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Entrevista de Ricardo Goldenberg a Mara Elena ngeles
!Tudo comeou com um mal entendido.
A revista Hora Hag tinha me encomendado uma matria sobre psicanalistas
expatriados, a propsito da pergunta " possvel ser psicanalista em outra lngua que
no a prpria?" Tinha argumentado com a minha editora, Lily Faria, que se existem
escritores, como o russo Nabokov ou o polaco (perdo, "polons") Conrad, que
escreviam em ingls; ou o outro polons (perdo, "polaco"), Gombrowicz, que o fazia
em castelhano; ou o irlands Beckett, em francs, ou Joyce, tambm irlands, escritor
em uma lngua imaginria, ento, pensava eu, por que no poderia haver psicanalistas
a analisar em lnguas que lhes fossem estrangeiras? Porque, tinha me respondido Lily,
a psicanlise consiste na explorao das prprias origens, e na origem est a lngua
materna.
O argumento parecia de peso, e foi com esta pauta que consegui uma lista de
psicanalistas estrangeiros clinicando em So Paulo. Como tenho o hbito pouco
brasileiro de organizar a agenda segundo os sobrenomes, comecei com o primeiro da
lista, Goldenberg Ricardo. Mando-lhe um e-mail. No muito depois recebo uma
resposta seca, curta, quase irritada: Amanh, 14hs, Ministro Gasto Mesquita 416.
Nunca fiz anlise, mas me disseram que antes da primeira sesso com um psicanalista
sofremos perturbaes inominveis. Assim, mesmo sendo uma entrevista, incorporei a
candidata a paciente e fiquei devidamente angustiada.
Ao chegar no local descubro que no existe uma casa cujo nmero fosse 416.
Como frequentemente acordo com a cabea onde deveriam estar meus ps, apostei no
nmero 419. Touch! (ou bingo!, como depois soube que Goldenberg teria dito).
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Trata-se de uma casa amarela no bairro de Perdizes que em nada anuncia a sua
ocupao. Um lance de escadas me levou at uma porta que se abriu eletronicamente,
ou, melhor, que no se abriu eletronicamente, j que tive que tocar pela segunda vez e
recebi instrues de bater nela para que se abrisse. Um comeo a la Jacques Tati,
pensei (para evocar um francs mais divertido que o docteur Lacan). A sala de espera
estava mobiliada com antiguidades um pouco desconexas, um tapete persa gasto e
quadros que com certeza foram adquiridos ou trazidos por pessoas de gostos
diferentes. Diria que aprenderam a conviver por obrigao, mas no teriam morado
juntos se tivessem tido escolha. Algumas plantas sugerem um toque feminino, as
revistas, (nenhuma muito recente), um toque masculino, mas nada demasiado
estudado. Uma porta entreaberta d para uma sala de atender crianas (h uma
casinha de madeira sobre uma bancada). No cheguei a sentar porque da metade de
outra escada que leva para o andar superior, assoma a cabea, quase invertida, do meu
anfitrio e me faz um gesto com a mo, como quem d uma ordem a um cachorro,
para subir. No vo da escada h uma enorme aquarela de um leopardo sentado e
olhando sem curiosidade aos que sobem. Depois soube que se tratava de um Hojnal .
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Dentro da sala qual fui convidada a entrar h dois pequenos desenhos muito
perturbadores feitos com caneta preta ou com nanquim do mesmo artista. Como para
contrarrestar o efeito violento e dar uma nota de cor ao lado deles h uma gravura da
Maria Bonomi em vermelho e preto representando uma rotativa de imprensa. Os trs
quadros esto na frente do div: uma chaise longue Le Corbusier, de couro preto e
estrutura cromada. Detrs dela, a poltrona, tambm de couro preto, parecendo um
assento de primeira classe num voo da British. Sem ainda dizer uma palavra
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Pintor e desenhista hngaro, restaurador oficial da capela Sixtina, no Vaticano.1
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Goldenberg me indica uma pequena poltrona de tecido preto na qual entendo que
devo sentar.
Suponho que a usa quando escreve sobre uma pequena mesa de tampo de
pedra cinzenta, granulada com pequenas manchas em diversos graus de preto, cinza e
branco, com ps de ao pintados de preto fosco. A sala, contudo, no tem nada de
soturna. Trs das paredes so brancas, uma delas com uma janela antiruido e uma
cortina clara fechada pela metade. Uma luminria de p, feita de dois astes finos
cromados que sustentam uma pequena canaleta para um tubo de luz dicrica est
acessa e outra, uma rplica branca das velhas luminrias de escritrio, que viraram o
cone da Pixar, ilumina vrios cadernos, livros, papeis e um notebook espalhados
sobre a pequena escrivaninha que, penso, deve ter sido imaginada para servir
cafezinhos e biscoitos no hall de uma empresa (Tok e Stock, apostaria). Suponho que a
escolheu pelo tamanho. A sala minscula, o espao porm est bem aproveitado.
minha esquerda, na posio em que sentei, frente a poltrona onde meu anfitrio se
refestelou, como um gato na cama do dono, h uma estante repleta de livros,
cadernos, pastas, revistas que me separa da porta pela qual tinha entrado e que ele
trancou a chave (notei o gesto porque sou ligeiramente claustrofbica). Claramente
no se trata de uma biblioteca, mas de material de trabalho rotativo. (fiz uma nota
mental de perguntar sobre seus livros). A quarta parede, atrs de mim, includa a
porta, est forrada em cortia. Viro-me para verificar o que nunca imaginei encontrar
em um consultrio de psicanalista. Um enorme poster reproduzindo a capa do lbum
Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band. Outro cartaz menor, emoldurado, de Per
qualche dollaro in piu, assim, em italiano, o filme de Sergio Leone, desde o qual me
olha com desprezo um muito jovem Clint Eastwood. E, sobre uma prateleira branca,
pregada em cima da mesinha, um cartaz tamanho publicidade de cinema do filme
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coreano O Caador, de Hong-jin Na, com os rostos obscuros superpostos de duas
personagens masculinas. um pouco menos perturbador que os quadros de Hojnal,
mas o contraste com o poster colorido dos Beatles, vermelho e alegre o mesmo que
existe na outra parede. Teria ele calculado a repetio do efeito, ou aconteceu por
acaso? Outras duas, e muito inesperadas figuras esto coladas na parede: um Batman
desenhado por Frank Miller (Prefiro Frank a Jacques-Alain , disse brincando, quando 2
fiz um comentrio a respeito), e seu arqui-inimigo, o Curinga, em primeiro plano
fotografando o espectador: a capa ampliada da histria em quadrinhos The killing
joke. No pude deixar de observar que o Curinga um psicopata e um assassino.
"Tambm adoro Dexter", disse, "alis, me foi apresentado por um paciente" . Sobre a 3
escrivaninha h uma reproduo de uma publicidade argentina de aspirina da dcada
de cinquenta: um sorridente careca, com a cabea cheia de pregos e parafusos
representando a enxaqueca, e a legenda: Venga del aire o del sol, del vino o de la
cerveza, cualquier dolor de cabeza se cura con un Geniol. Da mesma poca, ao lado,
h uma reproduo menor de outro cartaz publicitrio, o da RCA-Victor: o conhecido
cachorro sentado frente vitrola confuso ao escutar "his master's voice" vinda da
buzina do gramofone. Enfim, sua esquerda est pregada uma foto em preto e branco
de Bob Dylan, bem novo e de culos escuros, fotografado no estdio enquanto canta.
Na parede oposta, um belo desenho feito em um trao s de grafite sobre um papel
barato de rascunho azul, de uma mulher nua agachada, completa o quadro deste
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Refere-se a Jacques-Alain Miller, executor testamentrio e editor das obras 2completas de Lacan.
Dexter uma srie televisiva americana centrada em Dexter Morgan (Michael C. 3Hall), um assassino em srie que trabalha como analista forense especialista em padres de disperso de sangue no departamento de polcia do Condado de Miami-Dade.!
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consultrio. "Foi presente do artista, quando terminou a sua anlise", explicou, ao me
perceber interessada no quadro. O que fazer com esta exposio, o que diz do dono?
Embora de origem espanhola, seu sotaque no me foi familiar. Ou melhor,
durante a entrevista descobri um termo freudiano que descreveria melhor minha
sensao: Unheimlich. Uma sorte de aflio, de desassossego diante de um
corretssimo portugus que insistia em me fazer escutar em minha lngua uma msica
vinda de outro lugar; ao mesmo tempo, prximo e distante. Jornalista, fui mordida
cedo pelo bicho da linguagem. Nunca escondi meu encantamento diante de sotaques e
regionalismos. uma espcie de alvio saber que, embutido na fala, existe o
testemunho de lugares longnquos. H uma estrangeira em mim que o uso que ele faz
da minha lngua me faz escutar.
Detrs daquela fala agitada pelos bons ares porteos, misturada com termos
em ingls (pronunciados sem sotaque! Para tornar minha experincia ainda mais
inquietante), havia um homem charmoso, despenteado, de camisa vinho, cala jeans e
uma bota cujo bico era mais fino que o da minha.
O golpe de misericrdia na minha expectativa de encontrar um consultrio
soturno, com tapetes persas e fotos emolduradas de Freud e de Lacan, algum quadro
de Escher e de Bosch, foi um minsculo bonequinho plstico de Freud, de charuto na
mo, do tamanho do Pequeno Polegar, encarapitado orgulhoso na base da luminria
da escrivaninha. S podia ser uma ironia. Foi a minha primeira observao: "No
parece consultrio de psicanalista..." Mas a pergunta foi dele: "Ah ? E como 'parece'
um consultrio de psicanalista?" "Neutro, imagino, annimo, de modo a que os
pacientes possam projetar o seu teatro interior..."
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Em primeiro lugar responde , o inconsciente no um teatro, como
disse h anos Deleuze, o inconsciente uma fbrica. E, em segundo lugar, passo o dia
aqui. Preciso estar entre coisas que me agradam.
