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r Os Métodos da Etica Henry Sidgwick Tradução e Introdução de Pedro Galvão FUNDAÇAO CALOUSTE GULBENKIAN

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INTRODUÇÃO, DIVULGAÇÃO

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Os Métodos da EticaHenry Sidgwick

Tradução e Introdução

dePedro Galvão

FUNDAÇAO CALOUSTE GULBENKIAN

Page 2: Sidgwick.henry.os.Metodos.da.Etica Introdução

The Methods of Ethics

Reservados todos os direitos de acordo com a lei Edição da

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN Avenida de Berna | Lisboa

2013Depósito Legal N° 362822/13

ISBN 978-972-31-1488-1

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INTRODUÇÃO

Os Métodos da Ética, de Henry Sidgwick, conta-se entre as obras-primas incontomáveis da ética filosófica - é o que asseveram muitos dos melhores filósofos morais do nosso tempo. John Rawls refere-se a este livro como «a obra filosoficamente mais profunda» do utilitarismo clássico, a teoria defendida por Jeremy Bentham, e mais tarde por J. S. Mill, que propõe a promoção da felicidade geral como padrão ético fundamental.1 Peter Singer, um utilitarista que não hesita em descrever Os Métodos da Ética como o me­lhor livro de ética jamais escrito, justifica deste modo a sua apreciação: «Não é fácil apontar questões importantes de ética normativa que não sejam abordadas já aí - e muitas vezes é difícil ir além daquilo que Sidgwick diz.»2 Derek Parfit, subscrevendo o veredicto de Singer acerca da im­portância cimeira dos Métodos na ética filosófica, sustenta que a obra «contém o maior número de teses verdadeiras e importantes»3.

Não seria difícil encontrar muitas outras expressões se­melhantes deste apreço invulgar por Os Métodos da Ética.

1 Cf. «Foreword to the Methods o f Ethics» in Henry Sidgwick, The Methods o f Ethics, Indianapolis e Cambridge, Hackett Publishing Com­pany, 1981, p. v.

2 Cf. entrevista a Peter Singer em Normative Ethics: 5 Questions, org. por Thomas S. Petersen e Jesper Ryberg, Automatic Press/VIP, Novembro de 2007.

3 Cf. On What Matters: Volume One, Oxford, Oxford University Press, 2011, p. xxxiii.

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Assim, parece um pouco estranho que Sidgwick, mesmo nos países anglófonos, não se inclua hoje entre os filósofos morais mais estudados. No campo utilitarista, Mill perma­nece o autor de eleição nas disciplinas de ética. E o corpo de estudos sidgwickianos, apesar de ter vindo a crescer assinalavelmente desde o final do século passado, é ainda bastante magro. Como se explicará esta situação? Em parte, sem dúvida, pela dimensão dos Métodos - um livro longo e intrincado, difícil de encaixar na lista de leituras de uma cadeira de licenciatura.1 Além disso, Sidgwick sobressai pela sua prosa exemplarmente clara (mas também «seca», sem cedências ao virtuosismo literário), bem como pela sua argumentação invulgarmente explícita. E assim, por não precisar muito que o expliquem e interpretem, acabou por nunca alimentar uma indústria exegética. Podemos discer­nir ainda outra razão do relativo apagamento de Sidgwick na seguinte descrição que Arthur Balfour - seu cunhado e primeiro-ministro do Reino Unido entre 1902 e 1905 - nos oferece dele:

De todos os homens que conhecí, nenhum tinha maior prontidão para considerar qualquer controvérsia e qualquer controversista pelos seus próprios méritos. Ele nunca recla­mava autoridade; ele nunca procurava impor as suas próprias perspectivas; ele nunca argumentava tendo em vista a vitória; ele nunca fugia a uma questão.2

1 Na entrevista citada, Peter Singer afirma o seguinte a este respeito: «lamento que Utilitarismo, de Mill, apesar de ser um livro escrito apressa­damente e de estar repleto de argumentos duvidosos, seja muito mais lido do que Os Métodos da Ética, de Sidgwick. (...) Se os estudantes o consi­deram demasiado longo, pelo menos há que encaminhá-los para os últimos dois capítulos do Livro III, todo o Livro IV e o Capítulo Final. Mas há mais pessoas a ler Mill, em grande medida, sem dúvida, porque ele é um autor mais conciso e elegante.»

