serviÇo social em tempos de barbÁrie: desafios ético ... · pauperismo, observam-se os efeitos...
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SERVIÇO SOCIAL EM TEMPOS DE BARBÁRIE: desafios ético-políticos da profissão
Alison Carlos J. de Freitas1
Bárbara da Rocha Figueiredo Chagas2
Cristiane Lima dos Santos3
Horácio Leite de Souza Neto4
Resumo: O presente artigo é fruto de uma reflexão teórica, aborda os principais desafios ético-políticos postos ao conjunto da classe trabalhadora e especialmente ao Serviço Social e seu projeto profissional. Dado os duros ataques sofridos ao seu projeto de formação profissional e a realidade do mercado de trabalho profissional, considera-se a atual conjuntura econômica e política do país que favorece a reatualização do conservadorismo. Palavras-Chave: Serviço Social. Projeto ético-político. Conservadorismo. Abstract: This article is the outcome of a theoretical reflection, it addresses the main ethical-political challenges faced by the entire working class, with emphasis on the Social Service and its professional project. Once considered the harsh attacks against Social Service's vocational training project, as well as the current situation of the job market, its pointed out that the present Brazilian economic and political conjucture tends to favor the update of conservatism. Keywords: Social Work. Ethical-political Project. Conservatism.
1 Graduando em Serviço Social na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Monitor da disciplina Ética Profissional em Serviço Social. E-mail: [email protected]. 2 Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Mestre em Serviço Social. E-mail: [email protected]. 3 Graduanda em Serviço Social na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Monitora da disciplina Ética Profissional em Serviço Social. E-mail: [email protected]. 4 Graduando em Serviço Social na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Monitor da disciplina Ética Profissional em Serviço Social. E-mail: [email protected].
1. INTRODUÇÃO
Passados quase dez anos da eclosão da crise econômica de 2008, nota-se o
agravamento da barbárie capitalista. Como parte do processo de recrudescimento do
pauperismo, observam-se os efeitos políticos, sociais e ideológicos da miséria, que é solo
fértil para o crescimento do conservadorismo e consequentemente a classe trabalhadora
sofre com duros retrocessos.
Há muito se sabe que as crises capitalistas são cíclicas e constitutivas desse modo
de produção5. Ademais, há algumas décadas a burguesia esbarra nas possibilidades de
retomar patamares de crescimento estáveis, vivendo uma ‘onda’ prolongada de recessão
com crescimentos pontuais e efêmeros. A crise de 2008 revelou, mundialmente, o
aprofundamento da decadência burguesa que, desde a crise de superprodução da década
de 70 do século XX tem dificuldades em encontrar saídas para a crise – apesar de todos os
ajustes econômicos e políticos desde então.
A realidade brasileira segue o ritmo mundial, a despeito das particularidades da
economia de capitalismo tardio. Temos assistido, ano após ano, governo após governo, a
mercantilização das políticas públicas e a desresponsabilização do Estado no trato das
políticas sociais, principalmente no que tange a serviços de previdência, saúde e educação
que estão sendo cada vez mais colocados sob a ótica do Capital e da iniciativa privada.
O mais recente aprofundamento da crise econômica brasileira, que vem ocorrendo
especialmente a partir da segunda década do século XXI, desdobra-se em pacotes de
ajustes econômicos cada vez mais austeros para a classe que vive do trabalho e n’uma
profunda crise política que abala as estruturas do poder no país. Todos esses elementos
abrem diversos desafios de diferentes matizes – econômicas, sociais, políticas, culturais;
todas elas refratárias de uma mesma condição: o capitalismo segue, década após década,
arrastando a humanidade para o aprofundamento da desumanidade.
Por conseguinte, o presente texto pretende abordar, no marco da realidade
contemporânea, a particularidade dos desafios éticos postos ao Serviço Social, em meio às
mudanças ocorridas no mundo do trabalho e na organização do ensino superior brasileiro,
especialmente no que diz respeito à formação em Serviço Social e o exercício profissional
dos assistentes sociais, que repõem e adensam, diuturnamente, os desafios de outrora.
