sigmund freud o estranho (1)

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O ESTRANHOSigmund Freud

I

S raramente um psicanalista se sente impelido a pesquisar o tema da esttica, mesmo quando por esttica se entende no simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir. O analista opera em outras camadas da vida mental e pouco tem a ver com os impulsos emocionais dominados, os quais, inibidos em seus objetivos e dependentes de uma hoste de fatores simultneos, fornecem habitualmente o material para o estudo da esttica. Mas acontece ocasionalmente que ele tem de interessar-se por algum ramo particular daquele assunto; e esse ramo geralmente revela-se um campo bastante remoto, negligenciado na literatura especializada da esttica.

O tema do estranho um ramo desse tipo. Relaciona-se indubitavelmente com o que assustador com o que provoca medo e horror; certamente, tambm, a palavra nem sempre usada num sentido claramente definvel, de modo que tende a coincidir com aquilo que desperta o medo em geral. Ainda assim, podemos esperar que esteja presente um ncleo especial de sensibilidade que justificou o uso de um termo conceitual peculiar. Fica-se curioso para saber que ncleo comum esse que nos permite distinguir como estranhas determinadas coisas que esto dentro do campo do que amedrontador.

Nada em absoluto encontra-se a respeito deste assunto em extensos tratados de esttica, que em geral preferem preocupar-se com o que belo, atraente e sublime isto , com sentimentos de natureza positiva e com as circunstncias e os objetivos que os trazem tona, mais do que com os sentimentos opostos, de repulsa e aflio. Conheo apenas uma tentativa na literatura mdico-psicolgica, um artigo frtil, mas no exaustivo, de Jentsch (1906). Mas devo confessar que no fiz um exame muito completo da literatura relacionada com esta minha modesta contribuio, particularmente da literatura estrangeira, por razes que, como pode ser facilmente adivinhado, esto nos tempos em que vivemos; de forma que meu artigo apresentado ao leitor sem qualquer pretenso de prioridade.

Em seu estudo do estranho, Jentsch destaca com muita razo o obstculo apresentado pelo fato de que as pessoas variam muito na sua sensibilidade a essa categoria de sentimento. De fato, o prprio autor da presente contribuio deve declarar-se culpado de particular obtusidade na matria, onde a extrema delicadeza de percepo seria mais adequada. H muito tempo que no experimenta ou sabe de algo que lhe tenha dado uma impresso estranha, e deve comear por transpor-se para esse estado de sensibilidade, despertando em si a possibilidade de experiment-lo. Todavia, tais dificuldades fazem-se sentir poderosamente em muitos outros ramos da esttica; no precisamos, por causa disso, desanimar de encontrar exemplos nos quais a qualidade em questo ser reconhecida sem hesitaes pela maioria das pessoas.

De incio, abrem-se-nos dois rumos. Podemos descobrir que significado veio a ligar-se palavra estranho no decorrer da sua histria; ou podemos reunir todas aquelas propriedades de pessoas, coisas, impresses sensrias, experincias e situaes que despertam em ns o sentimento de estranheza, e inferir, ento, a natureza desconhecida do estranho a partir de tudo o que esses exemplos tm em comum. Direi, de imediato, que ambos os rumos conduzem ao mesmo resultado: o estranho aquela categoria do assustador que remete ao que conhecido, de velho, e h muito familiar. Como isso possvel, em que circunstncias o familiar pode tornar-se estranho e assustador, o que mostrarei no que se segue. Acrescente-se tambm que minha investigao comeou realmente ao coligir uma srie de casos individuais, e s foi confirmada mais tarde por um exame do uso lingstico. Na exposio que farei, contudo, seguirei o curso inverso.

A palavra alem unheimlich obviamente o oposto de heimlich [domstica], heimisch [nativo] o oposto do que familiar; e somos tentados a concluir que aquilo que estranho assustador precisamente porque no conhecido e familiar. Naturalmente, contudo, nem tudo o que novo e no familiar assustador; a relao no pode ser invertida. S podemos dizer que aquilo que novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho; algumas novidades so assustadoras, mas de modo algum todas elas. Algo tem de ser acrescentado ao que novo e no familiar, para torn-lo estranho.

De um modo geral, Jentsch no foi alm dessa relao do estranho com o novo e no familiar. Ele atribui o fator essencial na origem do sentimento de estranheza incerteza intelectual; de maneira que o estranho seria sempre algo que no se sabe como abordar. Quanto mais orientada a pessoa est, no seu ambiente, menos prontamente ter a impresso de algo estranho em relao aos objetos e eventos nesse ambiente.

No difcil verificar que essa definio est incompleta e, portanto, tentaremos operar para alm da equao estranho = no familiar. Em primeiro lugar, voltar-nos-emos para outras lnguas. Mas os dicionrios que consultamos nada de novo nos dizem, talvez apenas porque ns prprios falamos uma lngua que estrangeira. De fato, temos a impresso de que muitas lnguas no tm palavra para essa particular nuana do que assustador.

Gostaria de expressar a minha gratido ao Dr. Theodor Reik pelos seguintes excertos:

LATIM: (K.E. Georges, Deutschlateinisches Worterbuch, 1898). Um lugar estranho: locus suspectus; numa estranha hora da noite: intempesta nocte.

GREGO: (Lxicos de Rost e de Schenkl). xenoV (isto , estranho, estrangeiro).

INGLS: (dos dicionrios de Lucas, Bellows, Flgel e Muret-Sanders). Uncomfortable, uneasy, gloomy, dismal, uncanny, ghastly; (of a house) haunted; (of a man) a repulsive fellow.

FRANCS: (Sachs-Villatte). Inquitant, sinistre, lugubre, mal son aise.

ESPANHOL: (Tollhausen, 1889). Sospechoso, de mal agero, lgubre, siniestro.

As lnguas italiana e portuguesa parecem contentar-se com palavras que descreveramos como circunlocues. Em rabe e hebreu estranho significa o mesmo que demonaco, horrvel.

Voltemos, portanto, ao alemo. No Wortebuch der Deutschen Sprache (1860, 1, 729), de Daniel Sanders, a seguinte entrada, que reproduzimos integralmente aqui, encontra-se sob a palavra heimlich. Destaquei com itlicos uma ou duas passagens.

Heimlich, adj., subst. Heimlichkeit (pl. Heimlichkeiten): I. Tambm heimelich, heimelig, pertencente casa, no estranho, familiar, domstico, ntimo, amistoso etc.

(a) (Obsoleto) pertencente casa ou famlia, ou considerado como pertencente (cf. latim familiaris, familiar): Die Heimlichen, os membros do lar; Der heimliche Rat (Gen. xli, 45; 2 Sam. xxiii. 23; 1 Chron. xii. 25; Wisd. viii. 4), hoje mais habitualmente Geheimer Rat [Conselheiro Privado].

(b) De animais: domesticado, capaz de fazer companhia ao homem. Em oposio a selvagem, e.g. Animais que no so selvagens nem heimlich etc. Animais selvagens que so educados para serem heimlich e acostumados ao homem. Se essas jovens criaturas so criadas desde os primeiros dias entre os homens, tornam-se bastante heimlich, amistosas etc. Assim tambm: (O cordeiro) to heimlich e come da minha mo. No obstante, a cegonha um belo heimelich pssaro.

(c) ntimo, amigavelmente confortvel; o desfrutar de um contentamento tranqilo etc., despertando uma sensao de repouso agradvel e de segurana, como a de algum entre as quatro paredes da sua casa. Ainda heimlich para voc o seu pas, onde estranhos esto abatendo os seus bosques? Ela no se sentia muito heimlich com ele. Ao longo de uma alta, heimlich, sombreada vereda, junto a um sussurrante, sentimental e balbuciante riacho silvestre. Destruir a Heimlichkeit do lar. No conseguia encontrar prontamente outro lugar to ntimo e heimlich como este. Ns o visualizamos to confortvel, to encantador, to aconchegante e heimlich. Em tranqila Heimlichkeit, cercada por estreitas paredes. Uma dona de casa cuidadosa, que sabe como fazer uma agradvel Heimlichkeit (Huslichkeit [domesticidade]) com os mais escassos meios. O homem que at recentemente fora to estranho a ele, parecia-lhe agora muito mais heimlich. Os proprietrios de terra protestantes no se sentem heimlich entre os seus subordinados catlicos. Quando tudo fica calmo e heimlich, e s a quietude vespertina espreita a tua cela. Tranqilo, encantador e heimlich, nenhum outro lugar mais adequado para o repouso deles. No se sentia absolutamente heimlich quanto a isso. Tambm [em compostos] O lugar era to sereno, to isolado, to sombreadamente-heimlich. Os fluxos e influxos da corrente, sonhadores e embaladores-heimlich Cf. em particular Unheimlich [ver adiante]. Entre os autores suos da Subia, particularmente, com freqncia como trisslabo: Como uma tarde parecia outra vez heimelich a Ivo, quando estava em casa. Estava to heimelig na casa. A sala clida e a tarde heimelig. Quando um homem sente, de corao, que to pequeno, e to grande o Senhor isto que verdadeiramente heimelig. Pouco a pouco sentiram-se vontade e heimelig entre si. Amvel Heimeligkeit.. Em nenhum outro lugar estaria to heimelig como estou aqui. Aquele que vem de longe certamente no vive muito heimelig (heimatlich [em casa], freundnachbarlich [de modo amistoso, em boa vizinhana]) entre as pessoas. A cabana onde antes repousara tantas vezes entre os seus, to heimelig, to feliz. A corneta do sentinela soa to heimelig da torre, e a sua voz convida com tanta hospitalidade. Voc vai dormir ali, to macio e clido, to maravilhosamente heimlig. Esta forma de palavra merece tornar-se geral, de modo a evitar que este sentido perfeitamente bom do vocbulo se torne obsoleto, atravs de uma fcil confuso com II [ver adiante]. Cf:Os Zecks [nome de famlia] so todos heimlich. (no sentido II) Heimlich? O que voc entende por heimlich? Bem, so como uma fonte enterrada ou um aude seco. No se pode passar por ali sem ter sempre a sensao de que a gua vai brotar de novo. Oh, ns chamamos a isso unheimlich; vocs chamam heimlich. Bem, o que faz voc pensar que h algo secreto e suspeitoso acerca dessa famlia? (Gutzkow).

