serviÇo social em tempos de barbÁrie: desafios ético ... · pauperismo, observam-se os efeitos...

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SERVIÇO SOCIAL EM TEMPOS DE BARBÁRIE: desafios ético-políticos da profissão Alison Carlos J. de Freitas 1 Bárbara da Rocha Figueiredo Chagas 2 Cristiane Lima dos Santos 3 Horácio Leite de Souza Neto 4 Resumo: O presente artigo é fruto de uma reflexão teórica, aborda os principais desafios ético-políticos postos ao conjunto da classe trabalhadora e especialmente ao Serviço Social e seu projeto profissional. Dado os duros ataques sofridos ao seu projeto de formação profissional e a realidade do mercado de trabalho profissional, considera-se a atual conjuntura econômica e política do país que favorece a reatualização do conservadorismo. Palavras-Chave: Serviço Social. Projeto ético-político. Conservadorismo. Abstract: This article is the outcome of a theoretical reflection, it addresses the main ethical-political challenges faced by the entire working class, with emphasis on the Social Service and its professional project. Once considered the harsh attacks against Social Service's vocational training project, as well as the current situation of the job market, its pointed out that the present Brazilian economic and political conjucture tends to favor the update of conservatism. Keywords: Social Work. Ethical-political Project. Conservatism. 1 Graduando em Serviço Social na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Monitor da disciplina Ética Profissional em Serviço Social. E-mail: [email protected]. 2 Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Mestre em Serviço Social. E-mail: [email protected]. 3 Graduanda em Serviço Social na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Monitora da disciplina Ética Profissional em Serviço Social. E-mail: [email protected]. 4 Graduando em Serviço Social na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Monitor da disciplina Ética Profissional em Serviço Social. E-mail: [email protected].

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SERVIÇO SOCIAL EM TEMPOS DE BARBÁRIE: desafios ético-políticos da profissão

Alison Carlos J. de Freitas1

Bárbara da Rocha Figueiredo Chagas2

Cristiane Lima dos Santos3

Horácio Leite de Souza Neto4

Resumo: O presente artigo é fruto de uma reflexão teórica, aborda os principais desafios ético-políticos postos ao conjunto da classe trabalhadora e especialmente ao Serviço Social e seu projeto profissional. Dado os duros ataques sofridos ao seu projeto de formação profissional e a realidade do mercado de trabalho profissional, considera-se a atual conjuntura econômica e política do país que favorece a reatualização do conservadorismo. Palavras-Chave: Serviço Social. Projeto ético-político. Conservadorismo. Abstract: This article is the outcome of a theoretical reflection, it addresses the main ethical-political challenges faced by the entire working class, with emphasis on the Social Service and its professional project. Once considered the harsh attacks against Social Service's vocational training project, as well as the current situation of the job market, its pointed out that the present Brazilian economic and political conjucture tends to favor the update of conservatism. Keywords: Social Work. Ethical-political Project. Conservatism.

1 Graduando em Serviço Social na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Monitor da disciplina Ética Profissional em Serviço Social. E-mail: [email protected]. 2 Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Mestre em Serviço Social. E-mail: [email protected]. 3 Graduanda em Serviço Social na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Monitora da disciplina Ética Profissional em Serviço Social. E-mail: [email protected]. 4 Graduando em Serviço Social na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Monitor da disciplina Ética Profissional em Serviço Social. E-mail: [email protected].

1. INTRODUÇÃO

Passados quase dez anos da eclosão da crise econômica de 2008, nota-se o

agravamento da barbárie capitalista. Como parte do processo de recrudescimento do

pauperismo, observam-se os efeitos políticos, sociais e ideológicos da miséria, que é solo

fértil para o crescimento do conservadorismo e consequentemente a classe trabalhadora

sofre com duros retrocessos.

Há muito se sabe que as crises capitalistas são cíclicas e constitutivas desse modo

de produção5. Ademais, há algumas décadas a burguesia esbarra nas possibilidades de

retomar patamares de crescimento estáveis, vivendo uma ‘onda’ prolongada de recessão

com crescimentos pontuais e efêmeros. A crise de 2008 revelou, mundialmente, o

aprofundamento da decadência burguesa que, desde a crise de superprodução da década

de 70 do século XX tem dificuldades em encontrar saídas para a crise – apesar de todos os

ajustes econômicos e políticos desde então.