5 Quanto a esta temática, a literatura crítica goza de ampla bibliografia. Sugere-se cf. duas obras de Ernest Mandel: “O capitalismo tardio” (1985) e “A crise do capital” (1990).
2. AS RAÍZES DO TEMPO PRESENTE, OU O “MUSEU DE GRANDES
NOVIDADES”6
O ano de 2017 começou emblematicamente, mostrando que seria continuidade – e
aprofundamento – do que foi 2016. As rebeliões em presídios por todo o país, escancarando
a brutalidade do sistema carcerário brasileiro, fez notar que a virada do calendário em nada
resolveu as contradições sociais existentes. A primeira ocorreu dia 1º de janeiro, no
Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus e durou cerca de 17 horas, deixando
quase 60 mortos e 200 foragidos. A partir dessa rebelião, iniciaram-se outras inúmeras pelo
Brasil, que contabilizaram centenas de mortos, feridos e foragidos, ao passo que os
governos e a justiça brasileira respondiam – quando sim – com ainda mais violência.
Desconsideradas as causas e efeitos particulares desse episódio, o que se viu na
mídia foi o completo descaso com a vida – majoritariamente de pobres e negros, cabe dizer
– num descompasso com a importância dada aos detalhes do “drama” vivido pelo
multimilionário Eike Batista, então preso por corrupção. Esse episódio não traz em si,
grande originalidade.
No capitalismo, especialmente o ‘capitalismo à brasileira’, reina o conservadorismo
indisfarçável em que cada vida tem uma importância diferente a depender do gênero, raça,
orientação sexual, mas, sobretudo, da classe social a que pertence. O ditado popular
“bandido bom, é bandido morto”, vale apenas para os “bandidos” da classe trabalhadora,
que superlotam os presídios, enquanto marchamos cotidianamente para o aprofundamento
da violência sem perspectiva de melhoria.
Os problemas que percorremos em 2017, entretanto, têm raízes históricas. Julga-se
necessário percorrer, ainda que brevemente, nos elementos da conjuntura na qual se
conformaram as condições para o tempo presente. Resguardando as particularidades
brasileiras, é necessário situar as tendências mundiais desde então, demarcando seus
reflexos para um país de capitalismo tardio, que não viveu um Estado de Bem-Estar Social
nos moldes europeus, mas possui as tendências da economia mundial e apresenta as
saídas encontradas pela burguesia para o enfrentamento de suas crises. A realidade aberta
no país desde os anos 1990, que se prolonga aos dias atuais, promoveu emprazamentos
cada dia mais complexos ao Serviço Social. Como afirma Mota (2003):
[...] penso que a chave para desvendar as tendências do Serviço Social nesse início de milênio é o conhecimento da própria realidade, posto que nela estão presentes os
6 Faz-se referência à belíssima música de Cazuza, “O tempo não para”, que neste trecho diz sobre “o futuro repetir o passado”, na perspectiva de ilustrar o caráter inexorável do capital em produzir duros ataques aos trabalhadores em cada uma de suas crises e que, apesar de todas as particularidades de cada tempo, essa é a tendência vivida neste modo de produção desde a crise de 1847.
processos sociais sobre os quais a profissão intervém. [...] Estou defendendo a ideia de que as tendências da profissão dependem da realidade objetiva e da capacidade que temos de decodificá-la criticamente [...] (p. 11).
No cenário mundial, podemos desvendar as raízes da conjuntura atual no
esgotamento dos “anos de ouro” do capitalismo, já no final da década de 1960. A redução
nas taxas de crescimento, a incapacidade de absorção de mão de obra para garantia de
pleno emprego, o endividamento público e privado, bem como a alta dos preços do petróleo,
levam a uma nova crise do sistema econômico. Esgota-se a saída apresentada pelo
Keynesianismo, esgota-se o ciclo de crescimento vivido desde o segundo pós-guerra.