(d) Particularmente na Silsia: alegre, disposto; tambm em relao ao tempo (clima).

II. Escondido, oculto da vista, de modo que os outros no consigam saber, sonegado aos outros. Fazer alguma coisa heimlich, isto , por trs das costas de algum; roubar heimlich; reunies e encontros heimlich; olhar com prazer heimlich a derrota de algum; suspirar ou lastimar-se heimlich; comportar-se heimlich, como se houvesse algo a esconder; caso de amor, amor, pecado heimlich; lugares heimlich (que as boas maneiras nos obrigam a esconder) (1 Sam. v. 6). A cmara heimlich (privada) (2 Reis x. 27). Tambm, a cadeira heimlich. Lanar ao poo ou Heimlichkeiten. Conduzidos os cavalos heimlich adiante de Laomedon. To reticente, heimlich enganoso e malicioso para com os cruis senhores como franco, aberto, simptico e solcito para com um amigo na desgraa. Voc ainda tem que aprender o que mais heimlich segredado para mim. A arte heimlich(mgica). Onde a divulgao pblica tem que parar, comeam as maquinaes heimlich. A liberdade o lema sussurrado de conspiradores heimlich e o grito de batalha de revolucionrios declarados. Um efeito santo, heimlich. Minhas brincadeiras heimlich. Se no lho do aberta e escrupulosamente, ele pode apanh-lo heimlich e inescrupulosamente. Ele tinha telescpios acromticos construdos heimlich e secretamente. Daqui por diante, desejo que no mais haja nada heimlich entre ns. Descobrir, revelar, trair as Heimlichkeiten de algum; tramar Hiemlichkeiten por trs de minhas costas. Na minha poca estudamos Heimlichkeiten. A mo da compreenso pode anular sozinha o feitio impotente de Heimlichkeiten (de ouro escondido). Diga, onde o lugar de encobrimento em que lugar de oculta Heimlichkeit? Abelhas, que fazem o fecho de Heimlichkeiten (isto , o lacre). Aprendido em estranhas Heimlichkeiten (isto , o lacre). Aprendido em estranhas Heimlichkeiten (artes mgicas).

Para compostos, ver acima, Ic. Note-se particularmente o negativo un: misterioso, sobrenatural, que desperta horrvel temor: Parecendo-lhe bastante unheimlich e fantstico. As horas unheimlich e temveis da noite. J sentira desde h muito uma sensao hunheimlic e at mesmo horrvel. Agora estou comeando a ter um sentimento unheimlich. Sente um horror unheimlich. Unheimlich e imvel como uma imagem de pedra. Uma nvoa unheimlich chamada nevoeiro da colina. Esses jovens plidos so unheimlich e esto tramando Deus sabe que desordem. Unheimlich o nome de tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio luz (Schelling). Encobrir o divino, cerc-lo de uma certa Unheimlichkeit. Unheimlich poucas vezes usado como oposto ao significado II (acima).

O que mais nos interessa nesse longo excerto descobrir que entre os seus diferentes matizes de significado a palavra heimlich exibe um que idntico ao seu oposto, unheimlich. Assim, o que heimlich vem a ser unheimlich. (Cf. a citao de Gutzkow: Ns os chamamos unheimlich; vocs o chamam heimlich.) Em geral, somos lembrados de que a palavra heimlich no deixa de ser ambgua, mas pertence a dois conjuntos de idias que, sem serem contraditrias, ainda assim so muito diferentes: por um lado significa o que familiar e agradvel e, por outro, o que est oculto e se mantm fora da vista. Unheimlich habitualmente usado, conforme aprendemos, apenas como o contrrio do primeiro significado de heimlich, e no do segundo. Sanders nada nos diz acerca de uma possvel conexo gentica entre esses dois significados deheimlich. Por outro lado, percebemos que Schelling diz algo que d um novo esclarecimento ao conceito do Unheimlich, para o qual certamente no estvamos preparados. Segundo Schelling, unheimlich tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio luz.

Algumas dvidas que, desse modo, surgiram, so afastadas se consul-tamos o dicionrio de Grimm. (1877, 4, Parte 2, 873 e segs.)

Lemos:

Heimlich; adj. e adv. vernaculus, occultus; MAA. heimelh, heimlch.

(P. 874.) Em sentido ligeiramente diferente: Sinto-me heimlich bem, liberto do medo.

[3] (b) Heimlich tambm se diz de um lugar livre da influncia de fantasmas familiar, amistoso, ntimo.

(P. 875: b) Familiar, amigvel, franco.

4.Da idia de familiar, pertencente casa, desenvolve-se outra idia de algo afastado dos olhos de estranhos, algo escondido, secreto; e essa idia expande-se de muitos modos

(P. 876.) Na margem esquerda do lago jaz uma campina heimlich na floresta. (Schiller, Wilhelm Tell, I.4.) Licena potica, assim raramente usada no discurso moderno Heimlich usado em conjuno com um verbo que expressa o ato de ocultar: No segredo do seu tabernculo ele esconder-me- heimlich. (Ps. xxvii. 5.) As partes heimlich do corpo humano, pudenda os homens que no morreram foram feridos nas suas partes heimlich. (1 Samuel v. 12.)

(c) Funcionrios que do importantes conselhos, que tm que ser mantidos em segredo, em questes de Estado, so chamados conselheiros heimlich; o adjetivo, de acordo com o uso moderno, foi substitudo por geheim [secreto] Fara chamou o nome de Jos ele, a quem os segredos so revelados (conselheiro heimlich). (Gen. xli. 45.)

(P. 878.) 6. Heimlich, como se diz do conhecimento mstico, alegrico: um significado heimlich, mysticus, divinus, occultus, figuratus.

(P. 878.) Heimlich num sentido diferente, como afastado do conhecimento, inconsciente Heimlich tem tambm o significado daquilo que obscuro, inacessvel ao conhecimento Voc no v? Eles no confiam em ns; eles temem a face heimlich do Duque de Friedland. (Schiller, Wallensteins Lager, Cena 2.)

9.A noo de algo oculto e perigoso, que se expressa no ltimo pargrafo, desenvolve-se mais ainda, de modo que heimlich. Assim: s vezes sinto-me como um homem que caminha pela noite e acredita em fantasmas; cada esquina para ele heimlich e cheia de terrores. (Klinger, Theater, 3. 298.)

Dessa forma, heimlich uma palavra cujo significado se desenvolve na direo da ambivalncia, at que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich. Unheimlich , de um modo ou de outro, uma subespcie de heimlich. Tenhamos em mente essa descoberta, embora no possamos ainda compreend-la corretamente, lado a lado com a definio de Schelling do Unheimlich. Se continuarmos a examinar exemplos individuais de estranheza, essas sugestes tornar-se-o inteligveis a ns.

II

Quando passamos a rever as coisas, pessoas, impresses, eventos e situaes que conseguem despertar em ns um sentimento de estranheza, de forma particularmente poderosa e definida, a primeira condio essencial obviamente selecionar um exemplo adequado para comear. Jentsch tomou como timo exemplo dvidas quanto a saber se um ser aparentemente animado est realmente vivo; ou, do modo inverso, se um objeto sem vida no pode ser na verdade animado; e ele refere-se, a esse respeito, impresso causada por figuras de cera, bonecos e autmatos engenhosamente construdos. A estes acrescenta o estranho efeito dos acessos epilticos e das manifestaes de insanidade, porque excitam no espectador a impresso de processos automticos e mecnicos, operando por trs da aparncia comum de atividade mental. Sem aceitar inteiramente esse ponto de vista do autor, tom-lo-emos como ponto de partida para as nossas prprias investigaes, porque no que se segue ele nos lembra um escritor que, mais do que qualquer outro, teve xito na criao de efeitos estranhos.

