sigmund freud um alemão e seus dissabores

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SIGMUND FREUD: UM ALEMÃO E SEUS DISSABORES Peter Gay (titulo) Franquea e !e"re#o $ue% !a&e a'ena! u%a oi!a a re!'eito #e Freu# !a&e #e al"o ,er#a#eiro- Sa&e que Si"%un# Freu# riou to#a a !ua teoria e #e!e a 'artir #o tra&al.o o% %ul.ere! neur/ti a! 0u#ia! #a la!!e %+#i i!!o tanto a teoria o%o a tera'ia !*o ,1li#a! a'ena! 'ara ela! 2 reali#a#e o ontato #e Freu# o% o! ,1rio! ti'o! #e !tr #i3eren ia#o: e%&ora to#o! o! !eu! 'a iente! 3o!!e% 'or #e3ini4*o era% .o%en! ari!to rata! ri!t*o! e!tran"eiro!- O anali!an#o %a ele %e!%o on!titui u% at1lo"o #e e5 e46e!- N*o era natural%ente o%o 0u#eu era %uito in#i3erente e ,ienen!e !/ 'or a#o4*o- De'oi! Mun#ial Freu# on#uiu %ai! an1li!e! e% in"l8! #o que e% ale%*o lo %ai! 'or ne e!!i#a#e #o que 'or o'4*o 2 e% %eio 9! #i3i ul#a#e! "uerra #i3i ul#a#e! 2#a ;u!tria e #ele 're i!a,a #e!e!'era#a%ent i!!o re,ela al"o !o&re a 'o!!<,el a'li a4*o #a '!i an1li!e 'ara Pa"- = al+% #aquele <r ulo e!'e ialia#o e alta%ente !eleto 2 &ur"u8! 0 ,ienen!e 2 que l.e i%'in"iu a len#a-> O ri o e ,aria#o re'ert/rio i%'ortante7 i%'orta n*o !/ 'orque !u!tenta !ua ale"a4*o #e que '!i olo"ia "eral o%o ta%&+% 'orque a0u#a a !ituar Freu# 3a%iliar %a! 9! ,ee! !ur'reen#ente a que .a%a%o! #e ultura ale A i%'li a4*o %ai! en"ano!a #e!!e %ito %al in3or%a#o !o&re o! + a on,i 4*o #e que a '!i an1li!e + al"o ara teri!ti a%ente ine! a'a,el%en ,ienen!e 2 o%o !e Freu# 0a%ai! 'u#e!!e ter 3eito !ua! #e! o&erta! %eno! e% Berli%- ?iena !e"un#o no! #ie% era u%a i#a#e ,i&rante !e5o e Freu# a'ro,eitan#o e!!a o'ortuni#a#e @ni a u!ou o 'ri%e !e"un#o- >A ?iena #o 3i% #o !+ ulo I e! re,eu A-C-P- aylor 'al'itante e riati,a- o% total in#e'en#8n ia e% rela4*o ao! no,o e na %@!i a Freu# ela&orou u%a no,a a&or#a"e% #a '!i olo"ia que ali er e! #a %oral e!ta&ele i#a- aylor 'a!!a ent*o ali!tar o%o #e ?iena a 3ilo!o3ia #e Brentano o 'en!a%ento e on %i o #e Boe. e!tu#o! 'ioneiro! #o! !o i/lo"o! au!tr<a o!- A! %ente! era% %ai! que na Ale%an.a a! i#eia! %ai! no,a! e o! e!'<rito! %eno! re!tr !e5ual #e!e%'en.a,a u% 'a'el i%'ortante na at%o!3era: o! a!o! #e

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Autor: Peter Gay

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SIGMUND FREUD: UM ALEMO E SEUS DISSABORESPeter Gay(titulo) Franqueza e segredoQuem sabe apenas uma coisa a respeito de Freud, sabe de algo que no verdadeiro. Sabe que Sigmund Freud criou toda a sua teoria, e desenvolveu sua terapia, a partir do trabalho com mulheres neurticas judias da classe mdia vienense, e que por isso tanto a teoria como a terapia so vlidas apenas para elas - se que so. Na realidade, o contato de Freud com os vrios tipos de stress mental foi bem mais diferenciado: embora todos os seus pacientes fossem, por definio, neurticos, muitos eram homens, aristocratas, cristos, estrangeiros. O analisando mais famoso de Freud - ele mesmo constitui um catlogo de excees. No era, naturalmente, uma mulher; como judeu era muito indiferente, e vienense s por adoo. Depois da Primeira Guerra Mundial, Freud conduziu mais anlises em ingls do que em alemo, e, apesar de faz-lo mais por necessidade do que por opo - em meio s dificuldades econmicas do ps-guerra, dificuldades -da ustria e dele, precisava desesperadamente de moeda forte -, isso revela algo sobre a possvel aplicao da psicanlise paraPag. 2alm daquele crculo especializado e altamente seleto - burgus, judaico, feminino e vienense - que lhe impingiu a lenda.' O rico e variado repertrio de casos de Freud importante; importa no s porque sustenta sua alegao de que propunha uma psicologia geral, como tambm porque ajuda a situar Freud nesse extenso territrio, familiar mas s vezes surpreendente, a que chamamos de cultura alem. A implicao mais enganosa desse mito mal informado sobre os casos de Freud a convico de que a psicanlise algo caracteristicamente, inescapavelmente vienense - como se Freud jamais pudesse ter feito suas descobertas em Munique, muito menos em Berlim. Viena, segundo nos dizem, era uma cidade vibrante de intelecto e de sexo, e Freud, aproveitando essa oportunidade nica, usou o primeiro para explorar o segundo. "'A Viena do fim do sculo XIX", escreveu A.J.P. Taylor, "era uma cidade palpitante e criativa. Com total independncia em relao aos novos movimentos na arte e na msica, Freud elaborou uma nova abordagem da psicologia, que iria abalar os alicerces da moral estabelecida." Taylor passa ento alistar, como prova da criatividade de Viena, a filosofia de Brentano, o pensamento econmico de Boehm-Bawerk e os estudos pioneiros dos socilogos austracos. "As mentes eram mais geis em Viena do que na Alemanha, as ideias mais novas, e os espritos menos restritos." A frivolidade sexual desempenhava um papel importante na atmosfera: os casos de amor, depressa consumados e depressa abandonados, eram, como diz Taylor, "uma especialidade vienense. Neles tinha que entrar o sentimento, juntamente com a cama. OsNotas:1. Hanns Sachs, Freud: MJzslerand Fn"end(1945), passim; Ernest Jones, Tbe Lif andWork ofSigmund Freud, 3vols., (1953-57), lU, capo1,passtm. Embota svezes lhe falte graa de estilo e distncia em relao ao mestre, o Freud de.jones continua indispensvel pelo extenso material, que no se encontra em outro lugar, e por esplndidas informaes "de dentro". [Edio brasileira: A Vida e a Obra de Sigmund Freud, 3vols., Imago, 1989, traduo deJlio Castaon Guimares; h uma verso mais curta da mesma biografia, reduzida - abn'dged - por Lionel Trilling e Steven Marcus: Vida e Obra de Sigmund Freud, Zahar Editores, 3~ed., 1979, traduo de Marco Aurlio de Moura Mattos. O trulo original deste ensaio, "Sigmund Freud: A German and his Discontents'", ~uma pardia de Civilization and its Discontents , ttulo ingls de O Mal-estar na Civilizao, de Freud. N.T.)Pag. 3Casos de amor eram to ligeiros quanto a maior parte das emoes vienenses. O homem sempre sabia que o caso iria terminar, e em geral ficava aliviado quando isso acontecia". O que fazia esses casos to fceis de comear e de romper que em geral as moas eram de classe social inferior dos amantes, "garonetes, balconistas, costureiras, amadoras facilmente disponveis" que, no entender dos jovens da sociedade, ficavam contentes por serem seduzidas e gratas por uma companhia to distinta. Porm, conclui Taylor, "por fim os homens acabavam casando e virando patriarcas, tiranizando a esposa e os filhos. Freud", diz Taylor numa tirada final, "sups muito prontamente que todos os homens eram como os vienenses'"." No parece um fundamento muito slido para uma cincia geral da mente.Esses trechos so representativos de uma vasta literatura. Pode-se objetar que Taylor foi um historiador poltico, e demonstrou uma ignorncia quase hilariante da psicanlise': porm outros autores, mais bem informados, tambm insistiram no carter essencialmente vienense da mente de Freud. Assim, em sua enorme histria da psicologia dinmica, Henri Ellenberger afirma sumariamente, embora sem muitas provas, que "Freud era vienense at a raiz dos cabelos"; chama-Notas:2 Prefcio a My Youlh in Vienna, de' Arthur Schnitzler, trad. Catherine Hutter (1970), xii, xiii. 3. Taylor fez uma resenha da controversa "psicobiografia" de Woodrow Wilson por William Bullit, na qual Freud colaborou: Thomas Woodrow Wilson: A Psychological Study (1967). Segundo ele, "Freud tinha algumas ideias brilhantes, que chamava de 'leis'. Aplicavam-se a qualquer ser humano, vivo ou morto, e no ajudavam muito a explicar por que um indivduo difere de outro. O ponto de partida era o complexo de dipo, Segundo este, pela prpria natureza das coisas todos os rapazes amam a me e odeiam o pai. Vale notar que o prprio dipo estava livre deste complexo. Homem algum se esforou tanto para no matar o pai, e detestava tanto a me que arrancou os olhos quando descobriu que estava casado com ela. Essa analogia defeituosa tpica da maneira descuidada com que Freud operava. Entretanto, aqui ficamos ns com o complexo de dipo. Infelizmente, muitos homens gostam de seus pais, e at mesmo os amam. Isso no surpreende se o pai for simptico, como so muitos pais. Entretanto, segundo Freud isso tem resultados estarrecedores... " Thomas Woodrow Wilson, conclui Taylor, " bem divertido quando se I em pequenas doses" , porm "tedioso depois de algum tempo" , e deixa o historiador com apenas uma pergunta: "Como possvel que algum tenha levado Freud a srio?" "Silliness in Excelsis", The New Statesman and Nation, 12 de maio de 1967, pp.653-54

Pag. 410 de "no-vienense revela uma confuso entre o esteretipo de uma opereta vienense e a realidade histrica"." Carl Schorske, no incio de seu muito citado ensaio' 'Poltica e Parricdio na Interpretao dos Sonhos, de Freud", relata a espirituosa resposta de Freud notcia de que acabava de ser nomeado Ausserordentlicher Professor (Professor Extraordinrio) da Universidade de Viena. Numa carta a seu amigo WilheIm Fliess, de Berlim, Freud qualifica sua promoo como um "triunfo poltico" , e tece fantasias sobre o imenso entusiasmo pblico, o fluxo incessante de buqus e congratulaes, como se Sua Majestade o Imperador acabasse de reconhecer o papel da sexualidade, o Conselho de Ministros tivesse confirmado a interpretao dos sonhos, e o Parlamento aprovado por maioria de dois teros a necessidade do tratamento psicanaltico para a histeria. " uma fantasia alegre" , comenta Schorske, "bem vienense: as autoridades polticas curvam-se a Eros e aos sonhos.") Numa palavra, o nexo entre psicanlise e Viena parece estar acima de qualquer discusso. Entretanto, h um tpico onde' se dividem os historiadores que ligam Freud a Viena, e esse conflito de opinies constitui, como costuma acontecer, um convite ao ceticismo e um caminho para a liberdade de interpretao. Alguns sugerem que a psicanlise tinha de surgir em Viena, e s ali, porque a hipo-Notas:4. Henri F. Ellenberger, The Discovery of the Uncomnscious: The History and Evolution of Dynamic Psychialry (1970), 465, 463. Presunoso e dogmtico, este livro distribui vereditos de aprovao e desaprovao de modo semelhante a um antiquado mestre-escola, embora contenha, inevitavelmente, muitas informaes histricas. 