prtica mudar de lngua, e por

    que foi precisamente o Brasil o pas escolhido pra emigrar.

    Por que o Brasil fcil: depois da Guerra das Malvinas queria ir embora da

    Argentina, e para um lugar aonde pudesse mergulhar. Sou mergulhador, alm de

    psicanalista, e poder estar como um peixe entre os peixes um dos maiores prazeres

    que conheo...

    Mergulhar parecido a psicanalisar, no?

    No vejo a relao...

    Mergulhar nas profundezas do oceano e nas da alma tambm.

    Ah, mas a que voc se engana! A metfora da alma profunda no

    apropriada, a psicanlise investiga um fenmeno de superfcie. O psiquismo uma

    superfcie.

    Como assim?

    Voc acabou de perceber isso: o seis pelo nove est na cara. Voc pode no

    saber o que me levou a substituir um pelo outro sem perceber, mas no porque

    esteja escondido, mas porque opto por no te dizer.

    Ah, no seja tmido, diga, vai!

    ! 12

  • Bem, algo te disse j. O resto do que me vem sobre isso digo para minha

    analista ou no digo, mas seja como for tudo superficial. Como os vulces...

    (Gesto meu de: "no entendi")

    Um gelogo que conheo me explicou que, contrariamente a tudo que o

    povo acredita, os vulces no so chamins por onde jorra lava desde o centro da

    terra. Verne estava errado quando imaginou uma viagem ao centro da terra entrando

    em um vulco extinto. Os vulces so fenmenos de superfcie, parentes dos

    terremotos: capas tectnicas, em frico uma sobre a outra, liquefazem a pedra, que se

    transforma em lava e jorra para fora pela montanha esburacada: o vulco como uma

    espinha. [Sorriso]

    Mas, sempre pensei que se tratava de histrias recalcadas que o analista faz

    vir tona. Se esto submersas, ento, h uma superfcie e um fundo...

    Te digo de outro modo. O que h para analisar no vem j dado, inventa-se.

    Inventa-se entre o paciente e seu analista, sob direo do primeiro. Sim, do paciente!

    [resposta a minha expresso de "no era o contrrio?"] Quem decide e organiza a

    descida aos infernos o analisante; cabe ao analista o papel de Virglio naquela

    travessia. Mais do que reconstruda a partir das ruinas do passado, como pensava

    Freud, a histria construda a partir de um sintoma presente que ao mesmo tempo

    um modo de sofrer e de estar no mundo. Sustar o recalcado nada mais do que poder

    contar a prpria histria de outro modo. Granoff [lacaniano francs da primeira

    gerao] dizia que s no final da anlise o paciente nos fala verdadeiramente de si.

    Antes disso, ele falado por todas as vozes que o habitavam sem ele perceber.

    Voltando a sua emigrao...

    Eu queria ir para Austrlia, para trabalhar e mergulhar l, mas devido

    guerra contra o Reino Unido, os argentinos no tnhamos como pedir visto para os

    ! 13

  • pases membros do Commonwealth. A conheci uma carioca que estava de passagem

    por Buenos Aires e pensei, por que no o Rio? D pra mergulhar no Brasil.

    Voc falava portugus?

    No, mas gostava, gosto, da lngua, e como sou meio poliglota ("poli-

    idiota", como diz meu pai: "fala besteiras em vrios idiomas") sabia que aprenderia

    rpido. No esquece que entrei nela por amor. Igual que o ingls: aprendi a falar aos

    seis anos porque estava fascinado por uma vizinha americana da minha idade que s

    falava ingls. A minha me percebeu e me ps numa escola bilinge. Em todo caso,

    pensei que, enquanto aprendia a falar portugus direito, podia trabalhar com falantes

    de castelhano que quisessem analisar-se em sua lngua. No foi nada disso que

    aconteceu. Devo minha clnica aos brasileiros. Sempre serei grato pelo modo como

    fui acolhido pela gente daqui. E devo dizer que toda minha vida adulta como analista

    aconteceu nesta terra e dentro desta lngua. Pensar a psicanlise para mim pens-la

    em portugus, ao ponto de ter alguma dificuldade para escrever sobre psicanlise em

    espanhol, embora me esforo para preservar ambas lnguas. Quero dizer, no me

    rendo ao portunhol, e me d vergonha quando sou pego em algum erro em uma lngua

    ou em outra.

    Voltando a minha pergunta: um problema no ser brasileiro, para a prtica

    da psicanlise no Brasil? Como inside em tua clnica o fato de voc no ser falante

    nativo de portugus?

    !De certo modo uma vantagem, porque a inevitvel distncia que eu tenho

    com esta lngua me faz escutar coisas que passam batidas para os nativos. E o que

    poderia imaginar-se um problema, por exemplo, o fato de eu entender errado algumas

    palavras por no escutar nuances fonemticas inexistentes em espanhol: vogais

    ! 14

  • abertas ou fechadas, por exemplo, no so diferenas marcadas do espanhol, como o

    so em portugus "vov" e vov", por exemplo; ou o fonema diferencial entre "s" e

    "z", que tampouco existe, ou o "o", quase impronuncivel para a maioria dos meus

    patrcios...

    No para voc.

    No para mim porque me dei ao trabalho de aprend-lo, mas acontece s

    vezes de eu no poder escutar a diferena entre determinados fonemas, o que favorece

    o mal-entendido. Mas os mal-entendidos podem sempre ou quase sempre ser

    aproveitados para avanar na anlise da pessoa.

    Me d um exemplo.

    Te dou um do meu primeiro ano no Brasil, particularmente ilustrativo, no

    s de um mal-entendido idiomtico como tambm cultural. Eu no estava ainda

    familiarizado com o sincretismo religioso brasileiro, que grassa em todas as classes

    sociais. Ento, sou convidado a um churrasco, um domingo de manh, na chcara de

    conhecidos de uma amiga paulista: intelectual, de educao vagamente catlica. Eu

    me estranho por ela no tirar os culos escuros nem mesmo dentro da casa e ela me

    responde: " pra me proteger do olho gordo da Fulana (nossa anfitriona)." E

    acrescenta, "se tirar, vou ficar com dor de cabea. batata!" "Mas", digo eu, " s no

    comer a salada!" (que era de batata, por sinal) "Eu comi e no senti nada." Nosso

    dilogo, digno de Ionesco, terminou ali. Que aconteceu? Eu tinha escutado: " pra me

    proteger do leo gordo da Fulana", j que meu ouvido no registrava a diferena entre

    "" e "" e, alm disso, no sabia o que "olho gordo" queria dizer (em castelhano seria

    mal de ojo). Tentei dar um sentido ao que ela me tinha explicado a partir do que eu

    mesmo tinha entendido. o que fazemos o tempo todo. No caso, tentei encontrar um

    sentido compatvel com a ingesto de um leo demasiado gorduroso que tinha cado

    ! 15

  • pesado para minha amiga. J que, de que outro modo podia um leo te afetar se no

    fosse pela boca? Eu no tinha entendido qual era a relao entre a digesto e os culos

    escuros, mas pensei que estaria incomodada pela luz, por estar com mal-estar no

    estmago. [Risos]

    Enfim, digo que frases feitas, dessas que so ditas sem pensar,

    automaticamente, e que passariam batidas para a maioria dos brasileiros, a mim me

    ressoam de um jeito esquisito e, em geral, so significativas para meu analisante. Por

    exemplo, uma paciente, heterossexual, casada com um homem, confessa sentir teso

    por "outra mulher". Pergunto: "outra, alm de qual?" E ela, previsivelmente: "como

    assim?" Digo: "Voc no disse que estava com teso por uma mulher, mas por 'outra

    mulher'; eu pergunto: 'outra', alm de qual?" Aonde chegamos com isto? Chegamos a

    que, apesar de ser casada com um homem, para o inconsciente, estava casada com a

    me.

