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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção FRANCISCA CIRLENA CUNHA OLIVEIRA SUZUKI SÉFORA Estudo literário e histórico-teológico de uma personagem pertencente às tradições do êxodo MESTRADO EM TEOLOGIA São Paulo 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção

FRANCISCA CIRLENA CUNHA OLIVEIRA SUZUKI

SÉFORA

Estudo literário e histórico-teológico de uma personagem

pertencente às tradições do êxodo

MESTRADO EM TEOLOGIA

São Paulo

2018

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FRANCISCA CIRLENA CUNHA OLIVEIRA SUZUKI

SÉFORA

Estudo literário e histórico-teológico de uma personagem

pertencente às tradições do êxodo

MESTRADO EM TEOLOGIA

Resultado da Pesquisa apresentado como exigência para

o Exame final no curso de Mestrado do Programa de

Estudos Pós-Graduados em Teologia na Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do

Prof. Dr. Matthias Grenzer.

São Paulo

2018

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FRANCISCA CIRLENA CUNHA OLIVEIRA SUZUKI

SÉFORA

Estudo literário e histórico-teológico de uma personagem

pertencente às tradições do êxodo

Resultado da Pesquisa apresentado como exigência para

o Exame final no curso de Mestrado do Programa de

Estudos Pós-Graduados em Teologia na Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP.

Aprovada em ___/____/____

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Prof. Dr. Matthias Grenzer – Orientador

Pontifícia Universidade de São Paulo – PUC-SP

_________________________________________________

Profa. Dr a. Elizangela Chaves Dias

Scalabrini International Migration Institute – SIMI (Roma, Itália)

__________________________________________________ Profa. Dr a Suzana Chwarts

Universidade de São Paulo

São Paulo

2018

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Meu muito obrigada à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(CAPES) pela concessão de uma bolsa taxa, para a realização deste curso de Mestrado no

Programa de Estudos Pós Graduados em Teologia da Pontifícia Universidade de São Paulo,

PUC-SP. Sem esse apoio financeiro não teria sido possível a realização de mais esta etapa de

estudos.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar quero agradecer a Deus por mais este presente em minha vida, por

me abrir portas para que pudesse dar continuidade aos estudos de Teologia. Curso este que

ampliou minha visão sobre Deus e a Igreja, lugar onde professo minha fé, bem como sobre o

mundo e coisas que se inter-relacionam.

Agradeço aos meus pais que foram coautores do Criador, me gerando e possibilitando

a vida. Sinto a falta de minha mãe, Helena, que faleceu em 2016 e não poderá participar nesse

momento de alegria da minha vida, mas sei que de onde estiver se alegrará comigo.

Quero agradecer ao meu esposo, Carlos, que esteve ao meu lado me incentivando e

apoiando para que eu pudesse conciliar minha vida de esposa, mãe, avó, dona de casa,

profissional da educação e agente de pastoral. Agradeço aos meus filhos, Alexandre e Felipe,

também, às minhas norinhas Camilla e Flavia que se alegram por me verem fazendo aquilo

que gosto.

A todos os irmãos e irmãs em Cristo que contribuíram comigo material e

espiritualmente, meu muito obrigado. E aos amigos e amigas de perto e de longe.

Agradeço a todos os professores e professoras que estiveram ao meu lado e me

ensinaram daquilo que sabiam com tanta dedicação e carinho.

Por fim, gostaria de agradecer ao meu orientador Prof. Dr. Matthias Grenzer por

acreditar no meu potencial, por ser um professor educador de tamanha magnitude, capaz de

partilhar seus conhecimentos com generosidade e dedicação. Obrigada pelo carinho e pela

atenção.

Meu muito obrigado a todos.

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“De fato, tu és um noivo de sangue para mim!”

(Ex 4,25)

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RESUMO

Séfora, esposa de Moisés, é o objeto de estudo desta dissertação de mestrado, uma

personagem pertencente às tradições do êxodo. Ela participa de apenas quatro episódios na

macronarrativa sobre o êxodo (Ex 2,15c-22; 4,18-20.24-26; 18,1-7). No entanto, ainda que à

primeira vista a madianita pareça ter uma importância menor, apenas ocupando o lugar de

uma figura secundária, a literatura bíblica tem mostrado que os papéis, em determinado

momento, podem inverter-se e, de repente, uma personagem sem maior visibilidade assume o

protagonismo. Nesse sentido, Séfora surpreende em alguns aspectos: literariamente, ela ganha

centralidade na cena em que salva seu noivo de sangue; historicamente, ela talvez contradiga

eventuais preconceitos pertencentes a seu contexto cultural, ao defender a sobrevivência de

quem se vê ameaçado e ao assumir protagonismo como mulher; teologicamente, ela é

retratada como quem obtém o consentimento de Deus. Dessa forma, a esposa madianita de

Moisés se torna um modelo para o protagonismo daquelas personagens que, em geral, são

avaliadas como secundárias, destacando a fundamental importância delas para a história da

salvação.

Palavras-chave: Êxodo, Séfora, narrativa, personagem secundária.

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ABSTRACT

Zipporah, Moses’ wife, is the object of study of this Master’s degree dissertation, a character

that belongs to the exodus traditions. She participates in just four episodes in the

macronarrative on exodus (Ex 2:15-22; 4:18-20.24-26; 18:1-7). Therefore, in the first sight

the Midianite seems to have less matter, in the sense of she occupies a position of secondary

figure. However, the biblical literature shows that the roles, in certain moment, can be

inverted. Suddenly, the protagonism comes out, exactly, through the character that, in general,

does not have a big visibility. In fact, Zipporah astonishes us in many ways: in literary terms

she is in the center; historically, she may contradict eventual prejudices from her cultural

context in question when she defends the life of those who are endangered in their surviving,

without anyone questioning her freedom as a woman; theologically she is reflected as

someone who gains the consent of God. Thus, Moses’ Midianite wife becomes a model for

the protagonism of those characters that, in general, are evaluated as secondary figures,

highlighting their fundamental importance for the history of salvation.

Keywords: Exodus, Zipporah, narrative, secondary character.

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SUMÁRIO

Introdução .............................................................................................................................. 11

1 Aproximação à personagem de Séfora ................................................................ 17

1.1 A macronarrativa do êxodo ................................................................................... 17

1.2 Análise narrativa e exegese do Pentateuco ............................................................ 20

1.2.1 Análise narrativa .................................................................................. 20

1.2.2 Cinco livros ......................................................................................... 21

1.3 Personagem como elemento constitutivo da narrativa .......................................... 26

1.4 Séfora como personagem secundária .................................................................... 30

1.5 Séfora em Ex 2,15c-22 .......................................................................................... 34

1.5.1 Filha de sacerdote e irmã ..................................................................... 35

1.5.2 Pastora agredida ................................................................................... 36

1.5.3 Mulher salva e liberta por um homem atento e leal ............................ 36

1.5.4 Mulher acolhedora ............................................................................... 37

1.5.5 Esposa e mãe ....................................................................................... 38

1.6 Contexto histórico-cultural de Madiã ................................................................... 38

2 Voltar, com a família, à sociedade em conflito (Ex 4,18-20) ............................. 44

2.1 Introdução .............................................................................................................. 44

2.2 O texto ................................................................................................................... 45

2.2.1 Tradução do hebraico para o português ............................................... 45

2.2.2 Variantes textuais ................................................................................ 46

2.3 Estudo literário ...................................................................................................... 47

2.3.1 Delimitação e contextualização ........................................................... 47

2.3.2 Elementos estilísticos e estrutura literária ........................................... 49

2.3.3 Análise narrativa e gênero literário ..................................................... 50

2.4 Comentários histórico-teológicos ........................................................................... 53

2.4.1 Moisés e seu sogro Jetro ...................................................................... 54

2.4.2 Moisés e o SENHOR .............................................................................. 55

2.4.3 Moisés, sua mulher e seus filhos ......................................................... 56

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2.5 Considerações finais .............................................................................................. 58

2.5.1 Deus ........................................................................................................ 58

2.5.2 A família ................................................................................................. 59

3 Em defesa de seu esposo (Ex 4,24-26) .................................................................. 60

3.1 Introdução .............................................................................................................. 60

3.2 Texto ....................................................................................................................... 62

3.2.1 Texto hebraico segmentado e tradução portuguesa ................................. 62

3.2.2 As variantes textuais ................................................................................ 63

3.3 Estudo literário ........................................................................................................ 64

3.3.1 Delimitação e contexto literário ............................................................... 64

3.3.2 Elementos estilísticos e estrutura literária ................................................ 65

3.3.3 Análise narrativa e gênero literário .......................................................... 67

3.4 Comentários histórico-teológicos .......................................................................................69

3.4.1 A reação de Séfora .................................................................................. 69

3.4.2 O discurso de Séfora ................................................................................ 73

3.4.3 A religiosidade de Séfora ....................................................................... 74

3.5 Considerações finais .............................................................................................. 76

4 Últimas Considerações ........................................................................................... 78

4.1 Séfora em Ex 18,1-7 .............................................................................................. 79

4.2 Mulher que faz ....................................................................................................... 81

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 84

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11

SÉFORA

Estudo literário e histórico-teológico de uma personagem

pertencente às tradições do êxodo

O estudo aqui apresentado dedica-se, inteiramente, a uma personagem que participa da

macronarrativa do êxodo, contada nos últimos quatro livros do Pentateuco (Ex; Lv; Nm; Dt).1

O nome dela é Séfora. Trata-se de uma madianita que se tornou esposa de Moisés.

O nome de Séfora é mencionado apenas três vezes no livro do Êxodo (Ex 2,21; 4,25;

18,2). Em hebraico, ele é pronunciado como Zipporah (צפרה). Aparentemente, seu significado

nasce do substantivo pássaro (rwOPci). Na Septuaginta, esse nome foi transliterado como

Σεπφωρα. Em latim, a Vulgata traz o nome Sephora. Em português, por sua vez, a

personagem, comumente, é tida como Séfora. Além de Séfora ser apresentada, em três

momentos, com seu nome (Ex 2,21; 4,25; 18,2), numa quarta oportunidade, ela figura como

mulher de Moisés (Ex 4,20).

Enfim, Séfora tem participação direta em quatro micronarrativas que pertencem ao

livro do Êxodo (Ex 2,15c-22; 4,18-20.24-26; 18,1-7). Na primeira delas, Moisés, ao chegar às

terras de Madiã, após sua fuga do Egito, senta-se junto a um poço e presencia como Séfora e

suas irmãs são agredidas por pastores violentos, sendo que estes afastam as meninas e seus

animais do poço, a fim de primeiramente darem água a seus animais. Contudo, Moisés

defende as pastoras, filhas do sacerdote de Madiã, das agressões sofridas e realiza o trabalho

delas. Finalmente, o sacerdote, ao ouvir sobre essa ação, dá sua filha Séfora como esposa a

Moisés.

Na segunda cena com participação de Séfora, Moisés, após sua vocação por parte do

Senhor, Deus de Israel (Ex 3,1–4,17), e conversa com seu sogro, sacerdote de Madiã,

1 Em relação ao Pentateuco como obra literária e à história de sua composição, confira os seguintes estudos

introdutórios: Jean-Louis SKA. Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco

primeiros livros da Bíblia; Jean-Louis SKA. O canteiro do Pentateuco: problemas de composição e de

interpretação, aspectos literários e teológicos; Erich ZENGER. Pentateuco. In: Erich ZENGER e Georg

BRAULIK. Die Bücher der Tora / des Pentateuch. In: Erich ZENGER (org.). Einleitung in das Alte Testament.

P. 60-187 (a primeira edição dessa obra foi traduzida para o português: Erich ZENGER (org.). Introdução ao

Antigo Testamento. P. 45-157); Eckart OTTO. A Lei de Moisés.

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organiza sua volta ao Egito. Nesse momento, Séfora e os filhos que ela deu a Moisés o

acompanham na viagem, montados num jumento (Ex 4,18-20).

A terceira cena, da qual Séfora participa, destaca a personagem como quem age de

forma surpreendente. Ao Moisés, esposo dela, experimentar Deus como quem o ataca, Séfora

o salva através de um rito misterioso, circuncidando seu filho e tocando, com o sangue dele,

seu esposo Moisés (Ex 4,24-26).

Finalmente, Séfora aparece outra vez quando seu pai a faz reencontrar-se com Moisés,

quando este, junto ao povo de Israel, caminha do Egito rumo ao monte Sinai. Sem que se

soubesse como e quando ela, com seus filhos, voltara do Egito à terra de Madiã e, portanto, a

seu pai. Ocorre agora novamente sua junção a Moisés, esposo dela e líder do povo dos recém-

libertados (Ex 18,1-7).

Qual é a importância de Séfora no nível literário das tradições que narram o projeto do

êxodo? Em que sentido lhe cabe, teologicamente, uma função ou contribuição no que se

refere à religião do antigo Israel? Quais são suas características?

Qualquer estudo da personagem de Séfora há de levar em consideração as quatro

narrativas acima lembradas. Contudo, faz-se aqui uma proposta específica, a fim de continuar

pesquisas já existentes e garantir a profundidade necessária das pesquisas novas.

a) Organização da pesquisa

A micronarrativa em Ex 2,15c-22, recentemente, foi alvo de estudos exegéticos

realizados por membros do Grupo de Pesquisa TIAT (Tradução e Interpretação do Antigo

Testamento). Por um lado, foi elaborada e defendida, em 2015, uma Dissertação de Mestrado

que apresenta um estudo exegético dessa micronarrativa.2 Por outro lado, ocorreu a

publicação de um Artigo, o qual traz um estudo pormenorizado desse mesmo texto bíblico.3

Portanto, na pesquisa aqui apresentada em forma de uma Dissertação de Mestrado, o texto de

2 Marivan Soares RAMOS. Moisés como imigrante em Madiã. Estudo literário e histórico-teológico de Ex

2,15c-22d. 89 páginas. 2015. Dissertação de Mestrado em Teologia (Faculdade de Teologia Assunção) publicada

no TEDE (Teses e Dissertações dos Programas de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo – PUC-SP), 2015. 3 Matthias GRENZER. Imigrante em Madiã (Ex 2,15c-22). Atualidade Teológica, n. 49, 2015, p. 75-89.

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Ex 2,15c-22 somente será relido com o interesse específico de destacar, de forma mais

reveladora, as características que configuram a personagem de Séfora na micronarrativa em

questão. Ou seja, não se vê a necessidade de partir, outra vez, para uma análise exegética mais

completa da micronarrativa em Ex 2,15c-22. Assim sendo, o primeiro capítulo dessa

Dissertação se propõe a cumprir uma tarefa dupla. De um lado, visa-se a uma reflexão

aprofundada sobre o método de análise narrativa e, dentro dela, do estudo literário das

personagens. Por outro lado, há o objetivo de acolher a personagem de Séfora e analisar sua

caracterização a partir de sua primeira presença nas narrativas sobre o êxodo, ou seja, desde

sua participação no que é contado em Ex 2,15c-22.

O segundo e terceiro capítulos desta Dissertação de Mestrado se dirigem as duas

micronarrativas do quarto capítulo do livro do Êxodo, das quais Séfora, mulher de Moisés,

participa. Há o propósito de realizar estudos exegéticos mais abrangentes, visando

investigações literárias e histórico-teológicas. Trata-se de duas narrativas artisticamente

compostas, que merecem ser qualificadas como literatura. Além disso, o mundo nelas narrado

pressupõe conhecimento do contexto histórico-geográfico e cultural dele. Finalmente, trata-se

de narrativas que se propõem a apresentar uma reflexão teológica, sendo que é preciso estar

atento ao que é pensado sobre Deus. Embora cada uma das duas micronarrativas seja formada

por apenas três versículos (Ex 4,18-20.24-26), o ouvinte-leitor encontra aqui unidades

literárias bem definidas, capazes de apresentar, com poucas palavras, realidades amplas,

sendo que a personagem de Séfora se torna modelo de fé e comportamento.

A última micronarrativa com participação de Séfora (Ex 18,1-7) será acolhida

novamente apenas em vista das características que ela atribui à personagem aqui focada.

Assim, nas Considerações finais, surgirá a reflexão que tentará reunir os elementos com os

quais as tradições do êxodo compõem a figura de Séfora.

b) Primeiras considerações sobre a metodologia

No que se refere à pesquisa das duas micronarrativas em Ex 4,18-20.24-26, objetos de

investigação na parte central dessa Dissertação, ou seja, nos Capítulos 2 e 3, o primeiro passo

será estabelecer o texto a ser estudado. No caso, se trata do texto hebraico provavelmente o

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mais original. Estudos de crítica textual irão examinar as variantes existentes nos antigos

manuscritos hebraicos e nas antigas traduções.4

Em seguida, ocorrerá o esforço de um estudo linguístico-literário das duas cenas em

questão. Ou seja, será da maior importância respeitar as tradições bíblicas como literatura. Por

isso, é preciso desenvolver a sensibilidade literária frente a tais textos. Esta pesquisa se

propõe a acolher as duas micronarrativas em questão na língua em que originalmente foram

configuradas. Em vista disso, serão usados diversos instrumentos de pesquisa: uma edição

crítica da Bíblia Hebraica5, dicionários6, gramáticas7, concordâncias8 e outros estudos

específicos9.

Após o estudo linguístico, que é composto, sobretudo, por análises morfológicas e

sintáticas, a investigação se dirigirá aos estudos literários. Elementos estilísticos, questões de

gênero referentes aos diversos tipos de textos e, em especial, a análise literária que visa a

configuração artística das narrativas nortearão a pesquisa nesse momento. Imagina-se que, ao

final desse estudo, as duas micronarrativas possam se apresentar com a força literária que,

desde a sua criação, lhes pertence. No que se refere, especificamente, à análise literária e à

importância das personagens como elemento constitutivo nas narrativas, a abordagem no

primeiro capítulo dessa Dissertação oferecerá maiores esclarecimentos.

Por mais que as narrativas bíblicas se apresentem com sua qualidade literária, elas

transmitem, ao mesmo tempo, dimensões histórico-culturais e uma ampla reflexão teológica.

Quer dizer, as palavras que compõem os textos, além de sua forma, têm sua carga semântica.

Assim, o significante e significado remetem o ouvinte-leitor a determinados contextos e

reflexões específicas.

4 Cf. Edson de Faria FRANCISCO. Manual da Bíblia Hebraica: Introdução ao Texto Massorético. Guia

Introdutório para a Biblia Hebraica Stuttgartensia. 5 Karl ELLIGER; Wilhelm RUDOLPH (eds.). Biblia Hebraica Stuttgartensia. 6 Nelson KIRST; Nelson KILPP; Milton SCHWANTES; Acir RAYMANN; Rudi ZIMMER. Dicionário

Hebraico-Português & Aramaico-Português. Luis ALONSO Schökel, Luis Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-

Português; William L. HOLLADAY. Léxico hebraico e aramaico do Antigo Testamento. 7 Bruce K. WALTKE; Michael P. O’CONNOR. Introdução à Sintaxe do Hebraico Bíblico. [Original: An

Introduction to Biblical Hebrew Syntax]. 8 Gerhard LISOWSKY. Konkordanz zum hebräischen Alten Testament. 9 Matthias GRENZER. As dimensões temporais do verbo hebraico: desafio ao traduzir o Antigo Testamento.

Revista Pistis & Praxis. Teologia e Pastoral, v. 8, 2016, p. 15-32.

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Há ainda a questão a respeito de sincronia e diacronia. Será que as narrativas bíblicas

em questão sejam o resultado de um processo de elaboração mais homogêneo ou de uma

sequência de reelaborações e redações numerosas?i Na prática, a leitura sincrônica das

narrativas em questão irá avançar enquanto elementos de incongruência não a interromperem,

tornando necessária a leitura diacrônica, ou seja, a elaboração de hipóteses no que se refere ao

provável processo de nascimento e crescimento de tais tradições literárias. Todavia, também

em vista dessa questão, a análise narrativa será uma das contribuições mais decisivas, a fim de

descobrir ou não a uniformidade literária das micronarrativas em Ex 4,18-20.24-26.10

Vale ressaltar que no tocante ao método da análise narrativa haverá, no capítulo

primeiro, dois itens inteiramente dedicados a observar o que a análise narrativa pode

proporcionar, com suas ferramentas de análise, ao ouvinte-leitor mais atento. Este poderá

constatar de maneira breve como a Narratologia é capaz de, através da análise da narrativa,

desvelar no texto o que foi contado e como foi contado. Ao ouvinte-leitor poderá ser

propiciada a descoberta do que lhe trouxe sensações e sentimentos. Enquanto, uma leitura

pragmática possibilitará ao ouvinte-leitor aproximar-se das personagens, da narração e,

sobretudo, do tempo através do qual a narrativa acontece.

Enfim, cultiva-se a hipótese de que, com os estudos crítico-textuais, linguístico-

literários, histórico-geográfico-culturais e teológicos, as duas micronarrativas em Ex 4,18-

20.24-26, as quais têm Séfora como uma personagem marcante, possam surpreender seus

ouvintes-leitores. Em especial, defende-se aqui uma compreensão que vê em Séfora uma

personagem teologicamente enriquecedora, embora ela, como personagem secundária, ocupe

relativamente pouco espaço nas tradições sobre o êxodo.

Seja ainda dito que parte da Dissertação aqui apresentada já foi publicada. O estudo

apresentado no segundo Capítulo foi comunicado no III Colóquio Internacional de Exegese

do Antigo Testamento, do Grupo de Pesquisa TIAT, realizado na Universidade Católica

Portuguesa, em Lisboa, nos dias 01 e 02 de fevereiro de 2016. Sob o título “Voltar com a

família à sociedade em conflito (Ex 4,18-20)”, o Periódico Científico Didaskalia, o qual

10 Cf. Daniel MARGUERAT; Yvan BOURQUIN. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise narrativa;

Jean-louis SKA. “Our Fathers Have Told Us”: Introduction to the Analysis of the Hebrew Narratives.

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pertence à Universidade Católica Portuguesa acolheu a investigação.11 A pesquisa apresentada

no terceiro Capítulo também já se encontra configurada como Artigo cientifico e inserido no

sistema da Revista Theologica Xaveriana.

No mais, sejam permitidos ainda alguns avisos práticos. Todas as citações dos textos

pertencentes à Bíblia Hebraica ocorrem com tradução própria. Para destacar o objeto de

pesquisa – no caso, as tradições do Antigo Testamento, – os textos bíblicos são apresentados

usando-se o recurso gráfico da letra inclinada (itálico), porém, sem colocação de aspas. Não

há nenhum outro emprego desse recurso. Todas as demais citações trabalham com aspas.

Além disso, mapas e materiais iconográficos serão expostos no decorrer da pesquisa,

seguindo-se uma numeração própria.

11 Matthias GRENZER; Francisca Cirlena SUZUKI. Voltar, com a família, à sociedade em conflito (Ex 4,18-

20). Didaskalia (Lisboa), v. 46, P. 159-178, 2016.

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1 Aproximação à personagem de Séfora

A história de Séfora junto a Moisés tem inicio em Madiã, terra onde aporta aquele que

se tornará o grande profeta, aquele que perpassará os quatro últimos livros do Pentateuco com

livre acesso. Este capítulo se propõe a apresentar a personagem Séfora, objeto de pesquisa

desta dissertação, do ponto de vista literário, no tocante a análise de personagens dentro da

narrativa. Mais especificamente, dentro da narrativa bíblica. Antes, porém, será importante

discorrer, de forma sintética, sobre o universo que abraça Séfora, seja em sua vida cotidiana

dentro das tradições do êxodo, este que possui um peso incontestável na composição do

Pentateuco, seja como personagem sob o método da Análise Narrativa. Para isso, conta-se

com o adjutório da Narratologia frente a um estudo dessa natureza. Segue, então, um

sobrevoo pelo Pentateuco e dentro dele pelas tradições do êxodo, que acolheram essa

personagem âncora, esposa de Moisés, a madianita.