5. Carl E. Schotske, "Policies and Patricide in Freud's lnterpretation of Dreams" , American Historical Review, LXXVIII(1973),32847, p. 328. Embora eu no aceite a sua concluso, aprendi muito com esse ensaio sutil, assim como com outros dois de Schorske, "Politics and the Psyche in fin-de-siecle Vienna: Schnitzler and Hofmannsthal", American Historical Review, LXVI (1961), 930-46; e "Policies in a New Key: An Austrian Triptych" , journal of Modem History, XXXN (1967),343"86,Estes ensaios de Carl E. Schorske foram reunidos num livro, que teve edio brasileira: Viena "Pin-de-Sicle ", Companhia das Letras, S. Paulo, 1988). Para uma nova expresso da tese de que Freud era essencialmente vienense, veja-se de Jerome Bruner, "Psychology and the Image of Man", uma das Herbert Spencer Lectures, em Oxford: "Os escritos de Freud podem ter sido projees, condicionadas pela cultura, da Viena fin-de-siecle. Mas para ele serviram como os sistemas cognitivos sem termos dos quais se podia compreender a significao, simblica dos eventos". The Times Literary Supplement, 17 de dezembro de 1976, p. 1591).Pag.5crisia sexual vigente praticamente clamava por algum que investigasse essa preocupao dominante, embora oculta, que marcava toda a vida interior da cidade. Outros, ao contrrio, afirmam que a psicanlise nasceu em Viena porque ali a franqueza sexual fornecia amplo material a um psiclogo indagador, material mais abundante e mais exposto ali do que em outras cidades." Essas duas afirmaes no podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas todos concordam que Viena na virada do sculo se vangloriava de uma brigada de combatentes da liberdade - um grupo heterogneo, porm com estreitas vinculaes, de libertadores que devem ter inspirado um ao outro de modo relevante: Arthur Schnitzler , Karl Kraus, Ludwig Wittgenstein - e Sigmund Freud. certo que Freud tinha muita conscincia de Viena e que, embora em grau muito menor, Viena tinha conscincia de Freud. Foi ali que ele travou muitas de suas escaramuas cientficas; seus primeiros detratores - mas no seus primeiros admiradores - eram vienenses. Freud admirava Schnitzler muito citado' seu tributo a Schnitzler como "colega" nas pesquisas sobre o "elemento ertico. to subestimado e difamado" -, foi ridicularizado por Kraus, e deu a Wittgenstein motivo para torturadas reflexes." Mas seria precipitado, eNotas:6. O locus classicus para uma descrio da sexualidade e hipocrisia vienense o livro de Stefan Zweig, Die Welt von Gestem: Erinnerungen eines Europers [O Mundo de Ontem: Recordaes de um Europeu] (1944), que animado e no muito analtico. Outro elo suposto igualmente tnue: os dramas de Hugo von Hofmannsthal foram por vezes situados na tradio freudiana. verdade que Hofmannsthal tinha em sua biblioteca as primeiras edies da Interpretao dos Sonhos, de Freud, e de Estudos sobre a Histeria, de Freud e Breuer. Porm, comenta Michad Hamburger, que registra esse detalhe biogrfico, como poeta Hofmannsthal tinha acesso s regies dos impulsos inconscientes por outras vias alm do estudo de Freud; este foi, no mximo, um de seus muitos guias. O prprio Freud teria dito a mesma coisa. (Hamburger, Hugo von Hofmannsthal: Zwei Studien [trad, para o alemo por Klaus Reichert, 1964),87.) 7. Schorske, "Policies and the Psyche", 936. 8. Para detalhes ver, de William M. Johnston, Tbe Austna Mind: An Intellectual and Socid History 1848-1938 (1972), em especial os captulos 15-17; e de-Allan Janik e Stephen Toulmin, Wittgenstein 's Vienna (1973), pp. 63, 64, 75, 77. Como severem meu texto, rejeito a construo de "Viena" desses autores. Mais sbrio o pioneiro esforo de desmascaramento, Vienna,de Ilsa Barca (1966). Um estudo geral muito til sobre um tema crucial, o conflito e a cooperao das naes nos domnios habsburgos, o de Robert A. Kann, The Multinational Empire (1950). O grau dePag. 6tambm errado, creio, concluir que a audcia dos vienenses tenha contagiado Freud, ou que as observaes alheias tenham encurtado ou facilitado em qualquer aspecto sua laboriosa descida aos fundamentos da conduta humana. O que quero demonstrar que Freud vivia muito menos na Viena austraca do que em sua prpria mente; vivia com a tradio positivista internacional, com os tentadores triunfos da arqueologia clssica, com o admirvel e comovente modelo de cientista que foi Jean-Martin Charcot, grande neurologista francs, com sua extensa e gratificante correspondncia, e com as surpresas infinitamente instrutivas da introspeco sistemtica. Como natural, essa introspeco se alimentava - muitas vezes de maneira casual e bem inconsciente - dos materiais que Freud coletava em Viena, de visitas a seu fornecedor de charutos ou de seu costumeiro jogo de cartas, da lenta ascenso pelos degraus acadmicos e de sua experincia com o anti-sernitisrno austraco. Afinal, como muitos de seus primeiros pacientes, Freud se criou em Viena e ali se estabeleceu em carter permanente; a poltica vienense, tantas vezes bizarra, invadia sua conscincia diariamente, ao ler os jornais. Mesmo assim creio que no demais afirmar que essa "Viena" , essa atmosfera peculiar, impalpvel, eltrica, que a tudo impregnava, onde todo mundo conhecia todo mundo que tinha importncia, e todo mundo que era algum funcionava ao mesmo tempo como professor e aluno, num intenso e contnuo seminrio sobre a cultura modernista - essa Viena uma inveno dos historiadores da cultura em busca de explicaes rpidas. Havia, de fato, opulentos sales em Viena, ambientes frteis para novas ideias, novas composies. Os poetas declamavam uns para os outros, os compositores comNotas:isolamento de Freud no mundo acadmico de Viena permanece um assunto controvertido, embora K. R. Eissler demonstre de maneira bem convincente. em seu belicoso5igmllnd Frelld IInd die Wiener Universitt (1966) [5igmllnd Frelld e 11 Universidade de Viena). que a carreira de Freud foi mas lenta do que a de outros acadmicos. Isso no significa. porm. que de no tivesse defensores influentes entre os mdicos que rejeitavam suas ideias psicanalticas; o fato que tinha. h indispensvel a obra de Erna Lesky, Die Wiener medizinische Schule im 19.Jabrbundert (1965) [A Escola mdica de Viena no sculo XIX].Pag.7pareciam aos concertos de seus rivais, os filsofos formavam crculos de trabalho. E alguns mdicos com quem o jovem Freud trabalhou frequentavam essas escolas de cultura; Freud, porm, ia ao teatro cada vez menos, e nunca se tornou habitu dos sales vienenses. Sua Viena era a Viena mdica, e essa raramente frequentava as hospitaleiras manses dos mecenas da cidade." Alm do que, a Viena mdica era austraca s em parte: representava, no final do sculo XIX, um microcosmo do talento cientfico alemo: o fisiologista Ernst Brcke e o clnico Hermann Nothnagel, dois eminentes mdicos que tiveram influncia decisiva sobre Freud, eram alemes que assumiram seus postos em Viena depois de se formar e trabalhar no "norte". Assim, Freud tinha relativamente pouco a ver com aquela "priso"10 que ele por vezes amava e com frequncia odiava, e seu alcance ia alm dela. Sua mente, como veremos, era to vasta e to livre quanto era restrito seu habitat fsico. Berggasse 19, onde Freud morou por quase meio sculo, um despretensioso prdio de apartamentos numa respeitvel rua residencial na zona norte de Viena. No vero de 1891, quando alugou ali um pequeno apartamento, Freud era um jovem neurologista promissor, com ideias pouco ortodoxas e ~m futuro a conquistar. Quando deixou a casa, e tambm a ustria ocupada pelos nazistas, em junho de 1938, "para morrer em liberdade" ,li era um senhor conhecido no mundoNotas:9. George Rosen foi praticamente o nico a notar esse fato; ver seu perceptivo ensaio "Freud and Medicine in Vienna", in Jonathan Miller, ed., Freud: The Man, His World, His lnfluence (1972), pp. 21-39, esp. 23. Muito informativos quanto a esse mundo so o estudo da filha de Meynert, Dora Stocken-Meynert.--theodor-Meynert und seine Zeit: Zur Geistesgeschichte Osterreichs in der zweiten Halfte des 19.Jabrhunderts (1930) [Theodor Meynert e seu Tempo: a Vida Intelectual na ustria na Segunda Metade do Sculo XIX]; Ernst Theodor Brcke, Ernst Brcke (1928); e Siegfried Bernfeld , "Freud's Scientific Beginnings", Amencan Imago , VI (1949), 163-88. 10. Carta de Freud a MaxEitingon de Londres. 8de junho de 1938; citado em lones, Freud, III, 230. 11. Carta de Freud a seu filho Ernst, 12de maio de 1938. A expresso est em ingls. SigJund Freud, Briefe 18731939, selecionadas e editadas por Ernst L. Freud (1960),435. [Existe edio brasileira desta seleo de cartas de Freud: Correspondncia de amor t! outras cartas, Nova Fronteira, Rio, 1982].Pag. 8inteiro, fundador de uma cincia to difundida quanto controversa. Nessa casa Freud encenou muitos dramas silenciosos; as lutas silenciosas e triunfos particulares que marcam a vida de todos os inovadores intelectuais marcaram este inovador mais do que outros. Ali, na Berggasse 19, Freud escreveu a maioria de seus livros e analisou a maioria de seus pacientes; ali formou sua biblioteca, coletou seus objetos de arte, teve encontros com seus associados, criou os filhos e manteve uma volumosa correspondncia, onde ensaiava suas marcantes ideias e impedia que os vrios fios do movimento psicanaltico se emaranhassem ou se desintegrassem por completo. Hoje seu apartamento um museu; uma placa informa o passante que ali "viveu e trabalhou" Sigmund Freud. Essa homenagem parece bastante modesta para um dos descobridores mais decisivos da histria, para o Colombo da mente. A placa tampouco representa uma efuso do orgulho local: foi colocada ali em 1953pela Federao Mundial de Sade Mental. Na verdade, a maior parte do reconhecimento que Freud recebeu em Viena foi obra de estrangeiros: seu busto, hoje na universidade, foi ofertado por Ernest Jones. No h em Viena, em meio a tantas ruas com o nome de seus cidados ilustres, ou ao menos bem conhecidos, nenhuma Rua Freud.12 Os guias de turismo e os folhetos de propaganda insistem, como de praxe, em salvar do esquecimento os vienenses famosos de outrora, porm mal mencionam seu nome. A indiferena pblica, a hostilidade latente, so desanimadoras. Freud, o primeiro psiclogo a mapear as tramas da ambivalncia, tinha nessa cidade material abundante para o exerccio de sentimentos ambivalentes. Viena, ao que parece, reprimiu Freud em larga medida.Mas Freud irreprimvel. Disseminou uma profuso de pistas, ricas e gratificantes, quanto sua maneira de pensar e trabalhar, seus hbitos e averses. Seus aposentos eram umNotas:12. justo notar que por algum tempo, na dcada de 1930, a municipalidade de Viena props dar o nome de Freud Berggasse, sugesto a que o prprio Freud se ops e que os acontecimentos polticos impossibilitaram. Hoje h um conjunto de apartamentos com o nome de Freud no Nono Distrito de Viena, onde de viveu tanto tempo. Jones, Freud, lI, 14, p. 380.Pag. 9museu no sentido figurado - um expressivo depsito de ideias, gostos e convices- muito antes de ser promovido a lugar oficial de peregrinao para psicanalistas e analisados estrangeiros. Seus escritos autobiogrficos so sucintos, porm informativos. Suas cartas so abundantes, cheias de energia e totalmente caractersticas. Melhor ainda, seus trabalhos cientficos nos do esboos de mapas que nos levam sua natureza mais ntima. Considerando o tipo de cincia que criou, no poderiam ser menos do que isso: a psicanalista autobiografia controlada e profunda, e, sendo o primeiro psicanalista obrigado, assim, a utilizar a si mesmo como material -, Freud achou necessrio publicar algumas de suas fantasias mais ntimas. Sua vida um de seus melhores documentos. Entretanto, no sem mscaras que Freud se apresenta ao mundo. Algumas so estratgias deliberadas de autoproteo: outras so recursos inconscientes. verdade, e nos ajuda muito, que Freud no sofria do vcio da modstia. Falava e escrevia sobre suas descobertas e realizaes com uma cativante desinibio; tendo sido uma criana muito amada, sempre manteve uma firme noo de seus talentos. Mas, apesar da confiana em si, no chegou a perceber toda a dimenso de suas qualidades e de sua estatura histrica. Num famoso resumo autobiogrfico, em fevereiro de 1900,ele escreveu a Wilhelm Fliess: "Na verdade no sou em absoluto um homem de cincia, nem um observador, um experimentador ou pensador. No sou seno um conquistador* por temperamento, um aventureiro, se quiser traduzir o termo, com a curiosidade, a ousadia e a tenacidade desse tipo.13 Essa passagem cndida e sincera. Fliess era um proeminente otorrinolaringologista com uma prspera clnica em Berlim, homem de presena carismtica e de ambies cientficas que s ficavam a dever s do prprio Freud; na dcada de 1890, a solitria dcada das descobertas de Freud, foi seu melhor e provavelmente nicoNotas:13. Cana de 1 de fevereiro de 1900. Texto alemo reproduzido em Max Schur, Freud: Living and Dying (1972). A biografia ntima de Schur contm muitos materiais inditos valiosos. [Edio brasileira: Freud - Vida e Agonia, 3 vols. Imago, 1981].