Fantstico: o objetivo no era deixar o ambiente pronto para o analisando, mas
sim, convida-lo a entrar (literalmente) em um ambiente que agrada seu analista.
Afinal, ele passa bem mais do que 30 minutos naquela sala.
O inconsciente uma fbrica? digo Muito bem, e o que fazer com o
seis pelo nove, como produto? Abriu um sorriso embaraado que dizia "garota
esperta" e respondeu: "Seis o nmero do capeta, e me mandaram acrescentar nove
na frente de todos os nmeros de celular de So Paulo, o que me deixou bem
irritado... Serve, por enquanto?"
Serve digo, enquanto anoto o lapsus calami no meu Molesquine a la
Hemingway.
Voc vai anotar? pergunta.
No, claro que no. Limitaria demais nossa conversa...
Thats my girl!
...mas preciso gravar, se voc no se importa: ossos do ofcio.
Certo respondeu, no muito entusiasmado, e depois: "Vam' l?"
Vamos l. Voc se considera um psicanalista argentino?
No, apesar do sotaque, eu me considero um psicanalista brasileiro.
Mas voc se formou em Buenos Aires...
Hm, ta o problema: o que quer dizer formar-se, no caso de um psicanalista?
Eu estudei psicologia na universidade de Buenos Aires, na Facultad de filosofa y
letras, durante os Anos de Chumbo. Tive a sorte de ter aulas com o que havia de
melhor na ditas cincias humanas, antes que o Terrorismo de Estado os empurrara
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para fora do pas ou da universidade ou, em certos casos, como o de Walsh, o
jornalista, da vida. Tive a minha primeira experincia de anlise aos dezoito ou
dezenove, por incentivo de uma namorada, preocupada com o fato de eu no desej-la
tanto quanto ela desejava que eu a desejasse, Voc me segue?
Sigo.
Era uma "psicloga", disse, sem disfarar uma nota de ligeiro desprezo. Ou
era minha imaginao?
Era uma psicloga, com um nome bem prximo ao de minha me. Uma
bela mulher de trinta e poucos, com cabelo precocemente esbranquiado que lhe
conferiam um certo ar de sofisticao. Atendia na casa em que morava, no bairro de
Martnez. Para subir at o consultrio voc devia atravessar sua sala de estar e subir
uma escada atapetada. Lembro de uma vez ter enfiado o p em um monte de coc
fresco de cachorro. S me dei conta depois de deixar pegadas de merda desde a porta
da rua at a porta do consultrio. O meu constrangimento, e o gesto dela de se
embalar debaixo de um poncho de alpaca, com os ps sobre a poltrona e os joelhos
flexionados quase altura do queixo, tudo que lembro do tempo que frequentei esta
moa. Estive com ela dois ou trs anos. Acho que me queria bem, ou queria meu bem,
o que talvez tivesse sido o maior problema deste tratamento.
Depois disso, eu j tinha recebido meu diploma de Licenciado en psicologa e
atendia dois pacientes. De favor, no consultrio de minha mentora Vernica Willams,
psicloga, amiga dos meus pais. [Aqui a palavra "psicloga" soou com outra nota].
Depois, passei a atender no meu primeiro apartamento, que era tambm meu
consultrio. Uma quitinete no vigsimo andar de um prdio novo com vista ao rio, em
Acassusso. Minha cama virava um div durante o dia. Ou, meu div virava uma cama
durante as noites, como voc preferir. Sorriu um sorriso maroto e continuou.
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Lembro do sobrenome da minha primeira paciente, e do motivo da sua
consulta. Do meu primeiro paciente, em compensao, no lembro do nome, mas sim,
do comentrio que ele me fez um dia. Tratava-se de um bancrio, jovem, porm mais
velho que eu. "Cara", disse ele, "Cara, eu sei que se eu for embora te fao um rombo
no oramento". Observao destinada a furar a pose em que eu me sustentava; assim
como a minar toda autoridade que eu pudesse imaginar que tinha sobre ele. Como era
a estrita verdade, e no adiantava manter o semblant de "psicanalista experiente" e
cool, respondi: "Sim, mas o que voc ganharia com isso?" Acho que foi esta resposta
que fez com que ele ficasse. Tivesse eu permanecido em silncio, como era praxe na
poca (analista que analista no responde nenhuma interpelao direta do paciente),
ele certamente teria ido embora. E com razo.
"Supervisionava" (odeio o termo, mas "controle" ainda pior) meus dois casos
com Pablo Kovaloski, membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires. Lembro que
este paciente, caixa de banco, ficava enfurecido com os clientes que bufavam na fila
em castelhano se diz: "los que suspiran en la cola". Vivia falando disso. Eu disse
pro meu supervisor: "deve ter problemas com as pessoas que peidam (cola "rabo",
alm de "fila")". Ele ficou encantado de que eu escutasse esse tipo de coisa. Era uma
poca em que ser psicanalista consistia em isolar o significante. Eu tinha dito aquilo
como uma piada, e no diria nada pro cara porque me parecia um delrio. Enfim, o
caso que o rapaz identificava aqueles clientes do banco que se irritavam por ele
faz-los esperar, e demorava ainda mais para atend-los, de propsito. Depois da
sesso de superviso em que estas coisas foram discutidas, e sem eu ter dito uma
palavra sobre os que "bufam no rabo", meu paciente comea a criticar a grossura do
pai, que vivia peidando e envergonhando todo mundo. A me, principalmente, que
reclamava, no s pelas flatulncias indevidas, como pelo fato de ter sempre que ficar
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aguardando por ele, que nunca estava pronto quando devia. A cena familiar e a cena
do banco no tem nada em comum a no ser o bufido como sinal de irritao pela
espera. El suspiro en la cola indica ao mesmo tempo o pai irritante e a me irritada.
Era a mesma cobrana materna em relao ao pai, que era encenada com aqueles que
reclamavam por ele faz-los aguardar sem atend-los. E tem mais, eu no tinha sala
de espera. Meus dois pacientes interfonavam e eu os fazia subir. S que, ele chegava
sistematicamente cedo e eu o fazia esperar, canonicamente, pela sua hora no hall de
entrada do edifcio. Portanto, sempre entrava reclamando por eu t-lo feito aguardar...
"mesmo sem ter nada melhor pra fazer". Como vos, a los que suspiran en la cola,
disse. Acho que foi ali que comecei a entender porqu Freud chamava a relao entre
o analista e seu paciente de "neurose de transferncia".
Eu mesmo tinha me tornado membro havia pouco da Escuela, que imitando a
cole Freudienne de Paris era a primeira instituio lacaniana da Argentina, fundada
por Oscar Masotta, a quem eu no conheci porque quando entrei l ele j tinha
emigrado para Espanha. Estamos no ano de 1978. Era uma honra e um privilgio pra
mim ter sido admitido nela. Naquela poca no havia muitas alternativas, ou voc se
encaminhava para a APA, filiada internacional freudiana e para isso tinha que
fazer medicina antes ou ento, depois que abriram para os psiclogos entrar (acredito
que por uma questo de mercado), dispor de uma fortuna para encarar uma "anlise
didtica", ou entrava para a contestao lacaniana que, para ns, jovens e sem
grana, era o futuro e a renovao de uma psicanlise estagnada e kleiniana.
Quem me entrevistou foi Enrique Milln. Ele me perguntou porqu eu queria
entrar na Escuela e eu no sabia o que dizer. Disse o primeiro que me ocorreu: "estava
aqui pensando naquela frase de Groucho Marx: no quero ser membro de um clube
que queira um cara como eu como membro". Enrique soltou a maior gargalhada que
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eu j tenha ouvido na vida: Groucho respondia isso no carto de recusa aos clubes
que o convidavam a ser membro; eu estava dizendo isso ao cara que me entrevistava
para entrar no clube em que eu mesmo tinha escolhido entrar!
Este o sintoma que me determinou a vida e de cuja transformao me ocupei
de uma ou outra maneira nas anlises que fiz. Primeiro, com um analista kleiniano,
membro da APA; depois, com um membro da Escuela, que terminou quando decidi
vir embora pra c. E aqui, durante vrios anos, com um lacaniano que tambm vinha
da cole de Lacan. Esta anlise teve muita influncia sobre meu modo de trabalhar e
de ser analista. E, agora, estou de novo deitado em um div lacaniano, mas esta vez
meu modo de trabalhar no est em questo, ou antes, est em questo como sempre
esteve, mas o motivo de eu estar outra vez dirigindo-me a uma analista, trata-se de
uma mulher, porque estou indo atrs da questo que a minha angstia me coloca.
E voc foi admitido mesmo depois de soltar aquela frase do Groucho na
entrevista de admisso? Parece um conhecido meu que foi entrevista de trabalho
vestindo uma camiseta que dizia "se trabalho fosse bom, no teria esse nome". [Risos]
Pra voc ver! Acho que o Enrique me respondeu como um analista.
Devolveu ao remetente uma carta que no fundo lhe estava dirigida, no a ele ou
Escuela. E como o remetente a tomou dele de volta pra si, sem rejeit-la, por que no
seria acolhido a uma comunidade onde questes como esta so a sua razo de ser?
Mas a minha alegria de ter encontrado minha turma durou pouco. Alguns
meses depois, a Escuela rachou em uma briga sangrenta entre os filhos reconhecidos e
os deserdados de Oscar Masotta. Os legtimos perderam judicialmente o nome e
abandonaram a Escuela Freudiana de Buenos Aires, para fundar outra qual
denominaram Escuela Freudiana de la Argentina. (No podiam largar mo da
palavra: "escuela", ponto de honra lacaniano). Os bastardos, os no reconhecidos,
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ficaram legalmente com o nome, mas desconhecidos pelo pai fundador. Eu fiquei com
estes ltimos, mas mesmo dentro deste grupo havia duas turmas. Uma de situao e
outra de oposio. Eu escolhi, claro, a dos dissidentes, o que me custou um certo
isolamento interno, logo no incio.