1.1 A macronarrativa do êxodo

O livro do Êxodo começa narrando a descendência de Jacó, que se estabelece no Egito

junto ao irmão José, o mesmo que salvara o Egito da fome, será mais tarde um desconhecido

do Faraó. O relato da história de José (cf. Gn 37-50) é uma narrativa muito bem elaborada em

termos literários. Esta narrativa está no final do Gênesis e faz uma perfeita ligação com o

inicio do Livro do Êxodo. A vida de José é a de um hebreu que vive na ‘diáspora’ e nem por

isso se dá mal. Ele é um imigrante que obtém sucesso nas terras do Egito e ocupa posição de

destaque junto ao Faraó. José é inteligente e, em momento de dificuldade, cria um sistema de

“impostos”, o qual possibilita driblar o período de seca que o país atravessava. José é a

salvação não apenas para os Egípcios, mas também para a família de Jacó. José foi capaz de

devolver a dignidade a sua família que desceu de Canaã ao Egito, fugindo da fome. O conflito

interno da família de José, pai, filhos e irmãos tem final feliz, pois haverá “reunificação e

reconciliação”. Da mesma forma, na história de Israel haverá conflitos entre o Norte e o Sul,

bem como, no seio das comunidades. José venceu os desafios que o poder lhe ofereceu,

também, o ódio, a inveja e o ciúme que o rondava. A história de José é testemunha de que

Israel poderá escrever sua própria história de vencedores.12

12 Ver Jean-Louis SKA. O Antigo Testamento: Explicando aos que conhecem pouco ou nada a respeito dele. P.

45.

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18

O êxodo seria uma declaração de independência de Israel? Ska, afirma que a livre

escolha e o pacto social são princípios de identidade intrínsecos ao evento êxodo.

Diferentemente, apresenta-se a história dos patriarcas, a qual estrutura-se sobre princípios

genealógicos e de laços de sangue, os quais são fortemente mencionados nos relatos sobre

suas vidas. Portanto, a história dos patriarcas está ancorada em experiências mais individuais

ou de família, a exemplo dos clãs, que tem sua estrutura basilar apoiada nas famílias.

A experiência do êxodo do Egito está ligada a uma experiência coletiva, de vidas que

seguem juntas sob a guia de um líder, rumo à terra prometida. Após essa saída, esse êxodo, os

hebreus são chamados de povo. A referência cultual da festa da Pascoa (Ex 12) torna-se culto

de passagem, o qual não se perde nem no tempo, nem na história, pois, de geração em geração

se faz memória da libertação dos hebreus que foram escravos no Egito. Com isso, a

“experiência fundadora” do povo de Israel torna-se cada vez mais viva, não cai no

esquecimento, pelo contrário, Israel firmou-se na história como nação. A narrativa do

Pentateuco garantiu a apresentação da genealogia dos descendentes dos patriarcas e o

reconhecimento da identidade de Israel através da narração da vida de um povo e suas leis.

Bem conhecido, o livro do Êxodo tem início com uma lista de nomes dos israelitas

que entraram no Egito com Jacó. A descendência direta de Jacó morreu, mas os israelitas

tornaram-se numerosos, no entanto, foram obrigados a servir ao Faraó opressor sob uma carga

de trabalhos duros. Tempos se passaram e um novo rei chegou ao poder sobre o Egito (cf. Ex

1,8), este declarou não conhecer José, justamente, o homem que apoiara Faraó e livrara seu

país da fome. José, um grande antepassado dos israelitas foi esquecido. No entanto, os

israelitas continuaram a crescer, mas subjugados pelo Faraó do Egito, gemendo sob o peso da

servidão gritaram e seu clamor subiu até Deus (cf. Ex 2,23) e foram ouvidos. O livro do

Êxodo relata como os israelitas saem do jugo, da opressão do Faraó e passam a ser livres para

servir a seu Deus no deserto, tendo à frente um líder.

Moisés, o filho de um homem e de uma mulher da casa de Levi recebe uma missão do

próprio SENHOR Deus. Entretanto, seu nascimento é envolto em circunstâncias difíceis. Ao

nascer o menino Moisés escapou de ser morto. Quando bebê, foi retirado e salvo das águas,

tornando-se um nobre egípcio, adotado pela filha do Faraó. No final da narrativa do

Pentateuco em Dt 34,10, o mesmo Moisés, já um homem de idade avançada, morre sem ter

entrado na terra prometida, mesmo assim, foi declarado o maior profeta que Israel viu. De

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19

fato, Moisés é o grande ator que perpassa os quatro últimos livros do Pentateuco. E a terra

prometida? Bem, a promessa supera a entrada a esta terra, pois os israelitas formaram um

povo e destacaram, colocaram em relevo sua identidade, a qual foi descrita a partir de sua

descendência nos cinco primeiros livros da Bíblia cristã, o Pentateuco ou a Torah para os

judeus. “Em outras palavras, na visão do Pentateuco, é possível integrar o povo de Israel sem

viver na terra prometida. Tal assertiva pode ser mais bem entendida após a experiência do

exílio e na diáspora”.13

A missão de Moisés, dada pelo próprio SENHOR Deus ganhou “valor único” na

história de Israel. Não se conhece o valor histórico da narrativa do êxodo, mas se reconhece

“seu enorme peso simbólico”. Israel nasceu livre, não foi predestinado à escravidão. Não

houve golpe, revolução ou guerrilha para a obtenção de um povo, a única arma de Moisés foi

a persuasão e “fortes argumentos, que ficaram conhecidos como “pragas do Egito””. Os

estudiosos vão dizer que as pragas podem ser explicadas, porque a maioria delas seriam

fenômenos naturais e explicáveis, excetuando-se a morte do primogênito do Faraó (Ex 4,23;

12,29-34), pois, nesse caso, realmente, trata-se de “uma tragédia em um regime baseado sobre

a sucessão dinástica”. Contudo, o poder do Faraó é limitado, ele não teve nenhum controle

sobre os fenômenos naturais, isso mostra que seu poder não era absoluto, logo os súditos

tiveram uma chance de libertação. O Deus de Israel é quem possui poder absoluto e

transcendente. A narrativa do êxodo traz ao ouvinte-leitor uma “mensagem universal” e

atemporal com ela, traz a possibilidade de reflexão sobre poder e liberdade. “... a liberdade é

um bem inalienável que nenhum poder humano possui o direito de suprimir”. 14

Enfim, a narrativa do êxodo traz em si o testemunho de um líder que em Dt 34,10-12 é

chamado de o maior entre todos os profetas, aquele que com autoridade dada pelo SENHOR,

revelou a Lei para os israelitas. Moisés ganha superioridade provinda de seu relacionamento

com Deus, segundo Ska, “sem intermediários ou telas”. A “lei de Moisés” atravessa todos os

tempos, pois se faz memória do êxodo geração após geração até a contemporaneidade.

13 Jean Louis Ska. Introdução à leitura do Pentateuco: Chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da

Bíblia. P. 28. 14 Jean-Louis Ska. O Antigo Testamento: Explicando aos que conhecem pouco ou nada a respeito dele. P. 47-48.

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20

1.2 Análise narrativa e exegese do Pentateuco

1.2.1 Análise narrativa

Em geral, diversos passos marcam as pesquisas exegéticas através de metodologias

específicas. Fazer uma leitura mais objetiva dos textos bíblicos é possível, porém bastante

exigente. Acredita-se que pela leitura o texto tornar-se-á completo15, o desafio dessas

micronarrativas (Ex 2,15c-22;4,18-20.24-26;18,1-7), nas quais Séfora participa, está

exatamente em chegar a uma interpretação que faça sentido tanto na “composição narrativa”

quanto na “história contada”. A análise narrativa está no eixo da comunicação quando

observada através do esquema de Jakobson, Roman. 16

Uma imagem surge, olha-se à esquerda, numa linha horizontal está o destinador ou

autor, este envia uma mensagem ao destinatário ou leitor, que se encontra na outra ponta da

reta. Então, uma linha vertical cruza esta mensagem, onde é possível enxergar acima da linha

horizontal o contexto ou a informação. Enquanto, na parte inferior dessa mesma linha

horizontal, abaixo da mensagem, encontra-se o código ou a linguagem. Nessa imagem, a linha

horizontal cruza a linha vertical e, exatamente, no ponto de intersecção está a mensagem.

Logo, na linha horizontal encontra-se o eixo da comunicação, ela é o trajeto que a mensagem

faz do emissor até seu destinatário. O esquema de Jakobson clarifica o entendimento e dá

subsídios para a busca de significação da narrativa, tanto para as questões do contexto, quanto

para as interpelações sobre a linguagem. Para uma análise desse nível a narratologia ganha

papel importante.

Ao ampliar um pouco mais o olhar, é possível dizer que a leitura das experiências de

vida e fé, seja de uma pessoa, de uma família ou da coletividade pode ser feita sob um olhar

científico, lançado através da Narratologia, “ciência que tem por objetivo o estudo da

narratividade (textual ou artística)“ 17. Os estudiosos da Narratologia, os quais conquistaram

para ela o status de ciência foram Roland Barthes e Gérard Genette, pesquisadores franceses.

15 “A análise narrativa concentra toda a sua atenção nesse movimento pelo qual o texto, escapando ao seu autor e

ao seu leitorado original, termina seu percurso para fora de si mesmo no ato de leitura”. Daniel MARGUERAT;

Yvan BOURQUIN. Para ler as narrativas bíblicas. Iniciação à análise narrativa. p.169. 16 Jakobson Roman. Essais de Linguistique Générale. P. 214, 220 in Daniel MARGUERAT; Yvan BOURQUIN.

Para ler as narrativas bíblicas. Iniciação à análise narrativa. P.14. 17 Cf. Daniel MARGUERAT; Yvan BOURQUIN. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise narrativa. P.

19.

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21

Junto aos franceses, no surgimento da Narratologia, está a Escola Formalista Russa com A. J.

Greimas, Vladimir Propp e outros. Umberto Eco, italiano, encontra-se, também, entre os

grandes estudiosos da Narratologia. “O termo foi proposto no início do século

XX por Tzvetan Todorov, para diferenciá-la como campo de estudo dentro da teoria literária”.

18 Essa ciência tem como objeto o estudo das narrativas de ficção e não ficção. Um dos

elementos que a análise narrativa propicia é a busca de paralelismos entre obras diferentes e

no caso da Bíblia dentro de seu próprio conjunto de livros, as estruturas, repetições e

elementos estilísticos sem preterir os contextos históricos, geográficos e culturais das

narrativas em questão.

Dito isso, vale a pena trazer, ainda, uma palavra sobre Estrutura literária e

estruturalismo para dizer que a pesquisa aqui desenvolvida não faz análise estrutural, pois não

está interessada em buscar no texto estruturas a partir das funções da linguagem e suas

relações, fazendo uso da meta linguagem, a qual explica a própria linguagem. O

estruturalismo não carrega a intenção de buscar significado para o relato. Diferente da análise

da estrutura literária, a qual irá “preocupar-se com a organização e o sistema do texto ‘para

encontrar seu conteúdo e significado”. 19

Em outras palavras, a análise da estrutura literária não se limita ao aspecto formal do

texto, mas, partindo da unidade e do sistema de reações do conjunto total, busca

explicar o conteúdo de um texto por meio do próprio texto, que nos oferece

inúmeras possibilidades de leitura em seus vocábulos, frases, repetições, figuras

literárias, palavras-gancho, inclusões, quiasmos etc. 20

As ciências se completam, pois, enquanto, por um lado a linguística é capaz de

mostrar como se dá o eixo da comunicação, por outro lado a narratologia foca na narrativa, no

relato e estuda suas possibilidades múltiplas de entendimento e/ou interpretação.

1.2.2 Cinco Livros

O Pentateuco, nome dado aos cinco primeiros livros da Bíblia, contém a Constituição

de Israel em narrativas e leis. Não é história como no conceito moderno, não tem a finalidade

de informar o que historicamente aconteceu, mas traz os relatos das histórias de um povo que

18 Cf https://pt.wikipedia.org/wiki/Narratologia, acesso em 06/06/2017. 19 Cf. Cássio Murilo Dias da SILVA, (com a colaboração de especialistas). Metodologia de Exegese Bíblica.

P.94. 20 Cf. Cássio Murilo Dias da SILVA, (com a colaboração de especialistas). Metodologia de Exegese Bíblica.

P.95.

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22

poderia ter desaparecido com tantos outros povos que sofreram massacres de grandes

Impérios: Assírio, Babilônico, Persa, Grego e Romano. Afirma Ska:

Os relatos do Pentateuco não possuem a finalidade de informar sobre o passado de

Israel. O primeiro objetivo é o de formar a consciência de um povo; mais: criar uma

consciência comum e um sentimento de pertença a uma única nação. Insisto sobre a

palavra ‘criar’, porque aparece sempre mais claramente que tudo concorria para o

desaparecimento do povo de Israel do mapa do universo. 21

O Pentateuco pode ser considerado a constituição de Israel, segundo Jean-Ska, pois,

contém “um resumo da história (...) narra como nasceram a nação e sua constituição (...)

compreende, portanto, textos jurídicos encerrados em textos narrativos”. 22 Nos Estados

modernos as constituições não contêm narrativas, apenas textos jurídicos, o que não acontecia

com as coletâneas de leis do Antigo Oriente Próximo, os quais traziam prólogos e tratados

antes das disposições das leis. O Pentateuco, assim chamado na Bíblia cristã é a Torah, na

tradição judaica, o ensinamento, a instrução, a lei. Contudo, o Pentateuco contém uma coleção

de leis que não se harmonizam, ou não chegam a formar um código de leis que se aplique

diretamente aos casos, antes são leis a serem consultadas. O que o ouvinte-leitor, ao ler o que

fazer em certas circunstâncias, pode pensar que, em muitos casos, os costumes dos israelitas

acabavam por transformarem-se em leis. Possibilidade há de que o interesse, talvez, não fosse

realmente ter uma legislação que servisse a todo o povo e em todos os tempos e lugares. No

entanto, é surpreendente perceber que essa coleção de leis serve para provar que Israel é uma

nação e que possui uma legislação própria. Por isso, seja possível, ainda, dizer que o

Pentateuco, por meio de suas narrativas, contém uma constituição diferenciada, diga-se de

passagem. E mais, é possível perceber o “Sitz im Leben”, os hebreus não separavam fé e vida,

“toda vida em Israel é um serviço a Deus”. 23

Os textos bíblicos, ao longo do tempo, tiveram suas entranhas reviradas para que com

os aparatos das ciências chamadas auxiliares da exegese e da hermenêutica, tais como: a

antropologia, a sociologia, a linguística e outras pudessem descobrir o ambiente em que foram

escritos, como foram arquitetadas suas estruturas e com qual proposito seus hagiógrafos os

produziram. É sabido que na segunda metade do século XX houve um processo de estudo na

tentativa de solucionar os problemas internos e, ao mesmo tempo, tentar responder sobre a

origem do Pentateuco através da teoria documentária ou das quatro fontes: javista, eloísta,

21 Jean-Louis Ska. O Antigo Testamento: Explicando aos que conhecem pouco ou nada a respeito dele. P. 35. 22 Jean-Louis Ska. O Antigo Testamento: Explicando aos que conhecem pouco ou nada a respeito dele. P. 31. 23 Jean-Louis Ska. O Antigo Testamento: Explicando aos que conhecem pouco ou nada a respeito dele. P. 52.

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23

sacerdotal e deuteronomista situadas em diferentes momentos da história de Israel. No

entanto, o texto do Pentateuco já havia ganhado tamanha tessitura que não se encontrava

rastros de comprovações para que se firmasse a teoria documentária e esta entrou em crise.

Quando se toma distância para a compreensão do texto é possível enxergar um

volume, talvez não o todo, mas grandes proporções blocadas, as quais formam um corpo

textual. No caso do Pentateuco, nesse corpo percebe-se que há “’saltos’, ‘fraturas’ e soluções

de continuidade, tensões e contradições”. 24 A bíblia tem seu contexto histórico, como

também o tem a própria exegese, o que se torna importante para a compreensão do ponto em

que se encontra o processo de análise sobre o texto bíblico. Já que é de conhecimento dos

exegetas a existência de técnicas utilizadas pelos redatores “quando queriam introduzir algum

acréscimo num texto preexistente”. 25

Parece-me desnecessário opor um método a outro e, sobretudo, eliminar este ou

aquele, a partir de considerações genéricas ou filosóficas. O melhor método é aquele

que permite compreender muito bem os textos, abrindo caminhos claros para lhes

captar o significado e descobrir as soluções mais simples aos problemas de

interpretação. 26

A pergunta sobre a origem do Pentateuco segue. Pablo Andiñach vai dizer que “a

análise das fontes revela a história da formação do texto, mas não pode aplicar-se à leitura do

texto final”27. Em outras palavras, a descoberta da formação do texto através de quatro fontes

distintas pode mostrar a construção da forma, mas, talvez, não possibilite a descoberta da

lógica interna para uma interpretação plausível do conteúdo do texto. Andiñach lembra que o

que lhe parece realmente importante é “a experiência religiosa da comunidade de fé. Ela os

reconheceu como fonte de inspiração divina e legou-os às próximas gerações de crentes” 28.

Nessa linha de raciocínio, Andiñach diz que no avanço da pesquisa vai se dando a perceber,

através da leitura das narrativas, que os textos querem saciar a sede de quem quer conhecer ou

obter respostas sobre “a vida, o universo, a justiça, a violência etc”. 29

24 Cf. Jean Louis Ska. Introdução à leitura do Pentateuco: Chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros

da Bíblia. P. 13. 25 Cf. Jean Louis Ska. Introdução à leitura do Pentateuco: Chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros

da Bíblia. P. 12. 26 Cf. Jean Louis Ska. Introdução à leitura do Pentateuco: Chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros

da Bíblia. P. 14. 27 Pablo ANDIÑACH. O Livro do Êxodo: um comentário exegético-teológico. P. 12. 28 Pablo ANDIÑACH. Introdução hermenêutica do Antigo Testamento. P.19. 29 Pablo ANDIÑACH. Introdução hermenêutica do Antigo Testamento. P. 60-61.

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24

Contudo, mesmo com a ressalva que o próprio Andiñach traz mais tarde em seu

estudo, no tocante a não dispensa das ciências citadas e/ou de outras metodologias, das quais a

exegese pode fazer uso, ainda assim, seu ponto de vista com relação à interpretação do texto

bíblico vai ao encontro do que foi pensado desde o inicio para este estudo. Pois, diante de um

texto como o Pentateuco, por exemplo, que tem “5.845 versículos” 30, quatro micronarrativas

(Ex 2,15c-22; 4,18-20.24-26; 18,1-7) foram escolhidas para o estudo aqui proposto. Essas

quatro cenas com apenas 21 versículos relatam a existência de Séfora. As narrativas que

discorrem sobre a vida dela junto a Moisés significam tão somente 0,0036% de todo o

Pentateuco. Entretanto, esses 21 versículos são capazes de grandes revelações sobre a família

daquele que é declarado em Dt 34,10 como o maior profeta que Israel já conheceu.

Inegavelmente, essas quatro micronarrativas aqui estudadas são relatos da experiência de fé

vivida pelo casal Séfora e Moisés. Nelas é possível encontrar ou descobrir, com a

contribuição da metodologia da Analise Narrativa, o que o narrador através da caracterização

das personagens e da construção do enredo, consegue contar sobre a participação da esposa de

Moisés, seus filhos, seu sogro, enfim, sua família, naquele determinado tempo e espaço,

quando ele, Moisés, assumiu sua grande missão profética.

Ao observar esses textos que relatam alguns momentos do cotidiano de Séfora e

Moisés, o interesse dessa pesquisa se volta para a busca de sentido. Pode parecer um

pleonasmo dizer que o sentido do texto acontece durante a leitura. Porém, muito poderá fazer

sentido ao ouvinte-leitor quando olhar, de um lado, para as micronarrativas aqui estudadas

como texto canônico, o qual não poderá ser modificado. E vir, do outro lado, o leitor,

contando que, este ao ler pode ser atingido pelo texto na tentativa de interpretá-lo. O encontro,

o contato, nesse instante, poderá ser tão íntimo a ponto de provocar mudança no leitor. E essa

mudança, quando acontece, é provocada pelo alcance do sentido depreendido do texto.

Afirma Andiñach, “Não somos os mesmos – ou a comunidade não é a mesma – após ter

explorado o sentido de um texto e ter sido interpelado por esse”. 31

Contudo, a leitura do texto canônico, o qual não se pode modificar e, portanto, é um

texto hermético, durante sua entrega, ele se abre à hermenêutica ou à interpretação. Isso

acontece no justo momento em que o leitor se apropria dele e busca sentido para o que lê. Ou

seja, no momento da leitura o texto bíblico ganha “trajetória teológica” no seio de uma

30 Cf. Jean Louis Ska. O Antigo Testamento: Explicando aos que conhecem pouco ou nada a respeito dele. P.31. 31 Cf. Pablo ANDIÑACH. Introdução hermenêutica do Antigo Testamento. P. 26.

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25

comunidade crente ou mesmo para um individuo que o encontra solitário. Os autores aqui

citados, Andiñach e Ska, encontram-se em suas reflexões sobre a análise e interpretações do

texto bíblico, não são discordes.

A história da formação do Pentateuco é a mensagem do Pentateuco, porque a sua

história é uma história de morte e ressurreição, a história do povo de Israel redivivo

após o exílio. O Pentateuco representa o primeiro testemunho da sobrevivência, ou

melhor, da ressurreição de Israel, depois da traumática experiência do exilio. 32

Sendo assim, o que seria essa experiência traumática se não as experiências de vida e

fé de um povo. As narrativas são histórias contadas através de diferentes veículos, na

oralidade, por escrito ou de repente digitalizadas e possuem suas peculiaridades. O filme, por

exemplo, precisa contar a história e ter continuidade, já os slides mostram momentos

estanques de uma história não contada passo a passo. Ao olhar as quatro micronarrativas em

que Séfora, a esposa de Moisés, é mencionada nas tradições do êxodo, será possível ler a

história de vida de Séfora, sem caracterização direta da personagem, sem detalhamento do seu

cotidiano, quadro a quadro sem continuidade nos relatos.

Para descrever a complexidade de uma personagem, a Bíblia, como outras literaturas

tradicionais, usa técnicas de “flashes”. Em vez de apresentar uma longa evolução

como um processo contínuo, ou tendências com conflitos simultâneos, a Bíblia

apresenta momentos curtos, mas decisivos destes processos ou justapõe as

tendências conflitivas em diferentes e distintos quadros seguidos um após outro.

Para usar uma imagem, os narradores Bíblicos trabalham mais frequentemente com

“slides” do que com filmes. 33

Jean Ska afirma que a “análise narrativa tem, como primeira finalidade, penetrar no

mundo do relato”. 34 A olhos vistos, as personagens são os agentes capazes de conduzir o

ouvinte-leitor ao entendimento da trama e leva-lo a fazer grandes descobertas. A

micronarrativa em Ex 2,15c-22 será o cenário posto para análise da personagem Séfora, neste

capítulo.

32 Cf. Jean Louis SKA. Introdução à leitura do Pentateuco: Chaves para a interpretação dos cinco primeiros

livros da Bíblia. P. 14. 33 Cf. Jean Louis SKA. “Our Fathers Have Told Us”: Introduction to the Analysis of the Hebrew Narratives.

P.85. 34 Cf. Horácio SIMIAN-YOFRE; Innocenzo GARGANO; Jean Louis SKA; Stephen PISANO (org.).

Metodologia do Antigo Testamento. P.147.