* O original usa o termo espanhol conquistadorPag. 10amigo. Mas mesmo aceitando essas negativas de Freud como uma tentativa sria de auto avaliao, devemos rejeitar suas pretenses de ser um autorretrato preciso. Indicam a solidez de seu amor-prprio, a fora de seu ego; ilustram a presteza com que falava de si com gestos largo se abrangentes. Porm mostram tambm uma certa miopia, um reducionismo que raro no pensamento de Freud. Sob muitos aspectos Freud foi sui generis, mas nesse ponto foi como os outros seres humanos: no foi o melhor juiz de si mesmo. Seu julgamento errneo, aliado a um feroz desejo de resguardar a privacidade, gerou uma contradio que todo estudioso de Freud tem de confrontar. A cincia de Freud , acima de tudo, a cincia da franqueza. A tcnica da psicanlise depende, como todos sabem, da liberdade desinibida com que o analisando produz suas associaes, sem medo e sem reserva; suas ideias mais ilgicas e seus desejos mais proibidos devem aparecer e ser registrados, na aparente desordem em que emergem conscincia - isto , tanto quanto lhe permitirem suas defesas sempre alertas. No deve organizar nada, esconder nada: o psicanalista e o censor so inimigos jurados. Essa franqueza, naturalmente, unilateral; Freud disse mais de uma vez que para o bem do paciente o psicanalista deve resguardar-se, permanecer um estranho, uma folha em branco onde o analisando inscreve suas transferncias. Mas Freud ficou na histria como analista e tambm como analisando, e para compreend-lo devemos v-lo em ambas as condies tal como ele prprio fez em sua autoanlise. Entretanto, nesse ponto ele frustra o historiador, ao menos em parte. Suas confisses; na Interpretao dos Sonhos e em outras obras, embora ntimas e copiosas, requerem elucidaes, ampliaes, correes - em suma, interpretao. Com frequncia parecem feitas de m vontade, quase que extradas fora. Max Schur, seu mdico e amigo, observa a relutncia com que Freud via a publicao de suas cartas a Fliess, as mais reveladoras e ntimas que escreveu. Suas confisses so fragmentrias, e assim permanecero para sempre: em abril de 1885contou noiva, Martha Bernays: "Quase conclu uma tarefa que um certo nmero de pessoas, ainda no nascidas mas destinadas ao infortnio, lamentar seriamente. Como voc no podePag. 11adivinhar de quem estou falando, vou lhe dizer agora mesmo: so os meus bigrafos. Destru todas as minhas anotaes dos ltimos catorze anos, assim como cartas, extratos cientficos e manuscritos de meus trabalhos. Entre as cartas, s as da famlia foram poupadas" .14 claro que quando escreveu essas linhas Freud tinha uma noo de sua possvel importncia; usou um tom leve, mas ele prprio nos ensinou a levar qualquer expresso a srio. Assim, ficamos autorizados a concluir que j em 1885, quando tinha vinte e oito anos e era completamente desconhecido, fantasiava sobre seus futuros bigrafos. Quinze anos mais tarde, aps ter feito suas descobertas, escreveu a Fliess conjeturando se algum dia no haveria uma "placa de mrmore" na casa de Bellevue onde teve o sonho de "Irma": "Aqui, no dia 24 de-julho de 1895, o Segredo dos Sonhos foi revelado ao Dr. Sigm. Freud.' 15 sem dvida um trao atraente em Freud o fato de que no se permitia posar nem como pobre criatura sem valor, nem, inversamente, como um monumento antes da hora. Sua irnica informalidade, mesmo em momentos de grande exaltao , seu invarivel estoicismo em dias de desapontamento, conferem ao material que ele decidiu preservar uma autoridade que no teria, se estivesse sempre lanando piscadelas astutas e olhares compenetrados para os bigrafos. Contudo, ao disfarar algumas provas e destruir outras, Freud no agiu como algum que esperava seriamente que aquela placa de mrmore fosse algum dia colocada. Assim, h muita coisa que Freud no permitiu que a posteridade soubesse a seu respeito. Face a face com essa discrio to seletiva - e do ponto de vista do pesquisador, to irrefletida Notas:14. Carta de 28 de abril de 1885. Freud, Briefe, 136. Ver tambm Jones, Freud, I, p. xii. 15. Sigmund Freud, The Ongins of Psychoanalysis. Letters to Wilhelm Phess, Drafts and Notes: 1887-1902, ed. Marie Bonaparte , Anna Freud, Ernst Kris; trad. Eric Mosbacher e Jarnes Strachey (1954), 322; Sigmund Freud, AUJ de Anfongen der PJychoanalYJe. Bnefe an Wilhelm Hiess, Abhandlungen und Notizen aus den jahren 1887-1902 (1950), 344. (A respeito desta e de outras citaes duplas, ver nota 20, adiante). (No Brasil foi lanada a nova edio: A Correspondncia Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904, editada por Jeffrey Moussaief Massono trad. Vera Ribeiro, Imago, 1986).Pag. 12- O historiador forado a explorar as pistas que Freud permitiu que sobrevivessem. Pode interrogar os escritos de Freud, notando suas deliberadas estratgias de estilo e seus hbitos literrios inconscientes; pode, com proveito, justapor o radicalismo das ideias de Freud ao conservadorismo de sua postura social; pode traar a origem de seu compromisso com a cincia at suas razes intelectuais e emocionais. Pretendo seguir essas trs rotas de investigao, mas quero comear surpreendendo Freud em casa, em seu consultrio, seu gabinete, no restante de seu apartamento, e descobrir o que esse laboratrio histrico revela acerca de Freud, esse quebra-cabeas de que faltam tantas peas. Afinal, ele viveu rodeado de objetos que estimava - livros, fotografias, esculturas - e esses objetos testemunham, de maneira relutante mas eloqente, como um sonho, a mente de seu possuidor." Verificar de que maneira ele vivia o primeiro passo para resolver a tenso que h em Freud entre a franqueza e o segredo, tenso que suas ideias explicam amplamente, e que seu carter exigia de maneira imperiosa.(subttulo) Predileo pelo pr-histricoA primeira e mais forte impresso que o habitat de Freud causava no visitante era a profuso de coisas. Os livros ficavam bem arrumados, os quadros bem pendurados, os tapetes e mantas bem estendidos na parede, no sof e no cho, as esculturas bem alinhadas, todas viradas para a frente em compactas fileiras, como soldados num desfile. S os livros no evocavam comentrio; pareciam inteiramente apropriados para um professor erudito e escritor prolfico. Mas os quadros se amontoavam como se imitassem o arranjo de um museu antiquado, e ainda assim eram demasiados para o espao disponvel: algumas fotografias emolduradas obstruam e ocultavamNotas:16. Para uma viso do apartamento de Freud em Viena em 1938, ver Berggasse 19: Sigmund Preud's Home and Offices, Vienna 1938, The Photographs of Edmund Engelman (1976), que tem como introduo uma verso mais antiga do presente ensaio.Pag. 13os livros atrs delas. Os tapetes invadiam o campo visual um do outro , literalmente se sobrepondo; belos exemplares orientais de procedncia vria, eles no se complementavam, mas quase se anulavam mutuamente com seus desenhos conflitantes. As esculturas, por fim, tinham suas prprias prateleiras e armrios envidraados, mas invadiam e se intrometiam em superfcies destinadas a outros fins: nas estantes de livros, em cima dos armrios, nas mesinhas, e at na muito usada escrivaninha de Freud. O conjunto era uma aglomerao de objetos. Eram as esculturas que chamavam a ateno de maneira mais irresistvel. Em 1909, quando o psicanalista Hanns Sachs, que acabou conhecendo bem Freud, visitou Berggasse 19 pela primeira vez, observou que embora a coleo de antiguidades estivesse "ainda num estgio inicial, alguns objetos atraam de imediato o olhar do visitante".17 Haveriam de tornar-se ainda mais destacados, mais atraentes vista com o passar dos anos. Resumindo suas recordaes alguns dias depois da morte de Freud, o psicanalista alemo Victor von Weizsacker s conseguia lembrar-se, ao descrever o consultrio de Freud, da "longa galeria de estatuetas antigas, de bronzes e terracotas sobre a escrivaninha. Assim, quando levantava a vista, o olhar do professor dava com os stiros e as deusas" .18 Mas o que via ele? Traar a origem dessas antiguidades at seu ponto de partida significa viajar por entre as remotas razes da cultura ocidental no mundo mediterrneo: Egito, Chipre, Pompia, Grcia e Roma. Foi s nos ltimos anos de vida que Freud acrescentou objetos chineses a essa coleo bem concentrada. Suas peas lembravam o Sul, esse lugar cheio de calor, de liberdade sem inibies, associado a marcantes histrias ouvidas na infncia, que h sculos exerce uma irresistvel atrao sobre os habitantes do Norte - inclusive sobre Goethe, to amado por Freud, e sobre o prprio Freud. "Uma cesta de orqudeas,Notas:17. Sachs, Freud, 49. As recordaes de Sachs so econmicas, esclarecidas e cheias de admirao. O cap. II, Vienna", traz alguns insights importantes. 18. "Rerniniscences of Freud and Jung", in Benjamin Nelson, org., Freud and lhe 20lh Century (1957), 60.Pag. 14Disse ele a Fliess quando completou quarenta e cinco anos, "imita o esplendor e o sol ardente; um fragmento de parede de Pompia, com centauro e fauno, traduz para mim a saudosa Itlia" .19 Colecionar foi a paixo da vida de Freud: Max Schur recorda que ele a chamou de "um vcio, que nele s ficava a dever em intensidade ao da nicotina. "20 Durante seu ltimo ano de vida, j com oitenta e dois anos e morrendo de um cncer doloroso, ainda se correspondia com a princesa Marie Bonaparte , que ajudara a salvar Freud e a maior parte de sua famlia dos nazistas, a cerca de suas queridas estatuetas. Era um vcio bem informado. Freud gostava de ler a sobras relevantes sobre o assunto, e acompanhava trabalhos de escavao. Entretanto, quando disse a Stefan Zweig, em 1931, que tinha feito muitos sacrifcios por minha coleo de antiguidades gregas, romanas e egpcias, e na verdade j li mais sobre arqueologia do que sobre psicologia", 21 a primeira metade da afirmao mais verossmil que a segunda. No hNotas:19. 8 de maio de 1901, Freud, Ongins of Psychoanalysis, 330; Aus den Anfangen, 354. 20. Schur, Freud, 247. No muito depois de 1900, Freud referiu-se publicamente a suas antiguidades como "uma pequena seleo". The Psychopl1lhology of Everyday Life, in Slandard Edition of the Complete Psychological Worh Sigmund Freud, traduzido com edio geral de James Sttachey, em colaborao com Anna Freud, auxiliados por Alix Strachey e Alan Tyson, 24 vols. (1953-75), VI, 167 (de agora em diante referida como SE); Zur Psycbopathologie des Alltaglebens, in Sigmund Freud, Gesammelte Werke, ed. Anna Freud. E. Bibring. W. Hoffer, E. Kris e O Isakower, em colaborao com Marie Bonaparte, 18 vols., (1940-68), IV, 186 (de agora em diante referida, como GW). Embora se deva dizer, para o bem da justia, que os tradutores de Freud (tanto de suas obras como dos vrios volumes de canas) realizaram uma tarefa heroica ao passar para o ingls seu alemo vigoroso e gil, e ao normalizar sua linguagem durante uma vida inteira de escritos, muitas vezes deixaram suas formulaes certeiras e felizes. Portanto, embora tenha consultado regularmente a SE e as verses inglesas das cartas de Freud, eu mesmo traduzi todas as citaes de Freud. Ao mesmo tempo, para facilidade de referncia, eu situo tambm a traduo inglesa, em cada caso. Os tradutores fizeram a Freud dois tipos de injustia: tomaram-no ao mesmo tempo mais prolixo e mais afetado do que na verdade era. Para expressar uma palavra alem to comum e sugestiva como Besetzung ("ocupao") criaram o formidvel neologismo "cathexis", (Para uma justificativa, ver SE 1II, 63n.) E a crua expresso de Freud, Dukatenscheisser, ou "caga-ducados", foi traduzida como "aquele que excreta ducados". (Ver Ongins, 189). Na realidade, num raro exemplo de inconsistncia, eles usam a expresso' 'shitter of ducats" (cagador de ducados) em CbaracterI1ndAna! Erotism, SE IX, 174. 