    Voc disse que chegou a Freud via Lacan, e depois retornou a Lacan desde

    Freud, isso? (fez "sim") Poderia desenvolver este ponto?

    Eu entrei como discpulo de Emilia Ferreiro (que me chamava de "meu

    aluno hippie", porque ia ao curso de poncho preto e branco, cabelo at os ombros e

    culos de lentes vermelhas), para estudar "epistemologia gentica". Naquela poca eu

    frequentava uma oficina literria e lia tudo que me caia nas mos. Esta a influncia

    de minha me, que me apresentou os clssicos e os franceses; meu pai me introduziu

    na literatura contempornea argentina, italiana e americana. (Um parntese: Lembro

    do meu encantamento com o romance Babitt, de Sinclair Lewis: um homem do

    interior americano, da classe meia, simpatizante das ideias comunistas

    completamente escorraado pelo seu meio. Muito depois, pensei que este romance

    tinha me tocado tanto por dizer respeito a mim e a minha famlia: meu pai tinha sido

    ! 16

  • militante do Partido na juventude; somos judeus em um ambiente antissemita. A

    classe mdia e alta argentina sempre foi terrivelmente esnobe, reacionria e

    antissemita. Ou seja, eu era portador de dois traos de segregao relativos

    comunidade catlica e nacionalista na qual me criei: na escola primria no era

    convidado s festas por ser judeu, mas eu no sabia disso, ento, precisava dar um

    sentido excluso: mediante operaes deste tipo que se constitui o que a

    psicanlise denomina "sintoma". Fecho o parntese). Alm de ler literatura, eu

    estudava cincia e filosofia como um pesquisador srio e assumido, coisa que Emilia e

    seu marido, Rolando Garcia apreciavam muito. Ao mesmo tempo, estava bem no

    esprito sexo-drogas-rock'n'roll da poca, mas me mantinha margem da efervecncia

    poltica, tambm da poca. No que fosse apoltico, isso faz tanto sentido como ser

    ateu. Apenas no estava nem a para a militncia que queria salvar "o povo" da

    opresso e da misria. Adorava uma cena do filme de Antonioni If, em que um cara

    participa de uma reunio de militantes estudantis pro-revoluo que fazem inflamados

    discursos e vo jurando que morrero pela causa. A ele grita: "eu tambm quero

    morrer!" E, virando as costas e saindo: "...mas no de tdio." [Risos]

    O estruturalismo estava na moda e eu era um jovem promissor e bem

    "formado" nisso. (Escuta as aspas sobre formado porque a formao do psicanalista

    no deveria ser pensada com a mesma chave universitria, de acumulao de um

    conhecimento ou de aplicao ou domnio de uma tcnica, embora, em ingls, um

    psicanalista que est fazendo a "anlise didtica" denominado "training analyst"). A

    primeira traduo parcial do livro de Lacan Escritos, em Argentina, chamava Leitura

    estruturalista de Freud. Bem, eu me interessei pela leitura estruturalista de Freud, e

    ela veio reverberar sobre o que j tinha aprendido nas aulas de Ostrov, de Abadi ou

    ! 17

  • de, o melhor de todos, Carlos Perez (acho que se transformou em um lacaniano, no

    tenho certeza). Eu voltei a Freud com uma chave de leitura e com ela abri um mundo.

    Franois Perrier, um discpulo da primeira gerao de lacanianos, a melhor

    com certeza, porque no dependiam de Lacan para serem ou pensarem-se

    psicanalistas, dizia (cito de memria) que o problema no como tornar-se analista;

    ter se tornado analista que cria o problema retroativamente. Ou seja, a pergunta :

    como me tornei analista? Ou, talvez, que quero dizer, quando respondo "psicanalista"

    para algum que me pergunta o que sou?

    "Googlei" voc, antes de vir te entrevistar, e h uma referncia de um livro

    com uma mini biografia sua em que algum (provavelmente voc mesmo) escreveu:

    "Deitou em vrios divs, mas nomeia dois: (a eu digo os dois nomes que tinha lido, e

    que no publico aqui a pedido dele)" Poderia me falar um pouco da tua experincia

    deitado em divs?

    Pergunta inevitvel, no fim das contas um psicanalista aquilo que a sua

    anlise fez dele.

    No existe analista sem anlise?

    Stricto sensu, no. Ningum pode te contar sobre o inconsciente. Para ele

    existir tem que existir para voc. Caso contrrio uma informao vazia, como saber

    que a terra gira ao redor do sol; tanto faz, poderia ser o contrrio, nada muda em tua

    vida em um sentido ou em outro. um saber intil, a menos que voc seja astrnomo

    ou algo assim. Com o inconsciente diferente. Ou voc passa pela experincia de ser

    dividido pela tua prpria palavra, ou ento teu conhecimento do inconsciente

    puramente intelectual. Freud dizia que um candidato a psicanalista deve analisar-se

    para acreditar (palavras dele) no inconsciente.

    uma questo de f? [Sorriso]

    ! 18

  • Sim, se entendermos por tal uma certeza apoiada em uma experincia

    subjetiva que no pode ser demonstrada de modo abstrato. Levantou da poltrona e

    foi mexer no notebook que estava do meu lado sobre a escrivaninha. Procurava algo.

    Um post no Facebook. Queria te mostrar um dilogo, mas no estou achando, entre

    duas amigas. Uma delas diz no ter certeza se alguma vez gozou. E conclui com que

    talvez tivesse gozado sem saber. A amiga corta: "ento, no gozou. Se tivesse gozado,

    saberia." Voc percebe?, no questo de "se". A dvida de uma confirma a certeza da

    outra: "voc nunca gozou". Mas, donde retira esta ltima a sua convico? Da sua

    prpria experincia.

    Agora, tenta responder para uma criana, que pela sua idade ainda no pode

    ter tido a experincia, a pergunta: o que "orgasmo", mame? Se voc no fugir da

    raia falando atrocidades como "quando for maior vai entender" ou coisa e tal. Depois

    de explicar mal e porcamente o desejo por um homem, tipo: "viu filhinha quando

    voc gosta muito, mas muito mesmo de algum e quer estar sempre junto?" Depois

    disso, voc vai tentar encontrar uma experincia anloga que a criana possa ter tido

    para tentar dar uma intuio que preencha o conceito de "orgasmo". Mas ser que

    "orgasmo" um conceito? A analogia que mais vezes foi usada para "explicar" o

    orgasmo ... o espirro! "Viu, filhinha, quando voc quer segurar um espirro e no

    consegue, porque o nariz est coando demais e voc no aguenta? Bom, o orgasmo

    igual" A a menina responde: "Me, eu no gosto de espirrar". [risos]

    Meus analistas, ento... No queria falar deles como insgnias ou como

    bandeiras, mas como sinal de reconhecimento pelo que fizeram possvel para mim.

    Como me disse algum h pouco: so meus "antigos amores". No direi seus nomes,

    ento, embora no se trate de nenhum segredo. O primeiro, propriamente dito, era um

    membro da Asociacin Psicoanaltica Argentina. No tenho qualquer lembrana do

    ! 19

  • trabalho com ele, apenas que me atendia depois de almoar e antes de escovar os

    dentes, digo, por um barulhinho que fazia com a lngua, como se estivesse tirando

    comida presa entre os dentes. [sorriso] Talvez fosse um tique nervoso, quem

    sabe?