2 Cf. E. M. Sidgwick e A. Sidgwick (eds.), Henry Sidgwick, A Memoir, Londres, MacMillan, p. 311.

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Este retrato psicológico reflecte-se nitidamente nos Métodos. Apesar de Sidgwick ser um utilitarista, não está empenhado em empreender propriamente uma defesa do utilitarismo, isto é, em estabelecer cabalmente a superio­ridade desta teoria em relação às concepções morais al­ternativas. O seu objectivo, anunciado logo no Prefácio à Primeira Edição, é antes expor e criticar os métodos éticos mais salientes - sendo o utilitarista um deles - «a partir de uma posição neutra e tão imparcialmente quanto possível». Assumindo esta posição; e desenvolvendo a sua investiga­ção com um conhecimento profundo da história do pensa­mento ético ocidental, Sidgwick revela-se muito sensível não só às dificuldades que se colocam ao utilitarista, mas também às virtudes das perspectivas adversas ao utilita­rismo. Os Métodos da Ética não é, pois, uma obra talhada para atrair uma legião de seguidores de uma doutrina. Há que lê-la, antes de mais, como uma investigação rigorosa e desapaixonada sobre as diversas formas do raciocínio ético, os seus limites e as relações que mantêm entre si.

Sidgwick: elementos biográficos

Henry Sidgwick nasceu em 1838 e morreu em 1900. A sua vida - toda ela compreendida no período vitoriano - é indissociável da Universidade de Cambridge. Foi aí que Sidgwick estudou, frequentou o grupo de discussão secreto «Apóstolos» e desenvolveu a sua carreira acadêmica, tendo acabado por se tomar, em 1883, Knightbridge Professor of Moral Philosophy. Antes disso, em 1869, abdicara do seu lugar na universidade por uma questão de honestidade. Considerava-se incapaz de subscrever os Trinta e Nove Artigos da Igreja Anglicana, como lhe era exigido. O seu prestígio no meio universitário, contudo, levou à criação de um lugar que não incluía essa exigência. Sidgwick pôde

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assim retomar o seu intenso percurso acadêmico, marcado não só pela dedicação à investigação, mas também pelo seu empenho em reformas profundas do ensino universi­tário, tendo promovido, neste domínio, uma valorização das ciências e da literatura moderna, bem como uma maior independência para a actividade filosófica.

Em 1876, Sidgwick casou-se com Eleanor Mildred Bal­four. Com ela, ajudou a criar o Newnham College, que em Cambridge foi o primeiro estabelecimento de ensino superior destinado às mulheres. Também em estreita co­laboração com Eleanor, envolveu-se em investigações do paranormal, tendo sido, aliás, o primeiro presidente da So­ciety for Psychical Research, ainda hoje activa.

A obra filosófica mais importante de Sidgwick é, sem dúvida, Os Métodos da Ética, que foi revista esmerada­mente ao longo de décadas após a sua primeira edição, publicada em 1874. Contudo, o pensamento de Sigdwick está longe de se esgotar neste livro e ultrapassa largamente o domínio da ética. Além de muitas publicações póstumas, bem como de ensaios e artigos sobre os mais diversos as­suntos, Sidgwick é o autor de The Principles o f Political Economy (1883), Outlines o f the History o f Ethics for En­glish Readers (1886), The Elements o f Politics (1891) e ainda da colecção de ensaios Practical Ethics ( 1898).

Sobre si mesmo, Sidgwick afirmou o seguinte:Embora sem muita fama, ele não tinha inveja. Mas tinha

um forte realismo. Via o que se considerava cínico ver: o que há de absurdo em muitas pessoas, o que há de pomposo em muitos credos, o esplêndido zelo com o qual os missionários se precipitam a ensinar aquilo que não sabem, a maravilhosa gravidade com a qual a maior parte das soluções incompletas do universo nos são impostas como se fossem completas e satisfatórias.1

1 Cf. E. M Sidgwick e A. Sidgwick, Op. cit., p. 395.

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Este «forte realismo» e a humildade intelectual que dele decorre estão bem presentes em Os Métodos da Ética da primeira à última página.