Por que "claro"? [Sorriso]
Porque me era irresistvel o apelo da oposio e porque Alejandro Ariel
estava entre eles. Alejandro foi quem me fez descobrir Lacan. Ele era supervisor no
Hospital de San Isidro, um hospital municipal em cujo servio de psicopatologia eu
trabalhava ad honorem depois de me formar. O que no era um problema porque
ramos um grupo inquieto e muito interessante e interessado. Aprendi muito com
aquela turma de analistas e de psiquiatras.
Mas foi na faculdade que conheci Freud. Tnhamos aula com analistas didatas
da APA. Leon Ostrov, fundador da psicanlise em argentina, dava a introduo a
Freud e aos ps-freudianos que se chamava "Psicologia Profunda" um e dois. Sou
muito grato ao seu ensino at hoje. Mauricio Abadi, outro medalho da APA dava
aulas de clnica; Mauricio Knobel, um dos mais importantes psicanalistas kleinianos
de crianas nos dava psicologia evolutiva. Eu no entrei na psicanlise pela porta
aberta por eles, contudo, mas pela minha formao estruturalista, como discpulo da
Emilia Ferreiro e de Rolando Garcia, que nos ensinavam Piaget, epistemologia
gentica e psicologia gentica. To encantado fiquei que fui trabalhar no instituto que
eles tinham fora da universidade, IPSE. Foi ali que conheci Chomsky, primeiro, e
Lacan, depois. E atravs de Lacan me interessei em Freud. Posso dizer que o meu
percurso foi "De Lacan a Freud, e retorno". Poderia ser o ttulo de um programa de
formao! [Risos]
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Acho que esta particularidade que faz com que eu interrogue at hoje a
doutrina lacaniana de um modo diferente ao da maioria dos colegas que conheo. Ou,
de outra maneira, faz com que eu tenha uma maior afinidade com o modo de
interrogar a doutrina lacaniana pelos filsofos que pelos psicanalistas. O que me d,
de certo modo, uma vantagem sobre eles, porque eu tenho a experincia clnica, como
analisante e como analista, que em muitos casos lhes falta.
Queria te perguntar, porque estamos indo um pouco longe no tnel do
tempo, sobre o que significou para a tua vida e a tua prtica mudar de lngua, e por
que foi precisamente o Brasil o pas escolhido pra emigrar.
Por que o Brasil fcil: depois da Guerra das Malvinas queria ir embora da
Argentina, e para um lugar aonde pudesse mergulhar. Sou mergulhador, alm de
psicanalista, e poder estar como um peixe entre os peixes um dos maiores prazeres
que conheo...
Mergulhar parecido a psicanalisar, no?
No vejo a relao...
Mergulhar nas profundezas do oceano e nas da alma tambm.
Ah, mas a que voc se engana! A metfora da alma profunda no
apropriada, a psicanlise investiga um fenmeno de superfcie. O psiquismo uma
superfcie.
Como assim?
Voc acabou de perceber isso: o seis pelo nove est na cara. Voc pode no
saber o que me levou a substituir um pelo outro sem perceber, mas no porque
esteja escondido, mas porque opto por no te dizer.
Ah, no seja tmido, diga, vai!
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Bem, algo te disse j. O resto do que me vem sobre isso digo para minha
analista ou no digo, mas seja como for tudo superficial. Como os vulces...
(Gesto meu de: "no entendi")
Um gelogo que conheo me explicou que, contrariamente a tudo que o
povo acredita, os vulces no so chamins por onde jorra lava desde o centro da
terra. Verne estava errado quando imaginou uma viagem ao centro da terra entrando
em um vulco extinto. Os vulces so fenmenos de superfcie, parentes dos
terremotos: capas tectnicas, em frico uma sobre a outra, liquefazem a pedra, que se
transforma em lava e jorra para fora pela montanha esburacada: o vulco como uma
espinha. [Sorriso]
Mas, sempre pensei que se tratava de histrias recalcadas que o analista faz
vir tona. Se esto submersas, ento, h uma superfcie e um fundo...
Te digo de outro modo. O que h para analisar no vem j dado, inventa-se.
Inventa-se entre o paciente e seu analista, sob direo do primeiro. Sim, do paciente!
[resposta a minha expresso de "no era o contrrio?"] Quem decide e organiza a
descida aos infernos o analisante; cabe ao analista o papel de Virglio naquela
travessia. Mais do que reconstruda a partir das ruinas do passado, como pensava
Freud, a histria construda a partir de um sintoma presente que ao mesmo tempo
um modo de sofrer e de estar no mundo. Sustar o recalcado nada mais do que poder
contar a prpria histria de outro modo. Granoff [lacaniano francs da primeira
gerao] dizia que s no final da anlise o paciente nos fala verdadeiramente de si.
Antes disso, ele falado por todas as vozes que o habitavam sem ele perceber.
Voltando a sua emigrao...
Eu queria ir para Austrlia, para trabalhar e mergulhar l, mas devido
guerra contra o Reino Unido, os argentinos no tnhamos como pedir visto para os
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pases membros do Commonwealth. A conheci uma carioca que estava de passagem
por Buenos Aires e pensei, por que no o Rio? D pra mergulhar no Brasil.
Voc falava portugus?
No, mas gostava, gosto, da lngua, e como sou meio poliglota ("poli-
idiota", como diz meu pai: "fala besteiras em vrios idiomas") sabia que aprenderia
rpido. No esquece que entrei nela por amor. Igual que o ingls: aprendi a falar aos
seis anos porque estava fascinado por uma vizinha americana da minha idade que s
falava ingls. A minha me percebeu e me ps numa escola bilinge. Em todo caso,
pensei que, enquanto aprendia a falar portugus direito, podia trabalhar com falantes
de castelhano que quisessem analisar-se em sua lngua. No foi nada disso que
aconteceu. Devo minha clnica aos brasileiros. Sempre serei grato pelo modo como
fui acolhido pela gente daqui. E devo dizer que toda minha vida adulta como analista
aconteceu nesta terra e dentro desta lngua. Pensar a psicanlise para mim pens-la
em portugus, ao ponto de ter alguma dificuldade para escrever sobre psicanlise em
espanhol, embora me esforo para preservar ambas lnguas. Quero dizer, no me
rendo ao portunhol, e me d vergonha quando sou pego em algum erro em uma lngua
ou em outra.
Voltando a minha pergunta: um problema no ser brasileiro, para a prtica
da psicanlise no Brasil? Como inside em tua clnica o fato de voc no ser falante
nativo de portugus?
!De certo modo uma vantagem, porque a inevitvel distncia que eu tenho
com esta lngua me faz escutar coisas que passam batidas para os nativos. E o que
poderia imaginar-se um problema, por exemplo, o fato de eu entender errado algumas
palavras por no escutar nuances fonemticas inexistentes em espanhol: vogais
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abertas ou fechadas, por exemplo, no so diferenas marcadas do espanhol, como o
so em portugus "vov" e vov", por exemplo; ou o fonema diferencial entre "s" e
"z", que tampouco existe, ou o "o", quase impronuncivel para a maioria dos meus
patrcios...
No para voc.
No para mim porque me dei ao trabalho de aprend-lo, mas acontece s
vezes de eu no poder escutar a diferena entre determinados fonemas, o que favorece
o mal-entendido. Mas os mal-entendidos podem sempre ou quase sempre ser
aproveitados para avanar na anlise da pessoa.
Me d um exemplo.
Te dou um do meu primeiro ano no Brasil, particularmente ilustrativo, no
s de um mal-entendido idiomtico como tambm cultural. Eu no estava ainda
familiarizado com o sincretismo religioso brasileiro, que grassa em todas as classes
sociais. Ento, sou convidado a um churrasco, um domingo de manh, na chcara de
conhecidos de uma amiga paulista: intelectual, de educao vagamente catlica. Eu
me estranho por ela no tirar os culos escuros nem mesmo dentro da casa e ela me
responde: " pra me proteger do olho gordo da Fulana (nossa anfitriona)." E
acrescenta, "se tirar, vou ficar com dor de cabea. batata!" "Mas", digo eu, " s no
comer a salada!" (que era de batata, por sinal) "Eu comi e no senti nada." Nosso
dilogo, digno de Ionesco, terminou ali. Que aconteceu? Eu tinha escutado: " pra me
proteger do leo gordo da Fulana", j que meu ouvido no registrava a diferena entre
"" e "" e, alm disso, no sabia o que "olho gordo" queria dizer (em castelhano seria
mal de ojo). Tentei dar um sentido ao que ela me tinha explicado a partir do que eu
mesmo tinha entendido. o que fazemos o tempo todo. No caso, tentei encontrar um
sentido compatvel com a ingesto de um leo demasiado gorduroso que tinha cado
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pesado para minha amiga. J que, de que outro modo podia um leo te afetar se no
fosse pela boca? Eu no tinha entendido qual era a relao entre a digesto e os culos
escuros, mas pensei que estaria incomodada pela luz, por estar com mal-estar no
estmago. [Risos]
Enfim, digo que frases feitas, dessas que so ditas sem pensar,
automaticamente, e que passariam batidas para a maioria dos brasileiros, a mim me
ressoam de um jeito esquisito e, em geral, so significativas para meu analisante. Por
exemplo, uma paciente, heterossexual, casada com um homem, confessa sentir teso
por "outra mulher". Pergunto: "outra, alm de qual?" E ela, previsivelmente: "como
assim?" Digo: "Voc no disse que estava com teso por uma mulher, mas por 'outra
mulher'; eu pergunto: 'outra', alm de qual?" Aonde chegamos com isto? Chegamos a
que, apesar de ser casada com um homem, para o inconsciente, estava casada com a
me.
Voc disse que chegou a Freud via Lacan, e depois retornou a Lacan desde
Freud, isso? (fez "sim") Poderia desenvolver este ponto?