21. Carta de 7 de fevereiro de 1931. Freud, Briefe, 398-99.Pag. 15dvida de que Freud tinha excelentes conhecimentos de histria antiga e arqueologia, mas os livro sem suas estantes - os volumes encadernados das revistas que ajudava a editar, os livros que lia e os livros que escrevia - reafirmam que o centro de sua ateno era sempre a mente humana, o interesse predominante do qual todos os outros, inclusive sua coleo, eram tributrios. O mundo antigo, porm, era um tributrio privilegiado: algumas das fotos mais destacadas nas paredes, como a de 'Abu Simbel, sobre o div analtico, servem de comentrios a um interesse inexaurvel. Tambm certo que fez sacrifcios a esse vcio, em especial no comeo da carreira, quando era um mdico de parcos recursos financeiros, combatendo por inovaes na cura das doenas mentais. Em suas cartas aos parentes e amigos encontram-se relatos das compras a que no conseguiu resistir, das pechinchas que no pde deixar passar. "Os antigos deuses ainda existem, escreveu a Fliess no vero de 1899, "pois acabo de comprar alguns, inclusive um Jano de pedra, que com seus dois rostos me fita com ar de grande superioridade. "22 Alm do puro prazer de colecionar, as aquisies significavam muito para Freud. Como outros eventos mentais, tambm esse vcio era sobredeterrninado 23. As cartas sugerem que sua "predileo pelo pr-histrico 25' era animada por diversas causas. "Decorei meu gabinete com cpias em gesso de esttuas florentinas", escreveu a Fliess em dezembro de 1896. "Para mim uma fonte de extraordinrio prazer; estou pensando em ficar rico para repetir essas viagens. Um congresso em solo italiano! (Npoles, Pompia)". 25 Vemos assim queNotas:22. Cana de 17 de julho de 1899. Ongins, 286; Anfnge. 305. 23. "Sobredeterrninao" ["overdeterminacion") uma categoria freudiana de grande utilidade. embora talvez com denominao infeliz. Freud a formulou pela primeira vez em meados da dcada de 1890. nos anos de sua colaborao com Breuer, para ressaltar o fato de que as origens dos eventos mentais devem ser buscadas em regies diversas da psicologia humana. A nfase na causalidade mltipla de todos os eventos era. e continua a ser. uma saudvel advertncia contra o dogmatismo e o reducionismo. 24. Cana de 30 de janeiro de 1899. Origins, 275; Anfnge. 293. 25. Cana de 6 de dezembro de 1896. Origins, 181;Anfonge. 192. Quanto ao anseio de Freud por Roma. ver o sensvel tratamento de Schorske em 'Policies and Patricide ".Pag. 16por um lado a cabea de Jano e as estatuetas de terracota lhe eram simplesmente gratificantes, agradveis vista e ao tato. Tambm o tiravam de sua rotina diria e, melhor ainda, o tiravam do presente, frequentemente desprezvel. Quando era jovem e pobre, Freud se sentira s e na defensiva; depois que setor no uma espcie de celebridade e um homem prspero, embora no rico, conservou uma' irnica distncia em relao sua fama, e um profundo ceticismo quanto s motivaes humanas em geral. J se observou que, para algum dedicado cura, Freud tinha uma opinio notavelmente baixa do animal humano. Muito lhe aconteceu ao longo dos anos, inclusive muitas coisas que o agradaram. Mas o mundo pouco receptivo de Viena no mudou nunca; no mudou o dio que a multido instruda sentia por Freud, o descobridor indiscreto, nem o dio da multido maior, instruda e no instruda, por Freud, o judeu impenitente. "Algo em mim se revolta contra essa compulso de continuar ganhando dinheiro, um dinheiro que nunca suficiente", escreveu, sombrio, a seu discpulo de confiana Sndor Ferenczi, no incio de 1922, " ... e de continuar com os mesmos expedientes psicolgicos que h trinta anos me mantm firme em face de meu desprezo pelas pessoas e por esse mundo detestvel. Estranhos anseios secretos afloram em mim - talvez da minha herana ancestral- pelo Oriente, pelo Mediterrneo, por uma vida totalmente diferente: desejos da infncia, que nunca sero realizados" .26 Contemplar suas antiguidades era evocar, com esprito alegre, viagens feitas e viagens por fazer, e, nos momentos de desnimo, um mundo que lhe agradava mais do que o seu prprio. Escrevendo a Fliess de Berchtesgaden, em agosto de 1899, anunciou que no prximo dia de chuva planejava caminhar at sua "querida Salzburg", onde h pouco conseguira "algumas antiguidades egpcias. Essas coisas me deixam de bom humor e me falam de terras e tempos distantes".27 Mas Freud era acima de tudo um psicanalista; no permitiriaNotas:26. Citado em Jones, Freud. III, 8384. 27. Carta de 6 de agosto de 1899. Origins; 291; Anfnge, 310.

Pag. 17ria que nenhuma obsesso o dominasse to completamente e por tantos anos, se no tivesse alguma relevncia para a cincia que era toda a sua vida. Colecionar antiguidades o libertava de seu trabalho e ao mesmo tempo o levava de volta a ele. notvel, e no passou despercebido, o fato de que Freud gostava de extrair suas metforas da arqueologia. Numa de suas primeiras obras, Estudos sobre a Histeria, escrita em parceira com Josef Breuer, ainda emprega essas metforas de modo algo compenetrado: "Nesta que a primeira anlise completa que realizei de uma histeria" - a anlise da srta. Elizabeth von R. - "cheguei a um procedimento que depois promovi a mtodo e empreguei deliberadamente: retirar, camada por camada, o material psquico patognico, algo que gostamos de comparar com a tcnica de escava ruma cidade soterrada".28 Em O mal-estar na civilizao, um de seus ltimos e mais ricos ensaios, Freud ilustra o "problema geral da preservao na esfera mental" por meio de uma analogia: "o crescimento da Cidade Eterna", que na verdade uma srie de cidades, das quais fragmentos dos mais antigos sobreviveram - ou melhor, foram recuperados pelas escavaes- lado a lado com runas de edifcios posteriores. A mente humana tem alguma semelhana com a evoluo dessa Roma de tantas camadas. Mas a semelhana limitada: depois de muito se estender na analogia arqueolgica, Freud prontamente a abandona perante a dificuldade de representar a sucesso histrica por meio de imagens espaciais.29 Freud est sempre disposto a jogar com metforas: elas tm sua utilidade. Mas no so provas; so apenas metforas. As metforas, porm, como Freud teria sido o primeiro a afirmar, raramente so meras metforas. Podem ser locues convencionais, propriedade comum de muitos escritores. Tambm a imagem mental do arquelogo descobrindo verdades enterradas parece bvia o bastante para ser coerente como trabalho de muitos psiclogos. Mas essas-analogias, quando usadas com a frequncia e o prazer com que Freud as ernprega,Pag. 18provavelmente indicam significados mais profundos. Aqui, como em outras reas, no h lugar para dogmatismo. Mas h alguma evidncia de que Freud invejava Schliemann, o arquelogo que descobriu a antiga Tria, desenterrando-a camada por camada. Invejava-o em parte pela descoberta em si, em parte por sua boa fortuna ao realizar na vida adulta uma fantasia de menino: "O homem ficou feliz ao encontrar o tesouro de Pramo", disse a Fliess, "pois s h felicidade quando se realiza um desejo de infncia". significativo, e um pouco pattico, que essa mxima seja seguida por uma renncia: "Isso me lembra que no vou Itlia este ano"." Felizmente, Freud no precisou se contentar em invejar Schliemann: ele o igualou. Pelo menos uma vez Freud comparou um sucesso analtico com a descoberta de Tria: soterrada sob as fantasias de um paciente, relata a Fliess em 1899, encontrou "uma cena do seu perodo primeiro (antes de vinte' e dois meses de idade), que satisfaz todos os requisitos e para a qual confluem todos os enigmas ainda remanescentes; cena que tudo ao mesmo tempo: sexual, incua, natural, etc. Quase no ouso ainda acreditar. como se Schliemann tivesse outra vez desenterrado a Tria que at ento se acreditava lendria". 31 Que outros o comparem a Coprnico, a Plato, a Moiss; Freud gostava dessas comparaes, e s vezes brincava com elas. Mas tambm sentia prazer na identificao menos exaltada, mas ainda ilustre, com um grande explorador do passado humano. Alm de permitir-se essas fantasias pessoais, Freud achava a comparao da psicanlise com a arqueologia adequada num sentido literal: a seu ver, a escavao cientfica de vestgios pr-histricos descreve os procedimentos psicanalticos de maneira mais acurada do que qualquer outra disciplina comparvel. Tal como o arquelogo. o psicanalista depara com superfcies promissoras, mas enganosas, que sugerem, mas de modo algum garantem, estranhos achados l embaixo. Como o arquelogo, deve tomar cuidado para no destruir o stioNotas:30, Cana de 28 de maio de 1899, Origins, 282; Anfange. 301. 31. Cana de 21 de dezembro de 1899. Origins. 305; A Anfange 32627,Pag. 19com suas sondagens; deve ser paciente, hbil, delicado. E tambm como o arquelogo, um cientista prtico, guiado por construes tericas abertas reviso. claro que todas as disciplinas cientficas se empenham na busca de fatos ou leis ainda no conhecidas, mas as verdades da psicanlise e da arqueologia se escondem de um modo particular: para fazer com que o visvel seja um bom guia para o invisvel, necessrio o ato da interpretao. Para ambas as cincias a evidncia tentadora e fragmentria; para ambas produtivo trabalhar do presente para o passado, e de volta, do passado para o presente: seus materiais aparecem em camadas distintas, mas historicamente e instrutivamente relacionadas entre si. E como trabalham com fragmentos, as duas cincias tm que dar os saltos disciplinados de uma imaginao treinada: tal como o arquelogo reconstri esttuas completas e templos inteiros a partir de pedaos de bustos e colunas destrudas, tambm o psicanalista reconstri as origens de uma neurose a partir de lembranas distorcidas e lapsos involuntrios. No prefcio do caso' 'Dora' , Freud explcita essa analogia: "Ante o carter incompleto de meus resultados analticos, no me restou outra opo seno seguir o exemplo dos exploradores que tm a boa fortuna de trazer luz do dia, depois de soterrados por longo tempo, os vestgios inestimveis, ainda que mutilados, da Antiguidade. Restaurei o que estava incompleto, seguindo os melhores modelos que conhecia de outras anlises; porm, como um arquelogo consciencioso, no deixei de mencionar, em cada caso, onde comea minha reconstruo e terminam as partes autnticas" .32 Mas at mesmo as comparaes mais aptas tm seus limites de aplicao. O material do arquelogo' 'resiste" pesquisa apenas no sentido metafrico; j o psicanalista se defronta com a literal resistncia inconsciente de seu analisando. Chamei a psicanlise de cincia da franqueza; tambm a cincia da suspeita - suspeita sistematizada. Pois assim como a civilizao uma teia de enganos, a vida mental do indivduo Notas:32. Fragment of an Analysis of a Case of Hysteria [caso "Doca"], SE, VII, 12; Bruchltck einer Hysterie-Analyse, GW V, 169-70.Pag. 20um sistema altamente sofisticado de falsidades: sublimaes, deslocamentos, formaes reativas. Nem mesmo os sonhos esto livres do trabalho sorrateiro do censor que vive em ns todos, negando o inegvel, tornando saboroso o intragvel especialmente para ns mesmos. E quanto mais repulsivo o desejo secreto, mais elaborado o biombo atrs do qual ele luta por sua realizao distorcida. Assim, o psicanalista deve estar treinado para duvidar das explicaes mais plausveis, reconciliar as contradies mais palpveis, captar os indcios mais evasivos, extrair sentido dos absurdos. mais impenetrveis. Escavando camada aps camada, ele procura a cidade soterrada. A metfora arqueolgica, mesmo que incompleta para a obra de Freud, sugestiva e elegante. O que est obscuro deve ser esclarecido, o que est latente deve se tornar manifesto: provavelmente este o sentido mais importante que sustentava as atulhadas prateleiras de Freud.