Segundo Antunes (1999), a crise de 1970 pode ser compreendida através de uma
série de determinações, dentre as quais se destacam: a) queda da taxa de lucro, que levou
ao esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção; b) hipertrofia do
capital financeiro; c) maior concentração de capitais graças às fusões entre empresas; d) a
crise do Welfare State ou do “Estado de bem-estar social”. Para Behring e Boschetti (2008,
p. 116), “o que ocorreu em 1974-1975, na verdade, foi uma crise clássica de
superprodução”. A partir desta crise, as últimas décadas serão marcadas pelo
aprofundamento da barbárie capitalista.
Assim, o esforço do capital será – novamente – achar saídas que evitem a queda na
taxa de lucros, novas formas de sair da crise. A tônica do período seguinte se expressará
em dois eixos fundamentais: na reestruturação produtiva e na contrarreforma do Estado. A
reestruturação produtiva se configura de forma destrutiva não apenas na redução ou
destruição dos direitos adquiridos pela classe trabalhadora em suas décadas de luta, mas
também porque tem conseguido fragmentá-la cada vez mais, implicando em sua
desorganização política perante as iniciativas econômicas e ideológicas do capital.
Como resposta à nova crise econômica surge das mãos do economista
estadunidense Milton Friedman (1912-2006) o neoliberalismo. O neoliberalismo propunha a
redução da intervenção estatal e a liberalização da economia para o mercado atuar,
permitindo sua auto-regulação. Nesse período o capitalismo irá se apropriar do termo
reforma que até então era um conceito progressivo, representando conquistas das lutas dos
trabalhadores e o transformará no inverso. Ou seja, as reformas, a partir desse período,
apresentar-se-ão, na verdade, como contrarreformas.
A crise vivida pelo endividamento público alimentou o solo sobre o qual os
neoliberais puderam avançar. Para eles, a crise era resultado “do poder nefasto e excessivo
dos sindicatos e do movimento operário [...] e do aumento dos gastos sociais do Estado”
(Behring e Boschetti, 2008, p. 126). Assim, para estabilização da economia era necessário,
entre outras coisas, a contenção dos gastos sociais, ou seja, a retração do papel do Estado,
especialmente em relação à economia e às políticas sociais. E isso, notoriamente, afetará o
Serviço Social.
[...] contraiu a emissão monetária, elevou as taxas de juros, baixou os impostos sobre altos rendimentos, aboliu o controle sobre os fluxos financeiros, criou níveis de desemprego maciço, enfraqueceu as greves, aprovou legislações anti-sindicais, realizou cortes nos gastos sociais e instituiu um amplo programa de privatização (Behring e Boschetti, 2008, p. 126).
A aplicação dessas medidas, nos países centrais do capitalismo, não foi suficiente
para resolver a crise do capital, nem evitar a recessão, como se propagava. Os resultados
das medidas produziram apenas efeitos destrutivos sobre os direitos sociais e as condições
de vida da classe trabalhadora. O século XXI, em especial, demarca profundas mudanças
nas políticas sociais nos países centrais, direcionando-as para sua decadência. No Brasil, o
período inicial da crise internacional configura-se ainda um período de crescimento da
economia brasileira, sob o Regime Militar, conhecido como “milagre econômico”.
Desenvolveu-se um processo contraditório no que diz respeito às políticas sociais.
No entanto, a força das lutas sociais produziu uma forte disputa de hegemonia na
elaboração da Constituição, que fez com que em uma conjuntura tão adversa fosse possível
conquistar avanços e ainda que com todas as limitações as lutas sociais começam a refluir.
A esperança depositada sobre as eleições de 1989, onde polarizaram Lula e Collor, bem
como a entrada mais contundente do Brasil nos processos de reestruturação produtiva, sob
a ideologia neoliberal, levaram a uma forte contraposição ao Estado, o que dificultou a real
implementação da Constituição de 1988. Na primeira década do século XXI, sob os
Governos de Lula da Silva, ocorrem mudanças no campo da educação superior – com forte
impacto na formação profissional de assistentes sociais – e, também, no campo das
políticas sociais, sobretudo a política de assistência social, que afeta diretamente o exercício
profissional da categoria. É sobre isso que trataremos a seguir.
3. PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL E A LUTA CONTRA O
CONSERVADORISMO
A direção teórico-metodológica hegemônica do Serviço Social brasileiro passou por
inúmeras mudanças ao longo da história da profissão. Nota-se, entretanto, durante as
primeiras décadas de existência da profissão, um marcante traço comum: o compromisso
sócio-político com o conservadorismo (Iamamoto, 2011). Que foi a base da construção de
um fazer profissional historicamente comprometido com o projeto de sociedade das classes
dominantes, com uma função intelectual colaboracionista com a concepção de mundo
burguesa (Pereira, 2007, p. 223) na medida em que nega a existência das classes sociais e
as expressões da “questão social” 7 como consequências inerentes ao antagonismo entre
capital e trabalho.
A trajetória intelectual da profissão é mediada pela conjuntura das origens da
profissão. Ela surge com um propósito conservador, em um momento sócio-histórico
complexo, afetado pela luta de classes e pelo objetivo da burguesia, Estado e Igreja de
doutrinação das massas operárias que lutavam por direitos no processo de industrialização
vivido pelo país neste momento. Foi somente nos anos 1970, após a Reforma Universitária
de 1968 e a inserção do Serviço Social em ambientes universitários e, notadamente, com a
conjuntura de lutas e questionamentos do regime militar é que sinalizou o início de um
período de profundos questionamentos quanto à direção social do Serviço Social (Pereira,
2007, p. 223).
O processo de ruptura com o conservadorismo na profissão se gesta e se constrói
em meio à reorganização política e sindical de toda a classe trabalhadora, e tem estreito
laço com essa conjuntura e com os demais sujeitos políticos do período. Este movimento de
ruptura se expressará, mais tarde, no que se convencionou chamar de Projeto Ético-Político
do Serviço Social (PEPSS). O PEPSS compreende uma síntese de elementos que formam
“uma imagem ideal da profissão, os valores que a legitimam, sua função social e seus
objetivos, conhecimentos teóricos, saberes interventivos, normas, práticas, etc.” (NETTO,
2006, p. 07).
Esta categoria, embora hegemonicamente, tenha construído um projeto crítico e
elaborado mecanismos que marcham no sentido de tornar possíveis posturas coerentes
com tal projeto, enfrenta, cotidianamente, um processo que é permeado por contradições,
já, que “a afirmação e consolidação de um projeto profissional em seu próprio interior não
suprimem as divergências e contradições” (Netto, 2006, p. 05). Contradições estas, postas e
repostas diuturnamente pela sociabilidade do capital em permanente aprofundamento da
barbárie social. É no marco destes desafios que se desenvolvem as reflexões a seguir,
acerca da formação e do exercício profissional dos assistentes sociais no século XXI.
3.1. Contrarreforma da educação superior e projeto de formação profissional dos
assistentes sociais
A expansão do ensino superior brasileiro dos últimos anos tem sido parte de um
projeto de contrarreforma do Estado. Orientada pelos organismos financeiros internacionais,
como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM), é parte do projeto
7 Entende-se a “questão social”, sob uma perspectiva histórico-crítica, como a contradição e tensão entre capital e trabalho, d’onde se origina o pauperismo e todas as suas expressões.
neoliberal de transformação dos direitos conquistados nas décadas anteriores em
mercadorias. Desde os anos 1990 a Universidade brasileira tem passado por uma profunda
crise “gerada pelas alterações na configuração da luta de classes e da dominação
imperialista que exigia a privatização de setores estratégicos do país, entre esses, a
educação” (Lima, 2013, p. 07).
Paralelo ao processo de sucateamento das Universidades Federais, através de uma
expansão sem o devido investimento, o orçamento público foi cada vez mais destinado para
as Instituições de Ensino Superior (IES) privadas. O principal projeto dos governos para a
expansão do Ensino Superior, o ProUni, se deu através do incentivo ao mercado
educacional, de acordo com as orientações do Banco Mundial. Foi este o projeto
responsável por fortalecer as IES privadas que passavam uma enorme crise e que fez tornar
a educação um dos setores mais lucrativos do mercado.