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26

1.3 Personagem como elemento constitutivo da narrativa

Uma metáfora muito interessante para mostrar a importância das personagens em

narrativas, faz Daniel Marguerat. Usa ele em sua comparação a imagem de um guarda-chuva

com seu esqueleto aparente e a mesma imagem revestida com um belo pano colorido, ou não

tão colorido.

Quando se olha para um guarda-chuva, diz ele, não se vê, primeiramente, sua estrutura

interna, mas seu exterior, o tecido que cobre a estrutura. Então, uma narrativa tem esqueleto e

pano, tem enredo e personagens. A estrutura que sustenta uma narrativa e as personagens que

aparecem dão vida e movimento ao acontecimento no seu tempo e espaço. Portanto, num

primeiro olhar para a narrativa não se enxerga seu esqueleto, mas o pano. E em uma dimensão

mais manifesta as personagens vestem a narrativa e lhe dá aparência e cor. 35

As personagens são arquitetadas pelo narrador e atuam em narrativas, comumente,

simulam comportamentos e sentimentos reais das pessoas. Compreender os diversos tipos de

personagens criadas pela literatura ajuda, pelo menos em tese, a realizar análises através de

ações ou mesmo da ausência de ações das personagens.

O estudo das personagens pode chegar a descobrir traços de comportamentos capazes

de levar o estudo a determinar ou mesmo produzir o perfil de uma personagem em suas

relações de cunho social, cultural, intelectual, moral e até mesmo espiritual. Entretanto,

analisar personagens nas narrativas bíblicas torna-se tarefa dura, pois, a caracterização

produzida pelo narrador no texto bíblico é nebulosa e cheia de lacunas, o que dificulta a

visualização do ouvinte-leitor. “Como a Bíblia consegue evocar tal sensação de profundidade

e complexidade na representação de personagens com o que pareceria ser tão escasso, mesmo

rudimentar?” Robert Alter pergunta e responde:

A narrativa bíblica nos oferece, afinal, nada no caminho da análise minuciosa da

motivação ou da representação detalhada do processo mental; qualquer indicação

que nos possa ser dada sobre sentimentos, atitude ou intenção é mínima, mesmo

sobre a aparência física nos é dada pouca informação e de forma indireta. 36

35 Cf. Daniel MARGUERAT; Yvan BOURQUIN. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise narrativa.

P.75. 36 Robert ALTER. The Art of Biblical Narrative. P. 143.

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27

Ao voltar um pouco na história encontra-se o pensamento de Aristóteles sobre

classificação de personagens em duas categorias: pelos vícios e pelas virtudes. Com isso,

olha-se para os valores bons e maus que aplicados às caracterizações fazem surgir

personagens nobres ou vis. Estas serão encontradas nas tragédias e à vista estarão os homens

piores, vis, viciados ao mau comportamento.

Enquanto, nas comédias estarão representados os homens melhores, nobres e

virtuosos. No entanto, é preciso verificar a importância da personagem para o enredo e qual

papel desempenha. Para Aristóteles o mais importante é perceber que as personagens

conduzem a ação. O gênero da narrativa será determinado pelo tipo de conduta que as

personagens tomam. “Na vida real nem tudo que as pessoas fazem são características

pertencentes a elas, diferente do trabalho de arte literária, sobretudo nos contos”. 37

No andar da história, a partir do final da Idade Média tem início modificações de

categorias e classificações de personagens. Por volta do século XVIII já se percebe que “o

personagem criado no texto ganha em densidade psicológica”, o narrador mostra mais

facilmente a personalidade da personagem nos chamados romances modernos. Entretanto, em

1928, já no século XX, com Vladimir Propp, volta-se a ter “uma visão dos personagens

centrada mais em sua função do que nos traços de caráter”. De acordo com os estruturalistas e

semióticos franceses, os quais seguem a linha de pensamento de Propp, da escola dos

formalistas russos, as personagens têm papel de agentes nas narrativas. 38

No entanto, o diálogo com os narratólogos americanos traz novidades, estes veem as

personagens como “seres autônomos e se interessam por seus traços de caráter, por sua

personalidade”. 39 A personagem deve ser aberta, com possibilidades a transformações,

crescimento e retomadas, o que é próprio de um ser autônomo, segundo S. CHATMAN. A

personagem é elemento sine qua non para que junto ao enredo se componha a narrativa.

“embora seja verdade que um texto pode conter existentes sem acontecimentos (um retrato,

um ensaio descritivo), ninguém pensaria em lhe dar o nome de narrativa (S. CHATMAN,

Story and Discourse, 1978, 113)”. 40 Destarte, o pensamento dos narratólogos americanos, ao

37 Cf. Shimon BAR-EFRAT. Narrative Art in the Bible. P. 80. 38 Cf. Daniel MARGUERAT; Yvan BOURQUIN. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise narrativa.

P.76. 39 Cf. Shimon BAR-EFRAT. Narrative Art in the Bible. P. 77. 40 Cf. Shimon BAR-EFRAT. Narrative Art in the Bible. P. 76.

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dizer que se deve observar o percurso da personagem dentro da narrativa, não está muito

longe do pensamento aristotélico de que são as personagens a conduzirem a ação.

Bar-Efrat, estudioso do século XXI vai dizer que “a natureza da pessoa é revelada por

seus feitos, a ação é a implementação da personagem e indivíduos são revelados através de

suas ações, não menos que através de suas palavras”. 41 Nas narrativas bíblicas o narrador

revela as personagens, muito mais, por seus feitos e suas ações do que as descrevendo. As

ações significam caracterização indireta. Desta forma, o leitor conhece e reconhece uma

personagem bíblica pela maneira que age nas diversas situações.

No fundo, o enredo influencia a personalidade da personagem e vice-versa. As ações

das personagens são blocos de construção para o enredo, no entanto, as personagens não

devem ser meros meios de transportes para fazer a história andar. Contudo, a narrativa não

está interessada apenas nos acontecimentos, mas, também, nas pessoas envolvidas. Embora, o

desenrolar do enredo ocupe o papel central da narrativa bíblica, o indivíduo dentro dela não é

menos importante que o evento.

Quanto ao grau de presença de uma personagem na narrativa é difícil qualificar ou

quantificar essa presença. O existente ou personagem pode ser plana ou redonda, pode ter um

único traço de personalidade dentro da narrativa ou pode evoluir e “tomar consciência” para

conduzir o enredo com ações que desenvolve a trama. Dessa forma, entende-se que são as

personagens a interferirem no enredo e com frequência essas são as protagonistas. “A força do

personagem é um efeito da leitura, o que quer dizer que ela nasce entre o texto e o leitor”. 42

O eixo de comunicação que se estabelece entre o leitor e a obra lida está numa linha

tênue, na qual se desenvolve a diegese, a história narrada. As personagens não são meras

servidoras, as quais o narrador manipula a seu bel prazer, elas são capazes de fazer revelações

ao ouvinte-leitor sobre valores, modelos, preceitos e normas. “As decisões que tiveram de

tomar quando confrontaram diferentes alternativas, estas acompanhadas de seus resultados

fornecem evidencias incontestáveis das dimensões éticas das narrativas”. 43 A personagem

Séfora em Ex 4,24-26 traz à cena o rito da circuncisão, este tem valor de pertença a Deus e ao

41 Cf. Shimon BAR-EFRAT. Narrative Art in the Bible. P. 77. 42 Cf. Daniel MARGUERAT; Yvan BOURQUIN. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise narrativa. P.

84. 43 Cf. Shimon BAR-EFRAT. Narrative Art in the Bible. P. 47.

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povo de Israel a partir da aliança estabelecida pelo SENHOR Deus junto a Abraão (cf. Gn

17,10-12). Esta micronarrativa será analisada no terceiro capítulo deste estudo.

As personagens atraem os leitores muito mais que outros elementos da narrativa, pois,

provocam um envolvimento emocional considerável. As pessoas são capazes de sentir o que

as personagens sentem, seja na alegria ou na tristeza. E mais, podem participar do seu destino

e de suas experiências. As personagens podem despertar simpatia ou revolta, mas nunca

indiferença. O leitor quer, sempre, conhecer as personagens, ver como agem dentro de seus

ambientes e querem entender seus motivos e desejos. Os leitores acompanham as lutas, as

realizações e conquistas das personagens, prestam especial atenção em tudo que dizem umas

às outras, pois, as mesmas falas podem ser endereçadas aos ouvintes-leitores.

Nos parágrafos acima, falou-se de caracterização de personagens, mesmo sem defini-

la conceitualmente. A caracterização pode ser direta ou indireta. A descrição da aparência

física, por exemplo, quase não se encontra nas narrativas bíblicas, exceto quando há interesse

em mostrar o exterior de uma pessoa para que se entenda melhor o desenrolar da narrativa, ou

mesmo para justificar ações ou decisões. Como a descrição de Lia e Raquel (Gn 29,17) ou de

Saul e Samuel (1Sm 16,7). A caracterização direta inclui um elemento de julgamento. Se a

pessoa é defina como justa ou perversa, sabia ou tola, nisto constitui-se julgamento. Por outro

lado, a caracterização direta pode, também, ser caminho de crescimento e/ou de evolução. 44

Já o método indireto de caracterização não torna claro ao leitor a natureza da

personagem principal até que sua leitura chegue ao final da narrativa, pois a personagem será

retratada dinamicamente. Ela não fala de si mesma, mas age para mostrar suas ações. Somente

ao final do enredo, o leitor poderá ter relacionado os fatos e tirado suas conclusões a respeito

do perfil da personagem. E mais, as personagens das narrativas bíblicas combinam

características individuais e universais. Por isso, são capazes de ser portadoras de mensagens

que vão direto ao coração do ouvinte-leitor.

A personagem, Séfora, objeto desta pesquisa, em suas presenças, nas quatro

micronarrativas, das quais participa ou é mencionada, não tem uma descrição, seja física ou

psicológica. O narrador trabalha a personagem sob caracterização indireta. Este tipo de

caracterização requer esforço mental da parte do leitor, pois, este tem de interpretar os

44 Cf. Shimon BAR-EFRAT. Narrative Art in the Bible. P. 53.

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detalhes colhidos de características externas, da fala e das ações da personagem a fim de

construir o estado mental e emocional dela.

O que a personagem fala e faz leva o leitor a descobrir o que está em seu interior.

Também, Moisés em Ex 3.11, recebe caracterização indireta, quando o Senhor ordena que ele

vá ao Faraó e liberte os filhos de Israel da opressão que viviam no Egito, Moisés contesta.

Quem sou eu para ir ao Faraó? Nesse diálogo Moisés demonstra dúvidas sobre suas

habilidades e capacidades. Ele revela um traço de modéstia em sua personalidade, o qual será

percebido em Nm 12,3.

“As ações do dia a dia das pessoas raramente são mencionadas nas narrativas

bíblicas”. 45 Contudo, encontram-se personagens bíblicas em circunstâncias especiais e não

regulares, em momentos de crise e estresse, quando elas têm que enfrentar situações

desafiadoras. O habito de levantar cedo na vida cotidiana é irrelevante e não se fala nisso

ordinariamente. No entanto, em Gn 21,14; 22,3 é narrado que Abraão levantou cedo quando

Sarah ordenou que ele mandasse Agar embora, também, quando recebeu instruções do

SENHOR Deus para sacrificar seu filho Isaac. Isso parece mostrar que Abraão não deixa as

tarefas difíceis para depois, não as posterga. A naturalidade de ações que se repetem é

suficiente para indicar traços da personalidade de um protagonista.

Sobre a caracterização do casal Séfora e Moisés, o esposo desempenha o papel de

protagonista, ele é o mensageiro de Deus e torna-se o líder dos hebreus. Já Séfora, sua esposa,

traz traços bastante peculiares em sua caracterização.

1.4 Séfora como personagem secundária

Séfora, nas quatro micronarrativas em que é mencionada ora será uma personagem

plana, ora quase figurante e em um determinado momento será uma grande protagonista,

desempenhando papel de verdadeira heroína na defesa de seu noivo de sangue.

Poucas personagens nas narrativas bíblicas são retratadas extensivamente e em

detalhes. A maioria é esboçada em algumas poucas linhas. Embora, elas sejam

convicentemente reais e humanas e tenham características singulares. 46

45 Cf. Shimon BAR-EFRAT. Narrative Art in the Bible. P. 78. 46 Cf. Shimon BAR-EFRAT. Narrative Art in the Bible. P. 91-92.

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As personagens recebem uma caracterização no desenrolar do enredo que se conta. Em

termos de hierarquia gerada pela narrativa, os primeiros papeis estão em primeiro plano e as

personagens protagonistas têm papeis ativos na intriga. Nos segundos papeis estão as

personagens a serviço do enredo e podem ter dimensões simbólicas. As personagens

secundárias não intervêm no enredo, mas são pontos de referência. Enquanto os figurantes

funcionam como pano de fundo, limitando-se a compor a cena e podem ser individuais ou

coletivos.

Ao se tratar de personagem secundária, muitos elementos de sua caracterização podem

funcionar, enfatizando, realçando ou intensificando traços da personalidade de uma

personagem principal. Bar-Efrat vai dizer que a forma com a qual o narrador caracteriza a

personagem principal é “realistic” com meios indiretos. A forma “realistic” de caracterização

assemelha-se ao que as pessoas fazem na vida real. Em geral, as pessoas humanas tiram

conclusões sobre a personalidade das outras pessoas, observando o que elas fazem ou dizem.

No método indireto de caracterização, as personagens não são definidas cognitivamente,

descritas de forma inteligível, mas suas personalidades emergem de suas aparências e ações

no decorrer da narrativa.

Sobre outros tipos de classificação de personagens, Jean Ska coloca em oposições as

seguintes categorias de personagens: as dinâmicas e estáticas, as planas e redondas.

Personagens planas, por exemplo, como o Faraó do Egito, em uma análise superficial, parece

ser um obstinado, cabeça-dura, que diz não o tempo inteiro, acaba por revelar apenas um lado

da personagem. Fica a impressão de superficialidade, muito embora não seja a

superficialidade o traço da personagem plana. É como se o ouvinte-leitor visse apenas uma

face dos lados de um cubo e os demais não existissem. A personagem plana não vive

experiências de debates interiores. Já a personagem redonda, como Moisés, tem conflitos

interiores, ele mostra tendências contraditórias no diálogo com o SENHOR Deus (Ex 3,1-4,17).

Nesse longo diálogo Moisés demonstra dúvidas sobre suas habilidades e capacidades, mesmo

com suas dúvidas, ele continua a ser ator principal. Evidentemente, as ações fazem, também, a

personagem evoluir, mesmo atuando com papel secundário. Séfora talvez seja um grande

exemplo disso com sua ação transformadora na micronarrativa de Ex 4,24-26.

Em resumo, as personagens estáticas não têm envolvimento com seu interior,

enquanto a personagem dinâmica desenvolve-se internamente durante a narrativa, o que acaba

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por transparecer em seu exterior. Via de regra, os elementos da narrativa impactam a maneira

com a qual a personagem dinâmica vê o mundo a seu redor. “Em geral, o leitor infere a

existência de um traço de personalidade a partir da observação de hábitos da personagem”. 47

A personagem secundária, Séfora, para a qual se pretende dispensar um tempo maior

de análise, neste estudo, está em paralelo com a personagem principal, Moisés, em

correspondência ou contraste nas quatro micronarrativas já citadas. Este paralelismo se faz

necessário para dar ênfase e cor ao protagonista. A figura secundária serve de apoio para que

a personagem principal se destaque, seja na condução de diálogos ou ações. Entretanto,

estaria Séfora totalmente enfronhada nessa concepção? Enfim, esse tipo de caracterização é

próprio da literatura, muito embora as caracterizações forjadas pelos narradores encontrem

seus pares na vida real, porém, o papel secundário não traz dignidade à vida humana.

Os textos bíblicos revelam estruturas capazes de identificar narrativas literárias, nelas

se espera ver ou ouvir sobre experiências humanas, bem como, uma linha de pensamento do

autor explicita ou implícita e não raro um estilo artístico. Junto a essas características as

personagens são elementos capazes de enredar o ouvinte-leitor. De fato, os existentes “vestem

a narrativa e lhe dão aparência e cor (...) só há história se ocorrerem ao mesmo tempo

acontecimentos e existentes [= personagens]”. 48

As personagens são responsáveis por fazer o enredo ganhar vida e comunicar-se com o

ouvinte-leitor ao ponto de estabelecer quase que um relacionamento. Pois, quem as lê ou ouve

pode identificar-se com seu caráter, seus valores ou, mesmo, repudia-las dependendo de sua

caracterização. Esta pode não ser estática, mas desenvolver-se ao longo da narrativa e, com

isso, trazer mudanças de comportamento a essa ou aquela personagem. Séfora, a personagem

analisada nesse estudo, por exemplo, passa por situações que exige dela posicionamentos

diferenciados, atua como personagem plana, também, como quase figurante e em um

determinado momento assume certo protagonismo, que facilmente a destaca dentro do enredo,

no qual participa.

47 Cf. Jean-louis SKA. “Our Fathers Have Told Us”: Introduction to the Analysis of the Hebrew Narratives.

P.85. 48 Cf. Daniel MARGUERAT; Yvan BOURQUIN. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise narrativa.

P.75-76.

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Para Ska, as categorias de personagens: estática e dinâmica, plana e redonda são as

mais usadas em narrativas bíblicas. Elas são os tipos de personagens que mais dão cor aos

enredos narrados no texto bíblico, são as cores preferidas dos narradores bíblicos. Séfora foi

caracterizada como uma personagem coletiva e quase figurante em Ex 2,15c-22, no entanto,

um motivo à torna existente secundária. Ela aceita se casar com Moisés, muito embora, o

ouvinte-leitor não leia nem ouça sua voz, além disso, torna-se mãe.

Mas, de repente, Séfora pode, ainda, se tornar uma personagem complexa, mais

definida, de certa forma até meio enigmática e imprevisível. Séfora, evolui, surge em uma

narrativa específica e surpreende o ouvinte-leitor em Ex 4,24-26. O que dizer sobre Séfora?

Ela é, nessa cena, uma personagem de presença e presença intensa. Nesses três versículos, ela

atua de forma tal, que pode fazer mudar seu status enquanto personagem. Uma atuação para a

qual os teóricos da literatura nomeiam como personagem redonda, pois ela evolui a olhos

vistos. Séfora interveio na narrativa com uma ação que muda o rumo da história. Agora,

continuaria ela sendo uma personagem secundária? A bem da verdade, nem sempre é fácil

fazer a distinção entre personagem principal e secundária.

Há personagens que são mensageiros, correio, que realizam somente um papel

técnico menor na estrutura do enredo como uma pessoa anônima. Enquanto outras

personagens secundárias desempenham funções importantes, ao ponto de dificultar a

categorização delas em secundárias ou principais. Essa dificuldade aparece,

especialmente, quando uma personagem é secundária em uma narrativa e pode se

tornar principal em outra. 49

Seria Séfora em Ex 4,24-26 personagem secundária ou principal? Nesta

micronarrativa, ela conduz a cena, ganha ação ao circuncidar o filho e pela primeira e única

vez tem voz em um discurso direto, quando adjetiva seu noivo, ele é seu noivo de sangue.

Séfora parece desempenhar papel de protagonista em oposição ao papel de Moisés que,

aparentemente, está em situação de impotência. Em contrapartida, nas outras três

micronarrativa que participa, tem atuação narrada.

Uma personagem pode ser categorizada ou classificada por critérios estabelecidos pela

teoria literária. No entanto, Bar-Efrat segue o raciocínio de que é melhor olhar para a relação

que se estabelece entre uma personagem e outra, ou seja, deve se prestar atenção aos papeis

49 Cf. Shimon BAR-EFRAT. Narrative Art in the Bible. P. 86.

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que desempenham uma em relação à outra. Afinal, as personagens estão sempre em relação,

são seres de relação, independentemente dos entes aos quais pertençam.

1.5 Séfora em Ex 2,15c-22

Estando as personagens em relação, conforme dito acima, o ouvinte-leitor pode

perceber quão relacionadas estão as personagens participantes da micronarrativa em Ex 2,15c-

22. Moisés (v.15.17.21), o egípcio (v.19), homem (v.20) e imigrante (v.22), como

protagonista. O sacerdote de Madiã (v.16), chamado de Raguel (v.18), pai de sete filhas

(v.16.18) e homem (v.21). Este tem uma atuação de forte posição, em coadjuvância com

Moisés. 50 As sete filhas (v.16.20) uma personagem coletiva, a filha Séfora (v.21), a qual se

liberta da coletividade, já não é mais uma entre as irmãs, ganha nome, é dada em casamento e

dá a luz um filho, Gerson (v. 22).

Sim, Inicialmente, Séfora faz parte de uma personagem coletiva, muito próxima ao

que se configura como personagem figurante. 51 O narrador constrói a cena junto ao poço em

Madiã na chegada de Moisés, a essa terra, como fugitivo do Egito e Séfora está lá. Ela é uma

pastora que junto às suas seis irmãs cuida do rebanho do pai. ‘Um egípcio nos livrou das mãos

dos pastores e, também, tirou água para nós e fez o gado menor beber’ (2,19), Este discurso

direto é de uma personagem coletiva, são as sete filhas de Jetro que o responde. Séfora se

transformará em uma personagem individual no momento em que é escolhida pelo pai para

ser dada em casamento ao fugitivo solidário. E ainda nessa cena, Séfora torna-se mãe de

Gerson.

A personagem que a principio fez parte de um coletivo, ganha um traço de esposa e

mãe, muito possivelmente, de dona de casa. Essa passagem, aparentemente, a faz ganhar o

status de personagem que tem presença no enredo, talvez, ainda com pequena intensidade,

podendo ser declarada uma personagem plana de um traço só, com pouca profundidade

psicológica, que está em desenvolvimento e até então sua existência está para que exista uma

família a Moisés.

50 Cf. Matthias GRENZER. Imigrante em Madiã (Ex 2,15c-22). In Atualidade Teológica 49 (2015), p. 75-89. 51 Cf. Shimon BAR-EFRAT. Narrative Art in the Bible. P.77.

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Ao olhar especificamente para o “grau de presença” na hierarquia de personagens

dentro das quatro micronarrativas, onde estaria Séfora, na primeira ou segunda classe de

personagens? Pois, a categoria de figurante, dificilmente se aplicaria a ela, o mais próximo

disso teria sido quando ela fez parte da personagem coletiva, em que era uma das sete irmãs.

O narrador não tem a preocupação de fazer uma caracterização direta da personagem

Séfora, nem em Ex 2,15c-22 e nem nas outras três micronarrativas, nas quais a esposa de

Moisés participa ou é mencionada (Ex 4,18-20.24-26;18,1-7). O ouvinte-leitor tem de

descobrir traços da personalidade de Séfora através de seu comportamento, analisando cada

cena em que ela atua.

Em se tratando de Ex 2,15c-22, o que essa micronarrativa revela sobre Séfora? Quem

é ela? Séfora é um das filhas do sacerdote de Madiã, irmã de seis irmãs. A moça tem

profissão, ela é pastora e isso a faz passar por dificuldades. É mulher agredida no exercício de

suas tarefas, é discriminada e sofre, injustamente, opressão por parte dos pastores homens e

rudes. A madianita, filha obediente, trabalhadora, casa-se com Moisés pela vontade de seu

pai. Como esposa zelosa dá um filho a Moisés, que o chama de Gerson.

1.5.1 Filha de sacerdote e irmã

v. 16a Ora, vieram as sete filhas do sacerdote de Madiã.

v. 16b Tiraram água

v. 16c e encheram os bebedouros,

v. 16d a fim de fazer beber o gado menor do pai delas.

Séfora é uma das sete filhas de Jetro, o pai é sacerdote em Madiã. Séfora e suas irmãs

faziam seu trabalho de pastoras, possivelmente, num dia qualquer, como tantos outros.