A realidade brasileira segue o ritmo mundial, a despeito das particularidades da

economia de capitalismo tardio. Temos assistido, ano após ano, governo após governo, a

mercantilização das políticas públicas e a desresponsabilização do Estado no trato das

políticas sociais, principalmente no que tange a serviços de previdência, saúde e educação

que estão sendo cada vez mais colocados sob a ótica do Capital e da iniciativa privada.

O mais recente aprofundamento da crise econômica brasileira, que vem ocorrendo

especialmente a partir da segunda década do século XXI, desdobra-se em pacotes de

ajustes econômicos cada vez mais austeros para a classe que vive do trabalho e n’uma

profunda crise política que abala as estruturas do poder no país. Todos esses elementos

abrem diversos desafios de diferentes matizes – econômicas, sociais, políticas, culturais;

todas elas refratárias de uma mesma condição: o capitalismo segue, década após década,

arrastando a humanidade para o aprofundamento da desumanidade.

Por conseguinte, o presente texto pretende abordar, no marco da realidade

contemporânea, a particularidade dos desafios éticos postos ao Serviço Social, em meio às

mudanças ocorridas no mundo do trabalho e na organização do ensino superior brasileiro,

especialmente no que diz respeito à formação em Serviço Social e o exercício profissional

dos assistentes sociais, que repõem e adensam, diuturnamente, os desafios de outrora.

5 Quanto a esta temática, a literatura crítica goza de ampla bibliografia. Sugere-se cf. duas obras de Ernest Mandel: “O capitalismo tardio” (1985) e “A crise do capital” (1990).

2. AS RAÍZES DO TEMPO PRESENTE, OU O “MUSEU DE GRANDES

NOVIDADES”6

O ano de 2017 começou emblematicamente, mostrando que seria continuidade – e

aprofundamento – do que foi 2016. As rebeliões em presídios por todo o país, escancarando

a brutalidade do sistema carcerário brasileiro, fez notar que a virada do calendário em nada

resolveu as contradições sociais existentes. A primeira ocorreu dia 1º de janeiro, no

Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus e durou cerca de 17 horas, deixando

quase 60 mortos e 200 foragidos. A partir dessa rebelião, iniciaram-se outras inúmeras pelo

Brasil, que contabilizaram centenas de mortos, feridos e foragidos, ao passo que os

governos e a justiça brasileira respondiam – quando sim – com ainda mais violência.

Desconsideradas as causas e efeitos particulares desse episódio, o que se viu na

mídia foi o completo descaso com a vida – majoritariamente de pobres e negros, cabe dizer

– num descompasso com a importância dada aos detalhes do “drama” vivido pelo

multimilionário Eike Batista, então preso por corrupção. Esse episódio não traz em si,

grande originalidade.

No capitalismo, especialmente o ‘capitalismo à brasileira’, reina o conservadorismo

indisfarçável em que cada vida tem uma importância diferente a depender do gênero, raça,

orientação sexual, mas, sobretudo, da classe social a que pertence. O ditado popular

“bandido bom, é bandido morto”, vale apenas para os “bandidos” da classe trabalhadora,

que superlotam os presídios, enquanto marchamos cotidianamente para o aprofundamento

da violência sem perspectiva de melhoria.

Os problemas que percorremos em 2017, entretanto, têm raízes históricas. Julga-se

necessário percorrer, ainda que brevemente, nos elementos da conjuntura na qual se

conformaram as condições para o tempo presente. Resguardando as particularidades

brasileiras, é necessário situar as tendências mundiais desde então, demarcando seus

reflexos para um país de capitalismo tardio, que não viveu um Estado de Bem-Estar Social

nos moldes europeus, mas possui as tendências da economia mundial e apresenta as

saídas encontradas pela burguesia para o enfrentamento de suas crises. A realidade aberta

no país desde os anos 1990, que se prolonga aos dias atuais, promoveu emprazamentos

cada dia mais complexos ao Serviço Social. Como afirma Mota (2003):

[...] penso que a chave para desvendar as tendências do Serviço Social nesse início de milênio é o conhecimento da própria realidade, posto que nela estão presentes os

6 Faz-se referência à belíssima música de Cazuza, “O tempo não para”, que neste trecho diz sobre “o futuro repetir o passado”, na perspectiva de ilustrar o caráter inexorável do capital em produzir duros ataques aos trabalhadores em cada uma de suas crises e que, apesar de todas as particularidades de cada tempo, essa é a tendência vivida neste modo de produção desde a crise de 1847.

processos sociais sobre os quais a profissão intervém. [...] Estou defendendo a ideia de que as tendências da profissão dependem da realidade objetiva e da capacidade que temos de decodificá-la criticamente [...] (p. 11).