Outro marco na expansão da educação superior brasileira está relacionado ao
decreto que regulamenta o Ensino à Distância no Brasil. Esta modalidade de ensino,
extremamente lucrativa pelo seu baixo custo, tornou-se setor privilegiado de investimento
nos últimos anos e segue um ritmo acelerado de crescimento. Questiona-se, entretanto, a
qualidade dessa modalidade, diante da ausência de efetiva relação pedagógica e de
participação na vida acadêmica, ausência do fundamental tripé ensino-pesquisa-extensão e
a inserção em movimentos sociais, além das irregularidades que permeiam a EAD8.
Em suma, a contrarreforma da educação implementada pelos últimos governos
brasileiros tem como marca a expansão do acesso ao ensino superior através da ampliação
do setor privado, do empresariamento da educação e da certificação em larga escala, em
um aumento quantitativo do acesso ao ensino superior pela via do rebaixamento da
qualidade da formação acadêmica.
De forma diametralmente oposta aos rumos do ensino superior brasileiro, encontra-
se o projeto de formação profissional do Serviço Social. O perfil profissional de assistentes
sociais construído pelas Diretrizes Curriculares da ABEPSS, coerente com o Projeto Ético-
Político do Serviço Social, pretende uma formação profissional generalista, com ênfase em
um rigoroso aprofundamento teórico, histórico e metodológico. Estes princípios buscam
tornar o assistente social sujeito competente para compreensão crítica da realidade social
na qual está inserido, bem como das políticas públicas e de seus usuários, em suas
determinações sócio-históricas e complexidade.
8 O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) produziu dois importantes materiais que tomam nota de inúmeras irregularidades no Ensino à Distância. São duas cartilhas intituladas “Sobre a incompatibilidade entre graduação à distância e Serviço Social”, volumes 01 e 02. Ambas disponíveis em: www.cfess.org.br.
O processo de desqualificação da formação universitária, afeta a formação em
Serviço Social e ameaça frontalmente o projeto previsto nas Diretrizes Curriculares. Rebaixa
a qualidade da formação em um tempo histórico cada vez mais complexo, que requisita dos
profissionais maior domínio da teoria crítica para seu entendimento e a elaboração de
estratégias profissionais coerentes com o Projeto Ético-Político. Como afirma Mota (2003):
Nesse sentido, o rebaixamento da formação em Serviço Social, sobretudo pela via do Ensino à Distância, que se multiplica em rápida velocidade e é hoje responsável pela formação de um enorme contingente profissional, representa uma contradição ao Projeto Ético-Político do Serviço Social e à cultura intelectual da profissão. Na medida em que não é garantida uma formação crítica, abrem-se lacunas na compreensão da sociabilidade burguesa e tende a reforçar uma visão que remete ao conservadorismo.
Os números são preocupantes: segundo o Censo da Educação de 2012 (INEP),
considerando-se os cursos à distância e presenciais, as IES privadas dominam no número
de matrículas. Segundo os dados, 79,8% dos estudantes de Serviço Social são estudantes
de IES privadas e 20,2% de públicas. Tratando-se da modalidade de ensino, o EAD é
responsável por 53,6% das matrículas em Serviço Social e 55,3% dos formandos do curso
em 2012. Ou seja, o número de formandos pelo ensino à distância por ano é superior ao
número de formandos pelo ensino presencial – incluindo o setor presencial privado. Ou seja,
de todos os formandos em Serviço Social no ano de 2012, apenas 9,2% são da educação
pública e presencial.
Por conseguinte, constata-se que o perfil de formação profissional pretendido pelo
Serviço Social tem sido cada dia mais ameaçado pelo processo de contrarreforma da
educação superior. Não por acaso, este tem sido tema de estudos da categoria9 e alvo de
debate das entidades representativas do Serviço Social. Nesse sentido, a contrarreforma do
ensino superior afeta diretamente o projeto de formação profissional preconizado pelas
Diretrizes Curriculares da ABEPSS.
Em uma conjuntura adversa da que foi construído o projeto profissional crítico, torna-
se cada vez mais imprescindível uma formação profissional capaz de tornar o assistente
social consciente de seu papel na sociedade de classes, para que ele possa, no seu fazer
profissional, orientar-se por um direcionamento teórico-metodológico superando “as ilusões
de um fazer profissional que paira “acima” da história” (Iamamoto, 2011, p. 37). A fragilidade
da consciência crítica favorece a reatualização do conservadorismo já conhecido do Serviço
Social.