Eu entrei como discpulo de Emilia Ferreiro (que me chamava de "meu
aluno hippie", porque ia ao curso de poncho preto e branco, cabelo at os ombros e
culos de lentes vermelhas), para estudar "epistemologia gentica". Naquela poca eu
frequentava uma oficina literria e lia tudo que me caia nas mos. Esta a influncia
de minha me, que me apresentou os clssicos e os franceses; meu pai me introduziu
na literatura contempornea argentina, italiana e americana. (Um parntese: Lembro
do meu encantamento com o romance Babitt, de Sinclair Lewis: um homem do
interior americano, da classe meia, simpatizante das ideias comunistas
completamente escorraado pelo seu meio. Muito depois, pensei que este romance
tinha me tocado tanto por dizer respeito a mim e a minha famlia: meu pai tinha sido
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militante do Partido na juventude; somos judeus em um ambiente antissemita. A
classe mdia e alta argentina sempre foi terrivelmente esnobe, reacionria e
antissemita. Ou seja, eu era portador de dois traos de segregao relativos
comunidade catlica e nacionalista na qual me criei: na escola primria no era
convidado s festas por ser judeu, mas eu no sabia disso, ento, precisava dar um
sentido excluso: mediante operaes deste tipo que se constitui o que a
psicanlise denomina "sintoma". Fecho o parntese). Alm de ler literatura, eu
estudava cincia e filosofia como um pesquisador srio e assumido, coisa que Emilia e
seu marido, Rolando Garcia apreciavam muito. Ao mesmo tempo, estava bem no
esprito sexo-drogas-rock'n'roll da poca, mas me mantinha margem da efervecncia
poltica, tambm da poca. No que fosse apoltico, isso faz tanto sentido como ser
ateu. Apenas no estava nem a para a militncia que queria salvar "o povo" da
opresso e da misria. Adorava uma cena do filme de Antonioni If, em que um cara
participa de uma reunio de militantes estudantis pro-revoluo que fazem inflamados
discursos e vo jurando que morrero pela causa. A ele grita: "eu tambm quero
morrer!" E, virando as costas e saindo: "...mas no de tdio." [Risos]
O estruturalismo estava na moda e eu era um jovem promissor e bem
"formado" nisso. (Escuta as aspas sobre formado porque a formao do psicanalista
no deveria ser pensada com a mesma chave universitria, de acumulao de um
conhecimento ou de aplicao ou domnio de uma tcnica, embora, em ingls, um
psicanalista que est fazendo a "anlise didtica" denominado "training analyst"). A
primeira traduo parcial do livro de Lacan Escritos, em Argentina, chamava Leitura
estruturalista de Freud. Bem, eu me interessei pela leitura estruturalista de Freud, e
ela veio reverberar sobre o que j tinha aprendido nas aulas de Ostrov, de Abadi ou
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de, o melhor de todos, Carlos Perez (acho que se transformou em um lacaniano, no
tenho certeza). Eu voltei a Freud com uma chave de leitura e com ela abri um mundo.
Franois Perrier, um discpulo da primeira gerao de lacanianos, a melhor
com certeza, porque no dependiam de Lacan para serem ou pensarem-se
psicanalistas, dizia (cito de memria) que o problema no como tornar-se analista;
ter se tornado analista que cria o problema retroativamente. Ou seja, a pergunta :
como me tornei analista? Ou, talvez, que quero dizer, quando respondo "psicanalista"
para algum que me pergunta o que sou?
"Googlei" voc, antes de vir te entrevistar, e h uma referncia de um livro
com uma mini biografia sua em que algum (provavelmente voc mesmo) escreveu:
"Deitou em vrios divs, mas nomeia dois: (a eu digo os dois nomes que tinha lido, e
que no publico aqui a pedido dele)" Poderia me falar um pouco da tua experincia
deitado em divs?
Pergunta inevitvel, no fim das contas um psicanalista aquilo que a sua
anlise fez dele.
No existe analista sem anlise?
Stricto sensu, no. Ningum pode te contar sobre o inconsciente. Para ele
existir tem que existir para voc. Caso contrrio uma informao vazia, como saber
que a terra gira ao redor do sol; tanto faz, poderia ser o contrrio, nada muda em tua
vida em um sentido ou em outro. um saber intil, a menos que voc seja astrnomo
ou algo assim. Com o inconsciente diferente. Ou voc passa pela experincia de ser
dividido pela tua prpria palavra, ou ento teu conhecimento do inconsciente
puramente intelectual. Freud dizia que um candidato a psicanalista deve analisar-se
para acreditar (palavras dele) no inconsciente.
uma questo de f? [Sorriso]
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Sim, se entendermos por tal uma certeza apoiada em uma experincia
subjetiva que no pode ser demonstrada de modo abstrato. Levantou da poltrona e
foi mexer no notebook que estava do meu lado sobre a escrivaninha. Procurava algo.
Um post no Facebook. Queria te mostrar um dilogo, mas no estou achando, entre
duas amigas. Uma delas diz no ter certeza se alguma vez gozou. E conclui com que
talvez tivesse gozado sem saber. A amiga corta: "ento, no gozou. Se tivesse gozado,
saberia." Voc percebe?, no questo de "se". A dvida de uma confirma a certeza da
outra: "voc nunca gozou". Mas, donde retira esta ltima a sua convico? Da sua
prpria experincia.
Agora, tenta responder para uma criana, que pela sua idade ainda no pode
ter tido a experincia, a pergunta: o que "orgasmo", mame? Se voc no fugir da
raia falando atrocidades como "quando for maior vai entender" ou coisa e tal. Depois
de explicar mal e porcamente o desejo por um homem, tipo: "viu filhinha quando
voc gosta muito, mas muito mesmo de algum e quer estar sempre junto?" Depois
disso, voc vai tentar encontrar uma experincia anloga que a criana possa ter tido
para tentar dar uma intuio que preencha o conceito de "orgasmo". Mas ser que
"orgasmo" um conceito? A analogia que mais vezes foi usada para "explicar" o
orgasmo ... o espirro! "Viu, filhinha, quando voc quer segurar um espirro e no
consegue, porque o nariz est coando demais e voc no aguenta? Bom, o orgasmo
igual" A a menina responde: "Me, eu no gosto de espirrar". [risos]
Meus analistas, ento... No queria falar deles como insgnias ou como
bandeiras, mas como sinal de reconhecimento pelo que fizeram possvel para mim.
Como me disse algum h pouco: so meus "antigos amores". No direi seus nomes,
ento, embora no se trate de nenhum segredo. O primeiro, propriamente dito, era um
membro da Asociacin Psicoanaltica Argentina. No tenho qualquer lembrana do
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trabalho com ele, apenas que me atendia depois de almoar e antes de escovar os
dentes, digo, por um barulhinho que fazia com a lngua, como se estivesse tirando
comida presa entre os dentes. [sorriso] Talvez fosse um tique nervoso, quem
sabe?
Que quer dizer "propriamente dito"?
que tinha te contado da minha psicoterapia aos dezoito...
Na casa daquela mulher que voc encheu de coc... [Sorriso]
Pois . O "propriamente dito" refere-se diferena entre psicanlise e
psicoterapia.
Tem gente que defende que so a mesma coisa...
Tem gente que defende qualquer coisa, segundo a sua convenincia...
Poderia me explicar a diferena, sem dar uma conferncia? [Sorriso]
Os psicoterapeutas no acreditam no inconsciente, os psicanalistas, sim.
Ou seja, so mesmo "homens de f"! [Gargalhada]
Voc no fcil...
I wouldn't be your girl if I were. [sorriso]
Voc no sabe realmente que a Terra gira ao redor do sol. Voc cr no que te
contaram os cientistas. A tua experincia te confirma o contrrio. Para os cientistas
est demonstrado que os sentidos mentem, porque confiam no mtodo pelo qual
demonstram que a Terra que orbita em torno da sua estrela. Um psicanalista surge
do seu mtodo que lhe demonstra que o Eu no senhor em sua prpria casa. Por
isso inclui o inconsciente em seu clculo. Um psicoterapeuta, mesmo que afirme o
contrrio, no aceita esta demonstrao. Em seu trabalho mostra sua convico de que
"quem sabe de mim sou eu". Esse era o problema da minha terapeuta, ela acreditava
saber o que era melhor para mim. Todo psicoterapeuta um sugestionador, um
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homem de ideologia; te faz acreditar que teu o que ele mesmo te induz a acreditar
por amor ao saber... dele. Um horror!
E um psicanalista?...
Um psicanalista est advertido, pela sua prpria experincia com outro
psicanalista, que o nico saber em jogo em esta histria o do prprio paciente,
embora ele mesmo acredite que este saber est fora dele.
A segunda anlise, propriamente dita, aconteceu com um membro da Escuela
Freudiana de Buenos Aires. O termo da anlise com ele foi a minha deciso de deixar
a Argentina. Suportou inclusive algumas cartas minhas, quando eu j morava aqui.
Me lembro do incio da resposta primeira delas: "Voc, como sempre, me prope
novos riscos e novos modos de tropear..." Ele se referia ao fato de eu continuar
interrogando-me atravs dele por carta, depois de encerrado o trabalho das sesses
presenciais. Praxe teria sido no me responder. Mas ele o fez, e considero esta
correspondncia como uma continuao fecunda da minha anlise.
Sou, sempre fui, um cultor da arte epistolar. Na emigrao, nas viagens, enfim,
na errncia eram as cartas, muito mais que o telefone, o que me mantinha com um
cabo a terra; para-rio da angstia. Por carta podia pensar, estudar... e matar a
saudade. O melhor amigo que j tive, por sua vez um grande analista, Ricardo
Estacolchic, e eu mantivemos uma correspondncia semanal at sua morte.
Correspondncia que para mim foi valiosssima como interlocuo e tambm como
continuao de minhas lucubraes tericas, clnicas e pessoais. Um modo de lidar
com o desamparo do exlio. Not to mention, o humor que compartilhvamos. Reler
estas cartas me faz rir, at hoje.