    Que quer dizer "propriamente dito"?

    que tinha te contado da minha psicoterapia aos dezoito...

    Na casa daquela mulher que voc encheu de coc... [Sorriso]

    Pois . O "propriamente dito" refere-se diferena entre psicanlise e

    psicoterapia.

    Tem gente que defende que so a mesma coisa...

    Tem gente que defende qualquer coisa, segundo a sua convenincia...

    Poderia me explicar a diferena, sem dar uma conferncia? [Sorriso]

    Os psicoterapeutas no acreditam no inconsciente, os psicanalistas, sim.

    Ou seja, so mesmo "homens de f"! [Gargalhada]

    Voc no fcil...

    I wouldn't be your girl if I were. [sorriso]

    Voc no sabe realmente que a Terra gira ao redor do sol. Voc cr no que te

    contaram os cientistas. A tua experincia te confirma o contrrio. Para os cientistas

    est demonstrado que os sentidos mentem, porque confiam no mtodo pelo qual

    demonstram que a Terra que orbita em torno da sua estrela. Um psicanalista surge

    do seu mtodo que lhe demonstra que o Eu no senhor em sua prpria casa. Por

    isso inclui o inconsciente em seu clculo. Um psicoterapeuta, mesmo que afirme o

    contrrio, no aceita esta demonstrao. Em seu trabalho mostra sua convico de que

    "quem sabe de mim sou eu". Esse era o problema da minha terapeuta, ela acreditava

    saber o que era melhor para mim. Todo psicoterapeuta um sugestionador, um

    ! 20

  • homem de ideologia; te faz acreditar que teu o que ele mesmo te induz a acreditar

    por amor ao saber... dele. Um horror!

    E um psicanalista?...

    Um psicanalista est advertido, pela sua prpria experincia com outro

    psicanalista, que o nico saber em jogo em esta histria o do prprio paciente,

    embora ele mesmo acredite que este saber est fora dele.

    A segunda anlise, propriamente dita, aconteceu com um membro da Escuela

    Freudiana de Buenos Aires. O termo da anlise com ele foi a minha deciso de deixar

    a Argentina. Suportou inclusive algumas cartas minhas, quando eu j morava aqui.

    Me lembro do incio da resposta primeira delas: "Voc, como sempre, me prope

    novos riscos e novos modos de tropear..." Ele se referia ao fato de eu continuar

    interrogando-me atravs dele por carta, depois de encerrado o trabalho das sesses

    presenciais. Praxe teria sido no me responder. Mas ele o fez, e considero esta

    correspondncia como uma continuao fecunda da minha anlise.

    Sou, sempre fui, um cultor da arte epistolar. Na emigrao, nas viagens, enfim,

    na errncia eram as cartas, muito mais que o telefone, o que me mantinha com um

    cabo a terra; para-rio da angstia. Por carta podia pensar, estudar... e matar a

    saudade. O melhor amigo que j tive, por sua vez um grande analista, Ricardo

    Estacolchic, e eu mantivemos uma correspondncia semanal at sua morte.

    Correspondncia que para mim foi valiosssima como interlocuo e tambm como

    continuao de minhas lucubraes tericas, clnicas e pessoais. Um modo de lidar

    com o desamparo do exlio. Not to mention, o humor que compartilhvamos. Reler

    estas cartas me faz rir, at hoje.

    Minha terceira psicanlise... Esta mais complicada de resumir. Pedi anlise

    a um membro da extinta cole Freudienne de Paris devido a um livro que escreveu,

    ! 21

  • claramente originado na sua prpria anlise, que me fez acreditar que poderia levar a

    experincia analtica, interrompida pela minha sada de Argentina, at seu

    "verdadeiro" final. Naquele tempo, eu acreditava na tese de que uma psicanlise bem

    conduzida devia ter um final, digamos, inerente, lgico, absoluto e inevitvel. No por

    nada introduzi a resposta tua pergunta atravs da questo do "orgasmo". Sorriu,

    voltou a deitar na poltrona (tinha permanecido em p do meu lado), e continuou

    Hoje no acredito nada disso, embora para muitos colegas esta seja uma questo de f

    crucial e decisiva, j que crem que se voc no atingiu, digamos, o clmax analtico,

    voc no pode ser nem se dizer um psicanalista. Muitos que no chegaram a nada

    disso fingem ter chegado, assim como algumas mulheres fingem estar gozando para

    atender as expectativas dos seus amantes durante o coito; porque o que se espera

    delas. Em todo caso, eu no creio mais que haja um desfecho absoluto para uma

    psicanlise, digamos que aderi teoria da relatividade em psicanlise. Quanto a este

    analista meu... ele declarou seu livro, aquele que me trouxe para seu div, um "pecado

    de juventude".

    Fez uma pausa prolongada. Conclu que no era fumante, se fosse, este teria

    sido o momento de ascender um cigarro. Como por telepatia emendou assim: "Sabe o

    que mais lembro da poca das sesses? O cheiro azedo de cigarro impregnado na tela

    do div e na salinha minscula daquele apartamento na esquina da Pamplona, onde

    ele atendia. Isso, e a alegria de estarmos embarcados em uma aventura ele, eu e a

    turma de conhecidos e amigos que se analisavam ali naquela poca. Ser que d para

    falar desapassionadamente de uma poca apaixonante e passional?" Pegou uma

    garrafa de gua, bebeu do gargalo e comentou, como para si mesmo:

    Espervamos demais dele, acho.

    Em que sentido?

    ! 22

  • A cena psi brasileira, sobretudo a paulista, era, na poca, o prprio samba

    do crioulo doido; o mesmo sincretismo que mistura catolicisimo, umbanda, gnomos e

    vidas passadas grassava no campo analtico, criando um vale tudo clnico e terico

    contra o qual nossa pequena banda tentava fazer face, mais ou menos heroicamente.

    Ao mesmo tempo, estvamos s voltas com a ocupao colonial do millerismo, em

    sua etapa inicial, que precisava de massa crtica, digamos, e a encontrou cooptando

    analistas locais oriundos do annafreudismo, bionianismo, reichianismo ou, na melhor

    das hipteses, do kleinismo, que tinham comeado a ler Lacan dois meses antes e

    foram institudos pela corte francesa como fundadores da escola brasileira lacaniana

    oficial, passando por cima dos analistas analisados por lacanianos que aqui estavam e

    que estudavam a obra barroca do Lacan havia dcadas.

    A bem da verdade, eu fui convidado, junto com meus amigos, a participar

    desta turma fundadora, sob os auspcios de um petit-matre local, que tinha cado nas

    graas do prncipe herdeiro do reino lacaniano francs. A maioria de ns recusou-se a

    participar no que nos parecia ser uma farsa comandada desde Europa: instituir

    analistas de cujas anlises ningum jamais saberia nada, j que disso no se falava

    (como poderiam?); institu-los a dedo, dizia, como os mestres de um lacanismo

    brasileiro com pretenses de vice-reinado. Como te disse, nenhum deles tinha feito

    anlise com um lacaniano. Apenas ns, mas ns decidimos no avalizar esta pardia.

    Foi bem mais tarde que eles comearam a viajar a Paris para analisar-se com analistas

    da matriz francesa. Era a estratgia colonial francesa: os britnicos punham ingleses

    para governar as colnias; os franceses treinavam nativos na Frana e os mandavam

    como governadores dos seus conterrneos brbaros. S para te dar uma idia do gru

    de desfaatez: uma famosa analista da Matriz comentou durante um jantar, a

    propsito de um paciente dela brasileiro, que hoje um conhecido lder lacaniano,

    ! 23

  • "Estou preparando um psicanalista para o Brasil." Se eu sei disto, ele tambm sabe.