Escreve Jentsch: Ao contar uma histria, um dos recursos mais bem-sucedidos para criar facilmente efeitos de estranheza deixar o leitor na incerteza de que uma determinada figura na histria um ser humano ou um autmato, e faz-lo de tal modo que a sua ateno no se concentre diretamente nessa incerteza, de maneira que no possa ser levado a penetrar no assunto e esclarec-lo imediatamente. Isto, como afirmamos, dissiparia rapidamente o peculiar efeito emocional da coisa. E.T.A. Hoffmann empregou repetidas vezes, com xito, esse artifcio psicolgico nas suas narrativas fantsticas.

Essa observao, indubitavelmente correta, refere-se principalmente histria de O Homem da Areia, em Nachtstcke, de Hoffmann, que contm o original de Olmpia, a boneca que aparece no primeiro ato da pera de Offenbach, Contos de Hoffmann. Mas no posso achar e espero que a maioria dos leitores da histria concorde comigo que o tema da boneca Olmpia, que em todos os aspectos um ser humano, seja de alguma forma o nico elemento, ou de fato o mais importante, a que se deva atribuir a inigualvel atmosfera de estranheza evocada pela histria. Nem essa atmosfera elevada pelo fato de que o prprio autor trata o episdio de Olmpia com um leve toque de stira e o usa para ridicularizar a idealizao que a jovem faz da sua amante. O tema principal da histria , pelo contrrio, algo diferente, algo que lhe d o nome e que sempre reintroduzido nos momentos crticos: o tema do Homem da Areia, que arranca os olhos das crianas.

Esse conto fantstico principia com as recordaes de infncia do estudante Nataniel. A despeito da sua felicidade presente, no pode banir as lembranas ligadas morte misteriosa e apavorante do seu amado pai. Em certas noites, sua me costumava mandar as crianas cedo para a cama, prevenindo-as de que o Homem da Areia estava chegando; e, por certo, Nataniel no deixaria de ouvir os pesados passos de um visitante, com o qual o pai estaria ocupado toda a noite. Quando indagada acerca do Homem da Areia, a sua me na verdade negava que tal pessoa existisse, exceto como figura de linguagem; a bab, porm, podia dar-lhe uma informao mais precisa: um homem perverso que chega quando as crianas no vo para a cama, e joga punhados de areia nos olhos delas, de modo que estes saltam sangrando da cabea. Ele coloca ento os olhos num saco e os leva para a meia-lua, para alimentar os seus filhos. Eles esto acomodados l em cima, no ninho, e seus bicos so curvos como bicos de coruja, e eles os usam para mordiscar os olhos dos meninos e das meninas desobedientes.

Embora o pequeno Nataniel fosse sensvel e tivesse idade bastante para no dar crdito figura do Homem da Areia com tais horrveis atributos, ainda assim o medo fixou-se no seu corao. Determinou-se a descobrir que aparncia tinha o Homem da Areia; e uma noite, quando o Homem da Areia era outra vez esperado, ele escondeu-se no escritrio do pai. Reconheceu o visitante como sendo o advogado Coplio, uma pessoa repulsiva que amedrontava as crianas quando, ocasionalmente, aparecia para jantar; e ele agora identificava esse Coplio com o temido Homem da Areia. No que diz respeito ao resto da cena, Hoffmann j nos deixa em dvida se o que estamos testemunhando o primeiro delrio do apavorado menino, ou uma sucesso de acontecimentos que devem ser considerados, na histria, como sendo reais. O pai e o convidado esto trabalhando num braseiro incandescente. O pequeno intrometido ouve Coplio invocar: Aqui os olhos! Aqui os olhos!, e trai-se ao soltar um alto grito. Coplio apanha-o e est prestes a lanar brasas tiradas do fogo em seus olhos, jogando estes depois no braseiro, mas o pai lhe implora que solte o menino e salva-lhe os olhos. Depois disso, o rapaz cai em profundo desfalecimento; e uma longa enfermidade pe fim sua experincia. Aqueles que optam pela interpretao racionalista do Homem da Areia no deixam de reconhecer, na fantasia do menino, a persistente influncia da histria contada pela bab. Os punhados de areia que deveriam ser jogados aos olhos da criana, transformam-se em pedaos de carvo em brasa, tirados das chamas; e em ambos os casos destinam-se a fazer com que os seus olhos pulem para fora. No decorrer de uma outra visita do Homem da Areia, um ano depois, o pai morto no escritrio por uma exploso. O advogado Coplio desaparece do lugar sem deixar qualquer vestgio atrs de si.

Nataniel, agora um estudante, cr ter reconhecido esse fantasma de horror da sua infncia num oculista itinerante, um italiano chamado Giuseppe Coppola, que na cidade universitria, se oferece para vender-lhe barmetros. Quando Nataniel recusa, o homem prossegue: No quer barmetros? No quer barmetros? Tenho tambm timos olhos, timos olhos! O terror do estudante atenua-se quando descobre que os olhos oferecidos so apenas inofensivos culos, e compra um pequeno telescpio de Coppola. Com a ajuda do instrumento ele observa a casa em frente, do professor Spalanzani, e ali espia a bela mas estranhamente silenciosa e imvel filha de Spalanzani, Olmpia. Logo se apaixona por ela to violentamente que, por sua causa, esquece a moa talentosa e sensvel de quem est noivo. Mas Olmpia um autmato, cujo mecanismo foi feito por Spalanzani e cujos olhos foram colocados por Coppola, o Homem da Areia. O estudante surpreende os dois Mestres discutindo quanto ao seu trabalho manual. O oculista leva embora a boneca de madeira, sem os olhos; e o mecnico, Spalanzani, apanha no cho os olhos sangrentos de Olmpia e os arremessa ao peito de Nataniel, dizendo que Coppola os havia roubado do estudante. Nataniel sucumbe a um novo ataque de loucura e, no seu delrio, a recordao da morte do pai mistura-se a essa nova experincia. Apressa-te! Apressa-te! anel de fogo! grita ele. Gira, anel de fogo Hurrah! Apressa-te, boneca de pau! Linda boneca de pau, gira . Cai ento sobre o professor, o pai de Olmpia, e tenta estrangul-lo.

Reanimando-se de uma longa e grave enfermidade, Nataniel parece, por fim, estar recuperado. Pretende casar-se com a sua noiva, com a qual se reconciliou. Um dia estavam ele e ela passeando pelo mercado da cidade, sobre o qual a alta torre da prefeitura lana a sua enorme sombra. Por sugesto da moa, sobem torre, deixando em baixo o irmo dela, que caminhava com eles. Do alto, a ateno de Clara atrada para um curioso objeto que se move ao longo da rua. Nataniel observa essa coisa atravs do telescpio de Coppola e cai num novo ataque de loucura. Gritando Gira, boneca de pau!, tenta jogar a garota da torre. O irmo da moa, levado pelos gritos desta, salva-a e apressa-se em descer com ela em segurana. L em cima, na torre, o louco corre em crculos berrando Gira, anel de fogo! e ns sabemos a origem das palavras. Entre as pessoas que comearam a se juntar em baixo, destaca-se a figura do advogado Coplio, que voltou de repente. Podemos supor que foi a sua aproximao, vista atravs do telescpio, que lanou Nataniel ao seu acesso de loucura. Enquanto as pessoas que observam a cena se preparam para subir e dominar o louco, Coplio ri e diz: Esperem um pouco; ele vai descer por si prprio. Subitamente Nataniel fica imvel, avista Coplio e, com um grito selvagem de Sim! timos olhos timos olhos!, lana-se por sobre o parapeito. Seu corpo jaz nas pedras da rua com o crnio despedaado, enquanto o Homem da Areia desaparece na multido.

Esse breve sumrio no deixa dvidas, acho eu, de que o sentimento de algo estranho est ligado diretamente figura do Homem da Areia, isto , idia de ter os olhos roubados, e que o ponto de vista de Jentsch, de uma incerteza intelectual, nada tem a ver com o efeito. A incerteza quanto a um objeto ser vivo ou inanimado, que reconhecidamente se aplica boneca Olmpia, algo irrelevante em relao a esse outro exemplo, mais chocante, de estranheza. verdade que o escritor cria uma espcie de incerteza em ns, a princpio, no nos deixando saber, sem dvida propositalmente, se nos est conduzindo pelo mundo real ou por um mundo puramente fantstico, de sua prpria criao. Ele tem, de certo, o direito de fazer ambas as coisas; e se escolhe como palco da sua ao um mundo povoado de espritos, demnios e fantasmas, como Shakespeare em Hamlet, em Macbeth e, em sentido diferente, em A Tempestade e Sonho de uma Noite de Vero, devemo-nos curvar sua deciso e considerar o cenrio como sendo real, pelo tempo em que nos colocamos nas suas mos. Essa incerteza, porm, desaparece no decorrer da histria de Hoffmann, e percebemos que pretende, tambm, fazer-nos olhar atravs dos culos ou do telescpio do demonaco oculista talvez, na verdade, o prprio autor em pessoa tenha feito observaes atentas atravs de tal instrumento. A concluso da histria deixa bastante claro que Coppola, o oculista, realmente o advogado Coplio e tambm, portanto, o Homem da Areia.

