shatu

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Todas as manhãs de inverno são chatas e entediantes. Pelo menos para mim. Sentado em frente a um computador, digitando uma interminável monografia que serviria como passaporte para minha fuga daquele lugar, sentia que minha vida era vazia. Mas até aí tudo bem. Eu não tinha o que fazer fora daquela salinha úmida e sem graça. Enquanto eu devaneava sobre o quão chato uma manhã poderia ser, entrou na sala o professor José Costelo, meu orientador de pós-graduação. Um homem muito bom que, sinceramente, supervalorizava meu potencial acadêmico. O doutor Medeiros disse que você está muito atrasado com seu trabalho, Arthur. disse- me, enquanto eu me recompunha na esperança de que ele não tivesse me visto cochilar sobre o teclado do computador. Não estou tão atrasado assim. Termino essa coisa antes daquele velhote conseguir outra ereção. debochei mesmo sabendo que seria repreendido pelo alto senso de moral característico do doutor Costelo. Mas não foi o que aconteceu. Ele vai lhe dar um prazo. Acredito que seja curto e que você não conseguirá cumprir. Pela primeira vez em quase dois anos, ouvi algo do doutor Costelo que não era uma observação brilhante ou uma palavra de incentivo. Estranhei a maneira como não me olhava nos olhos. Está tudo bem, doutor? perguntei enquanto observava-o lendo atentamente um livro de capa verde, muito espesso. Por sinal, era uma de suas leituras prediletas nos últimos dias. Sim, claro. a resposta foi seca. Nitidamente, pretendia encerrar qualquer conversa. O doutor Costelo era um dos melhores amigos da minha família. Quando perdi meus pais num acidente automobilístico, ele se tornou uma espécie de padrinho. Acompanhou de perto a conclusão dos meus estudos escolares e vibrou ao saber que minha escolha profissional passava pelo curso de direito. Decidi ser promotor de justiça como meu pai e ele foram um dia. A verdade é que nunca tive aptidão com coisa alguma senão acessar a internet o dia todo em busca de qualquer trivialidade cômica. Quando terminei meus estudos no ensino médio, optei por aquilo que me era mais próximo. Meus pais eram defensores públicos. Ouvi sobre isso durante toda a minha vida. Meu avô, a quem coube a responsabilidade da minha tutela até os meus dezoito anos. Era muito grato ao doutor Costelo pelo apoio que me dava. Sempre dizia que eu precisava me espelhar naquele homem de ”reputação ilibada”. Para mim, o doutor Costelo era quase um pai. Durante a faculdade, não foram poucas as vezes que me salvou de notas ínfimas, explicando conceitos totalmente abstratos de forma efusiva. Seus olhos azuis brilhavam quando eu o indagava sobre qualquer assunto. Era alto e magro. Sua barba sempre feita e as vestimentas sempre muito alinhadas lhe conferiam um ar aristocrático que recebia arremate final quando usava os óculos quadrados, grossos e cinzas.

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Todas as manhãs de inverno são chatas e entediantes. Pelo menos para mim. Sentado em

frente a um computador, digitando uma interminável monografia que serviria como

passaporte para minha fuga daquele lugar, sentia que minha vida era vazia. Mas até aí tudo

bem. Eu não tinha o que fazer fora daquela salinha úmida e sem graça.

Enquanto eu devaneava sobre o quão chato uma manhã poderia ser, entrou na sala o

professor José Costelo, meu orientador de pós-graduação. Um homem muito bom que,

sinceramente, supervalorizava meu potencial acadêmico.

— O doutor Medeiros disse que você está muito atrasado com seu trabalho, Arthur. – disse-

me, enquanto eu me recompunha na esperança de que ele não tivesse me visto cochilar sobre

o teclado do computador.

— Não estou tão atrasado assim. Termino essa coisa antes daquele velhote conseguir

outra ereção. – debochei mesmo sabendo que seria repreendido pelo alto senso de moral

característico do doutor Costelo. Mas não foi o que aconteceu.

— Ele vai lhe dar um prazo. Acredito que seja curto e que você não conseguirá cumprir.

Pela primeira vez em quase dois anos, ouvi algo do doutor Costelo que não era uma

observação brilhante ou uma palavra de incentivo. Estranhei a maneira como não me

olhava nos olhos.

—Está tudo bem, doutor? – perguntei enquanto observava-o lendo atentamente um livro

de capa verde, muito espesso. Por sinal, era uma de suas leituras prediletas nos últimos

dias.

— Sim, claro. – a resposta foi seca. Nitidamente, pretendia encerrar qualquer conversa.

O doutor Costelo era um dos melhores amigos da minha família. Quando perdi meus pais

num acidente automobilístico, ele se tornou uma espécie de padrinho. Acompanhou de

perto a conclusão dos meus estudos escolares e vibrou ao saber que minha escolha

profissional passava pelo curso de direito. Decidi ser promotor de justiça como meu pai e

ele foram um dia. A verdade é que nunca tive aptidão com coisa alguma senão acessar a

internet o dia todo em busca de qualquer trivialidade cômica. Quando terminei meus

estudos no ensino médio, optei por aquilo que me era mais próximo. Meus pais eram

defensores públicos. Ouvi sobre isso durante toda a minha vida.

Meu avô, a quem coube a responsabilidade da minha tutela até os meus dezoito anos. Era

muito grato ao doutor Costelo pelo apoio que me dava. Sempre dizia que eu precisava me

espelhar naquele homem de ”reputação ilibada”. Para mim, o doutor Costelo era quase

um pai. Durante a faculdade, não foram poucas as vezes que me salvou de notas ínfimas,

explicando conceitos totalmente abstratos de forma efusiva. Seus olhos azuis brilhavam

quando eu o indagava sobre qualquer assunto. Era alto e magro. Sua barba sempre feita e

as vestimentas sempre muito alinhadas lhe conferiam um ar aristocrático que recebia

arremate final quando usava os óculos quadrados, grossos e cinzas.