    Imagina o efeito de semelhante comentrio sobre o interessado e pensa o que ele

    revela sobre a psicanalista que o fez...

    neste contexto que ajudamos a importar um europeu para uso prprio. Viu

    isso de "nossos japoneses so melhores que os japoneses dos outros"? [risos]

    Importamos nosso europeu, ento, para que nos fizesse de analista; para

    avanar com ele nas questes tericas e clnicas que nos inquietavam e para instituir

    um grupo de trabalho srio que fosse baseado na anlise dos analistas, e no numa

    repetio cega de aforismos vazios...

    Voc diz "ns". Quem "ns"?

    Voc quer nomes dos companheiros de rota? No vou te dar nomes, basta

    dizer que ramos um bando de colegas amigos, todos bastante experientes, todos

    vindo de anlises pessoais, todos querendo estudar e todos querendo a experincia de

    uma anlise lacaniana, como te disse, que no fosse de faz-de-conta. No queramos

    um mestre a quem servir, mas um interlocutor dos nossos problemas tericos e um

    parceiro analista que nos permitisse prosseguir a nossa formao, no baseada na

    filiao a uma instituio, mas na experincia analtica mesma. Ele parecia ser "o

    cara" para tornar aquilo possvel.

    Obviamente, no foi nada disso. Terminou sendo uma decepo por duas

    razes. Primeira, porque no passava de uma miragem: "o cara" no existe; o

    "verdadeiro lacaniano", tampouco. Isso, claro, no responsabilidade de quem recebe

    a transferncia do ideal mas de quem o transfere. Ns, no caso. Ou, melhor, eu, deixa

    os outros falarem por si. Segunda, porque o homem tinha a sua prpria agenda, que

    em nada coincidia com a nossa. Depois de no muito tempo ficou claro que o projeto

    que tinha para si mesmo no passava por ns, e fez alianas que vivemos mais ou

    ! 24

  • menos como um petista dos anos oitenta deve ter vivido as de Lula com Maluf .

    Muitos largaram o div dele ou pararam de estudar ou de supervisionar com ele. Eu

    continuei com a minha anlise apesar disso, apesar de tudo (houve outros

    desencontros), o que, acho, fala bem de ambos.

    A experincia com ele, em todo caso, me fez possvel duas coisas

    fundamentais. Uma delas foi parar de errar. Escuta isso com as ressonncias que

    quiser. Poder recolher os frutos do que tinha semeado, sem abandonar a colheita para

    outros. Ter um lar. Hoje, quando digo: I'm going home em So Paulo que penso.

    Devo isso a esta anlise. Poder permanecer, sem abandonar tudo para recomear de

    zero em algum outro canto. Ou seja, se hoje eu posso dizer que sou um psicanalista

    brasileiro, nascido em Argentina, isso sem dvida resultado desta anlise. Soube

    disso o dia em que decidi fazer a minha apresentao em portugus em um congresso

    em Uruguay, lotado de argentinos. Lembro, na hora do debate, depois de responder a

    uma questo levantada por uma argentina em castelhano, o comentrio dela: "que bem

    que voc fala o espanhol!"

    A segunda coisa importante, foi ter podido permanecer em anlise, mesmo

    depois de a imagem idealizada do meu analista ruir, posso dizer, implodida por ele

    prprio. No abandonar tudo e sair procura do "verdadeiro analista" (que no h,

    nem pode haver). Disse isso para ele uma vez, deitado no seu div: "Voc est

    fazendo sozinho todo o trabalho de dissoluo da transferncia para mim. Devia te

    agradecer!" Ele tinha senso do humor e deu uma boa risada.

    E agora, faz uns trs ou quatro anos que estou mais uma vez deitado em um

    div, feminino desta vez, por razes que em nada dizem respeito ao meu trabalho

    como analista. Anlise que terminar quando terminar...

    ! 25

  • O que me decidiu a procurar analista novamente foi a angustia desencadeada

    por uma irrupo real inesperada. Queria me fazer ouvir mais uma vez atravs de

    algum. Desta vez em minha lngua materna. No ter qualquer iluso em relao a

    este algum, ou seja no esperar nada alm de um ponto de retorno da minha prpria

    palavra, no deturpada pelas ideologias ou crenas do meu analista, com certeza um

    enorme ganho. Se voc obtiver isso j pode se dar por satisfeito. O resto contigo,

    no com teu analista...

    Voc se considera um analista lacaniano? Qual a tua linha?

    So duas perguntas diferentes.

    Vamos segunda. Um colega de So Paulo, Manuel Berlinck, me disse que

    respondia: "de pescar". A minha linha de pescar. Gosto da resposta. Eu j respondi:

    "torta", para uma pessoa que me parecia muito certinha. Mas, tambm, j perguntei

    por que saber disso era importante. Uma vez escutei, na primeira entrevista: "Aqui

    Lacan, no?" Respondi: "Sim, mas no conta pra ningum, porque estou me

    escondendo do pessoal de Paris". J perguntei se precisava ter uma linha e para ser

    usada com qual finalidade, e recebi de volta: "ah voc um desalinhado, meu pai teria

    brigado com voc por isso". Voc v, um comeo promissor para uma psicanlise.

    Quanto a se eu me considero um lacaniano... Essa mais difcil, porque escuto

    isso como se voc me perguntasse se sou peronista ou torcedor do So Paulo. Ou, pior

    ainda, se sou ateu ou religioso. Acho que haveria que tentar perguntar isso de outro

    modo.

    Posso dizer, por um lado, que, para mim, no haveria Freud, sem Lacan. E isso

    pode soar um pouco como "no haveria Newton sem Einstein" o que, de certo modo,

    no deixa de ser verdadeiro, porque Newton hoje impensvel sem Einstein...

    ! 26

  • Fiquei sabendo, h pouco, que uma colega , que me confiou um filho para

    anlise, andava declarando por a, e de modo derrogatrio, que eu no era um analista

    lacaniano. Juro que no sei se pra ficar ofendido ou no. J que ela parece saber o

    que ser um analista lacaniano, voc deveria ligar pra ela e perguntar como ser um

    analista lacaniano. Depois me conta o que foi que ela disse. Quer o telefone?

    Quero.

    Procurou na agenda do Iphone e me entregou, em um papel arrancado de uma

    caderneta cheia de rabiscos e desenhos, um nome e um nmero. Pretendo ligar mesmo

    (e discutir com ele a resposta).

    Sabe? O mencionado Berlinck organizou um colquio h muitos anos, que

    inclusive deu numa publicao, denominado "O que um psicanalista argentino".

    Parece delirante, no?, a resposta parece evidente, no? Seria um psicanalista de

    cidadania argentina ou nascido em Argentina. Pois eu acho que no era nada besta, e a

    resposta no para nada bvia, j que se tratava, para ele, de responder(se) uma

    pergunta transferencial. Uma pergunta sobre um modo de praticar a psicanlise; um

    modo de conceber a psicanlise que tinha tido e continuava tendo efeitos sobre os

    brasileiros que, como ele, se analisavam ou estudavam com os "exilados da ditadura".

    Manuel era sensvel ao efeito sobre os formandos e os formados brasileiros da leva de

    argentinos que tomou por assalto o Brasil. Um dos efeitos, e no o menor, foi uma

    identificao com seus analistas e mestres que fez que adotassem deles at os erros de

    portugus! Em todo caso, Berlinck organizou um colquio para poder dizer da

    transferncia e pensar esses efeitos.