Os três métodos

Como se toma claro logo no primeiro dos quatro livros que compõem os Métodos, Sidgwick advoga uma concep­ção da investigação ética que o demarca de muitos dos seus predecessores. Não apelá a pressupostos teológicos, não está muito interessado na natureza da faculdade moral, defende que o problema do livre-arbítrio é destituído de re­levância moral significativa - pretende, enfim, desenvolver o estudo do raciocínio ético sem se enredar em questões metafísicas que julga serem-lhe exteriores. Contudo, não pensa que este estudo possa basear-se legitimamente nas ciências empíricas. A ética não é um ramo da psicologia ou da sociologia, dado que, por oposição a estas disciplinas, tem um carácter irredutivelmente prescritivo ou normati­vo - ocupa-se do que devemos fazer ou valorizar, e não do comportamento real dos seres humanos. Deste modo, Sidgwick concebe a ética como uma investigação dotada de uma grande independência ou autonomia.

Um método da ética, no entender de Sidgwick, é uma forma de raciocinar com o objectivo de descobrir que acção é correcta, ou seja, aquilo que se deve fazer em determi­nadas circunstâncias. De uma forma um tanto inconsciente e confusa, as pessoas empregam diversos métodos quando tentam indagar racionalmente o que fazer, os quais, segundo Sidgwick, se deixam reduzir a três: os métodos do egoís­mo, do utilitarismo e do intuicionismo dogmático. Cada um destes métodos baseia-se num princípio ético distinto, designado do mesmo modo.

De acordo com o princípio do egoísmo (ou hedonismo egoísta), devemos realizar os actos que maximizem a nossa

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própria felicidade. O princípio utilitarista (ou do hedonismo universalista) diz-nos antes que devemos maximizar a feli­cidade geral. Estes princípios têm um carácter teleológico. Admite-se que há um bem último ou fundamental, aqui identificado com a felicidade, e depois concebe-se a acção correcta como aquela que, comparada com as acções alter­nativas, mais promove esse bem. Mas importa promover a felicidade de queml É aqui que surge a diferença crucial entre as duas formas de hedonismo. Enquanto o egoísta pensa que cada agente deve ter em vista, em última análise, apenas o seu próprio bem, o utilitarista advoga uma impar­cialidade estrita quando à promoção do bem, alegando que não há razões para o agente dar mais peso à sua felicidade do que à felicidade de qualquer outro ser humano. E mes­mo os animais - na medida em que são sencientes e, por isso, têm uma vida mental que lhes pode correr melhor ou pior - não podem ficar excluídos da ponderação imparcial da felicidade.

Usando a terminologia actual, vale a pena acrescentar que o utilitarismo que Sidgwick tem em mente é uma ver­são - a versão ainda hoje mais influente, na verdade - de consequenda!ismo de actos: a perspectiva segundo a qual devemos realizar sempre os actos que resultem nas melho­res consequências, isto é, nos estados de coisas intrinse- camente mais valiosos. Na avaliação de estados de coisas alternativos, declara o consequencialista, há que adoptar uma perspectiva maximamente abrangente e impessoal - 0 «ponto de vista do universo», para usar uma expressão que se deve ao próprio Sidgwick - , o que implica não atribuir um peso privilegiado nem aos nossos próprios interesses, nem, por exemplo, aos interesses dos nossos amigos e familiares, dos nossos concidadãos ou dos membros da nossa espécie. Um consequencialista será um utilitarista se acrescentar, em primeiro lugar, que o valor intrínseco a promover consiste somente no bem-estar (ou felicidade)

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des indivíduos e, em segundo lugar, que a distribuição do bem-estar (ao longo do tempo ou por diversos indivíduos) nlo é intrinsecamente importante.

Quanto ao egoísmo, convém salientar que este é uma perspectiva normativa e que, portanto, não deve ser con- fUndido com o chamado egoísmo psicológico, que é uma perspectiva puramente descritiva sobre a motivação. Aceitar esta segunda forma de egoísmo é pensar que, de facto, os agentes humanos são motivados fundamentalmente apenas pela realização do interesse pessoal, pelo que são incapazes de agir de uma forma genuinamente altruísta. Sidgwick refere uma versão mais específica desta tese - o hedonismo psicológico, no qual se concebe o interesse pessoal como a maximização do prazer na vida do próprio agente. Além de rejeitar este tipo de hedonismo, Sidgwick considera in­coerente a posição de Mill, que julgou encontrar nele um fundamento para o utilitarismo.