No se trata aqui, portanto, de uma questo de incerteza intelectual: sabemos agora que no devemos estar observando o produto da imaginao de um louco, por trs da qual ns, com a superioridade das mentes racionais, estamos aptos a detectar a sensata verdade; e, ainda assim, esse conhecimento no diminui em nada a impresso de estranheza. A teoria da incerteza intelectual , assim, incapaz de explicar aquela impresso.

Sabemos, no entanto, pela experincia psicanaltica, que o medo de ferir ou perder os olhos um dos mais terrveis temores das crianas. Muitos adultos conservam uma apreenso nesse aspecto, e nenhum outro dano fsico mais temido por esses adultos do que um ferimento nos olhos. Estamos acostumados, tambm, a dizer que estimamos uma coisa como a menina dos olhos. O estudo dos sonhos, das fantasias e dos mitos ensinou-nos que a ansiedade em relao aos prprios olhos, o medo de ficar cego, muitas vezes um substituto do temor de ser castrado. O autocegamento do criminoso mtico, dipo, era simplesmente uma forma atenuada do castigo da castrao o nico castigo que era adequado a ele pela lex tallionis. Podemos tentar, com fundamento racionalista, negar que os temores em relao aos olhos derivem do medo da castrao, e argumentar que muito natural que um rgo to preciso como o olho deva ser guardado por um medo proporcional. Na verdade, podemos ir mais alm e dizer que o prprio medo da castrao no contm outro significado, nem outro segredo mais profundo, do que um justificvel medo de natureza racional. Esse ponto de vista, porm, no considera adequadamente a relao substitutiva entre o olho e o rgo masculino, que se verifica existir nos sonhos, mitos e fantasias; nem dissipa a impresso de que a ameaa de ser castrado excita de modo especial uma emoo particularmente violenta e obscura, e que essa emoo que d, antes de mais nada, intenso colorido idia de perder outros rgos. Todas as demais dvidas so afastadas quando sabemos, pela anlise de pacientes neurticos, dos detalhes do seu complexo de castrao e compreendemos a enorme importncia desse complexo na vida mental de tais pacientes.

Ademais, eu no recomendaria a qualquer oponente da concepo psicanaltica que escolhesse particularmente essa histria do Homem da Areia, para apoiar o argumento de que a ansiedade em relao aos olhos nada tem a ver com o complexo de castrao. Por que razo, ento, colocou Hoffmann essa ansiedade em relao to ntima com a morte do pai? E por que o Homem da Areia aparece sempre como um perturbador do amor? Ele separa o infeliz Nataniel da sua noiva e do irmo desta, seu melhor amigo; ele destri o segundo objeto do seu amor, Olmpia, a linda boneca; e leva-o ao suicdio no momento em que recuperou a sua Clara e est prestes a unir-se venturosamente a ela. Na histria, elementos como estes e muitos outros parecem arbitrrios e sem sentido, na medida em que negamos toda ligao entre os medos relacionados com os olhos e com a castrao; mas tornam-se inteligveis to logo substitumos o Homem da Areia pelo pai temido, de cujas mos esperada a castrao.Arriscar-nos-emos, portanto, a referir o estranho efeito do Homem da Areia ansiedade pertencente ao complexo de castrao da infncia. Contudo, uma vez atingida a idia de que podemos tornar um fator infantil como este responsvel por sentimentos de estranheza, somo encorajados a verificar se podemos aplic-la a outros exemplos do estranho. Na histria do Homem da Areia, encontramos o outro tema destacado por Jentsch, de uma boneca que parece ter vida. Jentsch acredita que se cria uma condio particularmente favorvel para despertar sentimentos de estranheza, quando existe uma incerteza intelectual quanto a um objeto ter ou no vida, e quando um objeto inanimado se torna excessivamente parecido com um objeto animado. Ora, certamente as bonecas so intimamente ligadas com a vida infantil. Lembremo-nos de que, nos primeiros folguedos, de modo algum as crianas distinguem nitidamente objetos vivos de objetos inanimados, e gostam particularmente de tratar as suas bonecas como pessoas vivas. De fato, tenho ouvido ocasionalmente uma paciente declarar que, mesmo aos oito anos de idade, ainda estava convencida de que as suas bonecas certamente ganhariam vida se ela as olhasse de uma determinada forma, extremamente concentrada. De modo que, tambm aqui, no difcil descobrir um fator da infncia. Curiosamente, porm, ainda que a histria do Homem da Areia aborde o despertar de um medo da primitiva infncia, a idia de uma boneca viva no provoca absolutamente o medo; as crianas no temem que as suas bonecas adquiram vida, podem at desej-lo. A fonte de sentimentos de estranheza no seria, nesse caso, portanto, um medo infantil; mas, antes, seria um desejo ou at mesmo simplesmente uma crena infantil. Parece haver aqui uma contradio; porm, talvez seja apenas uma complicao, que nos pode ser til mais tarde.

Hoffmann o mestre incomparvel do estranho na literatura. Sua novela Die Elixire des Teufels [O Elixir do Diabo] contm toda uma srie de temas a que se tentado a atribuir o efeito estranho da narrativa; mas uma histria por demais obscura e intrincada para que nos aventuremos a um sumrio da mesma. J mais para o final do livro que o leitor fica a saber dos fatos, que at ento lhe haviam sido ocultados, dos quais se origina a ao; com o resultado de que no fica, por fim, esclarecido, mas de que cai num estado de completa estupefao. O autor acumulou excessivo material da mesma espcie. Em conseqncia disso, a compreenso da histria como um todo sofre, ainda que no a impresso que provoca. Devemo-nos contentar em escolher aqueles temas de estranheza que se destacam mais, ao mesmo tempo em que verificamos se tambm podem ser facilmente atribudos a causas infantis. Todos esses temas dizem respeito ao fenmeno do duplo, que aparece em todas as formas e em todos os graus de desenvolvimento. Assim, temos personagens que devem ser considerados idnticos porque parecem semelhantes, iguais. Essa relao acentuada por processos mentais que saltam de um para outro desses personagens pelo que chamaramos telepatia , de modo que um possui conhecimento, sentimento e experincia em comum com o outro. Ou marcada pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dvida sobre quem o seu eu (self), ou substitui o seu prprio eu (self) por um estranho. Em outras palavras, h uma duplicao, diviso e intercmbio do eu (self). E, finalmente, h o retorno constante da mesma coisa a repetio dos mesmos aspectos, ou caractersticas, ou vicissitudes, dos mesmos crimes, ou at dos mesmos nomes, atravs das diversas geraes que se sucedem.

O tema do duplo foi abordado de forma muito completa por Otto Rank (1914). Ele penetrou nas ligaes que o duplo tem com reflexos em espelhos, com sombras, com os espritos guardies, com a crena na alma e com o medo da morte; mas lana tambm um raio de luz sobre a surpreendente evoluo da idia. Originalmente, o duplo era uma segurana contra a destruio do ego, uma enrgica negao do poder da morte, como afirma Rank; e, provavelmente, a alma imortal foi o primeiro duplo do corpo. Essa inveno do duplicar como defesa contra a extino tem sua contraparte na linguagem dos sonhos, que gosta de representar a castrao pela duplicao ou multiplicao de um smbolo genital. O mesmo desejo levou os antigos egpcios a desenvolverem a arte de fazer imagens do morto em materiais duradouros. Tais idias, no entanto, brotaram do solo do amor-prprio ilimitado, do narcisismo primrio que domina a mente da criana e do homem primitivo. Entretanto, quando essa etapa est superada, o duplo inverte seu aspecto. Depois de haver sido uma garantia da imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte.

A idia do duplo no desaparece necessariamente ao passar o narcisismo primrio, pois pode receber novo significado dos estdios posteriores do desenvolvimento do ego. Forma-se ali, lentamente, uma atividade especial, que consegue resistir ao resto do ego, que tem a funo de observar e de criticar o eu (self) e de exercer uma censura dentro da mente, e da qual tomamos conhecimento como nossa conscincia. No caso patolgico de delrios de observao, essa atividade mental torna-se isolada, dissociada do ego e discernvel ao olho do terapeuta. O fato de que existe uma atividade dessa natureza, que pode tratar o resto do ego como um objeto isto , o fato de que o homem capaz de auto-observao torna possvel investir a velha idia de duplo de um novo significado e atribuir-lhe uma srie de coisas sobretudo aquelas coisas que, para a autocrtica, parecem pertencer ao antigo narcisismo superado dos primeiros anos.

No , contudo, apenas esse ltimo material, ofensivo como para a crtica do ego, que pode ser incorporado idia de um duplo. H tambm todos os futuros, no cumpridos mas possveis, a que gostamos ainda de nos apegar, por fantasia; h todos os esforos do ego que circunstncias externas adversas aniquilaram e todos os nossos atos de vontade suprimidos, atos que nutrem em ns a iluso da Vontade Livre. [Cf. Freud, 1901b, Captulo XII (B).]