9 Dentre os quais destacamos as inúmeras publicações de PEREIRA, Larissa Dahmer e LIMA, Kátia.
Acrescente-se, porquanto, aos desafios existentes na formação profissional, aqueles
que reconfiguram o mercado e as condições de trabalho do Serviço Social e estará
dimensionado o tamanho dos desafios presentes. É disso que se trata o item a seguir.
3.2. Políticas Sociais e Serviço Social: desafios contemporâneos ao exercício
profissional
A precarização das condições de trabalho a que estão submetidos os assistentes
sociais, não se explica apenas por uma particularidade da profissão. Os assistentes sociais
são uma categoria profissional majoritariamente contratados pelo Estado, e suas condições
de trabalho devem ser compreendidas através da precarização em um sentido mais amplo.
No Serviço Social, uma mediação para que a precarização do trabalho seja entendida é a
política social, pois são estas que determinam, precipuamente, as funções e configurações
do exercício profissional. O trabalho do assistente social é gradativamente voltado para a
execução destas políticas sociais, e, tendo sido estas duramente atacadas desde o advento
do neoliberalismo, os rebatimentos destes ataques são diretamente sentidos na profissão.
Em meio ao quadro geral de precarização das condições de vida e trabalho da
população, e, ainda, em meio à privatização e precarização das políticas e serviços públicos,
surge a tendência à focalização da pobreza e seu enfrentamento por meio de projetos
assistencialistas e restritivos. No Brasil, esta tendência se desdobra por meio da intensiva
expansão da política de assistência social, no bojo da contrarreforma da Seguridade Social
brasileira, em que se observam os caminhos da precarização e privatização nas políticas de
Saúde e Previdência. Assim, a assistência social assume centralidade no trato das
contradições sociais e, dentro desta política social, assumem o protagonismo os programas
de transferência de renda, donde se destaca o Programa Bolsa Família (PBF), que ocupa
quase todo o orçamento da assistência social.
Em um cenário de desestruturação das políticas sociais e de retração no papel do
Estado, bem como de profundos ataques aos direitos trabalhistas e precarização geral das
condições de vida e trabalho da população, a assistência social se vê cada vez mais
reduzida a uma política de compensação da pobreza, com programas de transferência de
renda que em nada promovem à autonomia dos sujeitos (referente à promoção da própria
renda). Essa expansão no campo da assistência social, através de programas específicos
de combate à pobreza, segundo Netto (2009, pg. 38-39) “opera a efetiva redução do Serviço
Social à profissão da assistência”, o que se torna ameaçador ao projeto profissional crítico já
que muitos setores da categoria absorvem a perspectiva das classes dominantes sobre a
assistência social como solução para combater a pobreza.
Outro fator importante é que com a descentralização das políticas sociais no Brasil e
a transferência da execução da política de assistência social para a esfera dos Governos
Municipais, a mão-de-obra do assistente social passa a ser, ainda mais, absorvida pela
esfera municipal, que historicamente não oferece mínimas condições de trabalho e
remuneração aos profissionais. Destarte, percebe-se uma intrínseca relação entre expansão
dos cursos de graduação em Serviço Social e a expansão do mercado de trabalho. Dado
que ambos os fenômenos ocorrem paralelamente e produzem efeitos semelhantes: a
reconfiguração do perfil profissional.
Concordamos com Trindade (2015, p. 144) de que essa “simetria cronológica de tais
fenômenos não parece uma mera coincidência”. Coloca-se, nesse cenário, um processo de
reconfiguração do perfil profissional do assistente social, contrário à perspectiva idealizada
nos marcos do projeto ético-político do Serviço Social. O que se encontra em andamento
antagoniza com a tradição teórica da profissão, sua cultura intelectual e seu legado histórico
no campo da criticidade.
4. CONCLUSÃO
Iniciamos a presente reflexão abordando traços atuais da crise do capital em curso.