O método do intuicionismo dogmático, ao invés dos outros dois, não decorre de uma perspectiva teleológica da ética. Baseia-se antes no princípio de que devemos agir segundo determinadas normas morais apreendidas por in­tuição. Este conjunto de normas pode ser descrito como a moralidade do senso comum. E esta, por sua vez, é classi­ficável como um exemplo de ética deontológica, para usar a designação que se tomou habitual na literatura filosófica especializada. Numa ética deste tipo, admitem-se diversos deveres que impõem restrições à promoção do bem pessoal ou geral. Uma expressão emblemática desta perspectiva encontra-se em David Ross, um autor bastante posterior a Sidgwick, Numa das obras mais influentes da ética filosófi­ca do século XX, The Right and the Good (Oxford: Oxford University Press, 1930), Ross afirma a existência de uma pluralidade de normas morais, correspondentes a deveres de fidelidade, de reparação, de gratidão, de justiça, de benefi­cência, de desenvolvimento pessoal e de não-maleficência.

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Todos estes deveres, à excepção do da própria beneficência, colocam limites à promoção do bem. O dever geral da fidelidade, por exemplo, exige o cumprimento da palavra, o que significa que muitas vezes será errado quebrar uma promessa mesmo que fazê-lo resultasseem melhores con­sequências. Ou consideremos o dever da justiça, que exige a distribuição em conformidade com o mérito. Mesmo que, em certos casos, dar mais aos que menos merecem resulte num maior bem, ainda assim geralmente será errado optar pela distribuição em desconformidade com o mérito. Em suma, aquilo que é correcto fazer depende de uma plurali­dade irredutível de factores eticamente relevantes, na qual a promoção do bem não ocupa um lugar privilegiado.

A questão de saber como conhecemos todos os nossos deveres gerais, Ross responde dizendo que os apreendemos intuítivamente. Considera que a norma de que devemos cumprir as promessas que fazemos, por exemplo, tem uma auto-evidência semelhante à de um axioma matemático. Esta é precisamente a perspectiva que Sidgwick encontra nos intuicionistas dogmáticos do seu tempo, como William Whewell.

Vejamos agora como Os Métodos da Ética se encontra organizado. Todos os três métodos são introduzidos logo no Livro I, onde Sidgwick também propõe análises cuidadosas e perspicazes dos conceitos éticos fundamentais. Os Li­vros II, III e IV centram-se, respectivamente, nos métodos egoísta, intuicionista e utilitarista.

Entre estes, o mais curto é o Livro II, que consiste numa discussão de três versões distintas do método egoísta. Sidgwick examina os méritos e as dificuldades inerentes a cada uma delas, acabando por concluir que a superior é a do método «empírico-reflexivo». Este método diz-nos, grosso modo, para antever o prazer e a dor expectáveis de cada acto alternativo, comparar as quantidades de prazer e de dor associadas a cada uma dessas alternativas e escolher

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depois a acção que, previsivelmente, resultará no maior pra- Eer para nós mesmos. Embora este procedimento envolva dificuldades muito consideráveis, que não deixam de ser perspicazmente salientadas, Sidgwick acaba por defender que as outras duas versões do método egoísta só conseguem evitá-las introduzindo dificuldades ainda maiores.

No Livro III, Sidgwick distingue três tipos de intui- eionismo: além do dogmático, temos ainda o estético e o filosófico. Só o primeiro, contudo, é propriamente um método da ética.

Ao intuicionismo estético Sidgwick não dispensa muita atenção, pois considera-o manifestamente inadequado. Este é a perspectiva segundo a qual a determinação do que é correcto fazer não envolve o recurso a quaisquer princípios; o agente simplesmente «vê», perante cada caso particular, que acção deve realizar.