Chegaram junto ao poço, encheram suas vasilhas e queriam dar água ao gado menor de seu

pai, porém foram expulsas por outros pastores que ali estavam.

A bem da verdade, em Ex 2,16 ainda não se tem nenhuma informação sobre Séfora,

pois o narrador prepara a narrativa, que terá um desfecho feliz, com alguém tirado da

personagem coletiva, uma das sete irmãs. Elas estão junto ao poço em Madiã. Interessante

perceber como a palavra poço está no texto em hebraico, é uma palavra preposicionada com o

artigo definido. Esse detalhe leva o ouvinte-leitor a perceber a importância do lugar, ou seja,

não é um poço qualquer, é o poço onde algo de grande relevância irá acontecer. Séfora está

entre as irmãs e Moisés as observa.

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1.5.2 Pastora agredida

v. 17a No entanto, vieram os pastores

v. 17b e os expulsarem.

Séfora é mulher e é pastora. O trabalho de pastoreio é trabalho duro e exigente. Além

do esforço físico exigido, havia também o ambiente hostil criado pelos pastores homens, que

por julgarem-se mais fortes, achavam-se no direito de tirar os mais frágeis de sua frente, nesse

caso, as mulheres pastoras. Essas que são irmãs e são as filhas de Raguel, o sacerdote de

Madiã.

O texto narra a ação de Moisés em defesa das sete mulheres, sugerindo que Deus já o

estava preparando para seu grande trabalho de resgatar o povo hebreu da escravidão do Egito.

Moisés que havia chegado à Madiã, fugido do Egito, observando a cena, interviu, defendeu as

moças da ameaça dos pastores abusadores e deu de beber ao rebanho delas. Moisés possuía

um instinto de defensor dos oprimidos já revelado anteriormente.

1.5.3 Mulher salva e liberta por um homem atento e leal

v. 17c Então Moisés se ergueu,

v. 17d as salvou

v. 17e e fez seu gado menor beber.

v. 19b “Um egípcio nos libertou da mão dos pastores.

v. 19c Também tirou água para nós

v. 19d e fez o gado menor beber!”

Séfora, filha de Jetro, sacerdote em Madiã, conhece Moisés junto ao poço, onde o

Hebreu-egípcio, vendo uma cena de desrespeito às sete mulheres que se aproximam do poço

para dar de beber ao rebanho de seu pai, levanta e defende as mulheres. Moisés não resiste e

não assiste passivamente uma cena de opressão. Ele ajuda, é gentil, protetor, defende as

moças em situação de risco.

As características da personagem Moisés, também, vão ficando cada vez mais

transparentes, percebe-se nele um traço forte de líder libertador dos oprimidos. Moisés foge

do Egito, pois havia ferido de morte um egípcio (Ex 2,12). No entanto, liberta-se da

perseguição do Faraó, pois, o direito do antigo Israel não considera assassino aquele que mata

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sem que o crime tenha sido premeditado. Ou Seja, quando o homicídio acontece por legítima

defesa de sua vida ou da vida de outrem. Por isso, Moisés livra-se da perseguição do Faraó.

Ao chegar a Madiã, por impulso, novamente, se coloca em posição de defensor, agora

das sete filhas do sacerdote de Madiã. De novo, Moisés não fica apenas observando, ele

também não age por premeditação, mas, simplesmente reage diante de uma situação de

injustiça. É uma “reação corajosa” e “favorável ao oprimido”, Moisés age por si, a princípio,

são ações individuais que revelam sua personalidade, a identidade de um líder que

futuramente irá libertar o povo israelita oprimido pelo Faraó do Egito. 52

Moisés é proativo, não se acomoda diante de uma situação que exige interferência, que

pede ajuda, ele está atento, em alerta e tem a prontidão de um libertador. O fugitivo é um

estrangeiro com comportamento de bom moço, gentil, defensor dos injustiçados. Enfim,

Moisés com seu comportamento diferenciado, apesar de ser um imigrante, ele tem algo em si

que o move para a defesa de um oprimido injustiçado. Com isso, conquista o coração do pai

das sete filhas.

1.5.4 Mulher acolhedora

v. 20b “Onde está ele?

v. 20c Por que isso?

v. 20d Abandonastes o homem?

v. 20e Chamai-o,

v. 20f para que coma pão!”

O narrador faz a cena ganhar movimento com a introdução de um diálogo entre pai e

filhas. Raguel fica sabendo do atentado, pelo qual as filhas passaram e que teve um homem

destemido que as protegeu. O fato foi contado pelas próprias filhas, as quais compoe a cena

como personagem coletiva. (v.19).

O gesto de Moisés para com as filhas do sacerdote, junto ao poço em Madiã, ao chegar

aos ouvidos do madianita, o faz querer conhecer esse homem. Então, pede às filhas para

convidar Moisés a comer com eles. O sacerdote, pai, quer conhecer o benfeitor de suas filhas.

52 Cf. Matthias GRENZER. Imigrante em Madiã (Ex 2,15c-22). Atualidade Teológica 49 (2015). P. 75-89.

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Parece que os dois se dão bem, pois, mais à frente o narrador dará noticias sobre o desenrolar

desse novo relacionamento, o qual surgiu de uma situação de fragilidade e perigo.

1.5.5 Esposa e mãe

v. 21a Moisés decidiu morar com o homem,

v. 21b o qual deu sua filha Séfora a Moisés.

v. 22a E deu um filho à luz.

v. 22b Chamou-o de Gérson,

O pai sacerdote, provavelmente, família nobre e respeitada do lugar, acolhe o

imigrante e o integra à sociedade. Raguel o convida a ficar com eles e o fugitivo com

aparência de egípcio acaba por receber Séfora, uma das sete irmãs, em casamento (Ex 2,15c-

22). Séfora, filha dócil, obediente, aceita a indicação do pai para desposar Moisés, o

estrangeiro fugitivo do Egito. Moisés passa a trabalhar como pastor.

Não há registro bíblico de como foi o primeiro contato, além do visual, entre Séfora e

Moisés ou de como foi o primeiro diálogo do casal. No entanto, em Ex. 2,21 o narrador dá

uma notícia ao contar que Moisés decidiu morar com o homem, o qual lhe deu sua filha

Séfora. Ela o aceita como esposo. Séfora torna-se mãe e dá à luz um filho que foi chamado de

Gérson (v.22). Digamos que a situação junto ao poço foi uma bela maneira que Séfora teve

para conhecer o marido Moisés.

1.6 Contexto histórico-cultural de Madiã

Antes de Séfora, havia Cetura. Abrão tomou ainda uma mulher (Gn 25,1-4), Abraão e

Cetura geraram seis filhos: Zamrã, Jecsã, Madã, Madiã, Jesboc e Sué. Madiã, por sua vez,

teve seus rebentos: Efa, Ofer Henoc, Abida e Eldaá. Pois bem, os madianitas são

descendentes de Madiã, este que é filho de Abraão. Dos filhos de Abrão, exceto Isaac, filho

de Abraão e Sarah, os demais foram enviados pelo pai a viverem no leste, na terra do Oriente

(Gn 25,6). Entretanto, os madianitas mostraram tendências nômades, como se revela em (Hab

3,7) estão agitadas as tendas da terra de Madiã. Também, queimaram as cidades em que

habitavam, bem como todos os seus acampamentos (Nm 31,10).

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O Pentateuco vai mostrar através de suas narrativas que Moisés é intensamente ligado

aos madianitas, o hebreu-egípcio tornou-se membro da família de um sacerdote madianita.

Além do pai e das sete filhas que Moisés conheceu no capítulo 2 do Livro do Êxodo,

tardiamente o ouvinte-leitor terá notícias de um filho de Jetro. Hobab é o filho de Jetro,

cunhado de Moisés, ao qual o líder dos israelitas pediu ajuda no deserto, diz Moisés a Hobab:

tu conheces os lugares onde devemos acampar no deserto e tu serás os nossos olhos (Nm

10,31).

As narrativas bíblicas sobre Madiã מדין trazem poucas informações sobre onde se

situava, exatamente, essa terra, na qual Moisés vai se refugiar. William Dever afirma que a

Madiã bíblica estava a “noroeste da Península Árabe à margem leste do Golfo de Aqaba, no

Mar Vermelho”, uma área onde "nunca se estabeleceu extensivamente até o século 8 a 7

aC.”.53 Tampouco, há caracterização discorrida através das narrações, ficam apenas marcadas

as atividades feitas pelas personagens que atuam nas narrativas. Por exemplo, sabe-se que é

um lugar de pastoreio, pois, Moisés torna-se pastor do rebanho de Jetro seu sogro. As próprias

filhas de Jetro, por sua vez, são pastoras. Sabe-se também que a família, na qual Moisés fora

integrado tem uma religião e, naturalmente um Deus, porém, não se explicita qual seja.

Entretanto, contando que os Madianitas descendem de Abraão, juntando-se ainda o fato de

Jetro, o sogro de Moisés, ser um sacerdote nas terras de Madiã (Ex 2,16). Que, uma vez mais,

o SENHOR fala com Moisés, justamente, em Madiã (Ex 4,19), após o longo diálogo no Horeb,

a montanha de Deus (Ex 3,1). Que Séfora realiza o rito da circuncisão e, ainda mais, em Ex

18,1-7, no retorno de Séfora a Moisés, Jetro presta culto ao SENHOR Deus, oferece sacrifício e

ceia com os israelitas diante de Deus. Tudo isso, de alguma maneira, pode indicar que os

madianitas conheciam o Deus de Abrão, Isaac e Jacó, o Deus de Israel.

Contudo, aquele Moisés, que se refugiara em Madiã, o qual ganhou acolhimento na

família de um sacerdote, casou-se com Séfora e deram à luz dois filhos, Gerson e Eliezer. Este

mesmo Moisés recebeu, antes de morrer, uma última missão do SENHOR Deus: “Trata-se de

uma expedição de represália contra Madiã”. 54 Nesse episódio o texto bíblico informa que os

madianitas viviam em mais de uma cidade, possuíam riqueza, ouro, prata, bronze, ferro,

estanho e chumbo. Além disso, possuíam escravos, bois, jumentos, ovelhas e outros animais.

53 William Dever, Who were the Early Israelites and Where Did They Come From? P.34 54 Walter VOGELS. Moisés e suas múltiplas facetas. P. 261.

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Porém, após a guerra contra Madiã, aconteceu que os israelitas fizeram a partilha dos

despojos, o que parece indicar que esse povo tenha desaparecido.

No entanto, estudos arqueológicos, mostram que Madiã marca presença seja como uma

terra nominada e estabelecida ou como povo itinerante. Pois, objetos encontrados em sítios

arqueológicos, como as cerâmicas (ver figura 2, 3 e 4) descobertas sob algumas camadas de

terra nas regiões apontadas no mapa (ver figura 1), comprovam sua existência.

Figure 1: Map showing many of the important metallurgical centers and trade commodities of Midian and Edom 55

55 Jacob Edward DUNN. ‘A land whose stones are iron and from whose hills you may mine copper’. P.6.

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Figure 2: Midianite ware from Timnaʿ in the Wadi ʿArabah. Decorations include zoomorphic motifs and

geometric patterns (Image after Stager, 1998). 56

A louça Madianita era feita de argila bem-levigada, queimada ao fogo alto, coberta

com cor rósea clara. Nelas, pintadas várias figuras geométricas em vários tons de marrom,

preto, amarelo e vermelho. Usavam-se representações de pássaros e humanos, sendo os

pássaros o motivo zoomórfico mais comum. Sem dúvida, essas representações geométricas e

pictóricas em objetos Madianita fornecem uma janela para o mundo sócio religioso e

simbólico dos Madianitas. 57

56 Jacob Edward DUNN. ‘A land whose stones are iron and from whose hills you may mine copper’. P. 10. 57 Jacob Edward DUNN. ‘A land whose stones are iron and from whose hills you may mine copper’. P.11.

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42

Figura 3: Aqui está um conjunto de objetos de cerâmica e fragmentos com suas legendas numeradas de 8.1 a 8.6,

as quais se apresentam com seus conteúdos conforme sua fonte58, em língua inglesa. Opção feita por serem

descrições técnicas de identificação em pesquisa arqueológica.

58 Jacob Edward DUNN. ‘A land whose stones are iron and from whose hills you may mine copper’. P.85.

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43

Figura 4: Aqui está um conjunto de objetos de cerâmica e fragmentos com suas legendas numeradas de 9.1 a 9.5,

as quais se apresentam com seus conteúdos conforme sua fonte59, em língua inglesa. Opção feita por serem

descrições técnicas de identificação em pesquisa arqueológica.

59 Jacob Edward DUNN. ‘A land whose stones are iron and from whose hills you may mine copper’. P.86.

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2 Voltar, com a família, à sociedade em conflito (Ex 4,18-20)

2.1 Introdução

Após ter ferido mortalmente um egípcio, aparentemente em legítima defesa de um

hebreu agredido, Moisés precisou fugir do faraó. Ao escutar, pois, sobre o caso, o rei do Egito

procurou matar aquele que se propusera a defender um irmão injustiçado (Ex 2,15b-c).60 O

conflito ilustra bem a situação dramática à qual os hebreus imigrantes, descendentes de Jacó e

dos filhos dele (Ex 1,1-7), estavam expostos como povo. 61 Um novo rei egípcio tinha optado

por mudar o destino dos hebreus, impondo-lhes, com brutalidade, trabalhos forçados, cargas

pesadas e uma servidão dura (Ex 1,8-14).62 O faraó chegou até mesmo a promover a matança

dos meninos hebreus recém-nascidos (Ex 1,15-22). O próprio Moisés sobreviveu tão somente

porque um grupo de mulheres conseguiu formar um círculo de ternura impenetrável a seu

redor.63 Aos filhos de Israel, portanto, só restava gemer e gritar por causa da servidão (Ex

2,23-25). 64

Em contrapartida, a narrativa do êxodo também apresenta sinais de esperança. A fuga

daquele que estava sendo perseguido pelo faraó, por exemplo, foi feliz. Atravessando o

deserto do Sinai, Moisés conseguiu instalar-se nas terras de Madiã. Foi tão bem acolhido pelo

sacerdote de Madiã, que deste recebeu sua filha Séfora como esposa, com quem teve um

primeiro filho (Ex 2,15c-22).65

Contudo, após a descrição do sofrimento dos hebreus no Egito e da presença de

Moisés em Madiã, a história do êxodo começa a insistir na atenção especial que o SENHOR,

Deus de Israel, daria aos oprimidos (cf. Ex 2,23-25). Narram-se, de forma extensa, uma visão

e um diálogo que Moisés teve com Deus (Ex 3,1–4,17). Ao pastorear o gado pequeno de seu

sogro no monte de Deus, o hebreu-egípcio (cf. Ex 2,6.19), refugiado em Madiã, é chamado a

60 Cf. Matthias GRENZER. Decidido a defender o oprimido (Ex 2,11-15c). Revista de Cultura Teológica 35

(2001). P. 129-139. 61 Cf. Matthias GRENZER. Do clã de Jacó ao povo de Israel (Ex 1,1-7). Revista de Cultura Teológica 81 (2013).

P. 83-94. 62 Cf. Matthias GRENZER. O fracasso da política de opressão violenta (Êxodo 1,8-14). Horizonte: Revista de

Estudos de Teologia e Ciências da Religião 12 (2014). P. 141-163. 63 Cf. Matthias GRENZER. “Em defesa da criança (Ex 1,15–2,10)”. Revista de Cultura Teológica 55 (2006).

P.25-37. 64 Cf. Matthias GRENZER. O grito dos oprimidos (Êxodo 2,23-25). Revista de Teologia e Ciências da Religião

da UNICAP 4 (2014). P. 319-334. 65 Cf. Matthias GRENZER. Imigrante em Madiã (Ex 2,15c-22). Atualidade Teológica 49 (2015). P. 75-89.

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compreender que ele seria o escolhido por Deus para tornar-se um instrumento nas mãos do

SENHOR, a fim de libertar os hebreus oprimidos. Para isso acontecer, porém, era necessário

que Moisés voltasse ao Egito.

Não é difícil imaginar que a volta ao Egito significaria um conflito dramático na vida

de Moisés, uma vez que ele havia fugido de lá (Ex 2,15). Por que arriscar-se agora na direção

contrária, sendo que sua adaptação em terra estrangeira havia logrado êxito? Tudo isso não

levaria Moisés a colocar em risco sua paz? Além disso, Moisés havia adquirido laços

familiares: Séfora se tornara sua esposa, e um primeiro filho havia nascido do casal (Ex 2,21-

22).

Essas questões nortearão a leitura e interpretação da cena ou micronarrativa presente

em Ex 4,18-20. O objetivo será encontrar, no texto bíblico, possíveis respostas a essas

perguntas. Afinal, o que poderia possibilitar a um refugiado voltar em paz à sociedade que

está em conflito?

2.2 O texto

2.2.1 Tradução do hebraico para o português

A seguinte tradução de Ex 4,18-20, texto originalmente composto em hebraico, se

baseia na quarta edição crítica da Biblia Hebraica Stuttgartensia.66 A segmentação proposta

acolhe a presença marcante do verbo hebraico. Este, em todas as frases verbais do episódio,

ocupa a primeira posição, conferindo, assim, ritmo à narrativa.67 Além disso, destaca-se a

marcante alternância entre os trechos de narração e os discursos diretos de algumas

personagens participantes do episódio.

Moisés foi

e voltou para Jeter, seu sogro.

Disse-lhe:

“Quero ir, por favor,

18a

18b

18c

18d

66 Karl ELLIGER; Wilhelm RUDOLPH. (Eds.). Biblia Hebraica Stuttgartensia. 1997. 67 Cf. Matthias GRENZER. As dimensões temporais do verbo hebraico: desafio ao traduzir o Antigo

Testamento. Pistis & Praxis 8 (2016). P. 15-32.

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e voltar a meus irmãos,

que estão no Egito.

Verei

se eles ainda estão vivos”.

Jetro disse a Moisés:

“Vai em paz!”

E o SENHOR disse a Moisés em Madiã:

“Vai!

Volta para o Egito,

porque morreram todos os homens

que estavam procurando por tua alma!”

Moisés, então, tomou sua mulher e seus filhos,

os fez montar o jumento

e voltou rumo à terra do Egito.

E Moisés tomou o cajado de Deus em sua mão.

18e

18f

18g

18h

18i

18j

19a

19b

19c

19d

19e

20a

20b

20c

20d

2.2.2 Variantes textuais

Em relação ao texto hebraico, apenas duas variantes são mencionadas no aparato

crítico da Biblia Hebraica Stuttgartensia, o qual, provavelmente, é o mais original e, portanto,

impresso como texto principal. A primeira das variantes se refere à escrita do nome do sogro

de Moisés. No versículo 18b, tem-se uma “variante ortográfica”: no lugar de Jetro (veja Ex

3,1; 4,18i; 18,1.2.5.6.9.10.12), lê-se Jeter.68 Contudo, um manuscrito hebraico medieval e o

Pentateuco Samaritano, assim como a tradução aramaica do Targum Hierosolimitano e a

tradução latina da Vulgata, desconhecem tal variante. Da mesma forma, a Septuaginta

translitera o nome Jetro sempre de forma igual.

A segunda variante se refere ao termo Egito no versículo 19c. Três a dez manuscritos

medievais e o Pentateuco Samaritano acrescentam o “He locale”, sendo que, de forma

expressa, se insiste na direção da volta de Moisés rumo ao Egito.69

68 Helmut UTZSCHNEIDER; Wolfgang OSWALD. Exodus 1–15. P. 141. 69 No que se refere ao estudo da crítica textual, ver: Edson de Faria FRANCISCO. Manual da Bíblia Hebraica.

Introdução ao Texto Massorético. Guia Introdutório para a Biblia Hebraica Stuttgartensia.

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Em ambos os casos, as variantes indicadas no aparato crítico da Biblia Hebraica

Stuttgartensia não mudam a compreensão do texto bíblico. Ora parece tratar-se de uma

simples variante (Jeter – Jetro), ora da tentativa de facilitar a compreensão da expressão

(voltar em direção ao Egito). Como o texto mais difícil, porém, indica, em geral, o texto mais

original, as variantes podem ser avaliadas como secundárias.

2.3 Estudo literário

2.3.1 Delimitação e contextualização

Um conjunto de indicadores narrativos leva o ouvinte-leitor a perceber que Ex 4,18-20

é uma micronarrativa ou uma cena particular.70 Como tal, ela faz parte de uma sequência de

cenas mais abrangente, pois inicia uma cadeia narrativa ou um episódio formado por cinco

cenas sucessivas (Ex 4,18-20.21-23.24-26.27-28.29-31), cujo objetivo é apresentar ao

ouvinte-leitor a volta de Moisés ao Egito. Quais parâmetros ou indicadores, por sua vez,

visibilizam a clausura inicial e final da cena em Ex 4,18-20? Primeiramente, serão observados

os “critérios dramatúrgicos (mudança de lugar, avanço cronológico, mudança de personagem

e mudança de ação)”; mais tarde, serão analisados os elementos estilísticos (repetições,

inclusões, mudanças no vocabulário etc.) que contribuem à formação da estrutura literária,

sendo que o reconhecimento desta última também ajuda na verificação dos limites da

micronarrativa em estudo.71

A pequena cena narrada em Ex 4,18-20 apresenta, inicialmente, um deslocamento de

Moisés. O primeiro verbo relata um andar ou uma ida do futuro líder dos hebreus (v. 18a). O

segundo verbo, por sua vez, indica a direção deste movimento. Caminhando, do monte de

Deus (cf. Ex 3,1), Moisés volta a seu sogro, o qual vive nas terras de Madiã (v. 18b). Dessa

forma, Jetro se junta novamente à narrativa do êxodo (cf. Ex 2,15-16). A mudança de lugar e

o reagrupamento das personagens participantes da narrativa dão a impressão de que, no

versículo 18a-b, se inicia uma nova cena ou micronarrativa. Além disso, “após o longo

discurso de Deus (Ex 3,7–4,17), o qual foi interrompido apenas por algumas intervenções

70 No que se refere à delimitação ou clausura da narrativa, ver Daniel MARGUERAT; Yvan BOURQUIN. Para

ler as narrativas bíblicas. Iniciação à análise narrativa. P. 43-54. 71 Jean-Louis SKA. “Our fathers have told us”. Introduction to the Analysis of Hebrew Narratives. P. 1.

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curtas de Moisés, a narrativa volta, em Ex 4,18, ao nível da ação”.72 Quer dizer, o enredo

avança novamente, continuando o desencadeamento dos fatos.

Também o final da cena narrada em Ex 4,18-20 é relativamente bem marcado. O

ouvinte-leitor acompanha agora os preparativos para se iniciar outro deslocamento. Ou seja,

Moisés começa seu retorno ao Egito. Como no início da cena, reaparece o verbo voltar (v.

20c), o qual emoldura o episódio. Além disso, no final da cena narrada em Ex 4,18-20

surgem, de forma surpreendente, algumas personagens, uma delas inédita até então na

narrativa do êxodo. Primeiramente, aparece a mulher de Moisés, sem que se mencionasse o

nome dela (v. 20a; cf. Ex 2,21). Em seguida, os filhos de Moisés ocupam a atenção do

ouvinte-leitor (v. 20a). No entanto, até agora se sabia apenas de um filho de Moisés e Séfora –

ver Gérson em Ex 2,22 –, e não dois. Além disso, um jumento entra em cena (v. 20b). Mais

ainda: Moisés, o futuro líder, não toma apenas seus familiares – mulher e filhos (v. 20a) –

para levar consigo, mas também o cajado de Deus (v. 20d; veja Ex 4,2.4.17). Este último teve

importância no episódio anterior, quando Deus dialogou com Moisés sobre seu retorno ao

Egito (Ex 3,7–4,17). Com isso, tanto no final do episódio anterior (Ex 4,17) como no final da

cena aqui estudada (v. 20d), aparece o mesmo gesto de Moisés tomar o cajado de Deus em

sua mão. Trata-se do símbolo da presença do SENHOR junto a Moisés, sendo que tal

companhia divina é o fio condutor que une os episódios narrados em Ex 3–4.73

Contudo, com o versículo 20 termina apenas a primeira cena (Ex 4,18-20) da narrativa

que apresenta a volta de Moisés ao Egito (Ex 4,18-31). De certa forma, o final da cena fica em

aberto, uma vez que o ouvinte-leitor se pergunta agora, após o versículo 20, se o retorno de

Moisés ao Egito irá ter sucesso ou não. Mesmo assim, juntando agora ao estudo dos

indicadores dramatúrgicos a observação de certos elementos estilísticos que promovem, em

Ex 4,18-20, uma configuração concêntrica, a cena analisada aqui ganha ainda mais

visibilidade como unidade literária própria.