Minha terceira psicanlise... Esta mais complicada de resumir. Pedi anlise
a um membro da extinta cole Freudienne de Paris devido a um livro que escreveu,
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claramente originado na sua prpria anlise, que me fez acreditar que poderia levar a
experincia analtica, interrompida pela minha sada de Argentina, at seu
"verdadeiro" final. Naquele tempo, eu acreditava na tese de que uma psicanlise bem
conduzida devia ter um final, digamos, inerente, lgico, absoluto e inevitvel. No por
nada introduzi a resposta tua pergunta atravs da questo do "orgasmo". Sorriu,
voltou a deitar na poltrona (tinha permanecido em p do meu lado), e continuou
Hoje no acredito nada disso, embora para muitos colegas esta seja uma questo de f
crucial e decisiva, j que crem que se voc no atingiu, digamos, o clmax analtico,
voc no pode ser nem se dizer um psicanalista. Muitos que no chegaram a nada
disso fingem ter chegado, assim como algumas mulheres fingem estar gozando para
atender as expectativas dos seus amantes durante o coito; porque o que se espera
delas. Em todo caso, eu no creio mais que haja um desfecho absoluto para uma
psicanlise, digamos que aderi teoria da relatividade em psicanlise. Quanto a este
analista meu... ele declarou seu livro, aquele que me trouxe para seu div, um "pecado
de juventude".
Fez uma pausa prolongada. Conclu que no era fumante, se fosse, este teria
sido o momento de ascender um cigarro. Como por telepatia emendou assim: "Sabe o
que mais lembro da poca das sesses? O cheiro azedo de cigarro impregnado na tela
do div e na salinha minscula daquele apartamento na esquina da Pamplona, onde
ele atendia. Isso, e a alegria de estarmos embarcados em uma aventura ele, eu e a
turma de conhecidos e amigos que se analisavam ali naquela poca. Ser que d para
falar desapassionadamente de uma poca apaixonante e passional?" Pegou uma
garrafa de gua, bebeu do gargalo e comentou, como para si mesmo:
Espervamos demais dele, acho.
Em que sentido?
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A cena psi brasileira, sobretudo a paulista, era, na poca, o prprio samba
do crioulo doido; o mesmo sincretismo que mistura catolicisimo, umbanda, gnomos e
vidas passadas grassava no campo analtico, criando um vale tudo clnico e terico
contra o qual nossa pequena banda tentava fazer face, mais ou menos heroicamente.
Ao mesmo tempo, estvamos s voltas com a ocupao colonial do millerismo, em
sua etapa inicial, que precisava de massa crtica, digamos, e a encontrou cooptando
analistas locais oriundos do annafreudismo, bionianismo, reichianismo ou, na melhor
das hipteses, do kleinismo, que tinham comeado a ler Lacan dois meses antes e
foram institudos pela corte francesa como fundadores da escola brasileira lacaniana
oficial, passando por cima dos analistas analisados por lacanianos que aqui estavam e
que estudavam a obra barroca do Lacan havia dcadas.
A bem da verdade, eu fui convidado, junto com meus amigos, a participar
desta turma fundadora, sob os auspcios de um petit-matre local, que tinha cado nas
graas do prncipe herdeiro do reino lacaniano francs. A maioria de ns recusou-se a
participar no que nos parecia ser uma farsa comandada desde Europa: instituir
analistas de cujas anlises ningum jamais saberia nada, j que disso no se falava
(como poderiam?); institu-los a dedo, dizia, como os mestres de um lacanismo
brasileiro com pretenses de vice-reinado. Como te disse, nenhum deles tinha feito
anlise com um lacaniano. Apenas ns, mas ns decidimos no avalizar esta pardia.
Foi bem mais tarde que eles comearam a viajar a Paris para analisar-se com analistas
da matriz francesa. Era a estratgia colonial francesa: os britnicos punham ingleses
para governar as colnias; os franceses treinavam nativos na Frana e os mandavam
como governadores dos seus conterrneos brbaros. S para te dar uma idia do gru
de desfaatez: uma famosa analista da Matriz comentou durante um jantar, a
propsito de um paciente dela brasileiro, que hoje um conhecido lder lacaniano,
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"Estou preparando um psicanalista para o Brasil." Se eu sei disto, ele tambm sabe.
Imagina o efeito de semelhante comentrio sobre o interessado e pensa o que ele
revela sobre a psicanalista que o fez...
neste contexto que ajudamos a importar um europeu para uso prprio. Viu
isso de "nossos japoneses so melhores que os japoneses dos outros"? [risos]
Importamos nosso europeu, ento, para que nos fizesse de analista; para
avanar com ele nas questes tericas e clnicas que nos inquietavam e para instituir
um grupo de trabalho srio que fosse baseado na anlise dos analistas, e no numa
repetio cega de aforismos vazios...
Voc diz "ns". Quem "ns"?
Voc quer nomes dos companheiros de rota? No vou te dar nomes, basta
dizer que ramos um bando de colegas amigos, todos bastante experientes, todos
vindo de anlises pessoais, todos querendo estudar e todos querendo a experincia de
uma anlise lacaniana, como te disse, que no fosse de faz-de-conta. No queramos
um mestre a quem servir, mas um interlocutor dos nossos problemas tericos e um
parceiro analista que nos permitisse prosseguir a nossa formao, no baseada na
filiao a uma instituio, mas na experincia analtica mesma. Ele parecia ser "o
cara" para tornar aquilo possvel.
Obviamente, no foi nada disso. Terminou sendo uma decepo por duas
razes. Primeira, porque no passava de uma miragem: "o cara" no existe; o
"verdadeiro lacaniano", tampouco. Isso, claro, no responsabilidade de quem recebe
a transferncia do ideal mas de quem o transfere. Ns, no caso. Ou, melhor, eu, deixa
os outros falarem por si. Segunda, porque o homem tinha a sua prpria agenda, que
em nada coincidia com a nossa. Depois de no muito tempo ficou claro que o projeto
que tinha para si mesmo no passava por ns, e fez alianas que vivemos mais ou
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menos como um petista dos anos oitenta deve ter vivido as de Lula com Maluf .
Muitos largaram o div dele ou pararam de estudar ou de supervisionar com ele. Eu
continuei com a minha anlise apesar disso, apesar de tudo (houve outros
desencontros), o que, acho, fala bem de ambos.
A experincia com ele, em todo caso, me fez possvel duas coisas
fundamentais. Uma delas foi parar de errar. Escuta isso com as ressonncias que
quiser. Poder recolher os frutos do que tinha semeado, sem abandonar a colheita para
outros. Ter um lar. Hoje, quando digo: I'm going home em So Paulo que penso.
Devo isso a esta anlise. Poder permanecer, sem abandonar tudo para recomear de
zero em algum outro canto. Ou seja, se hoje eu posso dizer que sou um psicanalista
brasileiro, nascido em Argentina, isso sem dvida resultado desta anlise. Soube
disso o dia em que decidi fazer a minha apresentao em portugus em um congresso
em Uruguay, lotado de argentinos. Lembro, na hora do debate, depois de responder a
uma questo levantada por uma argentina em castelhano, o comentrio dela: "que bem
que voc fala o espanhol!"
A segunda coisa importante, foi ter podido permanecer em anlise, mesmo
depois de a imagem idealizada do meu analista ruir, posso dizer, implodida por ele
prprio. No abandonar tudo e sair procura do "verdadeiro analista" (que no h,
nem pode haver). Disse isso para ele uma vez, deitado no seu div: "Voc est
fazendo sozinho todo o trabalho de dissoluo da transferncia para mim. Devia te
agradecer!" Ele tinha senso do humor e deu uma boa risada.
E agora, faz uns trs ou quatro anos que estou mais uma vez deitado em um
div, feminino desta vez, por razes que em nada dizem respeito ao meu trabalho
como analista. Anlise que terminar quando terminar...
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O que me decidiu a procurar analista novamente foi a angustia desencadeada
por uma irrupo real inesperada. Queria me fazer ouvir mais uma vez atravs de
algum. Desta vez em minha lngua materna. No ter qualquer iluso em relao a
este algum, ou seja no esperar nada alm de um ponto de retorno da minha prpria
palavra, no deturpada pelas ideologias ou crenas do meu analista, com certeza um
enorme ganho. Se voc obtiver isso j pode se dar por satisfeito. O resto contigo,
no com teu analista...
Voc se considera um analista lacaniano? Qual a tua linha?
So duas perguntas diferentes.
Vamos segunda. Um colega de So Paulo, Manuel Berlinck, me disse que
respondia: "de pescar". A minha linha de pescar. Gosto da resposta. Eu j respondi:
"torta", para uma pessoa que me parecia muito certinha. Mas, tambm, j perguntei
por que saber disso era importante. Uma vez escutei, na primeira entrevista: "Aqui
Lacan, no?" Respondi: "Sim, mas no conta pra ningum, porque estou me
escondendo do pessoal de Paris". J perguntei se precisava ter uma linha e para ser
usada com qual finalidade, e recebi de volta: "ah voc um desalinhado, meu pai teria
brigado com voc por isso". Voc v, um comeo promissor para uma psicanlise.
Quanto a se eu me considero um lacaniano... Essa mais difcil, porque escuto
isso como se voc me perguntasse se sou peronista ou torcedor do So Paulo. Ou, pior
ainda, se sou ateu ou religioso. Acho que haveria que tentar perguntar isso de outro
modo.
Posso dizer, por um lado, que, para mim, no haveria Freud, sem Lacan. E isso
pode soar um pouco como "no haveria Newton sem Einstein" o que, de certo modo,
no deixa de ser verdadeiro, porque Newton hoje impensvel sem Einstein...
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Fiquei sabendo, h pouco, que uma colega , que me confiou um filho para
anlise, andava declarando por a, e de modo derrogatrio, que eu no era um analista
lacaniano. Juro que no sei se pra ficar ofendido ou no. J que ela parece saber o
que ser um analista lacaniano, voc deveria ligar pra ela e perguntar como ser um
analista lacaniano. Depois me conta o que foi que ela disse. Quer o telefone?
Quero.