    Para te responder, ento, eu deveria comear por me perguntar "o que um

    psicanalista lacaniano?" E no uma pergunta fcil porque um freudiano era algum

    que acreditava no inconsciente, na teoria da libido e no complexo de dipo. Tira um

    ! 27

  • ou os trs e voc deixa de ser um freudiano. Jung, por exemplo, se afastou da teoria

    da libido e foi anatematizado. Os denominados ps-freudianos embora aceitassem os

    princpios fundamentais, fizeram modificaes e acrscimos ao ponto de deixar a

    teoria irreconhecvel, mas nunca romperam com a instituio mundial freudiana, nem

    terica nem politicamente. Por sinal, apenas algum formado e diplomado por uma

    filial da IPA pode at hoje chamar-se de psicanalista..."

    Ou seja que voc no seria um psicanalista... (Sorriso)

    Menina, voc no mede as palavras!

    Com efeito, eu no sou um psicanalista aos olhos da IPA e filiais. Nem eu,

    nem ningum que no seja membro diplomado por eles. Mas, veja voc o paradoxo,

    durante quase vinte anos eu cliniquei em Braslia, e membros didatas da instituio de

    l, filiada IPA, se analisaram comigo ou me mandaram seus conjuges ou filhos para

    anlise. Tive sobre meu div uma didata que virou presidenta daquela sociedade, e

    interrompeu a anlise porque no tinha mais como sustentar a diviso entre a sua

    anlise escondida e seu cargo oficial.

    Mas, no entendo. Eles eram membros, fizeram sua anlise didtica,

    viraram eles mesmos analistas didatas. Por que pedir anlise a um no-analista?

    (Sorriso maroto)

    O que voc acha?

    No consideravam a anlise feita dentro dos quadros suficiente ou adequada

    para resolver seus conflitos pessoais?

    !Deixa te contar uma coisa. A anlise didtica compulsria e dura cinco

    anos a xis sesses por semana (isso muda de acordo com o estado da economia e do

    mercado, embora hipocritamente sempre inventam uma justificativa terica). Tive

    ! 28

  • uma namorada que tinha feito onze anos de anlise, onze, a razo de trs sesses

    semanais, com um didata da associao de So Paulo. A decidiu que queria tornar-se

    analista membro da IPA. Pois bem, teve que comear do zero a sua anlise didtica,

    como se nunca tivesse se analisado, e com o mesmo analista com quem se analisara

    durante mais de uma dcada! Tudo que tinha feito at ento no valia nada aos efeitos

    do reconhecimento institucional. Eu lhe perguntei por que queria fazer parte de uma

    instituio psicanaltica na qual seu prprio analista no reconhecia como anlise o

    trabalho que ela fizera com ele durante dez anos. S isso no lhe parecia um bom

    motivo para no querer ser membro da IPA? Disse que no, que para ela o

    reconhecimento oficial da IPA era fundamental para poder autorizar-se a exercer a

    psicanlise, e se o preo a pagar era fingir que no tinha feito nada para, ao cabo de

    mais cinco anos, receber o aval deles, o que faria.

    E ela era sua namorada? (risos)

    Para voc ver... Sou um cara de mente aberta. (risos)

    Voc percebe que esta postura, no apenas fere qualquer bom senso, como

    completamente contraditria com tudo que a psicanlise ensina sobre a

    responsabilidade de cada um por seu prprio desejo inconsciente, revelado pela

    anlise. Uma vez encontrei em uma festa uma desafeta que tinha acabado de ser aceita

    na Sociedade de Psicanlise de So Paulo como membro. Ela estava orgulhosamente

    conversando com um colega que, na poca, era o presidente e com o tesoureiro desta

    instituio, e me chamou para apresentar-me a eles como "Este o Goldenberg, o

    psicanalista selvagem..."

    E voc respondeu o qu?

    Eu respondi: "A muita honra, ao menos no estou dentro de uma jaula como

    vocs, analistas domesticados." (Risos)

    ! 29

  • Acontece, porm, que o prprio lacanismo, que surgiu de uma ciso da filial

    francesa da IPA, depois de perder seu ncleo fundador, um grupo de analistas que

    "secessionaram" junto com Lacan, mas que foram abandonando a sua escola por

    razes tericas, clnicas ou polticas; o prprio lacanismo, no fim da vida do mestre,

    se transformou em uma multinacional pior que a oficial freudiana. Da mo do genro

    de Lacan (assim como o freudismo, com a filha de Freud cuidando o legado, o

    lacanismo tambm uma empresa familiar), nico herdeiro oficial do explio terico

    e poltico da cole Freudienne de Paris, foi criada a denominada Associao Mundial

    de Psicanlise, com filiais em tudo quanto canto, tipo Citibank. Esta multinacional

    lacaniana realiza, na minha opinio, uma dupla tarefa: por um lado, a vingana de

    Lacan, que nunca deixou de querer que seu ensino fosse reconhecido por aqueles que

    o haviam expulso e lhe tirado o ttulo de psicanalista didata (a negao apaixonada

    deste ponto antes o confirma que o infirma) e, por outro lado, uma homogeneizao

    terica que transformou esta instituio em uma verdadeira igreja dogmtica.

    Houve tambm (e o que eu mais lamento) um verdadeiro expurgo stalinista

    dos nomes de toda aquela primeira gerao a que me referia como fundadora. Obra do

    millerismo, que apaga os nomes e a influncia dos primeiros discpulos que ajudaram

    a pensar e a renovar a psicanlise. Basta ler os trabalhos surgidos da AMP durante os

    ltimos vinte anos: obras brilhantes e criativas, escritas por discpulos que no diziam

    amm (ou "amem", como voc preferir) ao mestre, e o ajudavam a avanar

    criticamente, simplesmente no so citados porque no so lidos. E no o so porque

    ningum formado no millerismo os conhece. No sabem quem so. Nomes como

    Clavreul, Valabrega, Aulagnier, Rosolato, Perrier, Granoff, Pontalis, Laplanche,

    Leclaire, Vase e tantos outros, simplesmente despareceram, para dar lugar aos

    recitadores, aos rezadores da novilngua homogeneizada por Miller.

    ! 30

  • Basta ir aos seus congressos. Tudo que voc escuta uma reza realizada em

    um idioma particular inventado por Lacan e normalizado por Miller, denominado

    lacans, que todos falam fluentemente e que lhes permite acreditar no s que se

    comunicam como que pensam.

    Voc no est sendo um pouco duro?

    No. Cheguei ao ponto de supor que Miller odiava seu sogro pelo peso da

    tarefa que tinha jogado sobre seus ombros: curador e co de guarda do seu explio, e

    que seu jeito de vingar-se desta vida consagrada obra de outro era acabar com ela.

    Note-se que ele quem estabelece o Lacan que lemos, ele sozinho decide a verso

    final de O Seminrio. O que Lacan "quis dizer" cabe a Miller determinar, sem

    qualquer discusso. E se confrontar verses estabelecidas por outros pode-se verificar

    que h derivas; em casos, como o do seminrio dedicado transferncia, a distncia

    aberrante: no h um s Lacan, mas dois ou mais "Lacanes" que muitas vezes se

    contradizem. Quando esta outra verso crtica, de um grupo denominado Stcriture,

    foi publicada, Miller mandou os responsveis pra cadeia. Mas esta verso fala por si,

    uma verso crtica e anotada, com todas as referncias cuidadas, como todas

    deveriam ser. Digamos que o melhor modo de acabar com Lacan convencer todo

    mundo que ele tem um nico leitor qualificado. O nico a esclarecer o que o homem

    diz. Quem quisesse entender o verdadeiro Lacan precisa passar pelo crivo milleriano.