(subttulo) Estilo de um cientistaEm setembro de 1907 Sigmund Freud escreveu de Roma a sua mulher, relatando que acabava de encontrar no Vaticano "um rosto querido e familiar". "O reconhecimento foi unilateral", acrescenta ele, "pois era a 'Gradiva', no alto de uma parede".33 Mesmo unilateral, o encontro deu a Freud, como ele afirmou, uma grande alegria. Esse antigo baixo-relevo, mostrando uma jovem caminhando de maneira graciosa, embora um tanto enfaticamente, era um objeto belo e bem conservado. Mais que isso, despertou lembranas alegres, ainda vvidas: apenas um ano antes Freud escrevera um estudo psicanaltico sobre a novela Gradiva, de Wilhelm Jensen - histria inspirada justamente por uma cpia desse mesmo baixo relevo. Achara o assunto atraente, e o trabalho de redao fcil. Em maio de 1907, pouco depois de publicar "Delrio e Sonhos na Gradiva de Jensen" , disse a Jung: "Foi escrito emNotas:33. Carta de 24 de setembro de 1907. Freud, Briefe, 226.Pag. 21dias de sol, e me deu grande prazer" .34 Na verdade foi Jung, uma benvinda aquisio recente do aguerrido cl de Freud, quem primeiro lhe chamou a ateno para a novela de Jensen, e foi em parte por causa de Jung que Freud realizou essa psicanlise literria. Do seu encontro em Roma ele guardou lembranas inteiramente positivas, algo raro em Freud; dele gostou tanto que comprou uma cpia da "Gradiva" para seu consultrio e a pendurou acima do div. Como se no quisesse deixar margem a dvida de que havia uma interseco emocional, por assim dizer, entre esse objeto de arte e seu trabalho, pendurou esquerda uma pequena reproduo de um quadro de Ingres, dipo Interrogando a Esfinge - de todos os temas artsticos, a mais rica antecipao da curiosidade sistemtica do psicanalista. Naquele estreito pedao de parede, a arqueologia e a psicanlise se encontravam e convergiam.Esse encontro se d de maneira ainda mais acentuada na novela de Jensen, ou melhor, na interpretao que dela fez Freud. O paciente-protagonista de Gradiva um arquelogo, Norbert Hanold, um europeu do Norte, reservado e solitrio, que encontra a claridade e a cura atravs do amor no sul da Itlia, na Pornpia banhada pelo sol. Hanold conseguira reprimir a lembrana de uma garota com quem havia crescido e a quem fora muito apegado. Visitando uma coleo de antiguidades em Roma, defronta-se com um baixo-relevo mostrando uma jovem encantadora, com um modo de andar caracterstico. D o nome de "Gradiva" a essa moa caminhante, e pendura uma cpia em gesso num "lugar privilegiado da parede de seu gabinete, quase todo repleto de estantes de livros" - da mesma forma que Freud, mais tarde, colocaria na parede sua cpia do mesmo relevo. Alguma coisa, especialmente a postura da moa, fascina Hanold. Revela-se que o que torna a moa irresistvel que ela o faz lembrar, embora inconscientemente, aquela jovem que amara e que' 'esquecera" em favor de sua profisso. Tem um pesadelo em que v "Gradiva" no dia da destruio de Pornpia, e comea a tecerNotas:34. Carta de 26 de maio de 1907. Ibid., 251.Pag. 22uma trama de iluses a seu respeito, pranteando sua morre como se fosse uma contempornea sua muito amada, e no algum que pereceu sob a lava do Vesvio no ano 79 d.e. Viaja Itlia sob o impulso de pensamentos indefinveis, e acaba em Pompia , movido pela mesma inexplicvel obsesso. Ali chegando, v "Gradiva" na rua e se imagina na antiga Pompia, no dia em que foi soterrada. "Sua cincia", comenta Freud, "coloca-se agora por inteiro a servio de sua imaginao" 35 A jovem se revela no s uma pessoa real, como tambm alem; "Gradiva", naturalmente, a moa que ele amara no passado. Mas esta "Gradiva" no s amorvel, como inteligente: ela identifica a iluso arqueolgica de Hanold. Havia, lhe diz ela, "uma fantasia grandiosa alojada em sua mente", de encontr-la aqui em Pompia e v-la, assim como antes, "como algo desenterrado e trazido de volta vida" .36Sabe que para Hanold ela s se integrar na vida real se o ajudar a deslindar suas fantasias. No fim de seu "tratamento", quando Hanold lhe pede de sbito que caminhe sua frente, a moa, compreendendo seu pedido, d um passo como jeito tpico de andar que ele notara no baixo-relevo. Ela utiliza a iluso de Hanold a servio de sua cura. Freud, leitor de gosto exigente, reconheceu que a novela de Jensen no era uma obra de grande valor literrio, mas defendeu as percepes psicolgicas que ali se revelavam: mesmo que parea sentimental, no se deve desprezar o poder curativo do amor contra a ihiso".37 Tambm julgou notvel que ao fazer a "Gradiva" viva imitar o andar do antigo relevo, Jensen oferecia ao leitor a "chave do simbolismo" que Hanold empregara para dissimular "sua lembrana reprimida" - ou seja, a arqueologia. "No h melhor analogia para a represso, processo que torna algo da psique inacessvel ao mesmo tempo que o preserva, do que o sepultamento que foi o destino de Pompia, e do qual a cidade depois reapareceuNotas:35. Delusions and Dreams in Jensens Gradiva, SE IX, 18; Der Wahn und die Traume in W.Jensens "Gradiva", GW VII, 42. 36. Citado por Freud em Delusiom and Dreams, 32; Der Wahn, 58. 37. Delusions and Dreams, 22; Der Wahn, 47.Pag. 23graas ao trabalho das ps e picaretas.' '38 Freud aprovou o faro deJensen dotar sua novela, sem dvida inconscientemente, de tcnicas psicanalticas tais como o estmulo a associaes e a interpretao de sonhos. Se por um lado a arqueologia foi o agente da neurose de Hanold, por outro foi tambm til em sua cura. Se em "Delrio e Sonhos na Gradioa de Jensen" Freud lana vrias pontes entre sua profisso e sua paixo de colecionador, a obra tambm liga a psicanlise a outro interesse permanente de sua vida, a literatura, tecendo uma complexa trama intelectual. "Gradiva" foi sua primeira psicanlise .publicada de uma obra literria'; um estudo de "sonhos que nunca foram sonhados". 39 J se exercitara antes, em particular, elaborando anlises semelhantes de histrias de Conrad Ferdinand Meyer, um de seus autores modernos favoritos; tirara imenso proveito das hesitaes de Hamlet, e extrara de Sfocles sua metfora mestra, o complexo de dipo - uma metfora (ou melhor, modelo) mais impressionante do que qualquer outra que a arqueologia oferecesse. Afirmou tambm algumas vezes que os escritores de fico, do seu modo intuitivo, realizam um tipo de trabalho como o seu. A interao entre a obra de Freud e seus interesses ainda mais ativa. A implicao mais instrutiva do fato de Freud colecionar antiguidades , como j disse, que "o que obscuro deve tornar claro". Essa norma nos leva s peculiaridades felizes do estilo de Freud, pois levar seus analisandos a serem claros sobre si mesmos era necessrio para tornar as coisas claras para ele mesmo. E esclarecer as coisas para si mesmo era parte de uma tarefa mais ampla: esclarec-las para os leitores. Como homem de letras, Freud j foi fartamente elogiado: o Prmio Goethe lhe foi concedido, em 1930, como escritor e cientista "em igual medida". 40 Artfices profissionais como Thomas Mann e Stefan Zweig o valorizavam no apenas como sbio, mas como colega. Todos os bigrafos de Freud dedicamNotas:38. Deiusions and Dreams, 40; Der Wahn, 65. 39. Delusions and Dreams, 7; Der Wahn, 31. 40. Dr. Alfons Paquet, Secretrio do Comit do Prmio Goethe, em Frankfurt, escrevendo a Freud em 26 de julho de 1930. Citado em GW XIV, 546n.Pag. 24obrigatoriamente uma ou duas pginas eficincia e beleza de sua prosa - e no sem razo. Sua realizao ainda mais notvel considerando-se o amplo espectro de suas publicaes: conferncias introdutrias para ouvintes universitrios, comunicaes tcnicas em revistas mdicas, ambiciosas especulaes para um pblico mais culto. Seus relatos de casos gnero normalmente avesso graa e ao esprito - so clssicos da literatura de investigao. Freud era um escritor nato, que nunca descuidava dos dados essenciais de seu ofcio. At onde pude averiguar, no tinha um programa neste sentido; no se exercitou para tornar se escritor. Desde o incio agiu de modo natural e intuitivo como homem de letras: as cartas mais antigas que nos restam j demonstram que sua energia, sua graa e lucidez no foram adquiridas a duras penas, mas faziam parte de seu carter. Neste sentido Freud no foi, em absoluto, um estilista, Entre os muitos tributos que outros autores prestaram sua prosa, o mais interessante a esse respeito o de Alfred Dblin. Escreveu ele por ocasio dos setenta anos de Freud: "Note-se o estilo simples e claro; no , a bem dizer, um estilo. Sem artifcios nem frases de efeito, ele diz o que quer dizer; assim que fala algum que conhece o assunto" .41 Em suma, Freud era mais vigoroso, mais divertido, mais razovel e convincente quando era mais de mesmo. E era ele mesmo - isto , conseguia explorar seus recursos internos mais profundos com um mnimo de bloqueios e conflitos - a maior pane do tempo. Afinal, era bem disso que tratava sua autoanlise. Por mais informal e no acadmico que tenha sido seu desenvolvimento como escritor, evidente que ele acenou na escolhaNotas:41. "Zum siebzigsten Geburtstag Sigmund Freuds" [No Septuagsimo Aniversrio de Sigmund Freud"], almanach fr das Jahr 1927 [Almanaque do Ano de 1927). 33; citado por Walter Schonau, Sigmund Freuds Prosa: Literarische Elemente seines Stils [A Prosa de Sigmund Freud: Elementos Literrios de leu Estilo] (1968). 258. Devo muito investigao que Schonau faz das analogias arqueolgicas de Freud: quanto a isso. ver tambm Suzane Bernfeld Cassirer, "Freud and Archaelogy": Tb American lmago, VIll (1951). 107-28. Maior ainda minha dvida para com o ensaio magnificamente humano e inteligente de Walter Muschg. "Freud als Schriftsteller" ["Freud como Escritor"). includo em Muschg. Die Zerstrung der deutschen Literatur [A Destruio da Literatura Alem] (3 ed., 1958). 303-47Pag.25dos meios e dos modelos. Disciplinou o ouvido lendo em ingls e francs a vida inteira, e treinou a pena traduzindo livros de ambas as lnguas. Lia contnua e intensamente, embora, claro, nem todas as suas leituras fossem feitas por prazer, ou lhe dessem prazer. Trabalhando na abundante literatura tcnica para A Interpretao dos Sonhos, sua primeira obra-prima. fez a Fliess uma queixa curiosa: esse tipo de leitura era "um terrvel castigo imposto a quem pretende escrever".2 Tirou proveito at mesmo da sintaxe laboriosa e do vocabulrio rido dos escritores acadmicos: aprendeu com eles o que evitar. Mas seus verdadeiros professores foram os estilistas inimigos da obscuridade e alheios ao jargo. Embora Freud se reconhea explicitamente em dbito apenas para com Lessing, o enrgico polernista que criou praticamente sozinho o alemo moderno, teve em alta conta, e absorveu com presteza, as qualidades que distinguiam seus outros escritores favoritos: vigor, preciso, clareza. Foram essas qualidades, afinal, que os tornaram seus prediletos. A vasta obra escrita de Freud, repleta de aluses casuais e citaes pertinentes, extradas de um impressionante leque de obras literrias, revela-o continuamente pelo que era: um alemo cultivado, de assombrosa memria. H ocasies em que cita dramaturgos austracos, como Grillparzer, Nestroy, e tambm Schnitzler: mas tambm se sente vontade, talvez mais ainda, com os alemes "do Norte" como Goethe, Heine, E. T. A. Hoffmann e Theodor Fontane, com os dsticos bem humorados de Wilhelm Busch e os aforismos ptofundos de Georg Christoph Lichtenberg. No h personagem literria que cite com mais frequncia do que o Mefistfeles de Goethe, a menos que seja o Hamlet de Shakespeare: e mesmo nesta escolha de uma figura da literatura inglesa continuou fiel a seu gnero, pois desde a famosa anlise do carter de Hamlet feita por Goethe em Wtfhelm Meisters Lebrjabre (Os Anos de Aprendizado de Wtlhelm Meister), o significado de Hamlet era tema de debates entre os alemes instrudos. Naturalmente Freud recrutou Shakespeare para suas investigaes psicanalticas, da mesma formaNotas:42. Carta de 5 de dezembro de 1898. Origins, 270; Anfange, 288Pag. 26