72 Rainer ALBERTZ. Exodus 1–18. P. 93. 73 Cf. Jean-Louis SKA. O canteiro do Pentateuco. 1. Problemas de composição e de interpretação. 2. Aspectos

literários e teológicos. P. 120.

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2.3.2 Elementos estilísticos e estrutura literária

A micronarrativa de Ex 4,18-20 é formada por cinco elementos. Paralelismos claros

garantem as ligações entre o primeiro e o último, assim como entre o segundo e o penúltimo,

deixando apenas um elemento no centro da micronarrativa.

No início (v. 18a-b) e no final (v. 20a-d) da cena, o ouvinte-leitor acompanha maiores

trechos de narração, os quais apresentam ações de Moisés. Por duas vezes, Moisés volta: ora

para seu sogro Jetro (v. 18b), ora rumo à terra do Egito (v. 20c).

O centro expandido da micronarrativa (v. 18c-19e), no entanto, é ocupado por três

discursos diretos (v. 18d-h.j.19b-e). Cada um deles é introduzido pelo narrador (v. 18c.i.19a),

o qual passa sua palavra aos personagens participantes da narrativa. O primeiro e o terceiro

discurso (v. 18d-h.19b-e), pronunciados por Moisés e pelo SENHOR, são mais compridos. O

discurso de Jetro, porém, que ocupa o centro da micronarrativa, é curto e, portanto, mais

marcante e chamativo. Formado por duas palavras apenas, ouve-se ou lê-se algo que soa

como uma fórmula: Vai em paz! (v. 18j). Além disso, também os três discursos diretos são

claramente interligados por paralelismos. Às duas formas verbais volitivas no discurso de

Moisés (ver os coortativos quero ir e quero voltar; v. 18d-e) correspondem outras duas formas

volitivas no discurso do SENHOR (ver os imperativos vai e volta; v. 19b-c). Além disso, um

paralelismo em forma de oposição garante a ligação entre o primeiro e o terceiro discurso:

enquanto Moisés quer saber se seus irmãos no Egito ainda estão vivos (v. 18h), o SENHOR

afirma que, no Egito, morreram todos os homens que estavam procurando pela alma de

Moisés (v. 19d). No mais, também o discurso no centro da cena, pronunciado por Jetro, é

iniciado com uma forma volitiva (ver o imperativo traduzido como vai; v. 18i). Assim, uma

mesma raiz verbal está presente nos três discursos diretos, interligando as falas.

Além de os paralelismos mencionados garantirem a audição ou visibilidade da

estrutura concêntrica, as repetições marcantes dão também realce ao que, tematicamente, está

ganhando centralidade na narrativa. Os verbos ir (v. 18a.d.j.19b) e voltar (v. 18b.e.19c.20c),

com quatro presenças cada um, permeiam toda a micronarrativa. Vale lembrar que o número

quatro exerce certo simbolismo, por lembrar os quatro pontos cardeais ou as quatro estações,

tornando-se, dessa forma, um elemento estilístico.

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Cabe aqui ainda uma última observação no que se refere à estrutura literária: tanto no

início como no fim de Ex 4,18-20, nas partes de narração, Moisés e seus familiares ganham

destaque. Inicialmente, menciona-se Moisés e Jetro, seu sogro (v. 18a-b), sendo que o nome

de Jetro é apresentado uma segunda vez no centro da narrativa (v. 18h). Na parte da

conclusão, observa-se a presença de Moisés, de sua mulher – filha de Jetro – e dos filhos do

casal, que são netos de Jetro (v. 20a).

Enfim, na base dessas observações estilístico-literárias, percebe-se ainda mais

claramente que a cena em Ex 4,18-20 forma uma unidade literária bem delimitada ou

enclausurada. Trata-se da primeira de cinco cenas que formam o episódio ou a narrativa a

respeito da volta de Moisés ao Egito (Ex 4,18-31). O próprio conjunto dessas cinco cenas

revela uma estrutura concêntrica:

A Início da caminhada de Moisés rumo ao Egito (v. 18-20);

B Discurso do SENHOR dirigido a Moisés (v. 21-23);

C Séfora salva Moisés de um ataque do Senhor (v. 24-26);

B’ Discurso do SENHOR dirigido a Aarão,

e encontro dos irmãos Moisés e Aarão no monte de Deus (v. 27-28);

A’ Fim da caminhada de Moisés junto com Aarão, e chegada ao Egito (v. 29-31).74

2.3.3 Análise narrativa e gênero literário

Cabe aqui uma distinção prévia entre dois gêneros linguísticos. De um lado, estão os

“gêneros literários” como as narrativas, os discursos poéticos ou os conjuntos de leis, todos

eles artisticamente compostos. Do outro, há os “gêneros de expressão”, provindos dos

“contextos específicos da vida no dia a dia”, sendo que estes podem ser chamados de

“gêneros da comunicação institucional”.75

No que se refere ao gênero literário, a cena de Ex 4,18-20 precisa ser descrita como

narrativa. Embora curta, ela revela certa autonomia em vista dos elementos que a constituem.

74 Ver a proposta dessa estrutura concêntrica em Helmut UTZSCHNEIDER; Wolfgang W. Exodus 1–15. P. 143. 75 Helmut UTZSCHNEIDER; NITSCHE, A. Arbeitsbuch Literaturwissenschaftliche Bibelauslegung. Eine

Methodenlehre zur Exegese des Alten Testaments. P. 117.

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51

Quais são, no entanto, os detalhes que, no nível da forma, mais chamam a atenção do ouvinte-

leitor?

O primeiro olhar se dirige às personagens, porque elas, além de sustentarem o enredo,

mais facilmente atraem a simpatia ou antipatia do ouvinte-leitor. A figura principal na

micronarrativa é Moisés. Seu nome é mencionado cinco vezes: três vezes na posição de

sujeito (v. 18a.20a.d) e duas vezes na posição de objeto indireto (v. 18i.19a). Em onze casos,

Moisés se torna sujeito da ação transmitida pelo verbo, ora de forma expressa (v. 18a.20a.d),

ora de forma oculta (v. 18b.c.d.e.g.j.19b.c.20b.c). Além disso, sete sufixos pronominais –

traduzidos aqui como pronomes possessivos ou oblíquos – se referem a Moisés: veja as

expressões seu sogro (v. 18b), disse-lhe (v. 18c), meus irmãos (v. 18e), tua alma (v. 19e), sua

mulher (v. 20a), seus filhos (v. 20a) e sua mão (v. 20d). Também o primeiro discurso direto

pertence a Moisés (v. 18d-h), provocando assim os discursos seguintes de Jetro (v. 18j) e do

SENHOR (v. 19b-e). Impressiona como uma micronarrativa, num espaço formado por apenas

três versículos, consegue, de forma tão intensa, dar visibilidade a uma de suas personagens.

Além disso, Jetro (v. 18b.i-j) e seus familiares – ver a mulher e os filhos de Moisés (v.

20a) –, assim como o SENHOR Deus (v. 19a-e.20d), acompanham o protagonista principal,

exercendo os primeiros papéis. Com isso, as personagens atuantes em Madiã – Moisés, Jetro e

o SENHOR – estão em primeiro plano, enquanto as figuras secundárias – os irmãos de Moisés

(v. 18e-f) e os homens que procuram pela alma de Moisés (v. 19d-e) – estão no Egito. Ou

seja, junto às personagens, dois espaços geográficos são trabalhados em forma de oposição,

realçando um conflito social e político. Inicialmente, Moisés está de volta a Madiã (v. 19a),

terra de seu sogro (v. 18b). De lá, porém, a atenção dirige-se, outra vez na história do êxodo,

ao Egito (v. 18f.19c.20c).

Com os espaços geográficos, interliga-se o tempo. Inicialmente, narra-se, com grande

velocidade e de forma sumária, a volta de Moisés a seu sogro (v. 18a-b). Ou seja, num

curtíssimo tempo de narração, Moisés atravessa a distância entre o Horeb, o monte de Deus

(Ex 3,1), e Madiã. Em seguida, narrando a conversa entre Moisés, Jetro e o SENHOR (v. 18c-

19e), o tempo da narrativa se iguala ao tempo da história narrada. No final, a narrativa ganha,

outra vez, maior velocidade, sendo que “o narrador conta pouco sobre um longo período

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histórico”.76 Enfim, começa a volta de Moisés e de sua família ao Egito (v. 20a-d), sendo que

as quatro cenas seguintes continuam a focar esse mesmo período (Ex 4,21-31). Nem será

narrada, de forma expressa, a chegada ao Egito. Contudo, ela é pressuposta a partir de Ex

4,20.

Como já foi dito acima, a partir de Ex 4,18, a trama da história do êxodo continua a

avançar. Ela tinha sido interrompida para narrar “a maior controvérsia entre Deus e um

homem na Torá” (Ex 3,4–4,17).77 Contudo, após cobrir seu rosto diante da presença de Deus

(Ex 3,6), Moisés volta a agir exatamente no início da micronarrativa estudada aqui.

Uma característica típica das narrativas da Bíblia Hebraica é o narrador não ter uma

participação viva na cena. Oculto, em momento algum, ele comenta ou interpreta de modo

direto o que narra. Isto é, não deixa sua voz interferir na receptividade do ouvinte-leitor, mas é

capaz de integrar, com maestria, as personagens e os discursos pertencentes a elas no enredo

da micronarrativa (v. 18c-19e). Faz parte, portanto, da “tática dos narradores bíblicos que sua

interferência direta não seja frequente nem extensa, sendo que isso contribui com a vitalidade

e o imediatismo das narrativas bíblicas”, envolvendo o ouvinte-leitor mais diretamente.78

Enfim, é preciso analisar o gênero literário no que se refere às expressões ligadas à

vida cotidiana e aproveitadas no momento da composição artística do texto literário estudado

aqui. A micronarrativa em Ex 4,18-20 parece acolher, primeiramente, o motivo da volta de

um refugiado à sua terra de origem (v. 18b.e.19c.20c). Trata-se de uma realidade comum e

relatada por diversas vezes nas tradições bíblicas. Focando as narrativas do Pentateuco, vêm à

memória as voltas de Hagar (Gn 16,9) e de Jacó (Gn 31,3.13; 32,10). Como no caso de

Moisés, também esses retornos são apresentados como motivados por Deus, assim como o

retorno dos descendentes de Abraão à terra prometida, após os quatrocentos anos de opressão

nas terras do Egito (Gn 15,16). Das narrativas fora do Pentateuco, vale lembrar a volta de

Noemi, sendo que ela, junto com sua nora Rute, retorna, de Moab, para sua terra natal, Belém

(Rt 1,6.7.8.10.11.12.152x.16.21.222x).

76 Daniel MARGUERAT; Ivan BOURQUIN. Para ler as narrativas bíblicas. P. 108. 77 Georg FISCHER; Dominik MARKL. Das Buch Exodus. P. 46. 78 Shimon BAR-EFRAT. Wie die Bibel erzählt. Alttestamentliche Texte als literarische Kunstwerke verstehen.

P.42.

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Em segundo lugar, ligados à volta de quem estava longe de sua terra de origem,

existem gestos e palavras de despedida que igualmente podem ter influenciado a

micronarrativa aqui estudada. Jetro, pois, despede seu genro Moisés com as palavras Vai em

paz! (v. 18j). O termo shalom, além de fazer parte de fórmulas de cumprimento (Jz 19,20;

1Sm 25,6; 2Sm 18,28; 2Rs 10,13) ou de perguntas a respeito do bem-estar de alguém (Gn

29,6; 43,27-28; Ex 18,7; Jz 18,15; 1Sm 10,4; 17,18; 2Rs 4,26; Est 2,11), junto ao verbo ir e às

preposições proclíticas lāmed e bêt, pode marcar, como acontece em Ex 14,18, o final de um

encontro (Jz 18,6; 1Sm 1,17; 2Sm 15,9). Sempre se deseja à pessoa saudada que ela avance

pacificamente (Is 41,3) e/ou volte em paz (Jz 8,9).79

Talvez a micronarrativa em Ex 4,18-20 acolha, no final, ainda um terceiro motivo

ligado à vida cotidiana na sociedade israelita. É, pois, comum ver alguém montar um jumento:

os membros da casa do rei (2Sm 16,2), Mefibaal (2Sm 19,27), o velho profeta de Betel (1Rs

13,13) ou o próprio rei (Zc 9,9). Contudo, as tradições da Bíblia Hebraica apresentam também

mulheres sobre esse animal de transporte: Acsa, filha de Calebe, que apeia do jumento (Js

15,18; Jz 1,14), a concubina de um levita colocada já morta sobre um jumento (Jz 19,28) e

Abigail, como quem monta ou cavalga um jumento (1Sm 25,20.23.42). Ao dizer que Moisés

fez sua mulher e seus filhos montarem um jumento (v. 20a-b), a micronarrativa aqui estudada

parece expressar-se de acordo com a linguagem e o imaginário pertencentes ao dia a dia.

2.4 Comentários histórico-teológicos

Visto que Ex 4,18-20 se apresenta como um texto artisticamente composto, foi

necessário realizar um estudo pormenorizado de sua forma literária. Agora, no entanto, será

focado o conteúdo do que é narrado. Com atenção a eventuais detalhes histórico-geográficos e

culturais, o interesse se dirige, sobretudo, à reflexão teológica promovida pela cena discutida.

Em especial, uma pergunta norteará o exercício exegético aqui realizado: o que, segundo a

narrativa bíblica, motivou o refugiado Moisés a voltar para sua terra de origem, embora a

sociedade egípcia continuasse em conflito?

79 Para shalom como saudação ou desejo, veja LIWAK, R. Friede / Schalom. In: ALKIER, S.; BAUKS, M.;

KOENEN, K. (Ed.). Das Wissenschaftliche Bibellexikon im Internet, 2007ss. Disponível em

http://www.wibilex.de, inserido em 3.2011 e acessado em 6.6.2016.

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54

2.4.1 Moisés e seu sogro Jetro

Um encontro pessoal entre o SENHOR e Moisés (Ex 3,1-6) e uma longa conversa entre

os dois (Ex 3,7–4,17) antecedem a volta de Moisés para Jetro, seu sogro (v. 18a-b). De forma

insistente, Moisés foi convidado a compreender que sua tarefa consistiria em ir ao faraó para

promover a saída, ou seja, a libertação daqueles que estavam sendo oprimidos por decisões

cruéis e irracionais do governante (Ex 3,7-10). Contudo, ao ouvir o discurso de Deus, Moisés

apenas reagiu com objeções, não se identificando com seus irmãos sofridos no Egito. Mais

ainda: Moisés não volta ao Egito (v. 18f), mas vai, na direção contrária, até Madiã (v. 19a),

onde reencontra seu sogro, Jetro (v. 18a-b).

O diálogo entre genro e sogro, por sua vez, dá início agora a uma mudança

significativa na trajetória do futuro líder. Moisés, em seu discurso dirigido a Jetro, deixa claro

que ainda se lembra de seus irmãos no Egito (v. 18e). Parece que “seu sentimento de

solidariedade foi novamente aceso”.80 Moisés quer enfrentar outra viagem e voltar a seus

irmãos, que estão no Egito, para ver se eles ainda estão vivos (v. 18d-h). Ele passa a se

interessar muito pela sobrevivência de seu povo e assume, outra vez, sua “postura anterior,

apesar de já ter experimentado rejeição e ferimento” por parte de um hebreu, quer dizer, de

um de seus irmãos (Ex 2,11c.e.13-14).81

Se a mudança no comportamento de Moisés já é capaz de chamar a atenção do

ouvinte-leitor, mais ainda a resposta de Jetro. De certa forma, até é compreensível que Moisés

se interesse novamente por seus irmãos e que queira voltar a eles, por mais arriscado que seja.

Seu sogro Jetro, no entanto, não é beneficiado com essa decisão. Moisés, pois, como

imigrante em Madiã, tinha se revelado uma ajuda muito bem-vinda. Soube, pois, ser solidário

com as filhas de Jetro, ao salvá-las e libertá-las das agressões de outros pastores (Ex 2,17.19).

Mostrou-se uma pessoa prestativa, quando assumiu o trabalho delas de fazer o gado pequeno

beber (Ex 2,19). E chegou a cuidar do rebanho de seu sogro, pastoreando-o em regiões

distantes (Ex 3,1). Ou seja, para Jetro, provavelmente, seria melhor que Moisés ficasse com

ele em Madiã. Não obstante, o sogro acolhe o desejo do genro. Oferece-lhe apoio moral e, de

80 Rainer ALBERTZ. Exodus 1–18. P. 94. 81 Georg FISCHER.; Dominik MARKL. Das Buch Exodus. P. 71. Veja também: Matthias GRENZER. Decidido

a defender o oprimido (Ex 2,11-15c). P. 136-138.

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certa forma, sua bênção, encaminhando Moisés com as seguintes palavras: Vai em paz! (v.

18j).

A preposição hebraica lāmed, que introduz um adjunto adverbial, precisa ser

compreendida como um lamed modi, sendo que ela, ao criar uma “relação qualitativa”, traz

“um termo” – o substantivo paz – que identifica, de forma “positiva”, as circunstâncias da

predicação anterior – o ir de Moisés.82 No entanto, em vez de sugerir simplesmente uma ida

em paz, a preposição hebraica em questão pode indicar também uma relação final,

transmitindo a ideia de uma ida pela paz, ou seja, de uma missão de Moisés em busca ou a

favor da paz. Assim, Jetro ganharia ainda mais o perfil de uma pessoa socialmente

comprometida com o destino dos irmãos oprimidos de Moisés, por mais que a narrativa do

êxodo, até este momento, não tenha informado seus ouvintes-leitores sobre o que Jetro já sabe

a respeito da sorte dos hebreus no Egito. Apenas mais tarde se registra que Moisés lhe conta

tudo (Ex 18,8) e que também Jetro escuta tudo o que o Senhor fez (Ex 18,1).

Todavia, a micronarrativa aqui estudada cria, em sua primeira parte, um

entrelaçamento entre sogro e genro. Mais ainda, os dois se agrupam, em forma de uma

moldura dupla, em torno dos irmãos que sofrem no Egito. Com base nessas personagens,

pode-se verificar uma estrutura concêntrica (A-B-C-B-A): Moisés (v. 18a) – Jetro (v. 18b) –

meus irmãos (v. 18e) – Jetro (v. 18i) – Moisés (v. 18i). Enfim, nasce uma harmonia

impressionante entre Moisés e seu sogro, Jetro, resultando na volta do futuro líder à sociedade

em conflito e, portanto, na retomada do projeto do êxodo.

2.4.2 Moisés e o SENHOR

Na sequência dos versículos, o diálogo entre Moisés e seu sogro, Jetro (v. 18), é

sucedido por outro discurso do Senhor (v. 19). Após ter escutado o Vai! (v. 18j) de seu sogro,

Moisés ouve agora mais um Vai! (v. 19b), mas agora de Deus. Além disso, Moisés é

motivado a perceber de uma vez por todas que sua vontade de voltar a seus irmãos, que estão

no Egito (v. 18e-f), corresponde ao interesse do Senhor, o qual lhe diz justamente: Volta para

o Egito! (v. 19c; cf. Ex 3,10.18).

82 JENNI, E. Die hebräischen Prepositionen. Band 3: Die Präposition Lamed. P. 276.280.

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Além disso, surge um detalhe novo, que parece favorecer a volta de Moisés ao Egito:

se em Ex 2,23 o ouvinte-leitor tomou conhecimento de que o rei do Egito morrera, agora

Moisés é informado de que morreram não somente o faraó, o qual procurava matá-lo (Ex

2,15), “mas também todos os demais perseguidores comandados por ele”.83 Com isso, Moisés

pode sentir certo alívio, pois ninguém está procurando, diretamente, por sua vida (v. 19e).

Assim, percebe-se, de acordo com a narrativa, que “Deus vai ao encontro da existência

cotidiana de quem é enviado por ele”, criando condições para que a missão dessa pessoa seja

possível.84

Enfim, “o tecido da redação não só é coerente, mas também significativo”.85 Pela

sequência dos elementos narrados, é possível compreender que a participação e o

comportamento dos familiares de Moisés – sobretudo de seu sogro, Jetro (v. 18) – ocorrem

em sintonia com a vontade de Deus. Mais ainda: a presença marcante da família apresenta-se

justamente como expressão ou realização da vontade de Deus.

2.4.3 Moisés, sua mulher e seus filhos

O final da micronarrativa conta como Moisés volta para a terra do Egito (v. 20c),

tomando o cajado de Deus em sua mão (v. 20d). Essa ação corresponde, pois, à ordem do

Senhor anteriormente ouvida (Ex 4,17). Mais ainda: o cajado simboliza a presença de Deus e

a transferência do poder para as mãos de Moisés. Trata-se, pois, do cajado que se

transformara em serpente, sendo que uma serpente erguida figurava também na coroa do

faraó, tendo ela a tarefa de punir os inimigos do Egito. No entanto, quando Moisés, por ordem

do Senhor, a agarrara pela cauda, a serpente se tornara novamente cajado, demonstrando que

o domínio de Moisés sobre o faraó tinha alcançado dimensões gigantescas.86 Portanto, ao

tomar o cajado de Deus em sua mão (v. 20d), Moisés sente-se acompanhado pelo Senhor e

confiante no poder superior do Deus dos filhos de Israel.

No entanto, surpreendentemente, Moisés não enfrenta sozinho a viagem exigente e

desafiadora ao Egito, mas vai com sua mulher e filhos (v. 20b). Com isso, pela segunda vez, a

cena traz a participação dos familiares de Moisés. Se no início da cena há a presença marcante

83 Rainer ALBERTZ. Exodus 1–18, p. 94. 84 Helmut UTZSCHNEIDER; Wolfgang OSWALD. Exodus 1–15, p. 143. 85 Pablo ANDIÑACH. O Livro do Êxodo. Um comentário exegético-teológico. P. 88. 86 Matthias GRENZER. O projeto do êxodo. P. 56-60.

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de Jetro, sogro de Moisés (v. 18), no final ganha realce a companhia significativa de Séfora

(filha de Jetro e mulher de Moisés) e de Gersam e Eliezer (netos de Jetro e filhos de Moisés).

Novamente, Moisés mostra-se gentil, em especial para com sua mulher. Isso lembra o

primeiro encontro entre Moisés e Séfora, quando, no poço de Madiã, libertou as filhas de

Jetro dos pastores agressivos e deu de beber ao gado pequeno delas, tirando, para elas, a água

do poço (Ex 2,17e.19c-d).87 Dessa vez, Moisés faz sua mulher, junto com seus filhos, montar

o jumento (v. 20a-b). Ou seja, enquanto ele anda a pé, seus familiares podem segui-lo, de

forma mais confortável, em cima do jumento.