O intuicionista dogmático sustenta que, para descobrir­mos o que devemos fazer numa dada situação, temos de aplicar as regras da moralidade do senso comum, deter­minando se os actos em consideração lhes são conformes. Muitas destas regras, em seu entender, têm um carácter axiomático. Empreendendo um exame profundo e minu­cioso da moralidade do senso comum, Sidgwick disputa esta pretensão. Argumenta que, na verdade, os princípios que o intuicionista dogmático toma como fundamentais são vagos, só se tomam credíveis quando devidamente quali­ficados e por vezes entram em conflito. O seu objectivo não é, de forma alguma, repudiar a moralidade do senso comum. Pretende-se somente apontar com clareza os limites do método intuicionista.

Fazendo uma incursão no campo da epistemologia, Sidgwick tenta identificar diversos critérios de auto- -evidência e reforça a conclusão de que as regras enfatiza­das pelo intuicionista dogmático, não sendo genuinamente auto-evidentes, não podem ser tomadas como axiomas. No

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entanto, acrescenta Sidgwick, há um pequeno conjunto de princípios morais que passam os testes de auto-evidência. Esses princípios, que são três, têm um carácter muito mais abstracto e é o seu reconhecimento que caracteriza o in- tuicionismo filosófico. Cada um deles capta uma forma de imparcialidade. O princípio da justiça é essencialmente um princípio de universalização: diz-nos que se é correcto uma dada pessoa realizar um acto de um dado tipo em certas circunstâncias, então é correcto qualquer pessoa semelhante realizar um acto desse mesmo tipo em circunstâncias seme­lhantes. O princípio do amor-próprio racional exprime um ideal de prudência: devemos ter em vista o nosso próprio bem, considerando com imparcialidade os diversos perío­dos da nossa vida. Não devemos dar menos importância a um bem que fruiremos, digamos, dentro de apenas dez anos do que a um bem igual que fluiremos dentro de dez minutos - a não ser na exacta medida em que o primeiro seja mais in­certo do que o segundo. Por fim, o princípio da benevolência racional exprime um ideal semelhante, só que decorrente de um ponto de vista universal: devemos ter em vista o bem dos diversos indivíduos, dando o mesmo peso ao bem de cada um deles. Assumido esse ponto de vista, não devemos, portanto, dar mais importância ao nosso próprio bem ou ao bem daqueles que nos são próximos. Só a dimensão dos bens em causa e o seu grau de incerteza justificarão privilegiar alguns indivíduos em detrimento de outros.

Estes três princípios não geram um método da ética, dado que, por si mesmos, não nos permitem chegar a con­vicções ponderadas sobre o que é correcto fazer. Contudo, constituem o núcleo duro do pensamento ético, do qual depende, em última análise, a credibilidade dos méto­dos examinados. Na base da ética utilitarista, sustenta Sidgwick, encontra-se o princípio da benevolência racio­nal. O utilitarismo apresenta-se assim, nos Métodos, como uma perspectiva assente numa intuição racional - e não,

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como no pensamento de Mill, no egoísmo psicológico, que consiste numa descrição empírica da motivação dos agentes humanos. Em autores como Mill, aliás, pressupõe-se uma oposição entre o intuicionismo e o utilitarismo. Sidgwick percebe que esta oposição é infundada, dado que o uti- litarista não cometerá qualquer inconsistência pelo sim­ples facto de procurar os fundamentos da sua perspectiva não em dados empíricos, procedendo por indução a partir deles, mas antes em princípios racionalmente auto-evidentes. Na verdade, Sidgwick rejeita a epistemologia empirista e sugere que os factos éticos, irredutivelmente normativos, não podem ser conhecidos através da observação.

Antes de concluir o Livro III, Sidgwick dá outro passo decisivo para a fundamentação filosófica do utilitarismo, que consiste em argumentar a favor de uma concepção hedonista do bem. Note-se que, no Livro I, também encon­tramos uma discussão do bem. Aí, no entanto, Sidgwick pretende sobretudo esclarecer o significado de «bem», ao passo que, no final do Livro III, o seu objectivo é defender uma teoria substantiva do bem, que nos diz que coisas são intrinsecamente boas ou valiosas.

