setenta e sete minutos, mário aviscaio

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Setenta e Sete Minutos Mário Aviscaio* Andando desconcertado aos ventos noturnos de uma segunda feira de carnaval parei frente a um grande chapéu de sol dourado por refletores deitados no gramado. Lembrei de semelhante árvore ensolarada à janela de um grande amor perdido. As luzes me levaram de volta à minha amada. Uma brisa fria marcou a distância daquela janela sombreada na praia até estes refletores gramados, denunciando a eterna presença de Linya. Respirei o ar da minha praia por longos minutos, mas, receando não me caber em mais lembranças fui dormir. A memória daquele único amor arrebentava inundando todas as minhas súplicas imaginárias, mofando desejos recorrentes. Fazia frio, precisava de calor. Andei incomodado de volta à realidade por escuras alamedas – ora saudoso, ora inconformado – até chegar no chalet. O céu era bastante estrelado, sem lua. Abro a porta sem dizer boa noite, encantado por aquelas lembranças. Sem que ninguém cuidasse ou dissesse palavra, peguei no sono de imediato. Profundamente. Quatro e trinta e oito. Surpreso, despertei pesado entre a saudade de um passado vivo e um presente incômodo. Mal consegui levantar diante do desconforto da vã procura do amor, seja no mundo ou mesmo na praia ideal do passado. Deplorável seguir a mulher inalcançável e mais triste ainda, continuar em frente vendo apenas a fuga, querendo olhar para traz, desconcertado, a mente rebelde. Ao relembrar imagens tão fortes, percebi o acerto daquelas andanças estreladas, retardando a volta ao chalet. Iluminado e longe da família, achava uma pista estampada em face juvenil, reconhecendo em sorriso o gesto epifânico do amor. Saudade surpresa da mulher de meus sonhos, que teima em não sair da janela ensolarada, embora compreenda que não é possível voltar atrás. O chapéu de sol praiano brilha na casa em que descobri a felicidade e dali também não saio. Minha caiçara querida me mostrou que a vida não tinha que ser solitária: amei de primeira e de última. Mal tocando minhas mãos, minha morena, trazia um contagio elétrico. Olhares contentes da companhia que procuro até hoje. Admiro o chapéu de sol de minha noite, lembrando os olhares abraçados de nossas vozes actantes, cúmplices amantes. Nunca mais carreguei tamanha leveza no coração e muito embora ainda me sirva dos seus encantos, dela não me embriago, porque o porre não tem remédio. Fica apenas o sonho que não termina a me levar cada vez mais próximo dela. Conheci agora a pouco a filha da caiçara – a própria mãe de tão parecida – de coração tão grande, que atendeu meu desejo. Entregou a mim, de joelhos, o endereço da mãe num pedacinho de papel. Foi nesse instante que acordei para pegar meu salvo conduto. Demorando a sair da cama – quis gravar tudo – tentei evitar o desvanecimento da procurada mensagem. Atônito, não consegui ler nada, toda a sorte perdida nas dobras dos meus fracassos. Procurava minha caiçara dormindo, sem saber como. Agora acordado procurava saídas em espaços e tempos imaginários. Quatro e cinquenta e seis. Sentei na cama, com saudade da minha nova amiga, tendo certeza de que além do sonho, vivia o pior pesadelo. Sentado, olhei para o lado e vi minha mulher e meu filho dormindo juntos, placidamente. Longamente observei aquela cena temendo pela nossa sorte. Desviei o olhar em direção ao banheiro. Ao urinar pude ver dois maiôs coloridos jogados no tampo da pia, outro seco desbotado no cabide atrás da porta. Evitando pisar em pilhas

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Setenta e Sete Minutos é uma narrativa curta, integrante da antologia de Contos "Sonhando na Ponta do Dedo", cujo projeto foi classificado como suplente no ProAC /31 - 2015

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Setenta e Sete Minutos Mário Aviscaio*

Andando desconcertado aos ventos noturnos de uma segunda feira

de carnaval parei frente a um grande chapéu de sol dourado por refletores deitados no gramado. Lembrei de semelhante árvore ensolarada à janela de um grande amor perdido. As luzes me levaram de volta à minha amada. Uma brisa fria marcou a distância daquela janela sombreada na praia até estes refletores gramados, denunciando a eterna presença de Linya. Respirei o ar da minha praia por longos minutos, mas, receando não me caber em mais lembranças fui dormir. A memória daquele único amor arrebentava inundando todas as minhas súplicas imaginárias, mofando desejos recorrentes. Fazia frio, precisava de calor. Andei incomodado de volta à realidade por escuras alamedas – ora saudoso, ora inconformado – até chegar no chalet. O céu era bastante estrelado, sem lua. Abro a porta sem dizer boa noite, encantado por aquelas lembranças. Sem que ninguém cuidasse ou dissesse palavra, peguei no sono de imediato. Profundamente.