Contudo, a narrativa levanta uma dúvida a respeito da idade dos filhos de Moisés e

Séfora. Considerando os poucos dados biográficos, segundo a macronarrativa do êxodo,

Moisés volta de Madiã ao Egito numa idade já mais avançada, negociando a liberdade dos

israelitas com o faraó aos oitenta anos (Ex 7,7; cf. Sl 90,10). Não é dito com quantos anos

Moisés fugira do Egito para Madiã. A narrativa se limita a dizer que estava grande, no sentido

de já ser adulto (Ex 2,11), quando ele feriu mortalmente o egípcio e, perseguido por causa

disso, fugiu rumo a Madiã. Séculos mais tarde, Estêvão, aparentemente de acordo com a

tradição judaica, entende que Moisés, no momento de sua fuga, completara quarenta anos (At

7,23) e que, passados outros quarenta anos, chamado por Deus, teria voltado ao Egito (At

7,30). Considerando esse tipo de parâmetro e caso Gersam tenha nascido de Séfora e de

Moisés no início da estada deste último nas terras de Madiã (Ex 2,22), o mais velho dos dois

irmãos sobre o jumento já é um adulto. Consequentemente, o segundo filho de Moisés – ver

Eliezer em Ex 18,4 – “precisa ser ainda muito pequeno, pois, do contrário, a mãe e os dois

filhos, dificilmente, poderiam montar o mesmo jumento”.88 No entanto, a micronarrativa em

Ex 4,18-20 também pode estar querendo surpreender seus ouvintes-leitores de forma jocosa.

Em Gn 21,14, pois, Abraão coloca a criança Ismael sobre os ombros de Agar, embora o filho

dos dois, aparentemente, já esteja com quinze ou até dezessete anos de idade (cf. Gn 17,24-

25; 21,5.8; 2Mc 7,27). Quer dizer, no momento da partida de Madiã, prevalece,

literariamente, o “retrato da família”.89 E faz parte da experiência familiar que filhos, embora

crescidos, continuem precisando ser carregados em determinados momentos, sobretudo

quando mudanças maiores estão à vista.

87 Cf. Matthias GRENZER. Imigrante em Madiã (Ex 2,15c-22). P. 85-86. 88 George FISCHER; Dominik MARKL. Das Buch Exodus, p. 72. 89 Helmut UTZSCHNEIDER; Wolfgang OSWALD. Exodus 1–15, p. 143.

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Enfim, Moisés não volta desacompanhado para a terra do Egito (v. 20c), mas na

companhia de sua mulher e de seus dois filhos (v. 20a), o que “denota a importância da

família”.90 Mais ainda, logo em seguida, no caminho ao Egito, Séfora, ao insistir no rito

marcado pelo sangue e no relacionamento com seu noivo, será a “mulher proativa que livra”

Moisés “da morte” (Ex 4,24-26).91 Ou seja, a presença da família não se limita à companhia e

ao apoio moral, mas contribui até mesmo para a sobrevivência. Isso vale de modo especial

para o profeta que assume uma liderança favorável ao projeto de Deus, sendo que este último,

de repente, atinja perigosamente justamente a quem chamou.

Contudo, assim como Moisés volta ao Egito junto com sua mulher e seus filhos,

futuramente também a saída do Egito revelará, de forma semelhante, dimensões familiares.

Moisés, pois, fará ao faraó a seguinte exigência: Queremos ir com os nossos jovens e os

nossos velhos! Queremos ir junto com os nossos filhos e as nossas filhas, com o nosso gado

pequeno e o nosso gado grande, porque, para nós, é uma festa do Senhor! (Ex 10,9). Quer

dizer, sairão do Egito também os petizes, ou seja, aqueles que andam a passos miúdos (Ex

10,10.24).

2.5 Considerações finais

Quais são as possibilidades de um refugiado voltar em paz à sociedade da qual se

afastara por ter sido mortalmente perseguido? Ou seja, por que abandonar um lugar que

acolhe e arriscar-se em um lugar hostil? Não se trataria de uma decisão irracional, sendo que a

volta à terra de origem somente seria acompanhada por incertezas, desafios incalculáveis e

risco de sofrimentos? Eis os argumentos que a micronarrativa de Ex 4,18-20 oferece a

respeito.

2.5.1 Deus

Aparentemente, um encontro místico com Deus (Ex 3,1–4,17) faz Moisés pensar em

sua volta ao Egito (v. 18). Além disso, a ideia de que o Senhor está atento à miséria do povo e

insiste na libertação dos oprimidos da mão dos opressores (Ex 3,7-9) ganha novamente

90 Matthias GRENZER; Leonardo A. FERNANDES. Êxodo 15,22–18,27. P. 130. 91 Leonardo A. FERNANDES. Séfora: a mulher proativa que livra o homem da morte (Ex 4,24-26). Revista de

Cultura Teológica 86 (2015), pp. 59-84.

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plausibilidade através de determinados acontecimentos no decorrer da história. Para Moisés, a

morte dos que procuravam por sua vida no Egito se transforma em palavra de Deus (v. 19).

Além disso, ao ficar com o cajado em sua mão, Moisés mantém um objeto consigo que

adquiriu grande força simbólica. Ou seja, o cajado ilustra a esperança de que Deus suscitará

outros sinais indicando a necessária inversão da sorte dos injustiçados.

2.5.2 A família

Junto a Deus, os familiares de Moisés se tornam motivação e companhia em sua

trajetória. Moisés, hebreu, quer saber se seus irmãos no Egito (Ex 2,11) ainda estão vivos (v.

18d-h). Na verdade, Moisés, de fato, ainda tem dois irmãos no Egito, Aarão (Ex 6,20) e

Miriam (Nm 26,59), os quais são filhos do mesmo pai, Amram, e da mesma mãe, Jocabed (Ex

6,20; Nm 26,59).

Contudo, em Madiã, Moisés estabeleceu, como refugiado e imigrante, mais laços

familiares. Seu sogro, Jetro, exerce um papel importante, acompanhando-o nos momentos

delicados de sua vida, seja na chegada em Madiã (Ex 2,15c-22), seja na partida para o Egito

(v. 18), ou, posteriormente, durante a travessia do deserto (Ex 18). Jetro se mostra bem-

intencionado e compreensivo. Sem insistir em eventuais interesses próprios, o sogro deseja

que Moisés vá em paz (v. 18j), oferecendo, no momento da despedida, seu apoio moral.

Por fim, ao voltar arriscadamente para o Egito, Moisés conta com a companhia de sua mulher

e de seus filhos (v. 20a). Em especial, Séfora, sua mulher, se revelará decisiva na relação entre

o Senhor e Moisés (Ex 4,24-26). Ou seja, justamente a convivência física, psicológica e

religiosa ajudará na sobrevivência.

Portanto, as questões de Deus e da família se entrelaçam. Esta última se revela o apoio

decisivo para quem quer voltar à terra em que está seu povo, por mais que a sociedade ali

continue a estar em conflito. Mais ainda: o apoio familiar talvez seja justamente uma das

expressões ou um dos sinais do apoio oferecido por Deus.

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3 Em defesa de seu esposo (Ex 4,24-26)

3.1 Introdução

Séfora, esposa madianita de Moisés, não assume o papel de personagem principal na

macronarrativa sobre o êxodo, a qual ocupa os últimos quatro livros do Pentateuco. Os

protagonistas são, além do Senhor, Deus de Israel, sobretudo Moisés e os israelitas.92 Séfora,

contudo, participa de quatro micronarrativas ou cenas (Ex 2,15c-22; 4,18-20.24-26; 18,1-7). O

nome dela é mencionado somente por três vezes (Ex 2,21; 4,25; 18,2), enquanto o nome de

Moisés aparece seiscentas e quarenta e sete vezes no Pentateuco (Ex: 290x; Lv: 86x; Nm:

233x; Dt: 38x). Mesmo assim, apesar de sua presença reduzida, Séfora parece ganhar uma

função até decisiva em vista da vocação e sobrevivência de Moisés. Quer dizer, provocado

pela própria narrativa bíblica, o ouvinte-leitor é convidado a vislumbrar que o protagonismo,

em determinado momento, pertence, de forma surpreendente, à personagem secundária.93

Talvez seja exatamente isso que distinga Séfora de uma mera “figurante” ou “personagem

simples”, que cumpre apenas “um papel passivo ou quase passivo (pano de fundo) na

narrativa”.94 Quais são, por sua vez, os elementos que a narrativa bíblica oferece a seu

ouvinte-leitor, a fim de que este compreenda o protagonismo de uma das personagens

participantes da história contada, quer esta seja a protagonista, quer esta seja uma personagem

secundária?

A micronarrativa aqui investigada (Ex 4,24-26) traz Séfora pela terceira vez à

memória do ouvinte-leitor das tradições sobre o êxodo. Por isso, é importante rever o que, nos

episódios anteriores, já foi narrado a respeito da personagem. Na primeira das micronarrativas

que conta com sua presença, Séfora, inicialmente, integra o grupo das “sete filhas do

sacerdote de Madiã”, sendo que estas, como pastoras, cuidam do gado menor do pai (Ex

2,16a). Quando elas relatam a seu pai, em determinado dia, o que tinha ocorrido no poço

enquanto faziam beber os animais, Séfora, junto às irmãs, realça Moisés como quem as

“libertou da mão dos pastores” violentos (Ex 2,19b), “tirou água” para elas do poço (Ex

92 No que se refere a Deus como figura, conferir GILLMAYR-BUCHER, Die literarische Konzeption der Figur

Gott im Buch Exodus. P. 57-87; em relação à figura de Moisés, ver Thomas RÖMER, Os papéis de Moisés no

Pentateuco. P. 89-107; Leonardo FERNANDES, Onde estiver a Torá, estará meu servo Moisés, 169-190; Georg

FISCHER, Das Mosebild der Hebräischen Bibel. P. 84-120; Walter VOGELS, Moisés e suas múltiplas facetas.

Do Êxodo ao Deuteronômio. 93 Semelhantemente, Leonardo Agostini FERNANDES está atento à atuação significativa da esposa madianita

de Moisés; ver Séfora: a mulher proativa que livra o homem da morte (Ex 4,24-26). P. 59-84. 94 Daniel MARGUERAT; Yvan BOURQUIN, Para ler as narrativas bíblicas. Iniciação à análise narrativa. P. 78.

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2,19c) e “fez beber o gado menor” (Ex 2,19d). Tal acontecimento motiva o sacerdote de

Madiã a “dar sua filha Séfora a Moisés” (Ex 2,21b). Assim, esta assume uma relação

matrimonial com quem se refugiara em sua terra e lhe “dá um filho à luz” (Ex 2,22a; ver o

nome de Gérson em Ex 2,22; 18,3). Ou seja, justamente por tornar-se esposa de Moisés e mãe

do filho gerado pelos dois, Séfora, de modo particular, está em conformidade com a lei que

prescreve “amar o imigrante” (Lv 19,33-34; Dt 10,19).95

Na segunda micronarrativa em que Séfora aparece (Ex 4,18-20), conta-se como

Moisés, após seu encontro com o Senhor, Deus de Israel, no monte Sinai, decide retornar a

Madiã e, em seguida, motivado pelas palavras de seu sogro e de Deus, “toma sua mulher e

seus filhos, os faz montar um jumento e volta rumo à terra do Egito” (Ex 4,20). De forma

surpreendente, ouve-se ou lê-se agora, no plural, “filhos” de Moisés, ou seja, Gérson e pelo

menos mais um. Apenas mais tarde o ouvinte-leitor poderá identificar o nome do segundo

filho de Moisés (ver o nome de Eliezer em Ex 18,4). Todavia, sem que se narrasse diálogo

algum, surge agora a seguinte cena: Moisés – um líder que se propõe a conduzir o povo dos

hebreus para fora da sociedade que os oprime – volta agora, com sua esposa e seus dois filhos,

ao Egito. Parece significativo que Séfora, de forma silenciosa e prestativa, lhe faça

companhia, favorecendo, assim, a arriscada e perigosa empreitada do esposo.96

Enfim, nestas primeiras duas cenas com participação da personagem aqui estudada,

observa-se que Séfora ainda não assume, sozinha, protagonismo. Ela atua como pastora junto

a suas seis irmãs (Ex 2,16). Também junto às irmãs, ela informa seu pai sobre o ocorrido no

poço, participando de um discurso coletivo (Ex 2,19). No mais, é preciso imaginar que, junto

a suas irmãs, Séfora chama Moisés para ir ao encontro de Jetro (Ex 2,20). Além disso, é o pai

quem dá sua filha Séfora como esposa a Moisés (Ex 2,21). A única ação que pertence

exclusivamente a Séfora ocorre quando ela dá à luz um filho; porém, é Moisés quem dá o

nome ao filho do casal (Ex 2,22). Na segunda cena com a participação de Séfora, ocorre algo

semelhante no que se refere ao protagonismo dela. É Moisés quem “toma sua mulher e seus

filhos, os faz montar no jumento e volta para a terra do Egito” (Ex 4,20). Não se narra

95 Para um estudo pormenorizado da primeira micronarrativa que traz presente a personagem de Séfora, ver

Matthias GRENZER, Imigrante em Madiã (Ex 2,15c-22). P. 75-89. Em vista da tradição jurídica aqui

mencionada, ver Matthias GRENZER, A proposta ímpar do amor ao imigrante (Lv 19,33-34). P. 13-30. 96 Ver Matthias GRENZER; Francisca SUZUKI, Voltar, com a família, à sociedade em conflito (Ex 4,18-20). P.

159-178.

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nenhum diálogo do casal acompanhando os acontecimentos. Em contrapartida, também não é

narrado nenhum tipo de oposição por parte de Séfora ao que acontece.

Todavia, enquanto nas primeiras duas cenas com participação da esposa de Moisés

ainda não se revele um protagonismo específico, exclusivo e/ou direto de Séfora, isso muda

na terceira cena que a retrata. O estudo exegético aqui apresentado se propõe, justamente, a

descrever os pormenores de tal protagonismo. De certa forma, vale para Séfora o que, em

geral, se diz sobre as personagens secundárias: “Apenas momentaneamente a narrativa

ilumina essas figuras” e isso somente “enquanto elas se cruzam com o protagonista”.97

Contudo, os protagonistas ou personagens principais não existem de forma isolada,

algo que vale, sobretudo, para Moisés. Pelo contrário, este ganha configuração a partir das

inter-relações descritas na macronarrativa. Quer dizer, embora Moisés se torne nas mãos do

Senhor, Deus de Israel, o instrumento decisivo no processo de libertação do povo dos

oprimidos, ele, em diversos momentos, é descrito como quem é apoiado e até salvo por

outros, especialmente por mulheres, entre elas Séfora, sua esposa.98

3.2 O texto

3.2.1 Texto hebraico segmentado e tradução portuguesa

A micronarrativa em Ex 4,24-26 foi composta, originalmente, em hebraico. A tabela a

seguir apresenta, na coluna esquerda, o texto que a Biblia Hebraica Stuttgartensia traz como

versão provavelmente mais original.99 Na coluna central, ocorre a delimitação dos meios

versículos. Como não existe consenso quanto a essa subdivisão, a divisão aqui estabelecida

será seguida ao longo de todo o estudo. O critério escolhido se baseia, sobretudo, nas formas

verbais. E na coluna direita, é mostrada uma tradução ao português de Ex 4,24-26 que já

acolhe os resultados dos estudos exegéticos realizados a seguir.

ך במלון ר ,24a No caminho, num lugar de pernoite ויהי בד

הו יהוה 24b o SENHOR foi ao encontro dele ויפגש

ש המיתו׃ .24c e procurou fazê-lo morrer ויבק

97 José Tolentino MENDONÇA. A leitura infinita. A Bíblia e sua interpretação. P. 214-215. 98 Mais tarde, o ouvinte-leitor do Pentateuco percebe que Moisés, além de Séfora, mulher madianita, ainda

“tomou uma mulher cuchita” para si (Nm 12,1). A presença desta última, por sua vez, se limita ao versículo

mencionado. Ver Matthias GRENZER. Briga entre profetas (Nm 12). 99 Karl ELLIGER; Wilhelm RUDOLPH (Eds.). Biblia Hebraica Stuttgartensia.

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25a Séfora, porém, tomou uma faca de sílex ותקח צפרה צר

ת־ערלת בנה ותכ רת א 25b e cortou o prepúcio de seu filho.

25c Tocou os pés dele ותגע לרגליו

ר :25d e disse ותאמ

”!25e “De fato, tu és um noivo de sangue para mim כי חתן־דמים אתה לי׃

נו ף ממ .26a E [ele] o largou ויר

26b Disse, pois, “noivo de sangue” por causa das אז אמרה חתן דמים למולת׃

circuncisões.

3.2.2 As variantes textuais

As antigas traduções procuram ajudar na leitura desta narrativa tão enigmática. A

Peshitta acrescenta, no v. 24a, um sujeito: “Moisés estava no caminho, num lugar de

pernoite”. A Septuaginta e o Targum adicionam, no v. 24b, ao tetragrama – traduzido aqui

como SENHOR (na versão de Áquila, "Deus") – o termo “mensageiro/anjo” (ver Ex 3,2).

No que se refere ao discurso direto de Séfora – “De fato, tu és um noivo de sangue para

mim!” (v. 25e) – e ao comentário apresentado pelo narrador (v. 26b) – “Disse, pois, ‘noivo de

sangue’ por causa das circuncisões” (v. 26b) –, a Septuaginta traz o texto de outro modo: “O

sangue da circuncisão de minha criança permaneceu firme”. Quer dizer, “na versão da

Septuaginta, a frase de Séfora é um tipo de feitiço”, sendo que aqui “se narra outra história,

diferente do texto massorético”.100

No v. 26a, o Pentateuco Samaritano traz outro sufixo pronominal. Em vez de ler “E

[ele] o largou”, apresenta a variante “E [ele] a largou”, dando a entender que o Senhor tinha

dado trégua a Séfora, após a luta dramática dela pela vida de seu esposo.

Enfim, as variantes podem ser compreendidas como tentativas de facilitar a leitura de

um texto exigente. São acréscimos, mudanças pontuais ou até reformulações mais amplas,

marcados pelo esforço de, através de determinada interpretação, favorecer a compreensão do

que está sendo narrado. No entanto, como versão mais difícil, o texto massorético, em geral,

merece a preferência como versão provavelmente mais original e, por isso, será aqui seguido

na íntegra.101

100 Helmut UTZSCHNEIDER; Wolfgang OSWALD. Exodus 1–15. P. 142. 101 Em relação à terminologia das questões de crítica textual, ver Edson de Faria FRANCISCO. Manual da Bíblia

Hebraica. Introdução ao Texto Massorético. Guia Introdutório para a Biblia Hebraica Stuttgartensia.

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3.3 Estudo literário

3.3.1 Delimitação e contexto literário

Em Ex 4,20a-c, a narrativa do êxodo informa o ouvinte-leitor sobre o fato de que

“Moisés tomou sua mulher e seus filhos, os fez montar um jumento e voltou rumo à terra do

Egito” (Ex 4,20a-c). Tal volta foi motivada pelo diálogo que Moisés teve com o Senhor no

“monte de Deus”, “além do deserto” (Ex 3,1–4,17), pela conversa com o sogro e pela palavra

que o Senhor continuava a dirigir a Moisés, agora em “Madiã” (Ex 4,18-20). Em Ex 4,21-23,

ouve-se ou lê-se ainda outro discurso do Senhor dirigido a Moisés. Destaca-se aquilo que o

futuro líder dos hebreus deve ter em mente “ao andar”, ou seja, “ao voltar ao Egito” (Ex

4,21b-c). Não está claro se tal discurso já se dá no caminho rumo ao Egito ou ainda no

momento de partida em Madiã.

Com as notícias iniciais na micronarrativa aqui estudada, ocorre um avanço geográfico

e cronológico. Parte do “caminho” (v. 24ab) rumo ao Egito ficou para trás. O grupo formado

por Moisés – ele, sua mulher, seus filhos e o jumento – chegou a um “lugar de pernoite” (v.

24a). Trata-se, portanto, de um novo ambiente. E o que ali “aconteceu” (ver ויהי no v. 24a) dá

origem à trama da nova cena. Aliás, a forma verbal aqui mencionada, como “marcador de

tempo”, funciona como fórmula que, em diversos momentos, indica o “início de uma

narrativa” (ver Ex 2,11.23; 6,28; 13,17).

Todavia, a trama ou o enredo se inicia, aparentemente, com a notícia de que “o

SENHOR foi ao encontro de” Moisés (v. 24b) e se encerra quando ele “o largou” (v. 26a).

Trata-se dos pontos-limite do arco narrativo. No v. 26b, segue-se ainda um “comentário

posterior que a narrativa põe na boca de Séfora”.102 Ao analisar o conteúdo desse último meio

versículo, haverá a oportunidade de compreender a provável intenção que acompanha o

desfecho.

Percebe-se também na continuação da leitura da macronarrativa sobre o êxodo que o

episódio, no final do v. 26, chega ao fim, uma vez que, a partir de Ex 4,27, a atenção do

ouvinte-leitor é novamente dirigida ao Egito e às personagens ligadas a esse ambiente.

Moisés, pois, chega agora a seu destino e se encontra com Aarão, os anciãos dos filhos de

Israel e o povo dos hebreus (Ex 4,27-31).

102 Helmut UTZSCHNEIDER; Wolfgang OSWALD. Exodus 1–15. P. 144.

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3.3.2 Elementos estilísticos e estrutura literária

A micronarrativa aqui investigada parece favorecer certas “indeterminações” no que se

refere às personagens participantes do enredo, talvez algo literariamente planejado.103 Com

isso, o texto se torna mais enigmático e/ou misterioso. Menciona-se o nome do “SENHOR”

(ver o tetragrama no v. 24b) e o de “Séfora” (v. 25a) como sujeitos dos verbos de ação. Narra-

se que “o SENHOR foi ao encontro” de alguém (v. 24b), “procurou matá-lo” (v. 24c) e, mais

tarde, “o largou” (v. 26a). “Séfora”, por sua vez, “tomou uma faca de sílex” (v. 25a), “cortou

o prepúcio de seu filho” (v. 25b), “tocou os pés” de um de seus companheiros de viagem (v.

25c) e “disse” palavras (v. 25d) que a narrativa, logo em seguida, apresenta como discurso

direto dela: “De fato, tu és um noivo de sangue para mim!” (v. 25e). Mais ainda, esse discurso

de Séfora é retomado e comentado pelo narrador no final do episódio: Séfora “disse, pois,

‘noivo de sangue’ por causa das circuncisões” (v. 26b).

Observa-se, portanto, que a micronarrativa em questão apresenta, sempre na primeira

posição da frase, sete formas verbais chamadas de wayyiqtol, imperfeito, futuro invertido ou,

simplesmente, narrativo, sendo que se narra como o Senhor e Séfora agiram no momento em

que Moisés e sua família voltavam ao Egito.104 Talvez o emprego do número sete como

elemento estilístico para configurar a micronarrativa não seja resultado de mero acaso.

Todavia, embora exista maior clareza em relação ao Senhor, a Séfora e às ações deles,

há incertezas quanto às demais figuras participantes na cena aqui estudada, sobretudo no que

se refere a Moisés, já que este somente participa da narrativa quando sufixos pronominais

remetem a atenção do ouvinte-leitor a ele. A identificação de tais referências, por sua vez, é

exigente.

Formula-se, inicialmente, que “o SENHOR foi ao encontro dele” (v. 24b) “e procurou

fazê-lo morrer” (v. 24c). A quem, todavia, é dirigida essa ação divina? A quem se referem os

dois sufixos pronominais traduzidos como “dele” (v. 24b) e “o” (v. 24c)? Na unidade literária

anterior à cena aqui investigada, narra-se que “o SENHOR falou a Moisés” (Ex 4,21a), sendo

que o discurso direto do Senhor é apresentado logo em seguida (Ex 4,21b-23). Ao dar

103 Erhard BLUM; Ruth BLUM. Zippora und ihr חתן דמים. P. 124. 104 Ver Matthias GRENZER. As dimensões temporais do verbo hebraico. P. 15-32. Seja mencionado ainda que a

micronarrativa trabalha com um oitavo verbo na forma do wayyiqtol: ver a formulação “E aconteceu (ויהי) no

caminho, num lugar de pernoite” (v. 24a). Contudo, já se explicou a especificidade e a função dessa expressão

verbal (ver 2.1.).