Aps haver assim considerado a motivao manifesta da figura de um duplo, porm, temos que admitir que nada disso nos ajuda a compreender a sensao extraordinariamente intensa de algo estranho que permeia a concepo; e o nosso conhecimento dos processos mentais patolgicos permite-nos acrescentar que nada, nesse material mais superficial, podia ser levado em conta na nsia de defesa que levou o ego a projetar para fora aquele material, como algo estranho a si mesmo. Quando tudo est dito e feito, a qualidade de estranheza s pode advir do fato de o duplo ser uma criao que data de um estdio mental muito primitivo, h muito superado incidentalmente, um estdio em que o duplo tinha um aspecto mais amistoso. O duplo converteu-se num objeto de terror, tal como aps o colapso da religio, os deuses se transformam em demnios.

As outras formas de perturbao do ego, exploradas por Hoffmann, podem ser facilmente avaliadas pelos mesmos parmetros do tema do duplo. So elas um retorno a determinadas fases na elevao do sentimento de autoconsiderao, uma regresso a um perodo em que o ego no se distinguira ainda nitidamente do mundo externo e de outras pessoas. Acredito que esses fatores so em parte responsveis pela impresso de estranheza, embora no seja fcil isolar e determinar exatamente a sua participao nisso.

O fator da repetio da mesma coisa no apelar, talvez, para todos como fonte de uma sensao estranha. Daquilo que tenho observado, esse fenmeno, sujeito a determinadas condies e combinado a determinadas circunstncias, provoca indubitavelmente uma sensao estranha, que, alm do mais, evoca a sensao de desamparo experimentada em alguns estados onricos. Em certa tarde quente de vero, caminhava eu pelas ruas desertas de uma cidade provinciana na Itlia, quando me encontrei num quarteiro sobre cujo carter no poderia ficar em dvida por muito tempo. S se viam mulheres pintadas nas janelas das pequenas casas, e apressei-me a deixar a estreita rua na esquina seguinte. Mas, depois de haver vagado algum tempo sem perguntar o meu caminho, encontrei-me subitamente de volta mesma rua, onde a minha presena comeava agora a despertar ateno. Afastei-me apressadamente uma vez mais, apenas para chegar, por meio de outro dtour, mesma rua pela terceira vez. Agora, no entanto, sobreveio-me uma sensao que s posso descrever como estranha, e alegrei-me bastante por encontrar-me de volta piazza que deixara pouco antes, sem quaisquer outras viagens de descoberta. Outras situaes, que tm em comum com a minha aventura um retorno involuntrio da mesma situao, as quais, porm, dela diferem radicalmente em outros aspectos, resultam tambm na mesma sensao de desamparo e de estranheza. Assim, por exemplo, quando, surpreendido talvez por um nevoeiro, algum perde o caminho numa floresta da montanha, cada tentativa para encontrar o caminho marcado ou familiar pode levar a pessoa de volta, por muitas e muitas vezes, a um nico e mesmo ponto, que pode ser identificado por algum marco particular. Ou a pessoa pode vagar numa sala escura e desconhecida, procurando a porta ou o interruptor de luz, e esbarrar, vez aps vez, com a mesma pea de mobilirio conquanto seja verdade que Mark Twain conseguiu, com extravagante exagero, transformar essa ltima situao em algo irresistivelmente cmico.

Se tomamos outro tipo de coisas, fcil verificar que tambm apenas esse fator de repetio involuntria que cerca o que, de outra forma, seria bastante inocente, de uma atmosfera estranha, e que nos impe a idia de algo fatdico e inescapvel, quando, em caso contrrio, teramos apenas falado de sorte. Naturalmente, por exemplo, no damos importncia ao fato quando entregamos um sobretudo e recebemos do guarda-roupa um tquete com o nmero, digamos, 62; ou quando descobrimos que a nossa cabine num navio tem esse nmero. Mas a impresso alterada se dois eventos, cada qual independente em si, ocorrem prximos: se nos deparamos com o nmero 62 diversas vezes no mesmo dia, ou se comeamos a perceber que tudo o que tem nmero endereos, quartos de hotel, compartimentos em trens tem invariavelmente o mesmo, ou, em todo caso, um que contm os mesmos algarismos. Sentimos que isso estranho. E, a no ser que o indivduo seja totalmente impermevel ao engodo da superstio, ficar tentado a atribuir um significado secreto a essa ocorrncia obstinada de um nmero; entende-lo- talvez como uma indicao do perodo de vida a ele designado. Ou suponha-se algum empenhado em ler as obras do famoso fisilogo Hering, e num espao de poucos dias recebe duas cartas, de dois diferentes pases, cada qual de uma pessoa chamada Hering, embora esse leitor de fisiologia jamais tenha tido contato com qualquer pessoa chamada Hering. No h muito tempo um inventivo cientista (Kammerer, 1919) tentou reduzir as coincidncias dessa espcie a determinadas leis, privando-as assim do seu estranho efeito. No vou arriscar-me a decidir se ele foi ou no bem-sucedido.

O modo com que exatamente podemos atribuir psicologia infantil o estranho efeito de semelhantes ocorrncias, uma questo que posso tocar apenas tangencialmente nestas pginas; e devo referir ao leitor um outro trabalho, j concludo no qual o problema foi colocado em detalhes, mas numa relao diferente. Pois possvel reconhecer, na mente inconsciente, a predominncia de uma compulso repetio, procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente prpria natureza dos instintos uma compulso poderosa o bastante para prevalecer sobre o princpio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu carter demonaco, e ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianas pequenas; uma compulso que responsvel, tambm, por uma parte do rumo tomado pelas anlises de pacientes neurticos. Todas essas consideraes preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta ntima compulso repetio percebido como estranho.

Agora, no entanto, tempo de deixarmos esses aspectos do problema, que, em todo caso, so difceis de julgar, e procurarmos alguns exemplos inegveis do estranho, na esperana de que uma anlise destes decida se nossa hiptese vlida.

Na histria de O Anel de Polcrates, o rei do Egito afasta-se horrorizado do seu anfitrio, Polcrates, porque v que cada desejo do seu amigo imediatamente satisfeito, cada cuidado seu prontamente anulado por um amvel destino. O anfitrio tornou-se estranho para ele. A sua prpria explicao, de que tambm o homem feliz tem que temer a inveja dos deuses, parece-nos obscura; o seu significado est dissimulado em linguagem mitolgica. Voltar-nos-emos, portanto, para um outro exemplo, em cenrio menos grandioso. No caso clnico de um neurtico obsessivo, descrevi como o paciente ficou certa vez num estabelecimento para tratamento hidroptico e muito se beneficiou disso. Teve o bom senso, no entanto, de atribuir a sua melhora no s propriedades teraputicas da gua, mas situao do seu quarto, que ficava exatamente ao lado do de uma enfermeira muito obsequiosa. Assim, na sua segunda visita ao estabelecimento, pediu o mesmo quarto, mas disseram-lhe que j estava ocupado por um senhor de idade, ao que ele deu vazo ao seu aborrecimento com as palavras: Quero que ele caia morto por causa disso. Duas semanas depois o velho realmente teve um derrame. O meu paciente considerou o fato uma experincia estranha. A impresso de estranheza teria sido ainda mais forte se menos tempo houvesse passado entre as duas palavras e o infeliz evento, ou se tivesse sido capaz de apresentar inumerveis coincidncias semelhantes. O fato que no teve dificuldades para exibir coincidncias dessa espcie; mas, ento, no apenas ele, mas tambm todos os neurticos obsessivos que observei, conseguiram relatar experincias anlogas. Jamais se surpreendem quando invariavelmente se chocam com algum em quem justamente acabam de pensar, talvez pela primeira vez em muito tempo. Se dizem certo dia H muito tempo que no tenho notcias de fulano, estaro certos de receber uma carta desse fulano na manh seguinte, e raramente ocorrer um acidente ou uma morte sem que isto lhes tenha passado pela cabea pouco antes. Tm o hbito de referir-se a esse estado de coisas da maneira mais modesta, dizendo que tm pressentimentos que geralmente se tornam realidade.

Uma das mais estranhas e difundidas formas de superstio o medo do mau-olhado, que foi exaustivamente estudado por um oculista de Hamburgo, Seligmann (1910-11). Parece jamais ter havido qualquer dvida quanto origem desse medo. Quem quer que possua algo que seja a um s tempo valioso e frgil, tem medo da inveja de outras pessoas, na medida em que projeta nelas a inveja que teria sentido em seu lugar. Um sentimento como este trai-se por um olhar, muito embora no seja posto em palavras; e quando um homem se destaca devido a atributos visveis, e particularmente atributos no atraentes, as outras pessoas esto prontas a acreditar que a sua inveja se eleva a um grau de intensidade maior do que o habitual, e que essa intensidade a converter em ao efetiva. Assim, o que temido uma inteno secreta de fazer mal, e determinados sinais so interpretados como se aquela inteno tivesse o poder necessrio s suas ordens.