como recrutou Sfocles; ambos lhes emprestaram o poder de penetrao dos grandes poetas, e magnficas metforas. Havia sempre algo de utilitrio no consumo que Freud fazia da cultura.43 O que importa, porm, que tinha cultura - a cultura alem - a seu dispor; no era um tcnico de horizontes estreitos nem um austraco provinciano. Na velhice Freud recordou que foi uma leitura pblica de um "belo" ensaio de Goethe sobre a natureza que o colocou no caminho da medicina - uma admisso reveladora, pois parece que no foi s o naturalismo entusistico de Goethe que influenciou Freud na escolha da carreira, mas tambm seu belo estilo.44Entre as provas mais slidas do profissionalismo de Freud est o volume de sua produo. Exercitava-seda nica maneira que um escritor pode se exercitar: escrevendo sempre que conseguia achar (ou criar) tempo. No incio da carreira, quando tinha poucos pacientes, passava mais tempo escrevendo em seu gabinete do que fazendo anlises no consultrio. Mais tarde, porm, quando devotava dez horas ou mais por dia, cinco dias por semana, nove meses por ano, sua prtica psicanaltica, sendo obrigado a escrever tarde da noite, aos domingos, ou no meio das frias de vero, continuou a publicar bastante. PO( mais sinceras que fossem suas declaraes de indiferena ao mundo, por mais sria sua afirmao de que se escreve sobretudo para satisfazer a uma necessidade interior, por mais pronunciado seu pessimismo em conquistar reconhecimento por suas perturbadoras teorias, o impulso de comunicar aos outros essas teorias o mobilizou desde o incio. E permaneceu vivo at o fim: a ltima obra que iniciou, e no viveu para completar, seria um manual esplendidamente conciso, um Esboo da Psicanlise. Nos fragmentos que deixou desse livro, assim como nos textos completados, seu estilo era inteiramente apropriado s suas intenes.Notas:43. Ver as notas 63-64. 44. An Autobiographical Study, SE XX, 8; Selbstdarslellung GW XIV, 34. Hoje os estudiosos esto de acordo em que este ensaio no absolutamente de autoria de Gocthe , mas sim de um conhecido seu, Christoph Toblcr. Ver a nota editorial de Andreas Spe iser emjohann Wolfgang Goetbe, Gedenkausgabe der Werke, Briefe und Gesprche [Johann Wolfgang Goetbe, Edio Comemorativa das Obras, Cartas e D;().1 ,. ed. Ernst Beutler , 24 vols. (1949), XVI, 978.Pag. 27Se Freud tinha o dom natural de escrever, suas relaes cordiais com a literatura lhe eram problemticas. Admitia que os poetas e romancistas muitas vezes so certeiros e profundos quanto conduta e s motivaes humanas; parecem retirar do fundo do inconsciente percepes e insights que exigiam dele, o cientista, anos para descobrir e demonstrar. As comparaes que o mundo de ento gostava de traar entre o poeta e o psicanalista eram ofensivas: faziam as investigaes de Freud parecerem foradas, suas descobertas imprecisas e fantasiosas. Quando, em 1896, o eminente neurologista Krafftebing descartou as teorias de Freud sobre a histeria como "um conto de fadas cientfico", escolheu - sem dvida inconscientemente - a metfora que atingiria Freud em seu ponto mais sensvel. Freud, pelo que insinuava o grande homem, era culpado de perpetrar mera literatura.No incio dos anos 90, comeando sua carreira de psiclogo inovador, Freud ainda adotava uma atitude defensiva quanto a essas acusaes. "Nem sempre fui psicoterapeura", escreveu no relato sobre a srta. Elizabeth von R., confessando que ainda achava "estranho que os casos que descrevo paream novelas, e que caream, por assim dizer, do cunho de seriedade da cincia. Devo me consolar pensando que evidentemente a natureza do tema mais responsvel por esse fato do que minha predileo". Acontece simplesmente", continua ele, "que no tratamento da histeria os mtodos tradicionais de diagnstico e reaes eltricas locais deram em nada, ao passo que uma descrio completa e meticulosa dos processos mentais, tal como costumamos encontrar nos escritores, me permite obter, empregando algumas frmulas psicolgicas, alguma percepo do processo de uma histeria" .4l Durante toda a vida Freud foi muito sensvel a ser qualificado como artista: por mais lisonjeira que fosse a formulao, no lhe agradava e suscitava sua desconfiana, como mais uma forma de resistncia s severas proposies cientficas da psicanlise. Mas a atitude defensiva nunca foi suficiente para Freud que veio a desenvolver uma posio quanto ao lugar ocupado peloNotas:45. Studies on Hysteria, SE 11, 160; Studien ber Hysterie GW 1,227.Pag. 28estilo em sua disciplina: terminou vendo a psicanlise como uma cincia peculiar que tem, como outras cincias, seu discurso prprio, mas, diferena das outras, deve lanar mo de recursos literrios que elucidam suas teorias, ao mesmo tempo que as pem em perigo. Como seus materiais so ntimos, ocultos, difceis de definir e impossveis de quantificar, a psicanlise precisa de analogias, de imagens mentais. Podem ser inexatas, mas so indispensveis. Portanto, a retrica psicanaltica, tal como foi criada por Freud, era por natureza rica em metforas. A persistncia das lembranas reprimidas "por baixo" de experincias posteriores, os esforos do psicanalista para "escavar" sob os sonhos manifestos pediam, como j vimos, metforas da arqueologia. A organizao da mente em ego e superego poderia se esclarecer com emprstimos tomados topografia. As formas de resistncia a verdades dolorosas, e de adaptao aos imperativos da cultura, eram to diversificadas que incitaram Freud a traar analogias com as ocupaes humanas mais variadas: a guerra, a poltica, a culinria, as viagens, a vida familiar, as artes. Que comparao seria mais expressiva do que sua imagem de um censor realizando o trabalho inconsciente de represso e distoro? Ou das defesas mentais contra os impulsos sexuais como represas que refreiam violentas inundaes? Ou do psicanalista conjurando demnios malignos e selvagens e lutando contra eles? Os servios que esses recursos prestam psicanlise no se limitam a dar mais vivacidade s apresentaes. Pelo menos algumas das metforas, comparaes e analogias que Freud empregava com tanto vigor eram, em sua mente, descries quase literais: assimilar a vida mental s operaes de guerra, assim como assimilar a psicanlise arqueologia, dizia algo que verdadeiro, e no apenas pitoresco. Mais ainda: desenhar um mapa da experincia humana onde se entrecruzam as rotas da analogia era ilustrar uma convico com a qual Freud, esse materialista do sculo XIX, iniciou suas pesquisas psicolgicas, e que seu acmulo de dados e teorias s iria fortalecer: que a natureza humana, por mais variada que seja em suas formas de expresso, repousa sobre elementos essencialmente simples. As analogias revelavam relaes substanciais:Pag. 29os neurticos eram como crianas ou "selvagens", os sonhos como as fantasias ou psicoses, a resistncia do pblico psicanlise como a resistncia do paciente sua prpria anlise no s na aparncia ou por associao, mas genuinamente. Freud tinha conscincia de que o cientista no deve se deixar dominar pelos instrumentos lingusticos que ele prprio escolheu. "Na psicologia", escreveu em 1926, em A Questo da Anlise Leiga, "s podemos descrever com o auxlio de analogias. Nisso no h nada de especial: o mesmo se d em outras reas. Mas precisamos estar sempre mudando essas analogias; nenhuma se sustenta por muito tempo" .46 Quaisquer que sejam os limites da metfora, a ambio de Freud de descobrir muito mais que uma explicao para a histeria e solucionar muito mais que os mistrios da neurose, de construir, em suma, uma psicologia de validade geral, encontrava sustentao e exemplos na linguagem que ele utilizava. Metforas e analogias eram apenas alguns dos recursos literrios sua disposio; Freud tambm lanava mo de muitos estratagemas de persuaso. Embora fosse, como j afirmei, sempre ele mesmo, e seus escritos, a prosa cientfica mais direta e mais expressiva de que dispomos, sua falta de artifcios era uma elevada forma de arte. Freud era demasiado alerta para no perceber que ele mesmo era seu maior trunfo. Mas no era compenetrado quanto sua espontaneidade; no cultivava a informalidade maneira calculada de um jardineiro ingls que cultiva um jardim silvestre. "Uma maneira de escrever clara e sem ambiguidades", diz ele em Psicopata/agia da Vida Cotidiana, "mostra-nos que naquele ponto o autor est de acordo consigo mesmo"; em contraste, "onde encontramos uma expresso forada e tortuosa" reconhecemos a presena de "uma ideia problemtica ainda no assentada, ou a voz abafada da autocrtica do autor" .47 Era raro que Freud, o escritor, no estivesse de acordo consigo mesmo. Ter conscincia de si mesmo implicava, para Freud, ter conscincia dos outros que ele desejava atingir, persuadir, re-Notas:46. SE XX, 195; Die Frage der lienana/yse, GW XIV, 222. 47. SE VI, 101; Zur Psychopalhologie des Allagslebens, GW IV, 112.Pag. 30crutar. Como disse a um correspondente em 1932, no queria de modo algum cair numa postura de "conferencista isolado"; desejava manter intacto o carter de discusso." Conseguiu mant-lo intacto por meio de uma srie de recursos que, em seu frescor e variedade, fazem inveja a escritores profissionais: informalidade, surpresa, variaes de ritmo, hbeis admisses de conhecimento incompleto, trato paciente das objees, e um estoque aparentemente inesgotvel de metforas reveladoras. A percepo , sem dvida, a caracterstica cultivada profissionalmente pelo analista. Ele treinado, como j indiquei, para notar aquilo que passou despercebido. Alteraes de expresso, gestos habituais, reaes inslitas, lapsos casuais, nfases excessivas, leves indcios - tudo isso so pistas para verdades escondidas. E quanto mais leve o indcio, mais compensador o trabalho de interpretao. De fato, o psicanalista se torna o detetive das ausncias: de assuntos interrompidos, aberturas rejeitadas, silncios prolongados. "Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir", escreveu Freud com suprema autoconfiana no caso "Dora", "acaba se convencendo de que os mortais so incapazes de manter segredos. Quem tem os lbios fechados fala com os dedos; a traio emana de todos os poros" .49 Os relatos dos casos de Freud esclarecem bem esse ponto: so estudos da sensibilidade de um psicanalista. Examinando a srta. Elizabeth von R. em 1892, Freud observou que quando lhe' 'pressionou ou beliscou a pele e os msculos hiperalgsicos das pernas, seu rosto assumiu uma expresso peculiar, mais de prazer do que de dor. Soltou ento um grito - no pude deixar de pensar: como que provocado por uma ccega voluptuosa - e seu rosto enrubesceu; fechou os olhos e atirou a cabea e o corpo para trs". significativo que acrescente aqui: .'Isso no era muito bvio, mas ainda assim claramente perceptvel?" - isto , perceptvel para Freud. Em 1902 "Dora" voltou a procur-lo, quinze meses depoisNotas:48. Carta de Freud a Leon Steinig, junho de 1932, Freud, Bnefe, 407. 49. Fragment of an Analysis, SE VII, 77-78; Bruchstck einer Hysten"e-Analyse, GW V,240. 