    No mnimo, por um estabelecimento acrtico e sem confronto com a verso de

    nenhum dos outros alunos. No por nada que seus primeiros trabalhos coletados no

    Brasil tenham por ttulo: Lacan Esclarecido. E mesmo que no tenha sido assim e que

    eu esteja exagerando, quando voc l os trabalhos originados no millerismo ntido

    que a maioria desistiu de pensar. J nem fingem que tem uma ideia, apenas repetem o

    que acreditam que devem dizer para mostrar adeso ao grupo a que pertencem.

    ! 31

  • E vou te dizer mais. Este efeito jargonofsico me parece um defeito gentico

    do prprio ensino de Lacan; uma espcie de doena do lacanismo e de nenhum modo

    originada no millerismo. Em absoluto, as duas instituies lacanianas no millerianas

    com ambies universais, a Association Lacanienne Internationale, fundada pelo

    Jones de Lacan: Charles Melman, e uma ciso do prprio millerismo com ambies

    planetrias, denominada Frum do Campo Lacaniano, fundada por uma paciente de

    Lacan, Colette Soller, produzem miles de trabalhos idnticos. E entre as dzias e

    mais dzias de micro-instituies lacanianas da dispora da cole (que na medida em

    que no podem mais copiar nomes como "Escola Freudiana de..." portam nomes

    como "Custo Freudiano", "Corpo Freudiano", "Colgio Freudiano", "Coisa

    Freudiana"; "Trao Freudiano"...

    Por que todas usam o adjetivo "freudiano"?

    Por que "freudiano"? Porque Lacan reivindicava um retorno ao verdadeiro

    Freud. Verdadeiro frente ao annafreudismo, que teria sido uma deturpao do sentido

    da obra e da prtica do Freud. Devo dizer que concordo com isso. Na dcada de

    setenta se dizer lacaniano nada mais queria dizer que ser um verdadeiro freudiano. Foi

    esse mote que me trouxe para dentro do lacanismo porteo: de certo modo olhvamos

    para os psicanalistas membros da ortodoxia freudiana com condescendncia e

    desprezo: "vocs podem ser os proprietrios do nome de Freud, mas os verdadeiros

    freudianos somos ns". O prprio Lacan disse, pouco antes de morrer, em Caracas,

    "Cabe a vocs serem lacanianos, eu sou freudiano".

    Lacan morreu em oitenta. Apenas na ltima dcada algumas instituies se

    atreveram a adjetivar-se oficialmente como lacanianas: "Praxis Lacaniana"; "Ponto

    Lacaniano"; "Escola Lacaniana"; "Associao Lacaniana Internacional"; "Forum do

    campo lacaniano"... A nova aposta deveria ser de peso porque se trataria em tese de

    ! 32

  • poder assumir uma distncia crtica, no bom sentido, com as toneladas de bibliografia

    que compem a obra do lacanismo. Mas no h nada disso. H apenas mais do

    mesmo. Enfim, todos rezam no mesmo jargo. Posso apostar que se eu te mostrar

    cinco trabalhos provenientes de instituies diferentes voc diria que vem todos do

    mesmo lugar.

    Claro que brilham aqui e ali no poucos diamantes no garimpo do lacanismo

    internacional. No so poucos, mas, infelizmente, no suficientes para que no se

    deva pensar que esta degradao um efeito endgeno produzido pelo prprio

    ensinamento de Lacan, que nunca deixa de invocar, como uma das suas muitas

    palavras de ordem "a transmisso" (termo muito usado por Lacan que, como voc

    deve saber, vem da religio).

    Ento, o que ser lacaniano... Ou melhor, vale a pena querer ser lacaniano

    ainda, luz deste panorama?

    Como te disse, para ns (e por ns, me refiro a analistas da minha gerao),

    ser lacanianos era ser freudianos pra valer. Mas no s. Era ousarmos ser criativos na

    hora de responder quilo que escutvamos dos nossos analisantes. Era sermos crticos

    na leitura do que nos entregavam como dogmas, vindos do freudismo ou do prprio

    lacanismo. Adoro uma tirada do Lacan nos anos setenta: Faam como eu! No me

    imitem. Poderamos pensar que o "faam como eu!" seria uma exortao mimese;

    um "imitem-me!" Mas, em seguida, ele explica em que consiste fazer como ele:

    consiste em no imit-lo! Ou seja, faam como eu fao: no imito ningum. Se

    quiserem seguir-me vo ter que por algo de vocs mesmos. Ele trabalhava com

    sesses ultracurtas. Isso no me convm, nem aos meus analisantes. Ser que sou

    menos lacaniano por isso? Acredito na eficcia dos cortes, porque a teoria da gnese

    ! 33

  • a-posteriori do sentido me parece verdadeira, mas tambm acho que precisa haver

    tecido para poder cortar; um certo tempo para urdir a trama das histrias.

    Entendo que a eficcia est na reduo das histrias ao seu ponto zero, para

    que o paciente se d conta do momento em que inventou um destino para si a partir de

    quase nada; de um incidente qualquer, do qual ningum lembra a no ser ele mesmo.

    A chave dos seus sofrimentos pode estar em qualquer coisa vivida ou inventada, ou

    interpretada por ele a partir de um fato besta, mas que acabou dando um sentido sua

    vida. A paixo teleolgica a nossa doena; a infirmidade do ser humano: precisamos

    de um sentido para nossa existncia e damos esse sentido contra vento e mar. As

    religies existem por causa desta doena. Este o sintoma. O sintoma nosso de todos

    os dias. Saber como inventei o meu quase sem perceber e poder descolar dele o

    maior grau de liberdade a que posso aspirar, e uma psicanlise deve poder dar-me

    isso. Se no me der isso, no serve pra nada.

    No penso que o psicanalista deva ser maternal com seus analisantes, mas

    penso que voc precisa ser sensvel ao sofrimento e angstia de quem se analisa

    com voc, para que seja vivel atingir esse ponto em que o sintoma no lhe seja mais

    necessrio, ou, ento, que ao se dar conta de que foi inteiramente construdo em cima

    de um fato contingente da sua vida, deixe de pensar que est escrito como seu destino

    nas estrelas desde sempre. No tem "eu sou assim", tem "eu me fiz assim" e preciso

    ou me responsabilizar por isso ou inventar outra coisa que me sirva. Ser lacaniano, no

    que me diz respeito, coincide com ser psicanalista, ponto.

    Pode me dar um exemplo da liberdade ou da criatividade a que voc se

    refere... (Sorriso)

    Existem standards, padres, uma psicanlise-tipo, realizada em um

    enquadramento-tipo; com uma conduo-tipo, decidida a partir de um diagnstico que

    ! 34

  • te permite encaixar o teu paciente em um tipo clnico, Voc no vai intervir do mesmo

    modo frente a uma psicose ou a uma neurose, por exemplo, precisa decidir com qual

    das duas estruturas est lidando. Este tratamento padro no foi inventado por Freud,

    que fazia o que ele achava que devia fazer, sem temor a equivocar-se, mas por

    discpulos seus preocupados em como treinar os psicanalistas por vir...

    Interrompeu a frase, levantou de supeto e ordenou, mais do que props:

    "Vamos tomar um caf e continuamos a conversa fora daqui? Cansei desta sala por

    hoje."