Quatro e trinta e oito. Surpreso, despertei pesado entre a saudade de um passado vivo e um presente

incômodo. Mal consegui levantar diante do desconforto da vã procura do amor, seja no mundo ou mesmo na praia ideal do passado. Deplorável seguir a mulher inalcançável e mais triste ainda, continuar em frente vendo apenas a fuga, querendo olhar para traz, desconcertado, a mente rebelde. Ao relembrar imagens tão fortes, percebi o acerto daquelas andanças estreladas, retardando a volta ao chalet. Iluminado e longe da família, achava uma pista estampada em face juvenil, reconhecendo em sorriso o gesto epifânico do amor. Saudade surpresa da mulher de meus sonhos, que teima em não sair da janela ensolarada, embora compreenda que não é possível voltar atrás. O chapéu de sol praiano brilha na casa em que descobri a felicidade e dali também não saio. Minha caiçara querida me mostrou que a vida não tinha que ser solitária: amei de primeira e de última.

Mal tocando minhas mãos, minha morena, trazia um contagio elétrico. Olhares contentes da companhia que procuro até hoje. Admiro o chapéu de sol de minha noite, lembrando os olhares abraçados de nossas vozes actantes, cúmplices amantes. Nunca mais carreguei tamanha leveza no coração e muito embora ainda me sirva dos seus encantos, dela não me embriago, porque o porre não tem remédio. Fica apenas o sonho que não termina a me levar cada vez mais próximo dela. Conheci agora a pouco a filha da caiçara – a própria mãe de tão parecida – de coração tão grande, que atendeu meu desejo. Entregou a mim, de joelhos, o endereço da mãe num pedacinho de papel. Foi nesse instante que acordei para pegar meu salvo conduto. Demorando a sair da cama – quis gravar tudo – tentei evitar o desvanecimento da procurada mensagem. Atônito, não consegui ler nada, toda a sorte perdida nas dobras dos meus fracassos. Procurava minha caiçara dormindo, sem saber como. Agora acordado procurava saídas em espaços e tempos imaginários.

Quatro e cinquenta e seis. Sentei na cama, com saudade da minha nova amiga, tendo certeza de que além do sonho, vivia o pior pesadelo. Sentado, olhei para o lado e vi minha mulher e meu filho dormindo juntos, placidamente. Longamente observei aquela cena temendo pela nossa sorte. Desviei o olhar em direção ao banheiro. Ao urinar pude ver dois maiôs coloridos jogados no tampo da pia, outro seco desbotado no cabide atrás da porta. Evitando pisar em pilhas

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de chinelinhos de praia, descalço me arrastei até a pequena saleta carnavalesca. A visão exterior do quarto a partir da copa colombina era de cinzas, já sem lanças nem confetes guardando lembranças de inúmeras noites mal dormidas. Pesadêlas madrugadas. Abri a porta da saída e do pequeno alpendre, podia avistar Vênus no poente que me iluminava sem piscar, trazendo bênçãos celestes. Ganhando um vento quente no peito, virei um copo d’água de lembranças cansadas, afogando-as no inconsciente. Na bancada da copa, ao lado da pia – iluminada pelo passado –, pego um celular cor de rosa, daquela que dorme tranquila, onde posso ler – desconcertado – cinco e vinte e um.

Mas o que li não teve tanta importância quanto o que revi, voltando devagar ao quarto, incomodado. E o que pude rever foi a imagem da minha atual mulher, com meu filho mais novo, que se bastam. Ali no quarto e no celular cor de rosa, nem visualizei as expressões da família, pois o que pesava era a minha falta que bem me dói. A contundência dessa dor me leva a registrar em forma de ficção, a busca onírica do amor, ausente na imagem eletrônica do celular rosa que mudo egoísta e sem representatividade, definitivamente, não me inclui. Depois de tantos anos, não mais consegui acreditar em outro amor sincero. O velho carnaval solitário, as ruas, as janelas e as cortinas de hoje são tão insípidas tal qual chalet de ocasião, como segundos ou terceiros casamentos. Possa ter quanta coisa boa nessa vida atual – apesar do muito sexo fervoroso e tudo mais que puder elencar –, nada permitirá que eu (aquele rapaz da janela) possa sentir tal completude, tamanha inclusão. Tão amado fora, nunca mais. “Braços que abertos fechados, se adiantam atrasados”, foi o que ela me disse. Morri.