No cenário mundial, podemos desvendar as raízes da conjuntura atual no

esgotamento dos “anos de ouro” do capitalismo, já no final da década de 1960. A redução

nas taxas de crescimento, a incapacidade de absorção de mão de obra para garantia de

pleno emprego, o endividamento público e privado, bem como a alta dos preços do petróleo,

levam a uma nova crise do sistema econômico. Esgota-se a saída apresentada pelo

Keynesianismo, esgota-se o ciclo de crescimento vivido desde o segundo pós-guerra.

Segundo Antunes (1999), a crise de 1970 pode ser compreendida através de uma

série de determinações, dentre as quais se destacam: a) queda da taxa de lucro, que levou

ao esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção; b) hipertrofia do

capital financeiro; c) maior concentração de capitais graças às fusões entre empresas; d) a

crise do Welfare State ou do “Estado de bem-estar social”. Para Behring e Boschetti (2008,

p. 116), “o que ocorreu em 1974-1975, na verdade, foi uma crise clássica de

superprodução”. A partir desta crise, as últimas décadas serão marcadas pelo

aprofundamento da barbárie capitalista.

Assim, o esforço do capital será – novamente – achar saídas que evitem a queda na

taxa de lucros, novas formas de sair da crise. A tônica do período seguinte se expressará

em dois eixos fundamentais: na reestruturação produtiva e na contrarreforma do Estado. A

reestruturação produtiva se configura de forma destrutiva não apenas na redução ou

destruição dos direitos adquiridos pela classe trabalhadora em suas décadas de luta, mas

também porque tem conseguido fragmentá-la cada vez mais, implicando em sua

desorganização política perante as iniciativas econômicas e ideológicas do capital.

Como resposta à nova crise econômica surge das mãos do economista

estadunidense Milton Friedman (1912-2006) o neoliberalismo. O neoliberalismo propunha a

redução da intervenção estatal e a liberalização da economia para o mercado atuar,

permitindo sua auto-regulação. Nesse período o capitalismo irá se apropriar do termo

reforma que até então era um conceito progressivo, representando conquistas das lutas dos

trabalhadores e o transformará no inverso. Ou seja, as reformas, a partir desse período,

apresentar-se-ão, na verdade, como contrarreformas.

A crise vivida pelo endividamento público alimentou o solo sobre o qual os

neoliberais puderam avançar. Para eles, a crise era resultado “do poder nefasto e excessivo

dos sindicatos e do movimento operário [...] e do aumento dos gastos sociais do Estado”

(Behring e Boschetti, 2008, p. 126). Assim, para estabilização da economia era necessário,

entre outras coisas, a contenção dos gastos sociais, ou seja, a retração do papel do Estado,

especialmente em relação à economia e às políticas sociais. E isso, notoriamente, afetará o

Serviço Social.

[...] contraiu a emissão monetária, elevou as taxas de juros, baixou os impostos sobre altos rendimentos, aboliu o controle sobre os fluxos financeiros, criou níveis de desemprego maciço, enfraqueceu as greves, aprovou legislações anti-sindicais, realizou cortes nos gastos sociais e instituiu um amplo programa de privatização (Behring e Boschetti, 2008, p. 126).

A aplicação dessas medidas, nos países centrais do capitalismo, não foi suficiente

para resolver a crise do capital, nem evitar a recessão, como se propagava. Os resultados

das medidas produziram apenas efeitos destrutivos sobre os direitos sociais e as condições

de vida da classe trabalhadora. O século XXI, em especial, demarca profundas mudanças

nas políticas sociais nos países centrais, direcionando-as para sua decadência. No Brasil, o

período inicial da crise internacional configura-se ainda um período de crescimento da

economia brasileira, sob o Regime Militar, conhecido como “milagre econômico”.

Desenvolveu-se um processo contraditório no que diz respeito às políticas sociais.