Procurou na agenda do Iphone e me entregou, em um papel arrancado de uma
caderneta cheia de rabiscos e desenhos, um nome e um nmero. Pretendo ligar mesmo
(e discutir com ele a resposta).
Sabe? O mencionado Berlinck organizou um colquio h muitos anos, que
inclusive deu numa publicao, denominado "O que um psicanalista argentino".
Parece delirante, no?, a resposta parece evidente, no? Seria um psicanalista de
cidadania argentina ou nascido em Argentina. Pois eu acho que no era nada besta, e a
resposta no para nada bvia, j que se tratava, para ele, de responder(se) uma
pergunta transferencial. Uma pergunta sobre um modo de praticar a psicanlise; um
modo de conceber a psicanlise que tinha tido e continuava tendo efeitos sobre os
brasileiros que, como ele, se analisavam ou estudavam com os "exilados da ditadura".
Manuel era sensvel ao efeito sobre os formandos e os formados brasileiros da leva de
argentinos que tomou por assalto o Brasil. Um dos efeitos, e no o menor, foi uma
identificao com seus analistas e mestres que fez que adotassem deles at os erros de
portugus! Em todo caso, Berlinck organizou um colquio para poder dizer da
transferncia e pensar esses efeitos.
Para te responder, ento, eu deveria comear por me perguntar "o que um
psicanalista lacaniano?" E no uma pergunta fcil porque um freudiano era algum
que acreditava no inconsciente, na teoria da libido e no complexo de dipo. Tira um
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ou os trs e voc deixa de ser um freudiano. Jung, por exemplo, se afastou da teoria
da libido e foi anatematizado. Os denominados ps-freudianos embora aceitassem os
princpios fundamentais, fizeram modificaes e acrscimos ao ponto de deixar a
teoria irreconhecvel, mas nunca romperam com a instituio mundial freudiana, nem
terica nem politicamente. Por sinal, apenas algum formado e diplomado por uma
filial da IPA pode at hoje chamar-se de psicanalista..."
Ou seja que voc no seria um psicanalista... (Sorriso)
Menina, voc no mede as palavras!
Com efeito, eu no sou um psicanalista aos olhos da IPA e filiais. Nem eu,
nem ningum que no seja membro diplomado por eles. Mas, veja voc o paradoxo,
durante quase vinte anos eu cliniquei em Braslia, e membros didatas da instituio de
l, filiada IPA, se analisaram comigo ou me mandaram seus conjuges ou filhos para
anlise. Tive sobre meu div uma didata que virou presidenta daquela sociedade, e
interrompeu a anlise porque no tinha mais como sustentar a diviso entre a sua
anlise escondida e seu cargo oficial.
Mas, no entendo. Eles eram membros, fizeram sua anlise didtica,
viraram eles mesmos analistas didatas. Por que pedir anlise a um no-analista?
(Sorriso maroto)
O que voc acha?
No consideravam a anlise feita dentro dos quadros suficiente ou adequada
para resolver seus conflitos pessoais?
!Deixa te contar uma coisa. A anlise didtica compulsria e dura cinco
anos a xis sesses por semana (isso muda de acordo com o estado da economia e do
mercado, embora hipocritamente sempre inventam uma justificativa terica). Tive
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uma namorada que tinha feito onze anos de anlise, onze, a razo de trs sesses
semanais, com um didata da associao de So Paulo. A decidiu que queria tornar-se
analista membro da IPA. Pois bem, teve que comear do zero a sua anlise didtica,
como se nunca tivesse se analisado, e com o mesmo analista com quem se analisara
durante mais de uma dcada! Tudo que tinha feito at ento no valia nada aos efeitos
do reconhecimento institucional. Eu lhe perguntei por que queria fazer parte de uma
instituio psicanaltica na qual seu prprio analista no reconhecia como anlise o
trabalho que ela fizera com ele durante dez anos. S isso no lhe parecia um bom
motivo para no querer ser membro da IPA? Disse que no, que para ela o
reconhecimento oficial da IPA era fundamental para poder autorizar-se a exercer a
psicanlise, e se o preo a pagar era fingir que no tinha feito nada para, ao cabo de
mais cinco anos, receber o aval deles, o que faria.
E ela era sua namorada? (risos)
Para voc ver... Sou um cara de mente aberta. (risos)
Voc percebe que esta postura, no apenas fere qualquer bom senso, como
completamente contraditria com tudo que a psicanlise ensina sobre a
responsabilidade de cada um por seu prprio desejo inconsciente, revelado pela
anlise. Uma vez encontrei em uma festa uma desafeta que tinha acabado de ser aceita
na Sociedade de Psicanlise de So Paulo como membro. Ela estava orgulhosamente
conversando com um colega que, na poca, era o presidente e com o tesoureiro desta
instituio, e me chamou para apresentar-me a eles como "Este o Goldenberg, o
psicanalista selvagem..."
E voc respondeu o qu?
Eu respondi: "A muita honra, ao menos no estou dentro de uma jaula como
vocs, analistas domesticados." (Risos)
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Acontece, porm, que o prprio lacanismo, que surgiu de uma ciso da filial
francesa da IPA, depois de perder seu ncleo fundador, um grupo de analistas que
"secessionaram" junto com Lacan, mas que foram abandonando a sua escola por
razes tericas, clnicas ou polticas; o prprio lacanismo, no fim da vida do mestre,
se transformou em uma multinacional pior que a oficial freudiana. Da mo do genro
de Lacan (assim como o freudismo, com a filha de Freud cuidando o legado, o
lacanismo tambm uma empresa familiar), nico herdeiro oficial do explio terico
e poltico da cole Freudienne de Paris, foi criada a denominada Associao Mundial
de Psicanlise, com filiais em tudo quanto canto, tipo Citibank. Esta multinacional
lacaniana realiza, na minha opinio, uma dupla tarefa: por um lado, a vingana de
Lacan, que nunca deixou de querer que seu ensino fosse reconhecido por aqueles que
o haviam expulso e lhe tirado o ttulo de psicanalista didata (a negao apaixonada
deste ponto antes o confirma que o infirma) e, por outro lado, uma homogeneizao
terica que transformou esta instituio em uma verdadeira igreja dogmtica.
Houve tambm (e o que eu mais lamento) um verdadeiro expurgo stalinista
dos nomes de toda aquela primeira gerao a que me referia como fundadora. Obra do
millerismo, que apaga os nomes e a influncia dos primeiros discpulos que ajudaram
a pensar e a renovar a psicanlise. Basta ler os trabalhos surgidos da AMP durante os
ltimos vinte anos: obras brilhantes e criativas, escritas por discpulos que no diziam
amm (ou "amem", como voc preferir) ao mestre, e o ajudavam a avanar
criticamente, simplesmente no so citados porque no so lidos. E no o so porque
ningum formado no millerismo os conhece. No sabem quem so. Nomes como
Clavreul, Valabrega, Aulagnier, Rosolato, Perrier, Granoff, Pontalis, Laplanche,
Leclaire, Vase e tantos outros, simplesmente despareceram, para dar lugar aos
recitadores, aos rezadores da novilngua homogeneizada por Miller.
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Basta ir aos seus congressos. Tudo que voc escuta uma reza realizada em
um idioma particular inventado por Lacan e normalizado por Miller, denominado
lacans, que todos falam fluentemente e que lhes permite acreditar no s que se
comunicam como que pensam.
Voc no est sendo um pouco duro?
No. Cheguei ao ponto de supor que Miller odiava seu sogro pelo peso da
tarefa que tinha jogado sobre seus ombros: curador e co de guarda do seu explio, e
que seu jeito de vingar-se desta vida consagrada obra de outro era acabar com ela.
Note-se que ele quem estabelece o Lacan que lemos, ele sozinho decide a verso
final de O Seminrio. O que Lacan "quis dizer" cabe a Miller determinar, sem
qualquer discusso. E se confrontar verses estabelecidas por outros pode-se verificar
que h derivas; em casos, como o do seminrio dedicado transferncia, a distncia
aberrante: no h um s Lacan, mas dois ou mais "Lacanes" que muitas vezes se
contradizem. Quando esta outra verso crtica, de um grupo denominado Stcriture,
foi publicada, Miller mandou os responsveis pra cadeia. Mas esta verso fala por si,
uma verso crtica e anotada, com todas as referncias cuidadas, como todas
deveriam ser. Digamos que o melhor modo de acabar com Lacan convencer todo
mundo que ele tem um nico leitor qualificado. O nico a esclarecer o que o homem
diz. Quem quisesse entender o verdadeiro Lacan precisa passar pelo crivo milleriano.
No mnimo, por um estabelecimento acrtico e sem confronto com a verso de
nenhum dos outros alunos. No por nada que seus primeiros trabalhos coletados no
Brasil tenham por ttulo: Lacan Esclarecido. E mesmo que no tenha sido assim e que
eu esteja exagerando, quando voc l os trabalhos originados no millerismo ntido
que a maioria desistiu de pensar. J nem fingem que tem uma ideia, apenas repetem o
que acreditam que devem dizer para mostrar adeso ao grupo a que pertencem.
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E vou te dizer mais. Este efeito jargonofsico me parece um defeito gentico
do prprio ensino de Lacan; uma espcie de doena do lacanismo e de nenhum modo
originada no millerismo. Em absoluto, as duas instituies lacanianas no millerianas
com ambies universais, a Association Lacanienne Internationale, fundada pelo
Jones de Lacan: Charles Melman, e uma ciso do prprio millerismo com ambies
planetrias, denominada Frum do Campo Lacaniano, fundada por uma paciente de
Lacan, Colette Soller, produzem miles de trabalhos idnticos. E entre as dzias e
mais dzias de micro-instituies lacanianas da dispora da cole (que na medida em
que no podem mais copiar nomes como "Escola Freudiana de..." portam nomes
como "Custo Freudiano", "Corpo Freudiano", "Colgio Freudiano", "Coisa
Freudiana"; "Trao Freudiano"...
Por que todas usam o adjetivo "freudiano"?