Essa frase também foi deixada num livro, como dedicatória ao me presentear com intenso brilho nos olhos. Voltávamos da faculdade e toda a gente do ônibus elétrico nos acompanhava. Ouviram todos aquela frase, que ela recitou bravamente! Testemunhas. Posso me lembrar do que senti naquele momento, dizendo a ela que aquela mensagem não tinha nada a ver conosco. “Papillon” no lixo!, foi o fim do livro que ela me deu anos depois... Aconteceu! Por tudo que não mais quisesse, aconteceu! Premonição desconcertante? Antes de descer no ponto ela me garantiu que tudo podia acontecer, fosse uma grande indecisão – um momento afogado –, duas vidas jogadas no lixo. Meses depois a deixei, simples assim. Assim. Depois, o arrependimento. Daí em diante vivi uma procura incansável, sempre vã, na qual Linya nunca mais quis me ouvir e não mais me incluiu em sua vida. Morena de curvas caiçaras, praianas, de gestos inesquecíveis. Sua pronúncia portuguesa, africana de além mar, ainda fala em meus ouvidos, quanto volto a passear de braços na cintura que ondeia. Seus olhos encantam, molham, fazendo espuma no coração.

Cinco e quarenta e três. Assim, desta vez, encontrei um caminho. Nada mais lembro do sonho, nem de como

contei minha história ao casal receptivo recitando o nome do meu amor por inteiro, Linya P.Coutinho. Confirmei de onde ela e seus pais tinham vindo, de Angola, fugidos da revolução. A moça acompanhada do mudo namorado, se comportava como sua mãe. Quando pronunciei aquele nome inteiro, o sorriso dela denunciou e tive certeza de que tudo era verdade. Aquele sorriso iluminado acendia meu coração, quase a rever meu amor a descer do elétrico na cidade de Santos. Parecia-me que aquela menina sabia o que tinha sido a minha vida inteira. Sabia também de nosso livro, da liberdade de “Papillon” e de minha prisão perpétua. Ela sabia tudo de saudades. Aquele sorriso conhecido escreveu num pedaço de papel palavras que ainda hoje fazem sentido. Morri de contentamento, perguntando se Linya estava bem.

Acordado estou a escrever estas reminiscências que talvez coubessem muito melhor num poema. A prosa em si pode explicar, mas não pode traduzir tamanha intensidade nem

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contabilizar tamanhos buracos que trago no estômago, no coração e na minha cabeça dura. Assim sou um homem furado, que vaza a cada dia tal qual criança a querer que repitam uma história sem parar. A loucura em querer ouvir de novo o mesmo tom de uma voz querida ou sentir mais uma vez o mesmo calor de um abraço tão próprio, tão dela, é coisa muito triste...

O olhar que molha e espuma, a cintura que ondeia; a completude. A sensação de nunca mais ter sido tão bem abraçado é algo que não se pode contar, somente dá para cantar ou então chorar em segundas e terceiras tentativas. Imagine em quartos dos quintos casamentos: é um inferno não me sentir amado. Aquele amor que pedi ao grande universo, em criança, não se repete e está perdido, pois “braços que abertos fechados se adiantam atrasados”. Olhos fechados enganados que em vão, se entendem atrasados. Mãos soltas vacilantes, braços que sem rumo – caídos –, partem corações perdidos.

Duro reconhecer anos depois o vazio da vida em uma frase premonitória. Decepcionante enxergar o todo perdido na imagem de um celular, numa noite mal digerida. Choro sempre de novo o livro no lixo que não leio mais. Triste procurar nada mais achar e quase desistir com um simples ponto final. Mas as horas já não são mais as mesmas, o espaço já se transformou e o sol – que não é aquele mesmo dourado da minha praia –, chegou batendo na bancada desta Copa. Olho lá fora de olhos esbugalhados e não vejo mais Vênus de tão claro vai o dia.

Uma leve brisa movimenta as cortinas e me faz querer correr para a cama já louco de tristeza, de sono e de frio. Volto ao celular na bancada e leio as horas, sem ver imagem nenhuma. Mas vejo o contexto do meu coração jogado fora, antes de me deitar na cama de meu filho

Cinco e cinquenta e cinco Mário Aviscaio* é um heterônimo criado por Fernando Chiavassa. Fernando fez cursos livres de literatura no Museu Lasar Segall e participou do Curso Livre de Preparação do Escritor (Clipe), na Casa das Rosas. Escreve poemas, crônicas e ensaios, enquanto seu heterônimo, Mário Aviscaio, trata da ficção. O que não pode escrever, Fernando expressa através da pintura e da ilustração. Mário escreve pintando enquanto Fernando pinta escrevendo. Os textos do Fernando e do Mário, dentre cartas, crônicas, artigos e contos, podem ser encontrados nas suas páginas do Facebook e nos sites academia.edu e scribd (nos álbuns de fotos do facebook, há pinturas e ilustrações, além dos textos). [email protected] https://unisantos.academia.edu/fernandochiavassa http://pt.scribd.com/fernando_chiavassa