No entanto, a força das lutas sociais produziu uma forte disputa de hegemonia na

elaboração da Constituição, que fez com que em uma conjuntura tão adversa fosse possível

conquistar avanços e ainda que com todas as limitações as lutas sociais começam a refluir.

A esperança depositada sobre as eleições de 1989, onde polarizaram Lula e Collor, bem

como a entrada mais contundente do Brasil nos processos de reestruturação produtiva, sob

a ideologia neoliberal, levaram a uma forte contraposição ao Estado, o que dificultou a real

implementação da Constituição de 1988. Na primeira década do século XXI, sob os

Governos de Lula da Silva, ocorrem mudanças no campo da educação superior – com forte

impacto na formação profissional de assistentes sociais – e, também, no campo das

políticas sociais, sobretudo a política de assistência social, que afeta diretamente o exercício

profissional da categoria. É sobre isso que trataremos a seguir.

3. PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL E A LUTA CONTRA O

CONSERVADORISMO

A direção teórico-metodológica hegemônica do Serviço Social brasileiro passou por

inúmeras mudanças ao longo da história da profissão. Nota-se, entretanto, durante as

primeiras décadas de existência da profissão, um marcante traço comum: o compromisso

sócio-político com o conservadorismo (Iamamoto, 2011). Que foi a base da construção de

um fazer profissional historicamente comprometido com o projeto de sociedade das classes

dominantes, com uma função intelectual colaboracionista com a concepção de mundo

burguesa (Pereira, 2007, p. 223) na medida em que nega a existência das classes sociais e

as expressões da “questão social” 7 como consequências inerentes ao antagonismo entre

capital e trabalho.

A trajetória intelectual da profissão é mediada pela conjuntura das origens da

profissão. Ela surge com um propósito conservador, em um momento sócio-histórico

complexo, afetado pela luta de classes e pelo objetivo da burguesia, Estado e Igreja de

doutrinação das massas operárias que lutavam por direitos no processo de industrialização

vivido pelo país neste momento. Foi somente nos anos 1970, após a Reforma Universitária

de 1968 e a inserção do Serviço Social em ambientes universitários e, notadamente, com a

conjuntura de lutas e questionamentos do regime militar é que sinalizou o início de um

período de profundos questionamentos quanto à direção social do Serviço Social (Pereira,

2007, p. 223).

O processo de ruptura com o conservadorismo na profissão se gesta e se constrói

em meio à reorganização política e sindical de toda a classe trabalhadora, e tem estreito

laço com essa conjuntura e com os demais sujeitos políticos do período. Este movimento de

ruptura se expressará, mais tarde, no que se convencionou chamar de Projeto Ético-Político

do Serviço Social (PEPSS). O PEPSS compreende uma síntese de elementos que formam

“uma imagem ideal da profissão, os valores que a legitimam, sua função social e seus

objetivos, conhecimentos teóricos, saberes interventivos, normas, práticas, etc.” (NETTO,

2006, p. 07).

Esta categoria, embora hegemonicamente, tenha construído um projeto crítico e

elaborado mecanismos que marcham no sentido de tornar possíveis posturas coerentes

com tal projeto, enfrenta, cotidianamente, um processo que é permeado por contradições,

já, que “a afirmação e consolidação de um projeto profissional em seu próprio interior não

suprimem as divergências e contradições” (Netto, 2006, p. 05). Contradições estas, postas e

repostas diuturnamente pela sociabilidade do capital em permanente aprofundamento da

barbárie social. É no marco destes desafios que se desenvolvem as reflexões a seguir,

acerca da formação e do exercício profissional dos assistentes sociais no século XXI.

3.1. Contrarreforma da educação superior e projeto de formação profissional dos

assistentes sociais

A expansão do ensino superior brasileiro dos últimos anos tem sido parte de um

projeto de contrarreforma do Estado. Orientada pelos organismos financeiros internacionais,

como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM), é parte do projeto

7 Entende-se a “questão social”, sob uma perspectiva histórico-crítica, como a contradição e tensão entre capital e trabalho, d’onde se origina o pauperismo e todas as suas expressões.

neoliberal de transformação dos direitos conquistados nas décadas anteriores em

mercadorias. Desde os anos 1990 a Universidade brasileira tem passado por uma profunda

crise “gerada pelas alterações na configuração da luta de classes e da dominação

imperialista que exigia a privatização de setores estratégicos do país, entre esses, a

educação” (Lima, 2013, p. 07).