Por que "freudiano"? Porque Lacan reivindicava um retorno ao verdadeiro
Freud. Verdadeiro frente ao annafreudismo, que teria sido uma deturpao do sentido
da obra e da prtica do Freud. Devo dizer que concordo com isso. Na dcada de
setenta se dizer lacaniano nada mais queria dizer que ser um verdadeiro freudiano. Foi
esse mote que me trouxe para dentro do lacanismo porteo: de certo modo olhvamos
para os psicanalistas membros da ortodoxia freudiana com condescendncia e
desprezo: "vocs podem ser os proprietrios do nome de Freud, mas os verdadeiros
freudianos somos ns". O prprio Lacan disse, pouco antes de morrer, em Caracas,
"Cabe a vocs serem lacanianos, eu sou freudiano".
Lacan morreu em oitenta. Apenas na ltima dcada algumas instituies se
atreveram a adjetivar-se oficialmente como lacanianas: "Praxis Lacaniana"; "Ponto
Lacaniano"; "Escola Lacaniana"; "Associao Lacaniana Internacional"; "Forum do
campo lacaniano"... A nova aposta deveria ser de peso porque se trataria em tese de
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poder assumir uma distncia crtica, no bom sentido, com as toneladas de bibliografia
que compem a obra do lacanismo. Mas no h nada disso. H apenas mais do
mesmo. Enfim, todos rezam no mesmo jargo. Posso apostar que se eu te mostrar
cinco trabalhos provenientes de instituies diferentes voc diria que vem todos do
mesmo lugar.
Claro que brilham aqui e ali no poucos diamantes no garimpo do lacanismo
internacional. No so poucos, mas, infelizmente, no suficientes para que no se
deva pensar que esta degradao um efeito endgeno produzido pelo prprio
ensinamento de Lacan, que nunca deixa de invocar, como uma das suas muitas
palavras de ordem "a transmisso" (termo muito usado por Lacan que, como voc
deve saber, vem da religio).
Ento, o que ser lacaniano... Ou melhor, vale a pena querer ser lacaniano
ainda, luz deste panorama?
Como te disse, para ns (e por ns, me refiro a analistas da minha gerao),
ser lacanianos era ser freudianos pra valer. Mas no s. Era ousarmos ser criativos na
hora de responder quilo que escutvamos dos nossos analisantes. Era sermos crticos
na leitura do que nos entregavam como dogmas, vindos do freudismo ou do prprio
lacanismo. Adoro uma tirada do Lacan nos anos setenta: Faam como eu! No me
imitem. Poderamos pensar que o "faam como eu!" seria uma exortao mimese;
um "imitem-me!" Mas, em seguida, ele explica em que consiste fazer como ele:
consiste em no imit-lo! Ou seja, faam como eu fao: no imito ningum. Se
quiserem seguir-me vo ter que por algo de vocs mesmos. Ele trabalhava com
sesses ultracurtas. Isso no me convm, nem aos meus analisantes. Ser que sou
menos lacaniano por isso? Acredito na eficcia dos cortes, porque a teoria da gnese
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a-posteriori do sentido me parece verdadeira, mas tambm acho que precisa haver
tecido para poder cortar; um certo tempo para urdir a trama das histrias.
Entendo que a eficcia est na reduo das histrias ao seu ponto zero, para
que o paciente se d conta do momento em que inventou um destino para si a partir de
quase nada; de um incidente qualquer, do qual ningum lembra a no ser ele mesmo.
A chave dos seus sofrimentos pode estar em qualquer coisa vivida ou inventada, ou
interpretada por ele a partir de um fato besta, mas que acabou dando um sentido sua
vida. A paixo teleolgica a nossa doena; a infirmidade do ser humano: precisamos
de um sentido para nossa existncia e damos esse sentido contra vento e mar. As
religies existem por causa desta doena. Este o sintoma. O sintoma nosso de todos
os dias. Saber como inventei o meu quase sem perceber e poder descolar dele o
maior grau de liberdade a que posso aspirar, e uma psicanlise deve poder dar-me
isso. Se no me der isso, no serve pra nada.
No penso que o psicanalista deva ser maternal com seus analisantes, mas
penso que voc precisa ser sensvel ao sofrimento e angstia de quem se analisa
com voc, para que seja vivel atingir esse ponto em que o sintoma no lhe seja mais
necessrio, ou, ento, que ao se dar conta de que foi inteiramente construdo em cima
de um fato contingente da sua vida, deixe de pensar que est escrito como seu destino
nas estrelas desde sempre. No tem "eu sou assim", tem "eu me fiz assim" e preciso
ou me responsabilizar por isso ou inventar outra coisa que me sirva. Ser lacaniano, no
que me diz respeito, coincide com ser psicanalista, ponto.
Pode me dar um exemplo da liberdade ou da criatividade a que voc se
refere... (Sorriso)
Existem standards, padres, uma psicanlise-tipo, realizada em um
enquadramento-tipo; com uma conduo-tipo, decidida a partir de um diagnstico que
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te permite encaixar o teu paciente em um tipo clnico, Voc no vai intervir do mesmo
modo frente a uma psicose ou a uma neurose, por exemplo, precisa decidir com qual
das duas estruturas est lidando. Este tratamento padro no foi inventado por Freud,
que fazia o que ele achava que devia fazer, sem temor a equivocar-se, mas por
discpulos seus preocupados em como treinar os psicanalistas por vir...
Interrompeu a frase, levantou de supeto e ordenou, mais do que props:
"Vamos tomar um caf e continuamos a conversa fora daqui? Cansei desta sala por
hoje."
Samos do consultrio e descemos 300 metros de uma ladeira ngreme at a
avenida Sumar, onde viramos esquerda e ainda caminhamos outro quarteiro at
um caf simptico onde ele pediu para mim, sem me perguntar, uma mousse de
chocolate, uma taa de vinho tinto e uma gua sem gs (no aprecio particularmente o
chocolate, mas no teria deixado de comer, porque gosto de um homem que pede para
mim, sem me consultar). Para ele pediu uma torta de limo e um caf, que deixaria
quase sem beber ("no gosto de caf, mas no consigo evitar pedir", disse, quando fiz
observar que no o tinha bebido "acho que penso que deveria gostar...afinal, vivo na
terra do caf"). Retomou a conversa com grandes gestos (esqueci de dizer que ele fala
com as mos; judeu, mas poderia ser italiano), intercalando pausas em que olha
direto nos meus olhos, momentos em que parece encarar o fluxo de carros na avenida
l fora (se no soubesse que est prestando ateno, diria que viajou para outro lugar),
e curtos instantes em que abaixa as plpebras, como embaraado, como se no
conseguisse sustentar meu olhar. Fiz uma observao sobre isso, at imitei seu gesto
de abaixar os olhos e ele sorriu (e abaixou os olhos) enquanto dizia: " um trao de
famlia: odeio quando sou flagrado em fotografias de olhos baixos. Na poca da
escola, treinava para no abaixar os olhos quando chegava nas meninas, tinha
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aprendido que se olhasse em cima do nariz delas, entre os olhos, o efeito era idntico
ao de olhar olho-no-olho, mas quase nunca conseguia..."
Estvamos em que Freud no inventou os standards...
Sorriu perante a minha pronncia-deboche da palavra inglesa que ele tinha
usado mais cedo.
Freud no inventou o comportamento-padro do psicanalista, mas se voc
queria ser psicanalista voc devia antes de mais nada parecer psicanalista. Eu sou da
poca em que isso consistia em se vestir de um modo neutro, sempre com a mesma
roupa e trabalhar em um ambiente acolhedor mas que no denunciasse nada dos seus
gostos ou preferncias pessoais. A idia que o psicanalista devia apresentar-se como
uma no-pessoa; uma tela em branco na qual o paciente projetasse as suas fantasias
edpicas. Existiam tambm modos de falar e at o tom devia ser controlado para no
manifestar nem alegria, nem raiva nem nenhuma afeto ou cor que trassem o efeito
que o paciente produzia em voc. Esse efeito tinha o nome de contra-transferncia e
toda a arte consistia em control-lo e servir-se dele como bssola do inconsciente do
outro.
Lacan ps isso tudo de pernas pr ar com uma liberdade tal que para a
primeira gerao de pacientes e alunos isso funcionou como uma libertao da rigidez
das regras que tinham aprendido e que eram sine-qua-non. Para te dar uma idia do
qu tnhamos que nos libertar te conto a seguinte anedota: supervisionei meu primeiro
paciente criana com Arminda Aberastury, pioneira da psicanlise kleiniana aplicada
s crianas em argentina. Era uma magnfica analista de uma intuio formidvel, mas
tambm de uma rigidez tirnica quanto ao enquadramento do dispositivo analtico.
Bem, eis que ela se recusou a escutar o que tinha se passado entre mim e meu
paciente mirim porque ficou sabendo que tinha esquecido de por um casal de animais
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selvagens na caixa de jogos que tinha oferecido como material de expresso do
inconsciente do meu paciente de cinco anos. Era assim com os adultos tambm.
O freudokleinismo sempre foi bastante tolerante s inovaes tericas (desde
que respeitassem as trs colunas de sustentao de que tinha te falado mais cedo), mas
era completamente intratvel quanto s inovaes tcnicas. A tcnica era e devia
permancer padro, para evitar o vale-tudo. Para fazer face s crticas da sociedade de
que a psicanlise no era cientfica, era necessrio fazer direito e que parecesse coisa
sria. Todos ramos os guardies do legado de Freud, sempre prestes a ser sujado
pelos seus detratores, e como a mulher do Csar, no bastava que fossemos honestos,
devamos parecer honestos.