50. Studies on Hystena, SE lI, 137; Studien ber Hystene, GW V, 240.Pag. 31de ter interrompido o tratamento, "para terminar sua histria e mais uma vez pedir ajuda". Freud no se deixou persuadir: um s olhar para sua expresso foi suficiente para "convencer-me de que ela no levava a srio seu pedido" .)1 E em 1907, quando ouvia um analisando conhecido como "Homem dos Ratos", observou em seu rosto "uma expresso composta, muito estranha", quando o paciente relatava, com evidente -repulsa, certos castigos especialmente sdicos praticados no Oriente. Freud decidiu ler essa expresso como "de borrar por um prazer que sentia e que ele mesmo desconbecia"," Foi uma pista tnue, mas suficiente para apoiar uma interpretao grave e decisiva, como depois se revelaria. Um observador em sintonia to fina com os estados de esprito e os significados no poderia deixar de ter conscincia de seu publico. A nova cincia de Freud era desconhecida, e em muitos aspectos repulsiva; no oferecia conforto algum ao puritano e nenhuma recompensa ao lascivo. Associava-se, em nome da cincia, mais crassa superstio: a interpretao dos sonhos. Pior ainda, atacava a humanidade em seu ponto mais vulnervel: a autoestima. Se Freud no fosse um cientista da mais absoluta probidade, recusando-se decididamente a diluir sua mensagem ou sair caa da popularidade, a aceitao da psicanlise teria vindo antes. E se, apesar de toda a sua probidade, Freud no fosse um advogado de gnio, a aceitao da psicanlise viria com grande atraso. Todas as suas estratgias de persuaso vm de que ele se apresentava como um explorador refazendo seus passos para um ouvinte inteligente e compreensivo, embora pouco informado. Deixa implcito que sua extenuante viagem compensou amplamente as provaes com as descobertas inesperadas e sem precedentes que surgiram pelo caminho, culminando com a histrica soluo de um antigo mistrio, o enigma da Esfinge. Freud reconheceu, sem constrangimento por seus fracassos ou orgulho em sua modstia, que por vezes seguiraNotas:51. Fragment of an AnalysiJ, SE VII, 120; Bruchucl: einer Hystene-Anaiyse, GW V, 284850 520 Notes upon a Caseof Obsessional Neurosis [Casodo "Homem dos Ratos"], SE X, 16667; Bemerkungen 6er einen Fali uon Zulangsneurose, GW VII, 392.Pag. 32direes erradas; vrias rotas sedutoras deram em nada, e terrenos que pareciam promissores s renderam poos secos. Porm, cogitou ele, talvez esses desvios frustrantes fossem o destino caracterstico do homem que vai na frente, do pioneiro que abre caminho a machadadas na selva desconhecida, para que outros possam passar em segurana - e depois trat-la com condescendncia. Reconhecia que as rotas que fora obrigado a seguir, conforme seus marcos de orientao, pareciam tortuosas, e os despojos que reivindicava eram intragveis. Sabia que seus crticos o chamavam de doutrinrio e autoritrio, e lamentava as metforas to utilizadas para desacredit-la: at onde seu autoconhecimento lhe mostrava, no era um pai ciumento nem um poltico manipulado r, nem profeta louco nem papa infalvel. Freud teve que insistir na autenticidade de suas descobertas chocantes porque, por mais escandalosas que fossem, eram autnticas; a suprema corte da experincia, alm da qual no h apelo racional, confirmava continuamente seus achados. verdade que ningum ainda se tinha permitido lanar mais do que um breve olhar escandalizado s realidades fundamentais que ele fora o primeiro a desnudar; esse temor no passava de uma vasta resistncia coletiva, provando no que suas desagradveis asseres fossem falsas, mas sim que eram desagradveis. Afinal, sob disfarces adequados - nos mitos, contos de fadas e tragdias, nos aforismos dos moralistas e na sabedoria popular das babs - essas verdades j tinham por vezes subido superfcie da conscincia humana, para serem logo novamente reprimidas. Freud acreditava que era capaz de compreender essa resistncia e explic-las, assim como os fatos que a provocavam. Conseguia ser to generoso e compreensivo porque era um homem razovel, falando a outros homens razoveis; ele e seu pblico, afinal, compartilhavam a mesma cultura literria e os mesmos valores morais. Se Ihes citasse Goethe ou Shakespeare, eles reconheceriam a aluso; se lamentavam a bestialidade humana que ele desvelara, o mesmo sentia ele. Freud era capaz, em suma, de compreender sem dificuldade por que seus ouvintes hesitavam e objetavam: pois j no percorrera aquele caminho antes deles, experimentando as mesmas hesitaes, apresentando as mesmas objees?Pag. 33Sua capacidade de sentir os sentimentos de seu pblico, seu dom de antecipar-se s objees, e assim desarm-las, foi o que fez de Freud, como afirmei, um advogado de gnio. Foi sua empatia, elevada a um princpio de estilo, que o fez conquistar a confiana de seus leitores e ouvintes, passando ento, diante deles, a desenvolver sua argumentao, mostrar sua evidncia e construir as provas em que apoiaria suas concluses. Foi esse estilo baseado na empatia que o fez escrever algumas obras - e no s de popularizao - em forma de dilogos, dando a seus adversrios argumentos slidos que mantinham o interesse do debate e o foravam a levar seus poderes de persuaso at o limite mximo. por isso, tambm, que reconhecia sua ignorncia de certos trechos, suas curas incompletas, ou mesmo fracassos completos, e tambm suas mudanas de ideia, apresentadas em ps-escritos simples e objetivos, porm poderosos. Sua cincia, como ele no se cansa de repetir, explcita e implicitamente, ainda muito jovem, afinal, e sempre ser difcil. Havia um quadro no consultrio de Freud , na parede mais estreita, acima de um armrio de vidro repleto de antiguidades, que, bem interpretado, documenta suas aspiraes estilsticas. uma reproduo da pintura de Brouillet mostrando o grande Charcot no trabalho, La leon clinique du Dr. Charcot, uma das mais melodramticas representaes de uma atuao intelectual na histria da arte. Enquanto um assistente segura uma paciente histrica no meio de um ataque, Charcot disserta sobre o caso, falando a uma atenta plateia. No como vente obiturio que Freud escreveu por ocasio da morte de Charcot, em agosto de 1893, compreendemos as razes de sua escolha, e da ateno que as demonstraes pblicas de Charcot mereciam e recebiam. Freud trabalhou com esse pioneiro neurologista parisiense de outubro de 1885 a fevereiro de 1886, um contato que se revelou de importncia capital para seu desenvolvimento como psicopatologista. Veio a conhecer Charcot bastante bem. Com outros estudantes o acompanharam em suas rondas na Salptrire , identificando os males dos doentes mentais ali internados; um Freud surpreso fizera papel de Ado para o Deus que era Charcot, obtendo esplndido "prazer intelectual" quando Charcot no-Pag. 34meava as doenas sua frente. Pode-se ler no obiturio que Freud fez desse mestre sua crescente insatisfao com as teorias, as prticas e as grandes hesitaes da medicina vienense; revela tambm com igual clareza que tipo de cientista e mdico dedicado cura Freud esperava se tornar. Essa identificao no foi passageira; Freud haveria de recordar e mencionar Charcot ao longo de toda a sua vida. Charcot, escreve ele em 1893, era um observador inigualvel, um homem de marcada orientao visual, que aprendera, e ensinava os outros, a suplantar a teoria por meio de experincia. Tinha justo orgulho de suas descobertas, e um "honesto prazer humano por seus grandes sucessos". Como Freud, no sofria de falsa modstia, e gostava de "falar sobre seus primeiros tempos e sobre o caminho que percorrera". Era um trabalhador incansvel, um chefe generoso que colocava suas descobertas disposio de seus alunos, e um cientista de grande discernimento, capaz de distinguir entre um conhecimento slido e uma conjectura inteligente: "Por vezes punha de lado sua autoridade e confessava que um caso no admitia nenhum diagnstico, ou que em outro as aparncias o tinham enganado". E essa sinceridade unia a essncia de Charcot e seu estilo, pois, segundo Freud, "nunca parecia mais admirvel a seus ouvintes do que quando, ao fazer o mais minucioso relato de seus processos de raciocnio, com total franqueza quanto s suas dvidas e reservas, esforava-se para diminuir o abismo entre professor e aluno". Mais tarde Freud haveria de empregar as mesmas tticas para os mesmos fins. A franqueza de Charcot em suas sesses informais de todas as semanas, as famosas Leons du mardi, encon trava paralelo na elegncia de suas conferncias formais, cada uma delas, segundo as palavras admirativas de Freud, "uma pequena obra de arte quanto construo e composio".53 Ao traduzir dois livros de Charco t, Freud realizou um ato de devoo, alm de incorporao intelectual. Mas Freud no nascera para ser epgono. Admirando Charcot, tornou-se ele mesmo; o que Charcot lhe ensinou, acima de tudo, foi que os artifcios que melhor funcionam so os mais naturais - em suma, queNotas:53. Charcos, SE III, 11-18; Charcos, GW I. 21-29.Pag. 35a honestidade a melhor estratgia. Escreveu seus livros da mesma forma que praticou a psicanlise: responsavelmente. Sabia, por exemplo, que poderia exercer um efeito benfico sobre "Dora " deixando-a acreditar que era importante para ele; porm rejeitava esse tipo de terapia operacional. "Sempre evitei desempenhar papis, e me contentei com a arte menos pretensiosa da psicologia.' 54 A ironia transparente; Freud no era um homem humilde.(subttulo) O Burgus como revolucionrioEnquanto a prosa de Freud era sumamente adequada a seus propsitos, seus aposentos - voltando a eles por um momento - ofereciam um sugestivo contraste com as ideias que ali eram geradas. como se ele estivesse fabricando explosivos numa sala de visitas. Freud foi um burgus irrepreensvel, que criou para si um ambiente inequivocamente burgus, mas que, ao mesmo tempo, desenvolveu teorias sobre a natureza e a conduta humanas mais subversivas que qualquer conjunto de ideias da histria. Essa impresso de espantosa audcia j esmaeceu, como inevitvel, com a aceitao de sua psicologia, a penetrao de seu vocabulrio na fala comum e as insistentes tentativas - contra as quais Freud advertiu mais de uma vez - de atenuar suas arestas. s depois que se reconstri a atmosfera mental e as crenas cientficas do final do sculo XIX que a revoluo de Freud emerge em toda a sua estatura. No entanto, ele fez sua revoluo no ambiente menos revolucionrio possvel. Seus estandartes e slogans so invisveis. O que ficava em evidncia eram fotografias de amigos, discpulos, membros de sua famlia, e a mencionada profuso de coisas em seu apartamento, seu amontoamento ordeiro: esttuas aglomeradas, fotos se tocando em pequenas superfcies, quadros meio escondidos por outros quadros. Uma foto do Mos de Michelngelo, tema de um clebre ensaio de Freud, mal se reconhecia, espiando por cima de outro quadro e de algumas estatuetas orientais. Parecia no haverNotas:54. Fragment ofan Analysis, SE VII, 109; Bruchstck einer Hystene-Analyse, GW V, 272.Pag. 36lugar para mais nada. Com efeito, o espelho de moldura elaborada que pendia, para surpresa do visitante, da janela do gabinete de Freud, foi um presente ali colocado justamente porque no havia mais espao em nenhum outro lugar do aposento. O famoso div analtico de Freud era o exemplo mais conspcuo dessa autoindulgncia domstica: era coberto por um pesado tapete, com macias almofadas e mantas, e pelo seu formato o paciente no ficava propriamente deitado, mas reclinado. Berggasse 19 era prdiga nesse excesso visual e tctil que hoje quase obrigatrio chamar de "conforto burgus". Esse epteto fcil, complacente, inexato e enganador; suscita, como veremos, muitas questes. Mas diz alguma coisa sobre os gostos e as escolhas de Freud: ele vivia como aquele tipo de profissional respeitvel cujo modo de pensar