Paralelo ao processo de sucateamento das Universidades Federais, através de uma

expansão sem o devido investimento, o orçamento público foi cada vez mais destinado para

as Instituições de Ensino Superior (IES) privadas. O principal projeto dos governos para a

expansão do Ensino Superior, o ProUni, se deu através do incentivo ao mercado

educacional, de acordo com as orientações do Banco Mundial. Foi este o projeto

responsável por fortalecer as IES privadas que passavam uma enorme crise e que fez tornar

a educação um dos setores mais lucrativos do mercado.

Outro marco na expansão da educação superior brasileira está relacionado ao

decreto que regulamenta o Ensino à Distância no Brasil. Esta modalidade de ensino,

extremamente lucrativa pelo seu baixo custo, tornou-se setor privilegiado de investimento

nos últimos anos e segue um ritmo acelerado de crescimento. Questiona-se, entretanto, a

qualidade dessa modalidade, diante da ausência de efetiva relação pedagógica e de

participação na vida acadêmica, ausência do fundamental tripé ensino-pesquisa-extensão e

a inserção em movimentos sociais, além das irregularidades que permeiam a EAD8.

Em suma, a contrarreforma da educação implementada pelos últimos governos

brasileiros tem como marca a expansão do acesso ao ensino superior através da ampliação

do setor privado, do empresariamento da educação e da certificação em larga escala, em

um aumento quantitativo do acesso ao ensino superior pela via do rebaixamento da

qualidade da formação acadêmica.

De forma diametralmente oposta aos rumos do ensino superior brasileiro, encontra-

se o projeto de formação profissional do Serviço Social. O perfil profissional de assistentes

sociais construído pelas Diretrizes Curriculares da ABEPSS, coerente com o Projeto Ético-

Político do Serviço Social, pretende uma formação profissional generalista, com ênfase em

um rigoroso aprofundamento teórico, histórico e metodológico. Estes princípios buscam

tornar o assistente social sujeito competente para compreensão crítica da realidade social

na qual está inserido, bem como das políticas públicas e de seus usuários, em suas

determinações sócio-históricas e complexidade.

8 O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) produziu dois importantes materiais que tomam nota de inúmeras irregularidades no Ensino à Distância. São duas cartilhas intituladas “Sobre a incompatibilidade entre graduação à distância e Serviço Social”, volumes 01 e 02. Ambas disponíveis em: www.cfess.org.br.

O processo de desqualificação da formação universitária, afeta a formação em

Serviço Social e ameaça frontalmente o projeto previsto nas Diretrizes Curriculares. Rebaixa

a qualidade da formação em um tempo histórico cada vez mais complexo, que requisita dos

profissionais maior domínio da teoria crítica para seu entendimento e a elaboração de

estratégias profissionais coerentes com o Projeto Ético-Político. Como afirma Mota (2003):

Nesse sentido, o rebaixamento da formação em Serviço Social, sobretudo pela via do Ensino à Distância, que se multiplica em rápida velocidade e é hoje responsável pela formação de um enorme contingente profissional, representa uma contradição ao Projeto Ético-Político do Serviço Social e à cultura intelectual da profissão. Na medida em que não é garantida uma formação crítica, abrem-se lacunas na compreensão da sociabilidade burguesa e tende a reforçar uma visão que remete ao conservadorismo.

Os números são preocupantes: segundo o Censo da Educação de 2012 (INEP),

considerando-se os cursos à distância e presenciais, as IES privadas dominam no número

de matrículas. Segundo os dados, 79,8% dos estudantes de Serviço Social são estudantes

de IES privadas e 20,2% de públicas. Tratando-se da modalidade de ensino, o EAD é

responsável por 53,6% das matrículas em Serviço Social e 55,3% dos formandos do curso

em 2012. Ou seja, o número de formandos pelo ensino à distância por ano é superior ao

número de formandos pelo ensino presencial – incluindo o setor presencial privado. Ou seja,

de todos os formandos em Serviço Social no ano de 2012, apenas 9,2% são da educação

pública e presencial.

Por conseguinte, constata-se que o perfil de formação profissional pretendido pelo

Serviço Social tem sido cada dia mais ameaçado pelo processo de contrarreforma da

educação superior. Não por acaso, este tem sido tema de estudos da categoria9 e alvo de

debate das entidades representativas do Serviço Social. Nesse sentido, a contrarreforma do

ensino superior afeta diretamente o projeto de formação profissional preconizado pelas

Diretrizes Curriculares da ABEPSS.