    Samos do consultrio e descemos 300 metros de uma ladeira ngreme at a

    avenida Sumar, onde viramos esquerda e ainda caminhamos outro quarteiro at

    um caf simptico onde ele pediu para mim, sem me perguntar, uma mousse de

    chocolate, uma taa de vinho tinto e uma gua sem gs (no aprecio particularmente o

    chocolate, mas no teria deixado de comer, porque gosto de um homem que pede para

    mim, sem me consultar). Para ele pediu uma torta de limo e um caf, que deixaria

    quase sem beber ("no gosto de caf, mas no consigo evitar pedir", disse, quando fiz

    observar que no o tinha bebido "acho que penso que deveria gostar...afinal, vivo na

    terra do caf"). Retomou a conversa com grandes gestos (esqueci de dizer que ele fala

    com as mos; judeu, mas poderia ser italiano), intercalando pausas em que olha

    direto nos meus olhos, momentos em que parece encarar o fluxo de carros na avenida

    l fora (se no soubesse que est prestando ateno, diria que viajou para outro lugar),

    e curtos instantes em que abaixa as plpebras, como embaraado, como se no

    conseguisse sustentar meu olhar. Fiz uma observao sobre isso, at imitei seu gesto

    de abaixar os olhos e ele sorriu (e abaixou os olhos) enquanto dizia: " um trao de

    famlia: odeio quando sou flagrado em fotografias de olhos baixos. Na poca da

    escola, treinava para no abaixar os olhos quando chegava nas meninas, tinha

    ! 35

  • aprendido que se olhasse em cima do nariz delas, entre os olhos, o efeito era idntico

    ao de olhar olho-no-olho, mas quase nunca conseguia..."

    Estvamos em que Freud no inventou os standards...

    Sorriu perante a minha pronncia-deboche da palavra inglesa que ele tinha

    usado mais cedo.

    Freud no inventou o comportamento-padro do psicanalista, mas se voc

    queria ser psicanalista voc devia antes de mais nada parecer psicanalista. Eu sou da

    poca em que isso consistia em se vestir de um modo neutro, sempre com a mesma

    roupa e trabalhar em um ambiente acolhedor mas que no denunciasse nada dos seus

    gostos ou preferncias pessoais. A idia que o psicanalista devia apresentar-se como

    uma no-pessoa; uma tela em branco na qual o paciente projetasse as suas fantasias

    edpicas. Existiam tambm modos de falar e at o tom devia ser controlado para no

    manifestar nem alegria, nem raiva nem nenhuma afeto ou cor que trassem o efeito

    que o paciente produzia em voc. Esse efeito tinha o nome de contra-transferncia e

    toda a arte consistia em control-lo e servir-se dele como bssola do inconsciente do

    outro.

    Lacan ps isso tudo de pernas pr ar com uma liberdade tal que para a

    primeira gerao de pacientes e alunos isso funcionou como uma libertao da rigidez

    das regras que tinham aprendido e que eram sine-qua-non. Para te dar uma idia do

    qu tnhamos que nos libertar te conto a seguinte anedota: supervisionei meu primeiro

    paciente criana com Arminda Aberastury, pioneira da psicanlise kleiniana aplicada

    s crianas em argentina. Era uma magnfica analista de uma intuio formidvel, mas

    tambm de uma rigidez tirnica quanto ao enquadramento do dispositivo analtico.

    Bem, eis que ela se recusou a escutar o que tinha se passado entre mim e meu

    paciente mirim porque ficou sabendo que tinha esquecido de por um casal de animais

    ! 36

  • selvagens na caixa de jogos que tinha oferecido como material de expresso do

    inconsciente do meu paciente de cinco anos. Era assim com os adultos tambm.

    O freudokleinismo sempre foi bastante tolerante s inovaes tericas (desde

    que respeitassem as trs colunas de sustentao de que tinha te falado mais cedo), mas

    era completamente intratvel quanto s inovaes tcnicas. A tcnica era e devia

    permancer padro, para evitar o vale-tudo. Para fazer face s crticas da sociedade de

    que a psicanlise no era cientfica, era necessrio fazer direito e que parecesse coisa

    sria. Todos ramos os guardies do legado de Freud, sempre prestes a ser sujado

    pelos seus detratores, e como a mulher do Csar, no bastava que fossemos honestos,

    devamos parecer honestos.

    Muito bem, o lacanismo foi como uma lufada de ar fresco neste ambiente

    rarefeito, mas os lacanianos j tarimbados tambm comearam a ficar preocupados

    por controlar minimamente a Casa da me Joana em que a frmula do Lacan "o

    analista s se autoriza de si mesmo" tinha transformado o lacanismo. (Parntese: esta

    frmula sinal da liberdade a que me referia e que o melhor do ensino do Lacan: se

    o que te autoriza a ocupar o lugar e fazer a funo do analista a tua prpria

    experincia como analisante, ento, ningum vindo de fora poderia te dizer "tu ests

    apto para praticar a anlise". Fecho o parntese). Paradoxalmente, o cerco foi fechado

    no sobre a tcnica, que continuava sendo um "cada um por si e Lacan contra todos",

    mas sobre a teoria. A teoria que sustentava a prtica era inamovvel, e os lacanianos

    viraram, e continuam at hoje, talmudistas gastando a vida sobre uma expresso do

    mestre. Decifra-me ou devoro-te era (e ) o que os lacanianos escutam como a voz

    originada na esfinge dos Escritos e do Seminrio. Por isso, quando chegou um

    avalizado pelo prprio mestre, que disse "eu serei o intrprete do orculo lacaniano

    para vocs!", foi (e ) adorado como um messias.

    ! 37

  • Isso, eu no posso aceitar. No repito o que no entendo, e no uso o que no

    me serve clinicamente para nada. Lucubraes metafsicas, fantasiadas de palavra

    divina do lacanismo oficial. Oficial e ortodoxo porque, paradoxalmente, Lacan que foi

    um iconoclasta e um heterodoxo, conseguiu gerar uma legio de repetidores e

    guardies de uma ortodoxia lacaniana. Por exemplo, corriqueiro escutar coisas

    como "porque Lacan disse, no seminrio XI, que o Vorstellungs reprsentanz (quem

    cita o termo em alemo no fala alemo, mas cita em alemo porque Lacan, que sim

    lia alemo, o citava em alemo!) o S2" E o outro, se for um verdadeiro talmudista

    h de lembrar que Lacan disse, quatro anos depois "ah mais vocs no entenderam

    nada o vorstellungsreprasentanz de freud o S1". Houve uma poca em que eu

    intervinha em debates bizantinos como este, mostrando que cada afirmao estava no

    contexto de um problema diferente e que no era nem uma coisa nem a outra, ou

    ento, fora de contexto, era as duas ao mesmo tempo, ou nenhuma. Mas isto reflete a

    necessidade de encontrar um ponto firme, um porto seguro em uma obra que sempre

    foi um work in progress e que nunca anotou a sua ultima palavra, a no ser com a

    morte do autor.

    Enfim, encurtando: voc estuda e se analisa para poder dar a resposta que a

    situao analtica exige, no para aplicar as normas de um setting freudiano ou um

    anti-setting, to pernicioso quanto, lacaniano: sesses de dez minutos, respostas

    agressivas, nenhuma resposta, manipulaes, enfim, o que a lenda diz que o mestre

    fazia e, depois dele, todo mundo imita. Imita a lenda, claro. Um amigo meu deu um

    murro na cara do analista, depois que ele enfiou a mo no seu bolso para tirar-lhe o

    dinheiro do pagamento. " a ultima vez que tu bota a mo no meu bolso", advertiu. E

    a resposta do seu lacanianoanalista foi: "mas Lacan fazia assim, oras!" H outros e

    outras que, em nome de Lacan (assim como se diz em nome de Deus), manipulam

    ! 38

  • vida e milagres dos seus analisantes, induzindo o contrrio do que uma analise

    deveria induzir; ou seja, incrementando a servido voluntria dos pacientes, que j o

    prprio do neurtico.