Ao situar o Serviço Social em meio a esta conjuntura, assinalamos as características
predominantes do âmbito da formação e exercício profissional desta categoria,
considerando que essas características favorecem à reatualização do conservadorismo
profissional.
Ao pensarmos, então, em conservadorismo profissional, é necessário relacioná-lo
com a atual situação econômica, política, social e ideológica da classe trabalhadora em
geral. O cenário atual se apresenta com um Presidente da República que representa o que
há de mais atrasado ideológica e politicamente no país. Estamos em meio à barbárie social,
pois os ataques aos direitos trabalhistas e sociais são inúmeros. Mesmo com a manutenção
dos programas de transferência de renda, espera-se que nesse ano, segundo o Banco
Mundial, o Brasil tenha quase 4 milhões de “novos pobres”: trabalhadores que, devido ao
desemprego, entrarão para o segmento populacional que vive com renda per capita de até
R$ 140,00 mensais.
Em se tratando de desemprego, segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de
Domicílios (PNAD), divulgada pelo IBGE em fevereiro do corrente ano, o percentual de
pessoas desocupadas alcançou 12,9 milhões de pessoas, um aumento de 34,3% em
relação ao mesmo período do ano anterior. Este índice é o maior desde que começou a
contagem, em 2012. E a previsão da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é que
este número subirá no decorrer do ano.
Todos esses elementos levam ao inegável aumento do conservadorismo, por meio
da exacerbação do individualismo, da falta de solidariedade, dos (des) valores. A ausência
de perspectiva de vida, sobretudo para a juventude – principal atingida pelo desemprego –
relaciona-se com um aumento brutal da violência e da cultura do medo. Temos como
exemplos, dois casos recentes que representa o dizemos: O primeiro foi a morte da travesti
Dandara, de 42 anos, por meio de tortura e apedrejamento em Fortaleza (CE). No outro lado
do país, em São Paulo, um adolescente negro de 13 anos morreu após ser agredido por um
segurança e um gerente de uma lanchonete. Seu crime: pedir por comida. A realidade é
assustadora, mas há, entretanto, esperança. Outros elementos dessa mesma realidade –
dinâmica e contraditória – nos fazem crer que o projeto profissional crítico do Serviço Social
continua permeado por importância e sentido.
Em uma ‘anticelebração’ à eleição do conservador Donald Trump à Presidência dos
Estados Unidos, meio milhão de mulheres saíram às ruas no país – outras milhões no
mundo – em defesa dos diretos das mulheres e minorias. Essa marcha histórica na América
Central foi inspirada na latino-americana Argentina, que desde o final do ano de 2016 tem
protagonizado importantes greves femininas contra o feminicídio, que têm servido de
exemplo para movimentos feministas e de trabalhadores em todo o mundo.
No momento em que este artigo é escrito, a mídia brasileira reporta notícias de
paralisações que tomam todo o Brasil no dia 15 março de 2017, com paralisação de
centenas de categorias, como há muito não acontecia no país. A luta é contra o governo do
Presidente Michel Temer e sua proposta de (contra)reforma da previdência, que pretende
aumentar para 49 anos o tempo mínimo de contribuição e 65 anos a idade mínima para
aposentadoria integral, entre outras afrontas àqueles que dependem e defendem a
previdência pública.
Nessa perspectiva, acredita-se, como assinala Barroco (2011, p. 215) que “se temos
uma herança conservadora, temos também uma história de ruptura” e que, o patrimônio
teórico, político e ético que dá sustentação ao projeto profissional faz parte de uma herança
que “pertence à humanidade e que nós resgatamos dos movimentos revolucionários, das
lutas democráticas, do marxismo, do socialismo, e incorporamos ao nosso projeto”. Assim
sendo, cabe considerar, desta realidade, além dos elementos regressivos, aqueles que
assinalam a ‘existência da resistência’, por assim dizer. Os elementos progressivos da luta
de classes. Ou seja, as lutas democráticas, em defesa dos direitos sociais e das minorias,
que permanecem vivas. E é nelas que o Serviço Social precisa ancorar o sentido de seu
projeto profissional.
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