Em uma conjuntura adversa da que foi construído o projeto profissional crítico, torna-

se cada vez mais imprescindível uma formação profissional capaz de tornar o assistente

social consciente de seu papel na sociedade de classes, para que ele possa, no seu fazer

profissional, orientar-se por um direcionamento teórico-metodológico superando “as ilusões

de um fazer profissional que paira “acima” da história” (Iamamoto, 2011, p. 37). A fragilidade

da consciência crítica favorece a reatualização do conservadorismo já conhecido do Serviço

Social.

9 Dentre os quais destacamos as inúmeras publicações de PEREIRA, Larissa Dahmer e LIMA, Kátia.

Acrescente-se, porquanto, aos desafios existentes na formação profissional, aqueles

que reconfiguram o mercado e as condições de trabalho do Serviço Social e estará

dimensionado o tamanho dos desafios presentes. É disso que se trata o item a seguir.

3.2. Políticas Sociais e Serviço Social: desafios contemporâneos ao exercício

profissional

A precarização das condições de trabalho a que estão submetidos os assistentes

sociais, não se explica apenas por uma particularidade da profissão. Os assistentes sociais

são uma categoria profissional majoritariamente contratados pelo Estado, e suas condições

de trabalho devem ser compreendidas através da precarização em um sentido mais amplo.

No Serviço Social, uma mediação para que a precarização do trabalho seja entendida é a

política social, pois são estas que determinam, precipuamente, as funções e configurações

do exercício profissional. O trabalho do assistente social é gradativamente voltado para a

execução destas políticas sociais, e, tendo sido estas duramente atacadas desde o advento

do neoliberalismo, os rebatimentos destes ataques são diretamente sentidos na profissão.

Em meio ao quadro geral de precarização das condições de vida e trabalho da

população, e, ainda, em meio à privatização e precarização das políticas e serviços públicos,

surge a tendência à focalização da pobreza e seu enfrentamento por meio de projetos

assistencialistas e restritivos. No Brasil, esta tendência se desdobra por meio da intensiva

expansão da política de assistência social, no bojo da contrarreforma da Seguridade Social

brasileira, em que se observam os caminhos da precarização e privatização nas políticas de

Saúde e Previdência. Assim, a assistência social assume centralidade no trato das

contradições sociais e, dentro desta política social, assumem o protagonismo os programas

de transferência de renda, donde se destaca o Programa Bolsa Família (PBF), que ocupa

quase todo o orçamento da assistência social.

Em um cenário de desestruturação das políticas sociais e de retração no papel do

Estado, bem como de profundos ataques aos direitos trabalhistas e precarização geral das

condições de vida e trabalho da população, a assistência social se vê cada vez mais

reduzida a uma política de compensação da pobreza, com programas de transferência de

renda que em nada promovem à autonomia dos sujeitos (referente à promoção da própria

renda). Essa expansão no campo da assistência social, através de programas específicos

de combate à pobreza, segundo Netto (2009, pg. 38-39) “opera a efetiva redução do Serviço

Social à profissão da assistência”, o que se torna ameaçador ao projeto profissional crítico já

que muitos setores da categoria absorvem a perspectiva das classes dominantes sobre a

assistência social como solução para combater a pobreza.

Outro fator importante é que com a descentralização das políticas sociais no Brasil e

a transferência da execução da política de assistência social para a esfera dos Governos

Municipais, a mão-de-obra do assistente social passa a ser, ainda mais, absorvida pela

esfera municipal, que historicamente não oferece mínimas condições de trabalho e

remuneração aos profissionais. Destarte, percebe-se uma intrínseca relação entre expansão

dos cursos de graduação em Serviço Social e a expansão do mercado de trabalho. Dado

que ambos os fenômenos ocorrem paralelamente e produzem efeitos semelhantes: a

reconfiguração do perfil profissional.

Concordamos com Trindade (2015, p. 144) de que essa “simetria cronológica de tais

fenômenos não parece uma mera coincidência”. Coloca-se, nesse cenário, um processo de

reconfiguração do perfil profissional do assistente social, contrário à perspectiva idealizada

nos marcos do projeto ético-político do Serviço Social. O que se encontra em andamento

antagoniza com a tradição teórica da profissão, sua cultura intelectual e seu legado histórico

no campo da criticidade.