Esse ltimos exemplos do estranho devem ser referidos ao princpio que denominei onipotncia de pensamento, tomando o nome de uma expresso usada por um dos meus pacientes. E agora encontramo-nos em terreno familiar. A nossa anlise de exemplos do estranho reconduziu-nos antiga concepo animista do universo. Caracterizava-se esta pela idia de que o mundo era povoado por espritos dos seres humanos; pela supervalorizao narcsica, do sujeito, de seus prprios processos mentais, pela crena na onipotncia dos pensamentos e a tcnica de magia baseada nessa crena; pela atribuio, a vrias pessoas e coisas externas, de poderes mgicos cuidadosamente graduados, ou mana; bem como por todas as outras criaes, com a ajuda das quais o homem, no irrestrito narcisismo desse estdio de desenvolvimento, empenhou-se em desviar as proibies manifestas da realidade. como se cada um de ns houvesse atravessado uma fase de desenvolvimento individual correspondente a esse estdio animista dos homens primitivos, como se ningum houvesse passado por essa fase sem preservar certos resduos e traos dela, que so ainda capazes de se manifestar, e que tudo aquilo que agora nos surpreende como estranho satisfaz a condio de tocar aqueles resduos de atividade mental animista dentro de ns e dar-lhes expresso.Neste ponto vou expor duas consideraes que, penso eu, contm a essncia deste breve estudo. Em primeiro lugar, se a teoria psicanaltica est certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espcie, transforma-se, se reprimido, em ansiedade, ento, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria ento o estranho; e deve ser indiferente a questo de saber se o que estranho era, em si, originalmente assustador ou se trazia algum outro afeto. Em segundo lugar, se essa, na verdade, a natureza secreta do estranho, pode-se compreender por que o uso lingstico estendeu das Heimliche [homely (domstico, familiar)] para o seu oposto, das Unheimliche (ver em [1]); pois esse estranho no nada novo ou alheio, porm algo que familiar e h muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta atravs do processo da represso. Essa referncia ao fator da represso permite-nos, ademais, compreender a definio de Schelling [ver em [1]] do estranho como algo que deveria ter permanecido oculto mas veio luz.

Resta-nos apenas comprovar a nossa nova hiptese em mais um ou dois exemplos do estranho.

Muitas pessoas experimentam a sensao, em seu mais alto grau, em relao morte e aos cadveres, ao retorno dos mortos e a espritos e fantasmas. Como vimos [ver em [1]], algumas lnguas em uso atualmente s podem traduzir a expresso alem uma casa unheimlich por uma casa assombrada. De fato, podamos ter comeado nossa investigao com esse exemplo, talvez o mais impressionante de todos, de algo estranho, mas abstivemo-nos de o fazer, porque o estranho nesse exemplo est por demais miscigenado ao que puramente horrvel, e em parte encoberto por ele. Dificilmente existe outra questo, no entanto, em que as nossas idias e sentimentos tenham mudado to pouco desde os primrdios dos tempos, e na qual formas rejeitadas tenham sido to completamente preservadas sob escasso disfarce, como a nossa relao com a morte. Duas coisas contam para o nosso conservadorismo: a fora da nossa reao emocional original morte e a insuficincia do nosso conhecimento cientfico a respeito dela. A biologia no conseguiu ainda responder se a morte o destino inevitvel de todo ser vivo ou se apenas um evento regular, mas ainda assim talvez evitvel, da vida. verdade que a afirmao Todos os homens so mortais mostrada nos manuais de lgica como exemplo de uma proposio geral; mas nenhum ser humano realmente a compreende, e o nosso inconsciente tem to pouco uso hoje, como sempre teve, para a idia da sua prpria mortalidade. As religies continuam a discutir a importncia do fato inegvel da morte individual e a postular uma vida aps a morte; os governos civis ainda acreditam que no podem manter a ordem moral entre os vivos, se no sustentam a perspectiva de uma vida melhor no futuro como recompensa pela existncia mundana. Nas nossas grandes cidades, anunciam-se conferncias que tentam dizer-nos como entrar em contato com as almas mais capazes e penetrantes mentes entre os nossos homens de cincia chegaram concluso, especialmente perto do final da vida, de que um contato dessa espcie no impossvel. Uma vez que quase todos ns ainda pensamos como selvagens acerca desse tpico, no motivo para surpresa o fato de que o primitivo medo da morte ainda to intenso dentro de ns e est sempre pronto a vir superfcie por qualquer provocao. muito provvel que o nosso medo ainda implique na velha crena de que o morto torna-se inimigo do seu sobrevivente e procura lev-lo para partilhar com ele a sua nova existncia. Considerando a nossa inalterada atitude em relao morte, poderamos, antes, perguntar o que aconteceu represso, que a condio necessria de um sentimento primitivo que retorna em forma de algo estranho. A represso, porm, tambm est presente. Todas as pessoas supostamente educadas, cessaram oficialmente de acreditar que os mortos podem tornar-se visveis como espritos, e tornaram tais aparies dependentes de condies improvveis e remotas; ademais, a atitude emocional dessas pessoas para com os seus mortos, que j foi uma atitude altamente ambgua e ambivalente, foi, nos estratos mais elevados da mente, reduzida a um sentimento unilateral de piedade.

Agora temos apenas algumas observaes a acrescentar pois o animismo, a magia e a bruxaria, a onipotncia dos pensamentos, a atitude de homem para com a morte, a repetio involuntria e o complexo de castrao compreendem praticamente todos os fatores que transformam algo assustador em algo estranho.

Tambm podemos falar de uma pessoa viva como estranha, e o fazemos quando lhe atribumos intenes maldosas. Mas no tudo; alm disso, devemos sentir que suas intenes de nos prejudicar sero levadas a cabo com o auxlio de poderes especiais. Um bom exemplo disso o Gettatore, aquela estranha figura de superstio romntica que Schaeffer, com sentimento potico intuitivo e profunda compreenso psicanaltica, transformou em personagem simptica no seu Josef Montfort. Mas a questo desses poderes secretos leva-nos outra vez de volta ao reino do animismo. A piedosa Grethen tinha a intuio de que Mefistfeles possua poderes secretos dessa natureza que o tornaram to estranho para ela.

Sie fhlt dass ich ganz sicher ein Genie,Vielleicht sogar der Teufel bin.

O efeito estranho da epilepsia e da loucura tem a mesma origem. O leigo v nelas a ao de foras previamente insuspeitadas em seus semelhantes, mas ao mesmo tempo est vagamente consciente dessas foras em remotas regies do seu prprio ser. A Idade Mdia atribua, com absoluta coerncia, todas essas doenas influncia de demnios e, nisso, a sua psicologia era quase correta. Na verdade, no ficaria surpreso em ouvir que a psicanlise, que se preocupa em revelar essas foras ocultas, tornou-se assim estranha para muitas pessoas, por essa mesma razo. Houve um caso, aps haver tido xito embora no muito rapidamente na cura de uma moa que fora invlida por muitos anos, em que ouvi essa opinio expressa pela me da paciente, muito depois da sua recuperao.

Membros arrancados, uma cabea decepada, mo cortada pelo pulso, como num conto fantstico de Hauff, ps que danam por si prprios, como no livro de Schaeffer que mencionei acima todas essas coisas tm algo peculiarmente estranho a respeito delas, particularmente quando, como no ltimo exemplo, mostram-se, alm do mais, capazes de atividade independente. Como j sabemos, essa espcie de estranheza origina-se da sua proximidade ao complexo de castrao. Para algumas pessoas, a idia de ser enterrado vivo por engano a coisa mais estranha de todas. Ainda assim, a psicanlise nos ensinou que essa fantasia assustadora apenas uma transformao de outra fantasia que originalmente nada tinha em absoluto de aterrorizador, mas caracterizava-se por uma certa lascvia quero dizer, a fantasia da existncia intra-uterina.

H mais um ponto de aplicao geral que gostaria de acrescentar, embora, estritamente falando, tenha sido includo no que j foi dito acerca do animismo e dos modos de ao do aparato mental que foram superados; mas penso que merece destaque especial. Refiro-me a que um estranho efeito se apresenta quando se extingue a distino entre imaginao e realidade, como quando algo que at ento considervamos imaginrio surge diante de ns na realidade, ou quando um smbolo assume as plenas funes da coisa que simboliza, e assim por diante. esse fator que contribui no pouco para o estranho efeito ligado s prticas mgicas. Nele, o elemento infantil, que tambm domina a mente dos neurticos, a superenfatizao da realidade psquica em comparao com a realidade material um aspecto estreitamente ligado crena na onipotncia dos pensamentos. No meio do isolamento do perodo de guerra, caiu em minhas mos um nmero da revista inglesa Strand Magazine; e, entre outras matrias algo redundantes, li uma histria sobre um jovem casal que se muda para uma casa mobiliada onde h uma mesa de forma curiosa, com entalhes de crocodilos na sua superfcie. No fim da tarde um odor intolervel e bastante especfico comea a impregnar a casa; eles tropeam em algo no escuro; parece-lhes verem uma forma vaga deslizando sobre as escadas para resumir, d-se a entender que a presena da mesa faz com que crocodilos fantasmas assombrem a casa, ou que os monstros de madeira adquirem vida no escuro, ou alguma coisa no gnero. Era uma histria bastante ingnua, mas o estranho efeito que produzia era notvel.