No Livro IV, dedicado ao utilitarismo, Sidgwick não se limita a clarificar esta perspectiva. O seu objectivo mais importante é examinar a relação do método utilitarista tan­to com o intuicionismo dogmático como com o egoísmo. Manifestamente, Sidgwick desejaria concluir que os três métodos se harmonizam na perfeição, caso em que o seu emprego devido jamais levaria a conclusões práticas dis­crepantes — ou pelo menos, na impossibilidade de atingir esse resultado, que há uma forma de estabelecer a superio­ridade de um dos métodos em conflito. Contudo, no último capítulo, Sidgwick explica-nos que, a este respeito, o seu sucesso foi apenas parcial.

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Reconciliação e fragmentação

A relação entre os métodos utilitarista e intuicionista é objecto de um escrutínio minucioso. Revisita-se a mora­lidade do senso comum, agora para explicar como muitas das suas anomalias e limitações, previamente apontadas, se deixam iluminar e mitigar pela perspectiva utilitarista. Sidgwick toma como objectivo

mostrar como o utilitarismo sustenta a validade geral dos juízos morais correntes, e assim corrige os defeitos que a reflexão encontra no reconhecimento intuitivo da sua severi­dade, ao mesmo tempo que oferece um princípio de síntese, bem como um método para unir os princípios desconexos (e que entram ocasionalmente em conflito) do raciocínio moral comum num sistema completo e harmonioso.1

Importa observar que a moralidade do senso comum não é estática. O utilitarismo, acrescenta Sidgwick, oferece um padrão para reformá-la criteriosamente. A forma apropriada de reformar a moralidade do senso comum, aliás, é outra das questões que Sidgwick examina, acabando por propor uma perspectiva bastante mais conservadora do que as de Bentham e Mill. A sua atitude foi descrita vivida e um tanto exageradamente, numa recensão a The Elements o f Politics, pelo filósofo escocês David Ritchie:

Ele nunca chega a nenhuma conclusão que difira radical­mente das do homem típico da classe média (...) dos dias de hoje. O método é o de Bentham, mas não há nada do forte antagonismo crítico de Bentham às instituições do seu tempo, e o modo de pensamento é muito mais parecido com o que poderiamos esperar de um Blackstone do final do século XIX ou de um Hegel inglês: mostra-se a racionalidade da ordem existente das coisas, apenas com algumas modestas propostas

1 Cf. Os Métodos da Ética, pp. 591 -592

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de reforma. Se isto é benthamismo, é benthamismo domes- ticado e amaciado1.

Sidgwick conclui que os métodos do utilitarismo e do intuicionismo dogmático são reconciliáveis. Todavia, che­ga a uma conclusão diferente quando se ocupa da relação do utilitarismo com o egoísmo. Embora acredite que, na prática, há uma coincidência notável entre estes dois méto­dos, vê-se compelido a reconhecer que a convergência não é perfeita: em alguns casos, estes dois métodos parecem apoiar cursos de acções incompatíveis. Qual deles, então, terá maior autoridade racional? Num comentário aos Mé­todos, Sidgwick expõe deste modo a sua posição:

A par (a) da convicção fundamental de que devo sacrificar a minha própria felicidade, se ao fazê-lo puder aumentar a felicidade dos outros num grau que suplante a minha perda, tenho também (b) a convicção - a que seria paradoxal chamar «moral», mas que não é menos fundamental - de que será irracional eu sacrificar qualquer porção da minha felicidade, a não ser que o sacrifício seja de algum modo compensado, noutra altura, por um acréscimo equivalente na minha fe­licidade, Encontro estas convicções fundamentais, no meu pensamento, com toda a clareza e certeza que o processo da reflexão introspectiva pode oferecer. Também encontro um assentimento preponderante - pelo menos implícito - a ambas no senso comum da humanidade. E também encontro, numa apreciação global, uma confirmação da minha perspectiva na história do pensamento ético de Inglaterra.2

Sendo assim, os métodos utilitarista e egoísta estão em pé de igualdade quanto ao seu fundamento, pelo que, em caso de conflito prático, nenhum deles terá prioridade sobre

1 Cf. «Review: The Elements o f Politics, by Henry Sidgwick», Interna­tional Journal o f Ethics, 2,1891-2, p. 255.

2 Cf. «Some Fundamental Ethical Controversies», Mind, 14, 1889, p. 483