4. CONCLUSÃO

Iniciamos a presente reflexão abordando traços atuais da crise do capital em curso.

Ao situar o Serviço Social em meio a esta conjuntura, assinalamos as características

predominantes do âmbito da formação e exercício profissional desta categoria,

considerando que essas características favorecem à reatualização do conservadorismo

profissional.

Ao pensarmos, então, em conservadorismo profissional, é necessário relacioná-lo

com a atual situação econômica, política, social e ideológica da classe trabalhadora em

geral. O cenário atual se apresenta com um Presidente da República que representa o que

há de mais atrasado ideológica e politicamente no país. Estamos em meio à barbárie social,

pois os ataques aos direitos trabalhistas e sociais são inúmeros. Mesmo com a manutenção

dos programas de transferência de renda, espera-se que nesse ano, segundo o Banco

Mundial, o Brasil tenha quase 4 milhões de “novos pobres”: trabalhadores que, devido ao

desemprego, entrarão para o segmento populacional que vive com renda per capita de até

R$ 140,00 mensais.

Em se tratando de desemprego, segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de

Domicílios (PNAD), divulgada pelo IBGE em fevereiro do corrente ano, o percentual de

pessoas desocupadas alcançou 12,9 milhões de pessoas, um aumento de 34,3% em

relação ao mesmo período do ano anterior. Este índice é o maior desde que começou a

contagem, em 2012. E a previsão da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é que

este número subirá no decorrer do ano.

Todos esses elementos levam ao inegável aumento do conservadorismo, por meio

da exacerbação do individualismo, da falta de solidariedade, dos (des) valores. A ausência

de perspectiva de vida, sobretudo para a juventude – principal atingida pelo desemprego –

relaciona-se com um aumento brutal da violência e da cultura do medo. Temos como

exemplos, dois casos recentes que representa o dizemos: O primeiro foi a morte da travesti

Dandara, de 42 anos, por meio de tortura e apedrejamento em Fortaleza (CE). No outro lado

do país, em São Paulo, um adolescente negro de 13 anos morreu após ser agredido por um

segurança e um gerente de uma lanchonete. Seu crime: pedir por comida. A realidade é

assustadora, mas há, entretanto, esperança. Outros elementos dessa mesma realidade –

dinâmica e contraditória – nos fazem crer que o projeto profissional crítico do Serviço Social

continua permeado por importância e sentido.

Em uma ‘anticelebração’ à eleição do conservador Donald Trump à Presidência dos

Estados Unidos, meio milhão de mulheres saíram às ruas no país – outras milhões no

mundo – em defesa dos diretos das mulheres e minorias. Essa marcha histórica na América

Central foi inspirada na latino-americana Argentina, que desde o final do ano de 2016 tem

protagonizado importantes greves femininas contra o feminicídio, que têm servido de

exemplo para movimentos feministas e de trabalhadores em todo o mundo.

No momento em que este artigo é escrito, a mídia brasileira reporta notícias de

paralisações que tomam todo o Brasil no dia 15 março de 2017, com paralisação de

centenas de categorias, como há muito não acontecia no país. A luta é contra o governo do

Presidente Michel Temer e sua proposta de (contra)reforma da previdência, que pretende

aumentar para 49 anos o tempo mínimo de contribuição e 65 anos a idade mínima para

aposentadoria integral, entre outras afrontas àqueles que dependem e defendem a

previdência pública.

Nessa perspectiva, acredita-se, como assinala Barroco (2011, p. 215) que “se temos

uma herança conservadora, temos também uma história de ruptura” e que, o patrimônio

teórico, político e ético que dá sustentação ao projeto profissional faz parte de uma herança

que “pertence à humanidade e que nós resgatamos dos movimentos revolucionários, das

lutas democráticas, do marxismo, do socialismo, e incorporamos ao nosso projeto”. Assim

sendo, cabe considerar, desta realidade, além dos elementos regressivos, aqueles que

assinalam a ‘existência da resistência’, por assim dizer. Os elementos progressivos da luta

de classes. Ou seja, as lutas democráticas, em defesa dos direitos sociais e das minorias,

que permanecem vivas. E é nelas que o Serviço Social precisa ancorar o sentido de seu

projeto profissional.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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