Para encerrar esta coletnea de exemplos, que certamente no est completa, vou relatar um outro, tirado da experincia psicanaltica; se no se baseia em mera coincidncia, fornece uma bela confirmao da nossa teoria do estranho. Acontece com freqncia que os neurticos do sexo masculino declaram que sentem haver algo estranho no rgo genital feminino. Esse lugar unheimlich, no entanto, a entrada para o antigo Heim [lar] de todos os seres humanos, para o lugar onde cada um de ns viveu certa vez, no princpio. H um gracejo que diz O amor a saudade de casa; e sempre que um homem sonha com um lugar ou um pas e diz para si mesmo, enquanto ainda est sonhando: este lugar -me familiar, estive aqui antes, podemos interpretar o lugar como sendo os genitais da sua me ou o seu corpo. Nesse caso, tambm, o unheimlich o que uma vez foi heimisch, familiar; o prefixo un [in-] o sinal da represso.

III

No decorrer desta exposio, o leitor ter sentido algumas dvidas surgirem em sua mente; e teremos agora oportunidade de reuni-las e de exp-las.

Pode ser verdade que o estranho [unheimlich] seja algo que secretamente familiar [heimlich-heimisch], que foi submetido represso e depois voltou, e que tudo aquilo que estranho satisfaz essa condio. A escolha do material, com essa base, porm, no nos permite resolver o problema do estranho. Porque a nossa proposta claramente no conversvel. Nem tudo o que preenche essa condio nem tudo o que evoca desejos reprimidos e modos superados de pensamento, que pertencem pr-histria do indivduo e da raa por causa disso estranho.

Nem esconderemos o fato de que, para quase cada exemplo aduzido em apoio da nossa hiptese, pode-se encontrar outro que a contradiz. A histria da mo decepada no conto de Hauff [ver em [1]] certamente tem um estranho efeito, e podemos atribuir esse efeito ao complexo de castrao; contudo, a maioria dos leitores provavelmente concordar comigo em julgar que nenhum trao de estranheza provocado pela histria de Herdoto do tesouro de Rhampsinitus, na qual o chefe dos ladres, a quem a princesa tenta segurar pela mo, deixa-lhe em lugar da sua prpria, a mo decepada do irmo dele. Uma vez mais, a pronta realizao dos desejos do Polcrates [ver em [1]] afeta-nos indubitavelmente da mesma maneira que afetou o rei do Egito; ainda assim, as nossas prprias histrias de fadas esto abarrotadas de exemplos de realizaes instantneas de desejos, que no produzem qualquer efeito estranho ou assustador. Na histria de Os Trs Desejos, a mulher tentada pelo apetitoso aroma de uma salsicha a desejar possuir tambm uma, e num instante a salsicha surge num prato diante dela. Contrariado pela sofreguido da mulher, o marido deseja que a salsicha se lhe pendure no nariz. E l ela fica, pendendo do nariz da mulher. Tudo isso surpreendente, mas de modo algum estranho, amedrontador. Os contos de fadas adotam muito francamente o ponto de vista animista da onipotncia dos pensamentos de desejos, e mesmo assim no consigo imaginar qualquer histria de fadas genuna que tenha em si algo de estranho. Ficamos sabendo que h estranheza no mais alto grau quando um objeto inanimado um quadro ou uma boneca adquire vida; no obstante, nas histrias de Hans Christian Andersen, os utenslios domsticos, a moblia e os soldados de chumbo so vivos e, ainda assim, nada poderia estar mais longe do estranho. E dificilmente consideraramos estranho o fato de que a bela esttua de Pigmalio adquire vida.

A morte aparente e a reanimao dos mortos tm sido representadas como temas dos mais estranhos. Tambm as coisas desse gnero so, contudo, muito comuns em histrias de fadas. Quem teria a ousadia de dizer que estranho, por exemplo, quando Branca de Neve abre os olhos uma vez mais? E a ressurreio dos mortos em relatos de milagres, como no Novo Testamento, traz tona sentimentos de forma alguma relacionadas com o estranho. Ento, tambm o tema que alcana um efeito indubitavelmente estranho, a repetio involuntria da mesma coisa, serve outros propsitos, bastante diferentes, numa outra categoria de casos. J deparamos com um exemplo [ver em [1]] no qual empregado para evocar o sentimento do cmico; e poderamos multiplicar os exemplos desse tipo. Ou, por outro lado, funciona como um meio de nfase, e assim por diante. E, uma vez mais: qual a origem do efeito estranho do silncio, da escurido e da solido? Esses fatores no assinalam o papel desempenhado pelo perigo na gnese daquilo que estranho, apesar de que, no caso das crianas, esses mesmos fatores so os que determinam mais freqentemente a expresso de medo [em vez de estranheza]? E, afinal de contas, estaremos justificados ao ignorar inteiramente a incerteza intelectual como um fator, tendo admitido a sua importncia em relao morte? [ver em [1] e [2].]

evidente, portanto, que devemos estar preparados para admitir existirem outros elementos, alm daqueles que estabelecemos at aqui, que determinam a criao de sensaes estranhas. Poderamos dizer que esses resultados preliminares satisfizeram o interesse psicanaltico pelo problema do estranho, e que aquilo que resta pede provavelmente uma investigao esttica. Isto, porm, seria abrir a porta a dvidas acerca de qual seja exatamente o valor da nossa argumentao geral, de que o estranho provm de algo familiar que foi reprimido.

Descobrimos um ponto que nos pode ajudar a resolver essas incertezas: quase todos os exemplos que contradizem a nossa hiptese so tomados ao domnio da fico, da literatura imaginativa. Isto sugere que devemos distinguir entre o estranho que realmente experimentamos e o que simplesmente visualizamos ou sobre o qual lemos.

Aquilo que experimentado como estranho est muito mais simplesmente condicionado, mas compreende muito menos exemplos. Descobriremos, acho eu, que se ajusta perfeitamente nossa tentativa de soluo, e pode-se atribuir, sem exceo, a algo familiar que foi reprimido. Mas, tambm aqui, devemos fazer uma certa diferenciao, importante e psicologicamente significativa, no nosso material, a qual melhor se elucida se nos voltamos a exemplos adequados.

Tomemos o estranho ligado onipotncia de pensamentos, pronta realizao de desejos, a malficos poderes secretos e ao retorno dos mortos. A condio sob a qual se origina, aqui, a sensao de estranheza, inequvoca. Ns ou os nossos primitivos antepassados acreditamos um dia que essas possibilidades eram realidades, e estvamos convictos de que realmente aconteciam. Hoje em dia no mais acreditamos nelas, superamos esses modos de pensamento; mas no nos sentimos muito seguros de nossas novas crenas, e as antigas existem ainda dentro de ns, prontas para se apoderarem de qualquer confirmao. To logo acontece realmente em nossas vidas algo que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenas, sentimos a sensao do estranho; como se estivssemos raciocinando mais ou menos assim: Ento, afinal de contas, verdade que se pode matar uma pessoa com o mero desejo da sua morte! ou Ento os mortos continuavam mesmo a viver e aparecem no palco de suas antigas atividades!, e assim por diante. De forma inversa, qualquer um que se tenha livrado, finalmente, de modo completo, de crenas animistas ser insensvel a esse tipo de sentimento estranho. As mais notveis coincidncias de desejo e realizao, a mais misteriosa repetio de experincias similares em determinado lugar ou em determinada data, as mais ilusrias vises e os mais suspeitos rudos nada disso o desconcertar ou despertar a espcie de medo que pode ser descrita como um medo de algo estranho. A coisa toda simplesmente uma questo de teste de realidade, uma questo da realidade material dos fenmenos.

A situao diferente quando o estranho provm de complexos infantis reprimidos, do complexo de castrao, das fantasias de estar no tero etc.; mas as experincias que provocam esse tipo de sentimento estranho no ocorrem com muita freqncia na vida real. O estranho que provm da experincia real pertence quase sempre ao primeiro grupo [o grupo descrito no pargrafo anterior]. No entanto, a distino entre os dois teoricamente muito importante. Quando o estranho se origina de complexos infantis, a questo da realidade material no surge; o seu lugar tomado pela realidade psquica. Implica numa represso real de algum contedo de pensamento e num retorno desse contedo reprimido, no num cessar da crena na realidade de tal contedo. Poderamos dizer que, num caso, o que fora reprimido um determinado contedo ideativo, e, no outro, a sua realidade (material). Esta ltima frase, porm, estende o termo represso para alm do seu legtimo significado. Seria mais correto levar em conta uma distino psicolgica que pode ser detectada aqui, e dizer que as crenas animistas das pessoas civilizadas esto num estado de haver sido (em maior ou menor medida) superadas [preferentemente a reprimidas]. A nossa concluso podia, ento, afirmar-se assim: uma experincia estranha ocorre quando os complexos infantis que haviam sido reprimidos revivem uma vez mais por meio de alguma impresso, ou quando as crenas primitivas que foram superadas parecem outra vez confirmar-se. Finalmente, no devemos deixar que nossa predileo por solues planas e exposio lcida nos cegue diante do fato de que essas duas categorias de experincia estranha nem sempre so nitidamente distinguveis. Quando consideramos que as crenas primitivas relacionam-se da forma mais ntima com os complexos infantis e, na verdade, baseiam-se neles, no nos surpreenderemos muito ao descobrir que a distino muitas vezes nebulosa.