    Voc acabou no me dando um exemplo da ruptura do setting, como

    resposta ao que o paciente requer naquele momento.

    Ok, te conto. Antes de atender aqui, atendia em uma sala em uma casa

    chiqurrima na zona residencial, perto daqui. Uma casa com um enorme jardim e com

    piscina. Eu atendia um garoto de nove anos que vivia me xingando de tudo quanto era

    nome. Um filho da nossa classe dominante que me tratava como um dos empregados

    da fazenda. Lembro que eu o chamava de "sinhozinho". Chegou uma hora que se fez

    muito difcil trabalhar com ele. As sesses se limitavam a escutar suas gozaes sobre

    minhas coisas: minha roupa, meu carro, meu relgio ou meu walkman (vinha de uma

    famlia rica e portanto o dele sempre era melhor maior ou mais caro que o meu, seja o

    que for); ou ento me xingava sem razo alguma, com os insultos mais ofensivos que

    conhecia.

    Ele era o caula temporo de uma famlia com trs irmos bastante mais

    velhos que o tratavam como caf-com-leite, uma me que o adorava e o mimava

    como um beb, e um pai-heri que no estava nunca em casa, e quando estava s

    dava ateno pros irmos. Eu tinha tentado dizer algo disso para ele sem o menor

    sucesso.

    At que um dia enchi da xingao toda e fiz o seguinte: Como na poca eu

    treinava full-contact, tinha na minha sala dois pares de luvas (aquelas luvas parecidas

    com as de boxe). Disse pra ele que j que queria brigar comigo amos brigar pra valer.

    Entreguei um par de luvas pro garoto; calcei o segundo, samos no quintal e camos

    na maior pancadaria perante o espanto dos colegas com quem eu dividia a casa e a

    ! 39

  • secretria que, soube depois, perguntou pra um dos meus colegas se deviam chamar a

    polcia. claro que eu no pretendia machucar o rapaz, mas tambm ficou claro que

    estvamos lutando mesmo. Quando ele decidiu que j estava de bom tamanho,

    encerramos a briga. Nunca mais me xingou ou tirou sarro das minhas coisas e a partir

    dali, diria, a anlise dele entrou em sua fase final.

    O que tinha acontecido? Foi meu modo de trat-lo como gente grande, com

    respeito, como ele estava pedindo. Eu no fiz com ele o que os irmos ou o pai

    faziam, jogar de faz-de-conta, trat-lo como caf-com-leite. Eu lutei com ele de

    verdade. E isso valeu por todas as interpretaes da sua posio que antes no tinham

    chegado a destino. Mas, convenhamos, que no l um tratamento muito ortodoxo da

    transferncia! (Risos)

    Enfim, no sei que mais te dizer, a no ser que, como analista, voc o que

    a tua anlise fez de voc, nem mais nem menos. Mas a tua anlise, por sorte, no se

    confunde com os analistas que voc teve. Fazemos anlise apesar de nossos analistas.

    Um analista bom quando no atrapalha demais o teu trabalho e quando, na hora que

    emperra, no se sai muito mal indicando o teu ponto de deteno. Eu nunca trabalhei

    do mesmo modo como meus analistas trabalharam comigo, nenhum deles. E isso, fala

    bem de todos eles: no terem induzido uma identificao em mim. As pencas de

    colegas visivelmente identificados aos seus respectivos analistas, ao ponto de voc

    poder reconhecer com quem um ou outro se analisou, pelo modo de agir e de falar

    pattico, e certamente uma evidncia do fracasso relativo daquelas anlises.

    Em suma, se lacaniano quer dizer estar disposto a pr o inconsciente do outro

    a trabalhar, para ele encontrar atravs do resultado uma sada para seu sofrimento,

    ento, sou lacaniano. Se lacaniano quer dizer que para poder percorrer este caminho

    preciso estar ali no s de alma, mas tambm de corpo, porque seno nada vai

    ! 40

  • acontecer (a psicanlise no uma sesso de reflexo, uma experincia vivida

    concretamente e at o limite, por ambos participantes), ento sou lacaniano. Se

    lacaniano quer dizer que voc tem que inventar um modo de isso acontecer, que no

    pode ser padronizado porque no funciona igual para duas pessoas, ento sou

    lacaniano. Se lacaniano quer dizer ser um leitor vido e crtico de tudo que se produz

    na cultura que me toca viver, ento sou lacaniano.

    Hoje um paciente, provavelmente psictico, me disse: "ambos sabemos que

    nada vai mudar, e que eu nunca vou sair do sofrimento em que estou: voc sabe e eu

    sei." Respondi que se de veras pensasse isso, j teria dito pra ele e teria tentado pensar

    em uma outra abordagem para ajud-lo. Ele ficou muito, mas muito surpreso com a

    minha resposta. Disse que jamais teria imaginado que fosse dizer isso. "Ainda penso",

    acrescentei, "que voc pode inventar um modo de se virar com X (o sintoma de que

    se queixa), que te permita viver de outro modo. Inventar quer dizer que no existe

    ainda e que deve ser construdo. Espero poder te ajudar nisso, mas no saberia

    inventar por voc, em teu lugar".

    Depois disso conversamos sobre cultura e religio e sobre a necessidade dos

    mitos, perguntei se acreditava em Deus. Me disse que no, mas que isso no fazia a

    menor diferena, porque as posies humanas em matria de religio seriam, segundo

    ele, duas: acredito que acredito, postura de um crente, ou bem, acredito que no

    acredito, postura de um incrente. O ponto radical de um verdadeiro atesmo,

    acrescentou, " chegar a descobrir o que voc acredita sem saber; ou seja, conhecer as

    tuas determinaes ditas inconscientes. a nica liberdade a que um homem pode

    aspirar, e a psicanlise deveria servir para lev-lo at ali." Perguntei o que significava

    "acreditar sem saber" e me deu como exemplo uma pessoa que afirma no ser

    ! 41

  • supersticiosa, mas se cuida para no passar nunca embaixo de uma escada. Perguntei

    se ele sabia em que acreditava e me respondeu: Acredito no acaso.

    H caso?

    Sim, h-caso. Caso contrrio: qual seria a graa?

    Nos despedimos na porta do Caf. Pedi o nmero do seu celular.

    8395-3030 disse.

    Quando descia rumo ao ponto de taxi, me chamou de volta: "Liga para mim!",

    pediu, "assim fico com teu nmero gravado". Liguei.

    No meu ouvido: Esse nmero de telefone no existe, verifique o nmero

    discado ou...

    Voc me deu teu nmero errado! (Gargalhada)

    Ali estava o nove perdido na minha chegada.

    Era para ser um seis, claro, mas esta vez no precisava de associaes nem

    nada. Estava demonstrado em ato, como ele teria dito, o tal de efeito sujeito.

    !!Mara Elena ngeles reprter da revista Harper de Nova Iorque, graduada em

    jornalismo pela Auburn University (School of Communication and Journalism),

    trabalhou nos jornais O Globo, do Rio de Janeiro e Pgina 12, de Buenos Aires

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