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continuidade a tudo isso, faz sentido imaginar que as palavras do Senhor dirigidas a Moisés

sejam seguidas agora por uma ação divina justamente contra esse mesmo interlocutor, ainda

que o conteúdo das palavras do Senhor, em princípio, tenha criado uma expectativa diferente

no que se refere à relação entre os dois. Tal surpresa, mais tarde, ainda precisará ser discutida.

Uma dificuldade semelhante existe no v. 25b, quando se enuncia que Séfora “cortou o

prepúcio de seu filho”. Sabe-se que o casal tem dois filhos (Ex 18,2), pois já foi narrado que

Moisés, no momento da partida, “tomou sua mulher e seus filhos” (plural!), “os fez montar no

jumento e voltou ao Egito” (Ex 4,20). Nesse sentido, o ouvinte-leitor se pergunta agora a

respeito da identidade do filho atingido pela ação de sua mãe. Foi Gérson (Ex 2,22) ou Eliezer

(Ex 18,4) que teve o “prepúcio cortado” (v. 25b)?

A incerteza quanto a quem é atingido pela ação de Séfora ainda aumenta quando se

narra que ela “tocou os pés dele” (v. 25c). Por acaso se trata dos pés de Moisés ou dos pés

do(s) filho(s)? O próprio contexto da micronarrativa parece favorecer a hipótese de que sejam

os pés de Moisés, uma vez que, logo após sua ação, Séfora “disse” a este (v. 25d) que ele seria

seu “noivo de sangue” (v. 25e). Outra vez, a posterior discussão das dimensões teológicas

ajudará a esclarecer o ponto de referência do sufixo pronominal aqui investigado.

Há ainda no texto mais uma incerteza em relação tanto ao sujeito atuante como ao

sufixo pronominal. Narra-se no fim do episódio, de forma curta e resumida, que ele “o

largou” ou “desistiu dele” (v. 26a). Com isso, o ouvinte-leitor fica com uma questão dupla:

quem largou quem ou quem desistiu de quem? A compreensão aqui favorecida busca a

solução no contexto da própria micronarrativa. O sujeito atuante, provavelmente, é o

“SENHOR” (v. 24b), sendo que este, após “ter ido ao encontro” de Moisés (v. 24b), “procurou

fazê-lo morrer” (v. 24c), e agora “o larga” (v. 26a). Contudo, não é possível ter segurança

total no que se refere a tais identificações, uma vez que as indeterminações, literariamente,

parecem querer provocar a sensação do quão misteriosa pode ser a presença de Deus.

Resumindo: até em relação ao Senhor surgem, no final da micronarrativa aqui

estudada, dúvidas sobre se é dele que se fala. Muito mais, a cena parece querer deixar Moisés

no escuro ou na indefinição. Em momento algum o nome dele é mencionado, assim como o

nome do filho circuncidado por Séfora. Em contrapartida, os diversos sufixos pronominais

remetem o ouvinte-leitor, de forma constante, ao contexto literário, seja da própria

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micronarrativa, seja do que foi narrado nas cenas anteriores a ela. Em relação a Séfora, porém,

a narrativa não deixa dúvida sobre sua presença e suas ações. Além disso, o único discurso

direto é atribuído a ela (v. 25e), o qual, para encerrar a cena, provoca ainda um comentário

explícito do narrador (v. 26b).

No que se refere à estrutura literária da micronarrativa aqui analisada, observam-se, a

partir do que foi dito até agora, duas sequências de ações. Inicialmente, o Senhor atua. Ele

“vai ao encontro de” Moisés (v. 24b) e “procura fazê-lo morrer” (v. 24c). Depois se descreve,

de forma mais extensa, a atuação de Séfora. Ela “toma uma faca de sílex” (v. 25a), “corta o

prepúcio de seu filho” (v. 25b), “toca os pés de” Moisés (v. 25c) e “diz” (v. 25d) o discurso

apresentado no v. 25e. No fim, a micronarrativa, aparentemente, dá continuidade à sequência

das ações realizadas pelo Senhor, que agora “larga” Moisés (v. 26a). Ou seja, as ações

atribuídas a Séfora ganham centralidade na estrutura literária da narrativa, sendo emolduradas

pelas ações realizadas pelo Senhor. Ou, com outras palavras, uma sequência de ações ocorre,

de forma embutida, dentro de outra sequência de ações. Aquilo que se ouve ou se lê, por sua

vez, no primeiro e no último meio versículo – ver a notícia geográfica e cronológica no v. 24a

e a notícia cultural no v. 26b, ambas apresentadas pelo narrador – pode ser compreendido

como uma segunda moldura, sendo que esta enquadra as duas sequências de ações

pertencentes ao Senhor e a Séfora. Eis uma visualização esquemática da estrutura literária

aqui descrita:

A Notícia geográfico-cronológica apresentada pelo narrador (v. 24a)

B Ações do Senhor (v. 24b-c)

C Ações de Séfora (v. 25a-e)

B’ Ação do Senhor (v. 26a)

A’ Notícia cultural apresentada pelo narrador (v. 26b)

3.3.3 Análise narrativa e gênero literário

Como dito acima, na macronarrativa sobre o êxodo, apresentada nos últimos quatro

livros do Pentateuco, Séfora não costuma aparecer como personagem principal. Seu nome,

pois, ocorre apenas três vezes (Ex 2,21; 4,25; 18,2), sendo que ela participa de quatro

episódios (Ex 2,15c-22; 4,18-20.24-26; 18,1-7). Isso, por sua vez, não significa que, em

determinada cena, Séfora não possa evoluir como personagem, atraindo o protagonismo para

si.

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Ao comparar as quatro cenas com participação de Séfora, é possível observar

mudanças em relação ao protagonismo dela. Em Ex 2,15c-22, Séfora, inicialmente, faz parte

de uma personagem coletiva. Ela é uma das “sete irmãs, filhas do sacerdote de Madiã” (Ex

2,16.18-19). Contudo, no final do episódio em questão, Séfora aparece de forma individual.

Primeiramente, é objeto de uma ação de seu pai, quando este a entrega como esposa a Moisés

(Ex 2,21). Em seguida, por sua vez, ela se torna sujeito que atua ao “dar à luz um filho” (Ex

2,22), assumindo, ainda que de forma limitada, certo protagonismo.

Em Ex 4,18-20, na segunda micronarrativa com participação de Séfora, o nome dela

não é mencionado. Também desta vez ela sofre uma ação. É, pois, “Moisés” quem “toma sua

mulher [Séfora] e seus filhos”, “os faz montar um jumento” e, assim, “volta rumo à terra do

Egito” (Ex 4,20). Também na quarta e última cena com participação de Séfora ocorre algo

semelhante. Agora é “Jetro, sogro de Moisés”, quem “toma Séfora, mulher de Moisés”, e a

reaproxima do marido (Ex 18,2.6).

Em contrapartida, no terceiro episódio com participação de Séfora (Ex 4,24-26), sua

participação aumenta. Agora ela é uma personagem redonda que evolui, ganhando voz e vez.

O único discurso direto pertence a ela (v. 25e). Somente a atuação dela é descrita de forma

pormenorizada, sendo-lhe atribuídas quatro ações (v. 25a-d) que, em seu conjunto, provocam

tranquilidade ou distensão no enredo, sendo que ela parece influenciar e até reverter a ação

dramática do Senhor contra Moisés (v. 24b-c.26a). Mais ainda, quanto à família em questão,

Séfora ganha centralidade. O “filho”, pois, é descrito como sendo “dela” (v. 25b). E também

Moisés, cujo nome o episódio não menciona, é definido em relação a Séfora, ganhando

evidência no momento em que ela afirma: “Tu és um noivo de sangue para mim!” (v. 25e).

Enfim, a micronarrativa aqui estudada “sublinha, de forma efetiva, a função da mulher como

centro do grupo dos três atores humanos”.105

Em princípio, “personagens secundárias têm papéis secundários na narrativa, porque

estão menos presentes e são menos importantes no enredo, ou porque somente contribuem

com a ação ou a transformação da personagem principal, o protagonista”.106 Todavia, nem

sempre é fácil distinguir entre personagem principal e secundária. Existem, pois, “graus

diferentes no que se refere à importância das figuras”; quer dizer, há personagens secundárias

105 Erhard BLUM; Ruth BLUM . Zippora und ihr חתן דמים. P. 126. 106Jean-Louis SKA, “Our Fathers Have Told Us”. P. 86.

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que, “como pessoas anônimas”, somente “realizam um papel técnico menor”, mas há

“personagens secundárias que cumprem uma função tão importante que a decisão sobre se

ainda são secundárias é difícil”.107 No que se refere a Séfora em Ex 4,24-26, o ouvinte-leitor

se encontra diante de uma figura secundária que assume o protagonismo. A micronarrativa em

questão sublinha isso tanto pela configuração literária dada a ela como pelo conteúdo

veiculado por ela, sendo que a segunda afirmação ainda receberá maiores explicações neste

estudo.

Focando o gênero literário, a micronarrativa aqui investigada guarda certa

proximidade com o episódio no qual Jacó, no vale do rio Jaboc, enfrenta um ataque noturno

de Deus (Gn 32,23-33). Entre outros paralelismos que criam uma maior relação entre Jacó e

Moisés, ocorre que ambos, ao retornarem à sua terra de origem, enfrentam, como experiência

limiar, a agressão do adversário divino.108 No entanto, embora existam elementos comuns

entre as duas micronarrativas, também há diferenças significativas. Por exemplo, em Ex 4,24-

26 não se menciona um lugar geográfico específico, a fim de que se possa vislumbrar, por

detrás do texto, a etiologia de um determinado local que, originalmente, gozasse de autonomia

literária, assim como é possível imaginá-lo em relação a “Fanuel” (Gn 32,30-31).109 Além

disso, Jacó não é salvo pelo protagonismo de uma mulher como Séfora, mas ele enfrenta a

luta contra o agressor divino. Enfim, a micronarrativa em Ex 4,24-26, de certo modo, acolhe

alguns motivos ou elementos teológicos que se fazem presentes também em outras tradições

literárias da Bíblia Hebraica. Os estudos histórico-teológicos a seguir irão discuti-los de forma

pormenorizada. No entanto, afirma-se que a cena aqui estudada guarda sua singularidade

sobretudo no que se refere à trama e à sequência dos acontecimentos, assim como à reflexão

teológica promovida pelo episódio.

3.4 Comentários histórico-teológicos

3.4.1 A reação de Séfora

A ação do Senhor, Deus de Israel, de ir “ao encontro” de Moisés (v. 24b) e “procurar

fazê-lo morrer” (v. 24c), surpreende enormemente o ouvinte-leitor da macronarrativa sobre o

107 Shimon BAR-EFRAT. Wie die Bibel erzählt. P. 100. 108 Ver Telmo José Amaral de FIGUEIREDO. Um nome que faz toda a diferença. Análise literária de Gênesis

32,23-33, 132-138. 109 Ver Rainer KESSLER. Psychoanalytische Lektüre biblischer Texte – das Beispiel von Ex 4,24-26. P. 64.

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êxodo. Deus faria, pois, o que as parteiras “não fizeram” (ver Ex 1,16-17)? Por acaso, o

Senhor não tinha chamado Moisés para que este voltasse ao Egito e conduzisse os hebreus

oprimidos fisicamente para fora da sociedade opressora (Ex 3,10; 4,12.21)?

Ao acolher a surpresa apresentada pela narrativa, porém, é possível compreender

algumas conotações simbólico-teológicas do que está sendo contado. Primeiramente, entende-

se que “o caminho de retorno ao Egito se torna uma possibilidade de morte”, pressupondo-se,

de acordo com a narrativa bíblica, que o Egito representa uma sociedade escravista.110 Num

segundo momento, observa-se que a própria história do êxodo permite imaginar o Senhor

como “um Deus agressivo”, sendo que a agressão divina não se limita necessariamente ao

Egito, mas, “em princípio, ela pode atingir também Israel” (ver Ex 12,13.23).111 O profeta

Oseias sabe, semelhantemente, da possibilidade desse tipo de “encontro” (v. 24b) entre Deus

e seu povo, sobretudo quando este último, de “coração exaltado, se esquece” de seu Deus:

“Como uma ursa privada de seus filhos, os encontrarei” (Os 13,8). Num terceiro momento, a

micronarrativa aqui investigada talvez queira dar a entender que a missão assumida por

Moisés pode se tornar perigosa para sua sobrevivência. Nesse sentido, a história da

humanidade está cheia de exemplos disso, quando muitos líderes perderam suas vidas ao lutar

pela liberdade de seu povo.

Aliás, por vontade do Senhor, Moisés irá morrer antes de o projeto do êxodo se

realizar plenamente, com a instalação das tribos que ocupariam terras na Cisjordânia (Nm

20,12; Dt 34,5). Neste caso, é possível entender que se tratou de uma reação do Senhor à

postura aparentemente equivocada de Moisés de atribuir-se, junto com Aarão, o milagre das

águas que brotaram da rocha em Meriba (Nm 20,11). Também em vista de Ex 4,24-26 é

possível imaginar que Moisés tenha provocado a agressão divina, seja por ter ferido

mortalmente um egípcio (Ex 2,11-15c), seja por ter hesitado em aceitar o chamado do Senhor,

apresentando uma série de objeções (Ex 3,1–4,16). Por fim, a literatura bíblica conhece o

tema de o Senhor tornar-se um agressor que, aparentemente, de modo infundado pode atingir

a pessoa em sua integridade física e/ou moral. Como exemplo, cabe mencionar Jó (Jó 42,11),

o servo sofredor (Is 53,6.10) e os justos que se lamentam nos Salmos (Sl 34,20; 69,27; 71,20;

88,7-9.17). Trata-se, portanto, de uma experiência mística não tão isolada, a qual as tradições

do êxodo, na cena aqui estudada, acolhem na figura de Moisés.

110 Leonardo A. FERNANDES. Séfora: a mulher proativa que livra o homem da morte (Ex 4,24-26). P. 69. 111 Rainer KESSLER. Psychoanalytische Lektüre biblischer Texte – das Beispiel von Ex 4,24-26. P. 68.

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Todavia, se a ação do Senhor (v. 24) já surpreende o ouvinte-leitor, igualmente o faz a

reação de Séfora (v. 25). Narra-se, no primeiro momento, que ela “tomou uma faca de sílex”

(v. 25a). Ou seja, a mulher que, anteriormente, foi “tomada” por Moisés – para que o

acompanhasse em sua volta ao Egito (Ex 4,20) – e que Jetro, mais tarde, “tomará” – para,

como pai, entregá-la uma segunda vez a seu esposo Moisés (ver Ex 2,21; 18,2) – agora

“toma” (v. 25a) um instrumento cortante para agir com Moisés. No caso, “a faca de sílex” –

uma pedra “dura semelhante a um diamante” (Ez 3,9) ou aos “cascos dos cavalos” (Is 5,28) –

lembra Josué, que, por ordem divina, “fará para si facas de sílex, a fim de circuncidar os

israelitas na colina dos prepúcios” (Js 5,2-3). Portanto, o tema da “circuncisão” (v. 26b) já

ganha alguma presença no episódio aqui estudado por causa do objeto tomado por Séfora.

No segundo momento, a narrativa expõe que Séfora “cortou o prepúcio de seu filho”

(v. 25b). Agora o motivo do “prepúcio” (v. 25b; Gn 17,11.14.23.24.25; 34,14; Lv 12,3; Dt

10,16) traz à mente, conotativamente, o assunto da “circuncisão” (v. 26b). Cabe muito bem

aqui uma imagem da iconografia egípcia que mostra a cena de uma circuncisão. Trata-se de

um relevo do túmulo de Ankhmahor, encontrado em Sacará, do período da sexta dinastia

(2350-2000 a.C.).112 No lado esquerdo, vê-se “um sacerdote agachado, o qual, com um

instrumento oval (faca de sílex?), opera a circuncisão”, enquanto “um ajudante segura o

jovem a ser circuncidado”; no lado direito, “ocorre o tratamento das feridas, novamente

através do sacerdote”.113 Em princípio, a circuncisão é um rito comum a diversas culturas (ver

a menção de Egito, Judá, Edom, Amon, Moab e dos moradores do deserto em Jr 9,24-25).

112 Ver imagem em Ulrich ZIMMERMANN. Beschneidung (AT). 113 Wolfgang ZWICKEL. Leben und Arbeit in biblischer Zeit. P. 220.

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Todavia, a cena aqui estudada dá destaque a Séfora. “Embora o pai esteja presente, a

circuncisão, contra o costume, é realizada pela mãe”, algo que talvez “possa ser explicado

ainda pela situação de maior urgência (1Mc 1,60; 2Mc 6,10)”.114 De qualquer modo, é Séfora

quem “corta o prepúcio de seu filho” (v. 25b).

No terceiro momento, ela “tocou os pés” ou, acolhendo o sentido metafórico da

expressão, os genitais de seu esposo Moisés (v. 25c). À primeira vista, a ação de Séfora

parece ser um rito apotropaico, semelhante à aplicação do “sangue sobre as casas” pelos

israelitas por ocasião da primeira páscoa no Egito (Ex 12,7.13.22-23). Nesse sentido, tratar-

se-ia de uma “ação ritual e simbólica, a qual serve à prevenção de um mal de, em geral, causa

transcendental, estando este já presente ou pertencente ao futuro”.115

Em todo caso, Séfora é caracterizada pela micronarrativa como quem age no momento

de maior dramaticidade, e isso contrariamente a seu esposo. “Como nome, pois, Moisés não

aparece no texto; mais ainda, ele também nada faz”.116 Séfora, por sua vez, “com seu papel

ativo e salvífico”, assemelha-se às “personagens femininas” das parteiras (Ex 1,15-22), da

mãe e irmã de Moisés, assim como à filha do faraó (Ex 2,1-10), justamente por favorecer a

114 Rainer KESSLER. Psychoanalytische Lektüre biblischer Texte – das Beispiel von Ex 4,24-26. P. 73. 115 Rüdiger SCHMITT. Apotropäische Riten. P. 1. 116 Rainer KESSLER. Psychoanalytische Lektüre biblischer Texte – das Beispiel von Ex 4,24-26. P. 69.

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sobrevivência do futuro libertador, sendo que a vida dele se configura como “sequência de

ameaças mortais e salvações”.117

3.4.2 O discurso de Séfora

A reação de Séfora ao ataque do Senhor a seu esposo culmina num discurso que ela

dirige, aparentemente, a Moisés: “Disse (v. 25d): ‘De fato, tu és um noivo de sangue para

mim’” (v. 25e). Além disso, “ao Séfora chamar Moisés de noivo de sangue, surge a ideia de

que ela, por aplicar o sangue da circuncisão a seu esposo, motive Deus a desistir de atacar

Moisés”.118 Quer dizer, o rito celebrado e as palavras faladas por Séfora fazem com que o

Senhor “largue” o esposo dela (v. 26a). Que surpresa! Independentemente do que possa ter

motivado o Senhor a “ir ao encontro” de Moisés (v. 24b) e “procurar fazê-lo morrer” (v. 24c),

agora o Deus de Israel entra em sintonia com Séfora, acompanhando a ação dela em defesa da

vida de seu esposo.

A micronarrativa aqui estudada não deixa claro se Séfora, desde o início, tem a

intenção de realizar uma circuncisão. Como visto acima, a “faca de sílex” (v. 25a) e o “corte”

realizado no “prepúcio” (v. 25b), de forma indireta, remetem o ouvinte-leitor a essa ideia.

Além disso, o comentário do narrador no final do episódio (v. 26b), diretamente, apresenta tal

leitura. No entanto, até a penúltima frase o episódio mantém o caráter enigmático do que está

sendo narrado. Assim, é possível pensar que Séfora, como “filha” do “sacerdote de Madiã”

(Ex 2,16.21), esteja familiarizada com ritos religiosos e, no caso, apotropaicos, de acordo com

sua cultura de origem.

No entanto, em vez de querer definir essa ambiguidade, vale a pena ater-se ao que está

sendo narrado. De certo, a sobrevivência de Moisés se dá porque o Senhor “o larga” (v. 26a;

ver o verbo “largar” com o mesmo sentido em 2Sm 24,16; 1Cr 21,15; Jó 7,19). No entanto, o

discurso de Séfora também parece transmitir a impressão de que “a proteção do homem” se

encontre justamente em sua “relação com a mulher”.119 Chama, pois, a atenção do ouvinte-

leitor que Séfora interprete o gesto ou rito celebrado por ela no sentido de uma renovação da

117 Rainer ALBERTZ. Exodus 1–18. P. 96. 118 Helmut UTZSCHNEIDER. Wolfgang OSWALD. Exodus 1–15. P. 145. 119 Irmtraud FISCHER. Gottesstreiterinnen. P. 179.

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relação que existe entre ela e Moisés. Nesse sentido, dois detalhes em seu discurso “Tu és um

noivo de sangue para mim!” (v. 26a) merecem atenção.

Primeiramente, Séfora chama seu esposo de “noivo”, termo marcantemente repetido

no final da micronarrativa (v. 25e.26b). Com isso, a esposa de Moisés relembra o “dia do

casamento” (Ct 3,11), da “saída do noivo de seu quarto” ou da “câmara nupcial” (Jl 2,16; Sl

19,6), e da felicidade ligada às “vozes de noivo e noiva” (Is 61,10; 62,5; Jr 7,34; 16,9; 25,10;

33,11). Ou seja, por mais que o termo aqui traduzido como “noivo” (ver חתן no v. 25e.26b)

“indique uma relação para a vida inteira”, a palavra em si remete ao momento em que a união

do casal foi selada, sendo que o hebraico bíblico conhece outras expressões para “marido”

(ver בעל em Gn 20,3; Ex 21,3.22; Dt 22,22; 24,4; 2Sm 11,26; Os 2,18; Jl 1,8; Pr 12,4;

31,23.28; Est 1,17) ou “homem” que, por laços matrimoniais, pertence a determinada mulher

(ver איש, por exemplo, em Gn 3,16; Pr 7,19).120

Em segundo lugar, Séfora, ao dirigir-se a Moisés, usa em seu discurso direto o

pronome pessoal da segunda pessoa do singular – “tu” (v. 25e) – e, quando se refere a si

mesma, uma preposição seguida pelo sufixo pronominal da primeira pessoa do singular –

“para mim” (v. 25e). Assim, ela realça retoricamente a relação do casal. Surge, com isso, a

impressão de que parte do mistério da salvação da vida de Moisés se encontre na união do

casal – “tu e eu” –, como se Deus respeitasse a luta da esposa em defesa do marido.

3.4.3 A religiosidade de Séfora

No final do episódio aqui estudado, o narrador afirma que Séfora “disse ‘noivo de

sangue’ por causa das circuncisões” (v. 26b). Como dito acima, as menções da “faca de sílex”

(v. 25a) e do “prepúcio cortado” (v. 25b) já permitem perceber que Séfora talvez esteja

realizando uma circuncisão. Contudo, também é possível entender que a esposa de Moisés

esteja celebrando um rito apotropaico, no qual ela afasta o mal de seu esposo ao “tocar-lhe os

pés” (v. 25c) com o “sangue” (v. 25e.26b) do “prepúcio cortado” (v. 25b), assim como os

israelitas, na noite da saída do Egito, iriam “tocar, com o sangue” do “gado pequeno abatido”,

“a verga e as ombreiras” das portas, a fim de que o “danificador não entrasse em suas casas”

(Ex 12,21-23).