O estranho, tal como descrito na literatura, em histrias e criaes fictcias, merece na verdade uma exposio em separado. Acima de tudo, um ramo muito mais frtil do que o estranho na vida real, pois contm a totalidade deste ltimo e algo mais alm disso, algo que no pode ser encontrado na vida real. O contraste entre o que foi reprimido e o que foi superado no pode ser transposto para o estranho em fico sem modificaes profundas; pois o reino da fantasia depende, para seu efeito, do fato de que o seu contedo no se submete ao teste de realidade. O resultado algo paradoxal que em primeiro lugar, muito daquilo que no estranho em fico s-lo-ia se acontecesse na vida real; e, em segundo lugar, que existem muito mais meios de criar efeitos estranhos na fico, do que na vida real.

O escritor imaginativo tem, entre muitas outras, a liberdade de poder escolher o seu mundo de representao, de modo que este possa ou coincidir com as realidades que nos so familiares, ou afastar-se delas o quanto quiser. Ns aceitamos as suas regras em qualquer dos casos. Nos contos de fadas, por exemplo, o mundo da realidade deixado de lado desde o princpio, e o sistema animista de crenas francamente adotado. A realizao de desejos, os poderes secretos, a onipotncia de pensamentos, a animao de objetos inanimados, todos os elementos to comuns em histrias de fadas, no podem aqui exercer uma influncia estranha; pois, como aprendemos, esse sentimento no pode despertar, a no ser que haja um conflito de julgamento quanto a saber que coisas que foram superadas e so consideradas incrveis no possam, afinal de contas, ser possveis; e esse problema eliminado desde o incio pelos postulados do mundo dos contos de fadas. Assim, verificamos que as histrias de fadas, que nos proporcionaram a maioria das contradies em relao nossa hiptese do estranho, confirmam a primeira parte da nossa proposta de que, no domnio da fico, muitas dentre as coisas que no so estranhas o seriam se acontecessem na vida real. No caso dessas histrias, h outros fatores contribuintes, sobre os quais falaremos depois, resumidamente.

O escritor criativo pode tambm escolher um cenrio que, embora menos imaginrio do que os dos contos de fada, ainda assim difere do mundo real por admitir seres espirituais superiores, tais como espritos demonacos ou fantasmas dos mortos. Na medida em que permanecem dentro do seu cenrio de realidade potica, essas figuras perdem qualquer estranheza que possam possuir. As almas no Inferno de Dante, ou as aparies sobrenaturais no Hamlet, Macbeth ou no Jlio Csar, de Shakespeare, podem ser bastante obscuras e terrveis, mas no so mais estranhas realmente do que o mundo jovial dos deuses de Homero. Adaptamos nosso julgamento realidade imaginria que nos imposta pelo escritor, e consideramos as almas, os espritos e os fantasmas como se a existncia deles tivesse a mesma validade que a nossa prpria existncia tem na realidade material. Tambm nesse caso evitamos qualquer vestgio do estranho.

A situao altera-se to logo o escritor pretenda mover-se no mundo da realidade comum. Nesse caso, ele aceita tambm todas as condies que operam para produzir sentimentos estranhos na vida real; e tudo o que teria um efeito estranho, na realidade, o tem na sua histria. Nesse caso, porm, ele pode at aumentar o seu efeito e multiplic-lo, muito alm do que poderia acontecer na realidade, fazendo emergir eventos que nunca, ou muito raramente, acontecem de fato. Ao faz-lo, trai, num certo sentido, a superstio que ostensivamente superamos; ele nos ilude quando promete dar-nos a pura verdade e, no final, excede essa verdade. Reagimos s suas invenes como teramos reagido diante de experincias reais; quando percebemos o truque, tarde demais, e o autor j alcanou o seu objetivo. Deve-se acrescentar, porm, que o seu xito no genuno. Conservamos um sentimento de insatisfao, uma espcie de rancor contra o engodo assim obtido. Notei isto particularmente aps a leitura de Die Weissagung [A Profecia], de Schnitzler, e outras histrias semelhantes, que flertam com o sobrenatural. No entanto, o escritor tem mais um meio que pode utilizar para evitar a nossa recalcitrncia e, ao mesmo tempo, melhorar as suas chances de xito. Pode manter-nos s escuras, por muito tempo, quanto natureza exata das pressuposies em que se baseia o mundo sobre o qual escreve; ou pode evitar, astuta e engenhosamente, qualquer informao definida sobre o problema, at o fim. Falando de um modo geral, contudo, encontramos confirmao da segunda parte da nossa proposta de que a fico oferece mais oportunidades para criar sensaes estranhas do que aquelas que so possveis na vida real.

Estritamente falando, todas essas complicaes relacionam-se apenas com aquela categoria do estranho que provm de formas de pensamento que foram superadas, a categoria que provm de complexos reprimidos mais resistente e permanece to poderosa na fico como na experincia real, submetendo-se a uma exceo [ver em [1]]. O estranho que pertence primeira categoria a que procede de formas de pensamento que foram superadas conserva o seu carter no apenas na experincia, mas tambm na fico, na medida em que o cenrio seja de realidade material; quando se lhe d, porm, um cenrio artificial e arbitrrio na fico, pode perder aquele carter.

Deixamos claramente de esgotar as possibilidades de licena potica e os privilgios desfrutados pelos ficcionistas para evocar ou para excluir um sentimento estranho. De um modo geral, adotamos uma invarivel atitude passiva em relao experincia real e submetendo-nos influncia do nosso ambiente psquico. Mas o ficcionista tem um poder peculiarmente diretivo sobre ns; por meio do estado de esprito em que nos pode colocar, ele consegue guiar a corrente das nossas emoes, repres-la numa direo e faz-la fluir em outra, e obtm com freqncia uma grande variedade de efeitos a partir do mesmo material. Nada disso verdade e, sem dvida, h muito que vem sendo levado em considerao pelos que estudam esttica. Derivamos para entrar nesse campo de pesquisa, meio involuntariamente, pela tentao de explicar determinados exemplos que contradizem a nossa teoria das causas do estranho. Por conseguinte, voltaremos agora a examinar alguns desses exemplos.

J perguntamos [ver em [1]] por que que a mo decepada na histria do tesouro de Rhampsinitus no tem o estranho efeito que a mo cortada tem na histria de Hauff. A questo parece ter crescido em importncia, agora que reconhecemos que a categoria de estranho oriunda de complexos reprimidos a mais resistente das duas. A resposta fcil. Na histria de Herdoto, os nossos pensamentos esto muito mais concentrados na astcia superior do chefe dos ladres, do que nos sentimentos da princesa. A princesa pode muito bem ter tido uma sensao estranha, na verdade provavelmente caiu desmaiada; mas ns no temos tal sensao, pois nos colocamos no lugar do ladro, e no no lugar dela. Na farsa de Nestroy intitulada Der Zerrissene [O Homem Dilacerado], utilizado outro meio para evitar qualquer impresso estranha na cena em que o fugitivo, convencido de que um assassino, levanta um alapo atrs do outro, e de cada vez v o que julga ser o fantasma da sua vtima erguendo-se do alapo. Ele grita com desespero Mas eu matei apenas um homem. Por que esta assombrosa multiplicao? Sabemos o que aconteceu antes dessa cena e no partilhamos do seu erro, de modo que aquilo que deve ser estranho para ele tem sobre ns um efeito irresistivelmente cmico. At mesmo um fantasma real, como O Fantasma de Canterville de Oscar Wilde, perde todo o poder de pelo menos despertar em ns sentimentos repulsivos to logo o autor comea a divertir-se, fazendo ironias a respeito do fantasma e permitindo que se tomem liberdades com ele. Assim, vemos o quanto os efeitos emocionais podem ser independentes do verdadeiro assunto no mundo da fico. Nas histrias de fadas, os sentimentos de medo incluindo, portanto, as sensaes estranhas so inteiramente eliminados. Ns compreendemos isso, e por essa razo que ignoramos quaisquer oportunidades que encontremos nelas para desenvolver tais sentimentos.

No que diz respeito aos fatores do silncio, da solido e da escurido [ver em [1] e [2]], podemos to-somente dizer que so realmente elementos que participam da formao da ansiedade infantil, elementos dos quais a maioria dos seres humanos jamais se libertou inteiramente. Em outro trabalho, esse problema foi discutido do ponto de vista psicanaltico.