ele haveria de solapar irreparavelmente. A impecvel respeitabilidade de Freud j foi tema de muitos comentrios, porm merece mais uma explorao. Seu anseio de vida domstica assumia a forma convencional da classe mdia: comodidade, plenitude modesta - conforto, Bebaglichkeit. Em agosto de 1882, escrevendo a Martha Bernays durante seu longo e sacrificado noivado, fez uma lista das coisas de que precisariam para seu' 'pequeno mundo de-felicidade": dois aposentos, algumas mesas, camas, espelhos, poltronas, tapetes, loua e copos para uso dirio e festivo, um enxoval decente de cama e mesa, chapus com flores artificiais, grandes molhos de chaves e uma vida repleta de atividade significativa, afetuosa hospitalidade e amor recproco. "Devemos fazer nossos coraes dependerem de coisas to pequenas? Enquanto um destino mais alto no bater nossa tranquila porta - sim, e sem apreenses.'55 As fantasias de Freud eram as mesmas que geraes de namorados teceram juntos, olhando vitrines e lendo anncios - aspiraes total e assumidamente burguesas. Uma vez estabelecido, Freud fez tudo o que se espera de um bom burgus. Trabalhou duro, preocupou-se com dinheiro, amou sua mulher, teve seis filhos; jogava cartas, frequentavaNotas:55. Carta de 18 de agosto de 1882. Freud, Briefe , 29.Pag. 37reunies de uma sociedade, usava uma tabuleta na porta - "Prof. De. Freud"; fumava charutos e saa de frias. Foi um pai de famlia responsvel, e embora inacessvel em suas longas e absorventes horas de trabalho, e muitas vezes ausente, mesmo nas longas frias de vero, colocava-se emocionalmente disposio dos filhos. Seu filho Martin conservou por toda a vida a tocante lembrana de como o pai resolveu um impasse humilhante em que o garoto cara. Saindo para patinar no gelo, com um irmo e uma irm, levou um tapa de um estranho devido a uma observao que no fizera; seu bilhete, vlido para toda a estao, foi confiscado pelo funcionrio, e (o mais humilhante para um menino com a cabea cheia de romnticas ideias de vingana) recebeu o oferecimento de um advogado para. processar esse agressivo estranho. Quando as crianas voltaram para casa, cheias dos acontecimentos dramticos do dia, Freud as ouviu com ateno e ento pediu a Martir que lhe contasse, em particular e com detalhes, o incidente inteiro. O que o pai disse para apaziguar os sentimentos do menino e lhe restituir o orgulho, o filho no reteve por muito tempo. "Creio", escreveu ele com gratido, muitos anos depois, "que isso tpico de todo tratamento bem sucedido ao lidar com um trauma: a gente esquece no s o ferimento mas tambm a cura" .)6 Freud era um homem muito ocupado, mas quando se precisava dele, estava presente. No seria esse o estilo de um bomio desenfreado, nem de um gnio absorto em si mesmo. A atitude de Freud para com a sexualidade, que afinal a chave de sua cincia, coerente com essa imagem. "Voc acredita", foi a pergunta retrica do eminente psicanalista Heinz Hartmann, "que Freud, esse burgus austraco eminentemente respeitvel, gostou de sua descoberta da sexualidade infantil?" j7 De fato, Freud se apresentava em pblico como um Colombo relutante, e no temos razo para questionar esta auto avaliao. Em abril de 1896, falando em Viena perante a Associao de Psiquiatria e Neurologia, insistiuNotas:56. Martin Freud, Sigmund Freud: Man and Father (1958). 43. 57. Conversa particular com o autor, 21 de junho de 1967.Pag. 38que, ao destacar o "elemento sexual" na etiologiada histeria, no estava seguindo" nenhuma opinio preconcebida de minha parte". Com efeito, "os dois investigadores com quem iniciei, como discpulo, meu trabalho sobre histeria, Charcot e Breuer, estavam longe de tal pressuposio; na verdade eles a confrontaram com uma averso pessoal que eu tambm compartilhei de incio" . Foram apenas" as investigaes mais laboriosas e detalhadas" que converteram Freud ao seu ponto de vista, "e mesmo assim com bastante vagar" .)8 A descoberta da sexualidade infantil lhe foi muito mais dolorosa, e retardada por uma resistncia muito mais forte, do que sua teoria sobre as origens sexuais da histeria. H uma prova eloqente, embora involuntria, dessa resistncia: em A Interpretao dos Sonhos, Freud observa de passagem que' 'enaltecernos a felicidade da infncia porque ela ainda no conhece o apetite sexual" - e isso vem do mesmo investigador que fez da sexualidade infantil o tema de estudos cientficos, e no prprio livro em que prenunciava o complexo de dipo. Foi s na terceira edio, em 1911, que Freud acrescentou uma nota de advertncia a essa extraordinria passagem, expressando suas reservas sobre a felicidade e a inocncia da infncia. Porm nunca exorcizou sua afirmao original, e ali continua ela, como um monumento pr-histrico tenacidade de uma atitude mais antiga, menos controversa." Se as idias de Freud sobre a sexualidade eram inesperadamente complexas e ambguas, sua atitude para com as artes era convencional, simples e sem ambiguidades. O que o diferenciava do burgus. vienense mdio no era tanto seu gosto como sua sinceridade; enquanto muitos iam pera para serem vistos em pblico e se entediarem em particular, Freud raramente ia pera, para no se entediar. Pode-se confiar que ele tinha total conscincia desses sentimentos, e explorava suas possveis origens. Em seu ensaio sobre o Moiss de Michelngelo, um agradvel documento para os que gostam de denegri-lo como tpico filisteu, Freud admite com franquezaNotas:58. The Aetiology of 'Hysteria, SE m, 199; Zur Atiologie der Hysterie , GW I, 435. 59. Ver The Interpretation of Dreams, SE IV, 130; Traum deetung ;GW lI-IlI, 136 e 136n. Ver tambm a nota editorial em SE VII, 128-29.Pag. 39que retirava mais prazer dos temas de artes do que de suas "propriedades formais e tcnicas", mesmo sabendo que os artistas a valorizam precisamente por essas qualidades. Seu principal prazer com a literatura e a escultura, e, num grau bem menor, com a pintura e a msica, era explorar os efeitos que causavam sobre ele. "Nas reas em que no posso fazer isso, como por exemplo na msica, sou quase incapaz de sentir prazer. 60 Considerando sua ampla cultura e sua facilidade de aluses literrias, parece deselegante e injusto tach-lo de filisteu. Mas a apropriao que fazia dos bens culturais sugere algo que eu chamaria de filistinismo de alto nvel, um consumo de cultura no tanto pela cultura em si, mas pela luz que ela pudesse lanar sobre os enigmas cientficos que mais o interessavam, quase excluindo todo o resto. Hanns Sachs relata que numa rara ocasio em que Freud foi convencido a ir ao teatro para assistir produo de Max Reinhardt de dipo Rei, gostou muito da noite, mas o que lhe deu prazer, mais que a encenao, foram as ideias psicanalticas que a tragdia lhe despertou. Freud obrigava a alta cultura a render proveito. Entretanto, a suposta contradio entre Freud, o conformista burgus, e Freud, o cientista intransigente, quase totalmente artificial. Deriva da identificao plausvel de burgus com o convencional, algo que j se tornou em si uma conveno. No fim dos anos 60 e na dcada de 70, quando Freud era jovem, o termo burgus se tornara um insulto entre artistas, escritores e crticos sociais de vanguarda. G burgus era, numa palavra, intolervel. Porm o que o fazia intolervel permanecia sujeito a discusso. Alguns o maldiziam como um explorador cruel da sociedade, de seus operrios, de sua famlia e de si mesmo - um materialista que em sua corrida febril atrs do lucro no se detinha perante coisa alguma; um homem de rosto duro, filosofia utilitria e onipotente talo de cheques. Outros condenavam o burgus como tmido defensor do status quo , sempre em busca de investimentos seguros, opinies seguras e ligaes emocionais seguras umNotas:60. The Moses of Michelangelo, SE XIII, 211; Der Moses des Michelangelo, GW X, 172.Pag. 40homem de poltica conservadora, chinelos confortveis e guarda-chuva a postos. Naturalmente, alguns engenhosos tericos da poca encontraram meios de reconciliar essas denncias conflitantes, encarando-as como estgios sucessivos no desenvolvimento histrico. Segundo esse ponto de vista, o burgus comeou como pirata e terminou como proprietrio. Mas fosse ele uma coisa ou outra, ou mesmo ambas, permanecia a opinio de que o burgus amava o dinheiro e odiava a arte. E ousado ou tmido. era um incorrigvel hipcrita quanto a seus gostos culturais e seu comportamento sexual. O ideal moderno de privacidade, to tipicamente burgus, era pouco mais que uma conveniente mscara atrs da qual podia enganar seu vizinho, entregar-se a suas vulgaridades e desfrutar suas amantes. Por mais incisivos que sejam esses ataques respeitabilidade, por mais perceptivos os crticos que os formularam, havia muito mais coisas na cultura burguesa oitocentista. A palavra bipcrua um epteto tendencioso que impede uma investigao objetiva do inevitvel hiato entre afirmaes e atuao pblica. Seja como for, nem todos os burgueses eram hipcritas, e nem todos os hipcritas eram burgueses. Os operrios, camponeses e aristocratas normalmente amavam o dinheiro, e muitos no odiavam a arte apenas no sentido de serem totalmente insensveis a ela. Alm disso, no havia um nico cdigo de conduta ou um s tipo de heri que definisse bem a classe mdia como um todo; os mercadores de Manchester ou Hamburgo, cheios de autoconfiana, tinham uma noo de si mesmos completamente diferente da de seus colegas burgueses mais dependentes, de Munique ou Viena. No por acaso que as ideias radicais e a arte de vanguarda, que se difundiram cada vez mais pela cultura europeia na segunda metade do sculo, foram em boa parte obra de pensadores e escritores burgueses: poucos, como Marx e Engels, eram renegados conscientes de sua classe. Ser, como Freud, consumado revolucionrio e consumado burgus no era de forma alguma um paradoxo, uma anomalia, ou mesmo uma raridade. No necessrio, portanto, sair dos limites da cultura burguesa para explicar Freud. A luta pela respeitabilidade, a disputa sobre o lugar das paixes na conduta, era inerente elasPag. 41se mdia. As opinies de Freud sobre a camada social a que pertencia e onde se movimentava com desenvoltura esclarecem a natureza dessa luta e definem as questes nela envolvidas. Com uma sensibilidade para as nuances que hoje difcil imaginar, os europeus dos sculos XIX notavam as manifestaes de classe, e usavam a linguagem de sua classe. A movimentao dentro de cada classe - ou, para os mais afortunados e os .mais desafortunados, a movimentao entre uma classe e ou tra - era o prato bsico dos mexericos e da poltica familiar, das peas de teatro e dos romances. Os esforos para subir, ou as manobras para fazer os filhos subirem, eram a verdadeira essncia da maior parte das estratgias sociais - da escola que se procurava, do parceiro de casamento que se considerava adequado, do gosto que se desenvolvia ou se demonstrava, da linguagem que se falava ou se afetava. A escadaria das classes era longa, ngreme, com muitos degraus. Havia muitas maneiras de ser burgus - como, alis, de ser qualquer outra coisa. Sob essas distines refinadas, porm, havia as divises mais grosseiras com que todos lidavam. E cada classe, segundo Freud, tinha sua relao particular com a cultura, sobretudo na maneira de satisfazer ou restringir a vontade. Segundo a viso de Freud - alis tpica do sculo XIX - a classe mdia se situava no meio, entre as "classes baixas", que no tinham condies financeiras de sustentar o autocontrole e nunca o aprenderam; e a aristocracia, que podia sustentar a auto-indulgncia e no a desaprendera. O grande debate sobre a cultura, de que participavam crticos to diversos como Nietzsch