Muito bem, o lacanismo foi como uma lufada de ar fresco neste ambiente
rarefeito, mas os lacanianos j tarimbados tambm comearam a ficar preocupados
por controlar minimamente a Casa da me Joana em que a frmula do Lacan "o
analista s se autoriza de si mesmo" tinha transformado o lacanismo. (Parntese: esta
frmula sinal da liberdade a que me referia e que o melhor do ensino do Lacan: se
o que te autoriza a ocupar o lugar e fazer a funo do analista a tua prpria
experincia como analisante, ento, ningum vindo de fora poderia te dizer "tu ests
apto para praticar a anlise". Fecho o parntese). Paradoxalmente, o cerco foi fechado
no sobre a tcnica, que continuava sendo um "cada um por si e Lacan contra todos",
mas sobre a teoria. A teoria que sustentava a prtica era inamovvel, e os lacanianos
viraram, e continuam at hoje, talmudistas gastando a vida sobre uma expresso do
mestre. Decifra-me ou devoro-te era (e ) o que os lacanianos escutam como a voz
originada na esfinge dos Escritos e do Seminrio. Por isso, quando chegou um
avalizado pelo prprio mestre, que disse "eu serei o intrprete do orculo lacaniano
para vocs!", foi (e ) adorado como um messias.
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Isso, eu no posso aceitar. No repito o que no entendo, e no uso o que no
me serve clinicamente para nada. Lucubraes metafsicas, fantasiadas de palavra
divina do lacanismo oficial. Oficial e ortodoxo porque, paradoxalmente, Lacan que foi
um iconoclasta e um heterodoxo, conseguiu gerar uma legio de repetidores e
guardies de uma ortodoxia lacaniana. Por exemplo, corriqueiro escutar coisas
como "porque Lacan disse, no seminrio XI, que o Vorstellungs reprsentanz (quem
cita o termo em alemo no fala alemo, mas cita em alemo porque Lacan, que sim
lia alemo, o citava em alemo!) o S2" E o outro, se for um verdadeiro talmudista
h de lembrar que Lacan disse, quatro anos depois "ah mais vocs no entenderam
nada o vorstellungsreprasentanz de freud o S1". Houve uma poca em que eu
intervinha em debates bizantinos como este, mostrando que cada afirmao estava no
contexto de um problema diferente e que no era nem uma coisa nem a outra, ou
ento, fora de contexto, era as duas ao mesmo tempo, ou nenhuma. Mas isto reflete a
necessidade de encontrar um ponto firme, um porto seguro em uma obra que sempre
foi um work in progress e que nunca anotou a sua ultima palavra, a no ser com a
morte do autor.
Enfim, encurtando: voc estuda e se analisa para poder dar a resposta que a
situao analtica exige, no para aplicar as normas de um setting freudiano ou um
anti-setting, to pernicioso quanto, lacaniano: sesses de dez minutos, respostas
agressivas, nenhuma resposta, manipulaes, enfim, o que a lenda diz que o mestre
fazia e, depois dele, todo mundo imita. Imita a lenda, claro. Um amigo meu deu um
murro na cara do analista, depois que ele enfiou a mo no seu bolso para tirar-lhe o
dinheiro do pagamento. " a ultima vez que tu bota a mo no meu bolso", advertiu. E
a resposta do seu lacanianoanalista foi: "mas Lacan fazia assim, oras!" H outros e
outras que, em nome de Lacan (assim como se diz em nome de Deus), manipulam
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vida e milagres dos seus analisantes, induzindo o contrrio do que uma analise
deveria induzir; ou seja, incrementando a servido voluntria dos pacientes, que j o
prprio do neurtico.
Voc acabou no me dando um exemplo da ruptura do setting, como
resposta ao que o paciente requer naquele momento.
Ok, te conto. Antes de atender aqui, atendia em uma sala em uma casa
chiqurrima na zona residencial, perto daqui. Uma casa com um enorme jardim e com
piscina. Eu atendia um garoto de nove anos que vivia me xingando de tudo quanto era
nome. Um filho da nossa classe dominante que me tratava como um dos empregados
da fazenda. Lembro que eu o chamava de "sinhozinho". Chegou uma hora que se fez
muito difcil trabalhar com ele. As sesses se limitavam a escutar suas gozaes sobre
minhas coisas: minha roupa, meu carro, meu relgio ou meu walkman (vinha de uma
famlia rica e portanto o dele sempre era melhor maior ou mais caro que o meu, seja o
que for); ou ento me xingava sem razo alguma, com os insultos mais ofensivos que
conhecia.
Ele era o caula temporo de uma famlia com trs irmos bastante mais
velhos que o tratavam como caf-com-leite, uma me que o adorava e o mimava
como um beb, e um pai-heri que no estava nunca em casa, e quando estava s
dava ateno pros irmos. Eu tinha tentado dizer algo disso para ele sem o menor
sucesso.
At que um dia enchi da xingao toda e fiz o seguinte: Como na poca eu
treinava full-contact, tinha na minha sala dois pares de luvas (aquelas luvas parecidas
com as de boxe). Disse pra ele que j que queria brigar comigo amos brigar pra valer.
Entreguei um par de luvas pro garoto; calcei o segundo, samos no quintal e camos
na maior pancadaria perante o espanto dos colegas com quem eu dividia a casa e a
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secretria que, soube depois, perguntou pra um dos meus colegas se deviam chamar a
polcia. claro que eu no pretendia machucar o rapaz, mas tambm ficou claro que
estvamos lutando mesmo. Quando ele decidiu que j estava de bom tamanho,
encerramos a briga. Nunca mais me xingou ou tirou sarro das minhas coisas e a partir
dali, diria, a anlise dele entrou em sua fase final.
O que tinha acontecido? Foi meu modo de trat-lo como gente grande, com
respeito, como ele estava pedindo. Eu no fiz com ele o que os irmos ou o pai
faziam, jogar de faz-de-conta, trat-lo como caf-com-leite. Eu lutei com ele de
verdade. E isso valeu por todas as interpretaes da sua posio que antes no tinham
chegado a destino. Mas, convenhamos, que no l um tratamento muito ortodoxo da
transferncia! (Risos)
Enfim, no sei que mais te dizer, a no ser que, como analista, voc o que
a tua anlise fez de voc, nem mais nem menos. Mas a tua anlise, por sorte, no se
confunde com os analistas que voc teve. Fazemos anlise apesar de nossos analistas.
Um analista bom quando no atrapalha demais o teu trabalho e quando, na hora que
emperra, no se sai muito mal indicando o teu ponto de deteno. Eu nunca trabalhei
do mesmo modo como meus analistas trabalharam comigo, nenhum deles. E isso, fala
bem de todos eles: no terem induzido uma identificao em mim. As pencas de
colegas visivelmente identificados aos seus respectivos analistas, ao ponto de voc
poder reconhecer com quem um ou outro se analisou, pelo modo de agir e de falar
pattico, e certamente uma evidncia do fracasso relativo daquelas anlises.
Em suma, se lacaniano quer dizer estar disposto a pr o inconsciente do outro
a trabalhar, para ele encontrar atravs do resultado uma sada para seu sofrimento,
ento, sou lacaniano. Se lacaniano quer dizer que para poder percorrer este caminho
preciso estar ali no s de alma, mas tambm de corpo, porque seno nada vai
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acontecer (a psicanlise no uma sesso de reflexo, uma experincia vivida
concretamente e at o limite, por ambos participantes), ento sou lacaniano. Se
lacaniano quer dizer que voc tem que inventar um modo de isso acontecer, que no
pode ser padronizado porque no funciona igual para duas pessoas, ento sou
lacaniano. Se lacaniano quer dizer ser um leitor vido e crtico de tudo que se produz
na cultura que me toca viver, ento sou lacaniano.
Hoje um paciente, provavelmente psictico, me disse: "ambos sabemos que
nada vai mudar, e que eu nunca vou sair do sofrimento em que estou: voc sabe e eu
sei." Respondi que se de veras pensasse isso, j teria dito pra ele e teria tentado pensar
em uma outra abordagem para ajud-lo. Ele ficou muito, mas muito surpreso com a
minha resposta. Disse que jamais teria imaginado que fosse dizer isso. "Ainda penso",
acrescentei, "que voc pode inventar um modo de se virar com X (o sintoma de que
se queixa), que te permita viver de outro modo. Inventar quer dizer que no existe
ainda e que deve ser construdo. Espero poder te ajudar nisso, mas no saberia
inventar por voc, em teu lugar".
Depois disso conversamos sobre cultura e religio e sobre a necessidade dos
mitos, perguntei se acreditava em Deus. Me disse que no, mas que isso no fazia a
menor diferena, porque as posies humanas em matria de religio seriam, segundo
ele, duas: acredito que acredito, postura de um crente, ou bem, acredito que no
acredito, postura de um incrente. O ponto radical de um verdadeiro atesmo,
acrescentou, " chegar a descobrir o que voc acredita sem saber; ou seja, conhecer as
tuas determinaes ditas inconscientes. a nica liberdade a que um homem pode
aspirar, e a psicanlise deveria servir para lev-lo at ali." Perguntei o que significava
"acreditar sem saber" e me deu como exemplo uma pessoa que afirma no ser
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supersticiosa, mas se cuida para no passar nunca embaixo de uma escada. Perguntei
se ele sabia em que acreditava e me respondeu: Acredito no acaso.
H caso?
Sim, h-caso. Caso contrrio: qual seria a graa?
Nos despedimos na porta do Caf. Pedi o nmero do seu celular.
8395-3030 disse.
Quando descia rumo ao ponto de taxi, me chamou de volta: "Liga para mim!",
pediu, "assim fico com teu nmero gravado". Liguei.
No meu ouvido: Esse nmero de telefone no existe, verifique o nmero
discado ou...
Voc me deu teu nmero errado! (Gargalhada)
Ali estava o nove perdido na minha chegada.
Era para ser um seis, claro, mas esta vez no precisava de associaes nem
nada. Estava demonstrado em ato, como ele teria dito, o tal de efeito sujeito.
!!Mara Elena ngeles reprter da revista Harper de Nova Iorque, graduada em
jornalismo pela Auburn University (School of Communication and Journalism),
trabalhou nos jornais O Globo, do Rio de Janeiro e Pgina 12, de Buenos Aires
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