120 William PROPP. That Bloody Bridegroom (Exodus IV 24-6). P. 496.

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Contudo, o episódio aqui investigado não narra expressamente que Séfora “tocou os

pés” de Moisés (v. 25c) com o “sangue” duplamente mencionado (v. 25e.26d). Além disso, a

expressão enigmática “noivo de sangue” (v. 25e.26b) ainda abre espaço para outra

compreensão. Em vez de entender que a micronarrativa vise ao sangue do “prepúcio cortado”

(v. 25b), é possível vislumbrar uma referência aos sangues de Séfora, especialmente aos

sangues que a mulher perde no momento do parto e no período do resguardo.

Nesse sentido, faz todo o sentido lembrar das leis em Lv 12,2-4. Nelas, o legislador

israelita prescreve, primeiramente, que “a mulher, após ter dado à luz um menino”, é

considerada “impura durante sete dias, assim como nos dias da menstruação” (Lv 12,2). Em

um segundo momento, determina-se que, “no oitavo dia, deve ser cortada a carne do

prepúcio” do menino recém-nascido (Lv 12,3). Em terceiro lugar, segue-se a prescrição a

respeito dos “trinta e três dias” de resguardo para a mulher parturiente, por causa do “sangue

de purificação” (Lv 12,4). Ou seja, “como há uma perda maior de sangue durante o parto, o

mesmo ocorre nas primeiras semanas após o parto”, justamente por causa do “processo de

regressão do útero”; por isso, durante esse período, a mulher é liberada dos “esforços” que um

“encontro” com Deus “exige da parte do ser humano”.121 Enfim, é importante perceber como

o legislador israelita se preocupa com o sangue da mulher, sendo que esse assunto, nas

tradições jurídicas do Levítico, serve como moldura à circuncisão do menino recém-nascido.

Ante este contexto religioso-cultural, Moisés pode ser compreendido, da forma mais

direta possível, como “noivo de sangue” de Séfora (v. 25e.26b), justamente por esta lhe ter

dado dois filhos (Ex 4,20; 18,3). O respeito que, durante o período menstrual, o do parto e o

do resguardo, cabe ao marido em relação à esposa transforma o homem, na base da

convivência do casal, em um verdadeiro “noivo de sangues” (v. 25e.26b).122 Ao usar tal

expressão, Séfora “destaca sua relação com Moisés” e “se declara a este”.123

Todavia, em sua última frase, o episódio aqui estudado apresenta a ação de Séfora de

“cortar o prepúcio de seu filho” (v. 25b) com uma “faca de sílex” (v. 25a) no horizonte

religioso das “circuncisões” (v. 26b). Assim, a esposa madianita de Moisés assemelha-se a

Abraão, o qual “tomou seu filho Ismael, todos os nascidos em sua casa e todos os adquiridos

121 Thomas HIEKE. Levitikus 1–15. P. 447-448. 122 Literalmente, o texto hebraico fala de “noivo de sangues” (v. 25e.26b). No caso de Séfora, o plural pode ser

uma referência aos dois partos (Ex 4,20; 18,3) e/ou aos sangues do parto e do tempo de resguardo. 123 Georg FISCHER; Dominik MARKL. Das Buch Exodus. P. 77.

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por dinheiro, e circuncidou a carne do prepúcio deles” (Gn 17,23), assim como,

posteriormente, também “circuncidou seu filho Isaac” (Gn 21,4). Há também um paralelismo

com Josué, que “circuncidou os filhos de Israel na colina dos prepúcios” (Js 5,3-4.7). Como

esses dois homens, a mulher Séfora cumpre o mandamento de que, como “sinal da aliança”

para com Deus, “todo macho seja circuncidado” (Gn 17,10-11), lembrando-se de que as

tradições religiosas do antigo Israel, de forma profética, insistem na dimensão espiritual do

rito. Visa-se, pois, à ordem de “circuncidar-se para o Senhor” (Jr 4,4) ou, em outras palavras,

de “circuncidar o prepúcio do coração” (Dt 10,16).

Enfim, a cena aqui estudada não revela a idade do “filho” de Séfora no momento de a

mãe “lhe cortar o prepúcio” (v. 25b), sendo que as tradições jurídicas, mais tarde, preveem a

“circuncisão no oitavo dia” após o nascimento (Lv 12,3). Contudo, Séfora parece promover

uma integração em diversos sentidos. De um lado, o ouvinte-leitor pode ter a impressão de

que, como madianita, ela tenha adotado “a fé de seu marido” e submetido “sua família às

normas israelitas”, algo que se tornou “testemunho de sua integração no povo de Israel”.124 E

isso, justamente, como “contrapeso às múltiplas manifestações hostis contra Madiã no Antigo

Testamento (ver Nm 25; 31–32; Js 13,21; Jz 6–8; Is 9,3; 10,26)”.125 De outro lado, é possível

entender que “o Senhor se colocou de forma ameaçadora no caminho, porque Moisés e/ou o

filho dele não eram circuncidados, sendo que o caminho somente se abriu quando Séfora

superou o defeito circuncidando seu filho e, de forma simbólica, até Moisés”.126 Em todo

caso, percebe-se que o rito religioso da “circuncisão” (v. 26b) se encontra vinculado ao

espaço familiar formado por “Séfora” (v. 25a), “o filho dela” (v. 25b) e o “noivo de sangue”

(v. 25e.26b), sendo que a ação decisiva pertence, de forma surpreendente, à esposa e mãe.

3.5 Considerações finais

A macronarrativa bíblica sobre o êxodo apresenta Moisés, um de seus protagonistas

principais, como homem casado. Embora sua mulher, a madianita Séfora, participe de apenas

quatro episódios (Ex 2,15c-22; 4,18-20.24-26; 18,1-7), cabe justamente a ela a defesa do

marido, líder profético a serviço do projeto divino que insiste na libertação dos brutalmente

curvados, oprimidos e humilhados. Um conjunto de pormenores da ação de Séfora em defesa

124 Pablo ANDIÑACH. O Livro do Êxodo. P. 90. 125 Christoph DOHMEN, Exodus 1–18. P. 177. 126 Helmut UTZSCHNEIDER; Wolfgang OSWALD. Exodus 1–15. P. 145.

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de seu esposo ganha destaque na micronarrativa de Ex 4,24-26. Segue-se um resumo dos

elementos que a cena em questão realça.

a) Superação da passividade do outro

Também um líder como Moisés pode experimentar momentos de perplexidade que

levam à estagnação e/ou à paralisia total. E isso justamente no caminho que, em princípio,

corresponde à vocação anteriormente experimentada. Mais ainda, de forma paradoxal e

inexplicável, o próprio Senhor, Deus de Israel, parece atingir o seu profeta, ameaçando-o em

sua sobrevivência. O resultado disso é a passividade total. Séfora, por sua vez, supera a

passividade do companheiro. Em vez de simplesmente aceitar os fatos, ela encontra uma

solução para salvar a vida de seu esposo.

b) Insistência religiosa no vínculo matrimonial

Séfora celebra, aparentemente, o rito religioso de uma circuncisão, o qual envolve um

gesto apotropaico para afastar o mal de quem tem sua sobrevivência ameaçada. Tal

celebração envolve a família: como mãe, ela corta o prepúcio do filho; como esposa, toca os

pés de seu marido com o sangue que o rito fornece. Por excelência, porém, Séfora insiste, por

intermédio do rito religioso, na relação com seu marido. Chamando este de noivo, ela liga

Moisés aos sangues dela, fazendo assim memória da fertilidade, dos nascimentos dos filhos e

dos períodos de resguardo.

c) Defesa da vida do esposo junto a Deus

A insistência religiosa de Séfora na união matrimonial e familiar se torna,

misteriosamente, uma contribuição à sobrevivência de Moisés, o qual quase teve sua vida

tirada por Deus. Quer dizer, de forma surpreendente, Deus parece aceitar o rito religioso

celebrado pela mulher, especialmente quando esta, ao insistir na comunhão de vida com seu

parceiro, se propõe a reverter a situação dramática dele. Dessa forma, o gesto profundamente

humano revela sua capacidade de acolher o divino.

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4 Últimas considerações

A história de Moisés e Séfora parece não destoar do que acontece em outras cenas à

beira de um poço, de outros encontros testemunhados pelas águas baixas que são retiradas

para trazer vida nova. Na vida deste casal, mesmo a ameaça, da parte do Senhor, sofrida por

Moisés também não é cena solitária, pois, Jacó, por sua vez, teve de enfrentar uma ameaça

por parte do Divino. A circuncisão e a questão do primogênito são também assuntos

recorrentes no texto bíblico e acompanha Moisés na caminhada desde sua saída com esposa e

filhos de Madiã rumo ao Egito até a retirada dos hebreus das terras deste mesmo Egito (Ex

4,22-23.24-26;12,43-49;13,1.11-15). A história de Séfora e Moisés está enquadrada.

O relato sobre o retorno de Séfora e seus filhos ao esposo Moisés (Ex 18,1-7) fecha

uma moldura, na qual se encontram os slides, ou seja, os quadros que, se colocados em

justaposição, contarão a história dos momentos mais marcantes da personagem a qual teve seu

momento de protagonismo nas micronarrativas estudadas para a elaboração desta dissertação.

Esta que se pôs a pesquisar e conhecer a importância de Séfora enquanto mulher madianita,

pastora, filha de um sacerdote e mãe de dois filhos. Séfora, a esposa do grande profeta

Moisés.

A abertura da moldura dá-se com a revelação do casamento de Séfora e Moisés e a

comunicação do nascimento de seu primeiro filho, conforme demonstrado no primeiro

capítulo, no qual se vê e ouve o narrador noticiando pela primeira vez o nome de Séfora (Ex

2,21). Em Ex 4,20, estudado no capítulo segundo, há a segunda menção em referência a

Séfora, porém, diz-se apenas da esposa de Moisés, a qual é colocada por ele sobre um

jumento. E na sequência, em Ex 4,25, versículo analisado no capítulo terceiro dessa

dissertação, a esposa é novamente citada pelo nome, Séfora, a esposa defensora, que livra o

marido da ameaça de morte imposta pelo próprio SENHOR Deus. E desde então, somente no

capítulo 18,1-7 do Livro do Êxodo volta-se o olhar para Séfora e os filhos de Moisés, ou seja,

ali a família estará reunida novamente, depois disso não mais será narrado episódio algum

com o envolvimento da família de Moisés.

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A saga de Moisés irá continuar, no entanto, nesse momento, em Ex 18,1-7,

simplesmente, retoma-se o relato da libertação dos hebreus e com a família reunida faz-se

refeição diante do SENHOR. E como que literariamente necessário fecha-se a moldura.

4.1 Séfora em Ex 18,1-7

Os membros da família de Moisés não são mencionados na macronarrativa do êxodo

desde Ex 4,24-26 até o capítulo 18 quando reaparecem, Séfora e seus dois filhos, levados

pelas mãos de Jetro de volta a Moisés, o qual se encontra no monte de Deus, após ter libertado

os hebreus das garras opressoras do Faraó. Em algum momento, depois de Moisés ter tomado

sua família, colocando-a sobre um jumento e partido rumo ao Egito (Ex 4,18-20) e, também,

passado por uma ameaça de morte (Ex 4,24-26), Moisés e família se separam. No entanto,

este distanciamento não é esclarecido pelo texto bíblico, já que este não faz nenhuma menção

sobre de que forma Séfora e os filhos deixam Moisés.

B.CHILDS [The Book of Exodus, p.327] menciona que, ainda que Zipora e os filhos

não se encaixem bem no relato, o autor introduziu-os para reforçar a ideia de que, no

final da proeza da libertação, evocam-se os eventos preparatórios para novamente

apresentar Moisés como um homem rodeado de sua família e retribuindo a

hospitalidade então recebida. 127

Leonardo Fernandes lembra que pode haver algo ainda maior nessa narração, pois, que

a atitude de Jetro em devolver a família de Moisés justamente no monte de Deus, onde se

encontram os israelitas, pode querer mostrar o momento de “reatar vínculos derivados da

união de Abraão com Centura, de quem descendem os madianitas” (cf. Gn 25,1-6, 1Cr 1,32-

33). 128

De fato, de alguma maneira o texto traz essa mensagem, o vínculo está reatado. Jetro,

Séfora, Gerson e Eliezer encontram Moisés na montanha de Deus, exatamente o lugar que

fora citado pelo próprio SENHOR quando disse ao grande profeta Moisés, vós servireis a Deus

nesta montanha, indicando que ali seria local de adoração a Deus. E acontece que vieram

Aarão e todos os anciãos de Israel, para comer com o sogro de Moisés diante de Deus (Ex

18,12). E assim, israelitas e madianitas se encontram e com alegria “ambos celebram o que

127 Ver citação em Pablo ANDIÑACH. O Livro do Êxodo: um comentário exegético-teológico. P. 238. 128 Leonardo A FERNANDES; Matthias GRENZER. Êxodo 15,22-18,27. P. 112.

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Deus fez em favor deles”. 129 Enfim, de forma fluente a narrativa deixa claro que Jetro retorna

com a família de Moisés e demonstra interesse em confirmar as noticias que ouvira sobre as

coisas que Deus havia feito a Moisés e a Israel, mas agora quer escutar, diretamente, daquele

que foi o líder da ação (Ex 18,1.6.8), e depois de saber daquele que lhe é próximo, seu próprio

genro, as notícias o deixam jubiloso ao ponto de bendizer ao SENHOR Deus de Israel (Ex 18,9-

10).

Destarte, a narrativa traz em si um que de cumprimento, mesmo que ainda parcial, de

um plano maior. Parece ser a conclusão de uma etapa difícil, porém, agora é momento de

contar e recontar o acontecido, de como os hebreus foram libertados da opressão do Faraó.

Com isso, muitos e muitos passam a conhecer os fatos sucedidos e saber sobre tudo o que foi

capaz de realizar o Deus dos israelitas.

A micronarrativa (Ex 18,1-7) merece investigação mais aprofundada, o que não

ocorrerá nesta dissertação. No entanto, ainda sobre o fato de que o ouvinte leitor até Ex 18,2

não tinha conhecimento de que a família de Moisés ficou, pelo menos, algum tempo longe

dele, talvez seja bom lembrar algo que, rapidamente, pode ser percebido na leitura do texto

massorético.

O fato de que uma figura feminina foi enviada, isto é claro. Por um lado, facilmente,

se deduz que o sufixo utilizado para designar a terceira pessoa do singular feminino na

palavra h'yx,(WLv seja Séfora. Por outro lado, no entanto, a tradução que se faz de

h'yx,(WLv deixa no ouvinte-leitor a incerteza sobre quem realmente está sendo enviada

ou despedida. Já que o narrador não explicita o nome da personagem, apenas fica indicada

pelo sufixo da palavra hebraica.

Além disso, o sentido da palavra h'yx,(WLv poderia, também, ser entendido como

renúncia, o que equivaleria a uma separação ocorrida para preservar a família de Moisés.

Séfora, Gerson e Eliezer teriam estado aos cuidados do pai e avô Jetro. Por essa razão, parece

haver no retorno uma oportunidade de ratificar, diante da comunidade dos libertos, o

compromisso adquirido por Moisés em Ex 2,21 quando Jetro deu sua filha Séfora em

129 Pablo ANDIÑACH. O Livro do Êxodo: um comentário exegético-teológico. P. 238.

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casamento ao hebreu-egípcio. Portanto, ao olhar o todo da cena de Ex 18,1-7 entende-se que o

sufixo feminino de quem foi enviada refere-se a Séfora, a mesma que, no tempo propicio,

Jetro leva de volta a Moisés juntamente com os dois filhos do casal.

Vale lembrar, que Moisés em Ex 4,27-31 encontra Aarão no monte de Deus, antes de

chegar ao campo de batalha. Ocasião essa bastante propícia para que Aarão alerte Moisés

sobre o perigo de levar sua família para a missão que iriam realizar. No entanto, o fato de, ao

sair rumo ao Egito, Moisés ter sido ameaçado de morte, estando junto a sua família (Ex 4,24-

26), já “seria um argumento suficiente para que Séfora fosse devolvida a Jetro” 130, apesar de

essa atitude ter salvado a vida de Moisés e, por conseguinte, permitido que ele seguisse

enfrente rumo à libertação dos israelitas.

Outro ponto que poderá ser investigado mais profundamente em outra pesquisa é o

surpreendentemente reencontro entre Séfora e Moisés. A cena da recepção torna-se curiosa ao

se narrar um encontro caloroso entre Moisés e Jetro, na qual o narrador apresenta um

momento de forte acolhida, por parte de Moisés, apenas a Jetro, sendo que passa

despercebido, já que não é relatado, o reencontro de Moisés e Séfora. No entanto, ela está ali,

de volta ao marido. 131 E seja pela forma ou pelo conteúdo o narrador deixa transparecer que

um ciclo se fecha.

4.2 Mulher que faz

Séfora, uma mulher de influência132 com uma gama de mistérios em torno de sua

história. Por isso, uma das maneiras mais contundente de revelar Séfora, talvez, seja através

da micronarrativa em Ex 4,24-26, de forma alguma se despreza as outras três micronarrativas

nas quais ela é narrada. Séfora sabia o que tinha de fazer e o fez ao se refletir sobre sua atitude

diante da ameaça de morte pela qual Moisés é exposto. Ela realizou um ritual, sabia como

administrá-lo, pois o fez com conhecimento de causa. Com isso, a ameaça a seu marido

afastou-se. E mais, além do conhecimento sobre o rito em si, fica nas entrelinhas da narrativa

algo ainda maior e de paralelos difíceis ou muito especiais. A esposa do grande profeta,

Moisés, conhece a vontade de Deus e a realiza. Sendo o humano um ser relacional,

130 Leonardo A FERNANDES; Matthias GRENZER. Êxodo 15,22-18,27. P. 119. 131 Tikva. FRYMER-KENSKY. Zipporah: Bible. In http://jwa.org/encyclopedia/article/zipporah-bible. 132 Beth BROPHY. Zipporah may be obscure, but the wife of Moses mattered. In US News and World Report

(January 25, 2008).

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certamente, uma das maneiras de perceber a personalidade de uma pessoa seja através de seu

comportamento em relação ao outro. Nisso, pode-se dizer que das ações da madianita, mulher

de Moisés, brotam características que permitem traçar um perfil para a esposa do grande

profeta.

A mulher pastora tem sua vida dedicada, primeiro ao pai, Jetro, o sacerdote de Madiã.

Já que junto à suas seis irmãs, Séfora trabalhava cuidando do rebanho do pai e, por

conseguinte, de sua família. Depois do pai esteve ao lado do marido e dos filhos. A

personagem Séfora possui uma história de vida capaz de oferecer modelo de valores e

influenciar outrem para o bem, tendo seu comportamento como parâmetro. Séfora assume

certo protagonismo ao lado de Moisés. Ela fez acontecer o plano de Deus, salvou o grande

profeta em Ex 4,24-26, que recebeu a missão de libertar o povo oprimido da escravidão do

Egito. Séfora consciente ou não, conhecia os planos de Deus e fez o que tinha de ser feito, ela

contribuiu para que o plano de salvação do SENHOR Deus tivesse continuidade através da

participação da pessoa humana.

As mulheres da bíblia trazem consigo um protagonismo pouco declarado ou realçado.

Personagens que, talvez, ainda não tenham tanta visibilidade. Portanto, há espaço para que se

busque a atuação de algumas mulheres, sobretudo, aquelas tão próximas das grandes

personalidades bíblicas. Algumas mulheres da Bíblia trazem traços comuns de

personalidades, em determinados aspectos. Séfora, a personagem analisada nesta pesquisa, é

uma mulher estrangeira, acompanha o marido, mostra-se destemida e salva seu noivo de

sangue de uma ameaça de morte por parte de Deus, realizando um ritual de pertença ao

SENHOR Deus de Israel. Rute, também, personagem bíblica, por sua vez, igualmente

estrangeira, mulher corajosa e trabalhadora, se compromete, lealmente, com sua sogra Noemi

e diz a ela: “teu povo será o meu povo e teu Deus será o meu Deus” (Rt 1,16). Rute tem seu

nome mencionado na ascendência de Jesus Cristo. Por sua vez, Maria de Nazaré, mulher

crível, forte e corajosa, gera em suas entranhas o Filho de Deus e o acompanha até à cruz.

Essas mulheres têm muito em comum, coragem, fidelidade, obediência, sobretudo, fortaleza

para suportar o peso de fazer mudar o rumo de uma história. Enfim, as tradições familiares

revelam quão importantes são essas mulheres em termos de responsabilidade e segurança.

Mais ainda, são suporte e apoio aos seus membros, especialmente, em situações limites. Os

vínculos familiares são frequentemente evidenciados nos textos bíblicos, sejam no Antigo ou

no Novo Testamento.

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Séfora aumenta o número daquelas mulheres da Bíblia, que através de sua lealdade e

prática corajosa, mostram seu protagonismo e tornam-se modelos de fé e comportamento

para os ouvintes-leitores de tais tradições literárias. Em relação à Séfora, isso pode significar a

(re)descoberta do mistério de Deus nas relações de convivência entre marido e mulher.

Percebe-se que, em alguns casos, até o futuro do profeta depende dessa comunhão

matrimonial.

Esta dissertação teve como foco a análise de uma personagem secundária, que em

determinados momentos assume certo protagonismo em lugar da personagem principal.

Personagens secundárias são admitidas em termos literários, pois é aquela que serve como

cordão, como suporte para que a personagem principal se sobressaia. No entanto, Bar-Efrat

afirma que papel secundário é uma caracterização de personagem utilizada na ficção, porém

que não serve para caracterizar a vida real. 133 Séfora, como personagem secundária no

interior da narrativa, seria de alguma maneira o reflexo da Séfora da vida real? Pois, na cena

em Ex 18,1-7, tratada acima, sobre o retorno de Séfora para o convívio do marido, percebe-se

que o narrador posiciona o reencontro do casal em segundo plano. Ou seja, o narrador não

tem a preocupação de mostrar ao ouvinte leitor o encontro do casal que, aparentemente,

estivera distante por um tempo não mencionado. Teria permanecido Séfora e os filhos sem

nenhum destaque, sem receber o abraço caloroso de Moisés por protocolo, ou porque seria a

“concepção da época, na qual a esposa e os filhos menores sempre tinham um papel

secundário”? 134

Em suma, de forma insistente e variada, as tradições do êxodo parecem trazer com

frequência as dimensões familiares como fator importante na história do antigo Israel. Séfora,

a esposa do líder Moisés, principal instrumento na mão de Deus para fazer o povo oprimido

sair da sociedade opressiva, se destaca com seus movimentos, gestos e atitudes. Em algum

momento age de forma mais ‘proativa’135, em outros como cordão que dá suporte, nesse caso,

a seu marido.

133 Cf. Shimon BAR-EFRAT. Narrative Art in the Bible. P. 86. 134 Pablo R. ANDIÑACH. O Livro do Êxodo: um comentário exegético-teológico. P. 240. 135 Cf. Leonardo Agostini FERNANDES. Séfora: a mulher proativa que livra o homem da morte (Ex 4, 24-26).

Revista de Cultura Teológica 86 (2015). P. 59-84.

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REFERÊNCIAS

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Suiça: Theologischer Verlag, 2012.

ALTER, Robert. The Art of Biblical Narrative. Basic Book. A Member of the Perseus Books

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Paulo: CEPE, 1992.

ANDIÑACH, Pablo R. O livro do Êxodo. Um comentário exegético-teológico. São Leopoldo:

Sinodal, 2010.

ANDIÑACH, Pablo R. Introdução hermenêutica do Antigo Testamento. Tradução: Mônica

Malschitzky. São Leopoldo: Sinodal/Est, 2015.

BALANCIN, Euclides Martins; Storniolo, Ivo. Como Ler o Livro do Êxodo: O Caminho para

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