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A SERRA DO DIVISOR, UM MUNDO ISOLADO E DESCONHECIDO, NA FRONTEIRA DO PERU COM O ESTADO BRASILEIRO DO ACRE, MANTÉM PRESERVADA A EXUBERANTE FLORESTA AMAZÔNICA TEXTO LUÍS PATRIANI FOTOS VALDEMIR CUNHA Imagem aérea do Parque Nacional da Serra do Divisor, Acre. Ao fundo, as montanhas já em território peruano desconhecido A fronteira do 45 SERRA DO DIVISOR >

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Page 1: SerrA Do DIvISor A fronteira do desconhecido eStado ... · 600 pessoas assentadas às margens do rio Moa, a padroeira da igreja local é a Nossa Senhora ... um claro sinal do sincretismo

a Serra do diviSor, um mundo iSolado e deSconhecido, na fronteira do Peru com o

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Imagem aérea do Parque Nacional da Serra do Divisor, Acre. Ao fundo, as montanhas já em território peruano

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os nuquinis foram aculturados, mas alguns índios, como a professora Gessiane da Silva, trabalham para resgatar as raízes. ela ensina para seu povo a história e as tradições da etnia

os caboclos criam gado no vilarejo mais a oeste do Brasil, na Serra do Divisor (acima). Casa de ribeirinho feita de madeira e coberta com palha de palmeira. Próxima ao rio, mas respeitando o nível da água nas cheias (abaixo)

talvez seja um dos lugares mais remotos do território brasileiro. No extremo oeste do país, entre o Estado do Acre e o Peru, esparramam-se os mais de oito mil quilô-metros quadrados do Parque Nacional da

Serra do Divisor, cerca de um terço do Estado de Sergipe, o quarto maior parque nacional brasileiro. Criado em 1989 como Área de Proteção Ambien-tal, o parque é banhado pelo rio Juruá, afluente do Amazonas, e um dos locais mais intactos da região – apenas 3% foram desmatados.

Não é exatamente mérito das preocupações ambientais do ser humano. Trata-se de uma região inóspita, de difícil acesso até mesmo para quem não mede esforços para isso – como o repórter que fez as fotos desta matéria (veja quadro na página 50).

Seja como for, a natureza agradece. Conside-rado o abrigo de uma das biodiversidades mais expressivas da Amazônia, o parque abriga 102 es-pécies de mamíferos, 485 de aves, 101 de anfíbios, 30 de répteis e 299 de aranhas. O ser humano é representado pelos índios nuquinis e o povo ribei-rinho que vivem dentro de seus limites.

Situada numa área de transição entre as terras baixas da Amazônia e a Cordilheira dos Andes, a Serra do Divisor é ocupada na maior parte pela Floresta Tropical Aberta, que se subdivide em Aberta de Cipó e Aberta de Palmeira. A primeira caracteriza-se pelo relativo espaçamento entre

árvores como juá, castanha-de-periquito, tapere-bá, inharé e outras. A segunda apresenta grandes agrupamentos das diversas espécies de palmeiras, como paxiúba-barriguda, paxiúba-lisa, patauá, açaí, jaci, murumuru, inajá e jarima.

As peculiaridades dessa porção extrema de terra começam pela própria Serra do Divisor, cujos picos, de até 650 metros de altura, separam as águas da bacia dos rios Ucayali, no Peru, e Juruá e Moa, no Brasil. A influência andina vinda do país vizinho é leve, mas presente. Durante a madrugada, uma brisa enfrenta o forte calor úmido e tropical da Amazônia, derrubando as temperaturas para cerca de 13 graus.

Os índios nuquinis, cujo território num pas-sado remoto ia além da fronteira com o Peru, foram totalmente aculturados, principalmente pelo intenso envolvimento deles com o ciclo da borracha, ocorrido na Amazônia entre os anos de 1879 e 1912. Formada atualmente por apenas 600 pessoas assentadas às margens do rio Moa, a padroeira da igreja local é a Nossa Senhora de Guadalupe, um claro sinal do sincretismo religioso ocorrido no processo de colonização luso-espanhola.

Diferentemente dos nuquinis, os caboclos vivem de maneira dispersa dentro da área do parque, concentrando-se mais ao norte. A aglomeração de algumas casas forma pequenas comunidades, mas muitas delas estão isoladas, e o vizinho mais próximo pode estar a vários quilô-metros de distância.

Paraíso às avessas O fato de estar localizado na fronteira com o

Peru (país produtor de cocaína), e em uma região preservada da Floresta Amazônica, faz da região um lugar muito procurado pelos traficantes de drogas e madeireiros.

Vigiado em conjunto pela Polícia Federal, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Exército, o controle do parque se mostra complexo na medida que sua extensa área é permeada por uma densa selva, além de uma grande rede de rios e riachos. Na prática, o que não faltam são rotas de fuga.

A extração de madeira, as mais cobiçadas são as das cerejeiras e mognos, acontece mais próxima à fronteira. A partir de clareiras de até 5 metros de largura abertas na mata, as toras são roladas até igarapés no lado peruano, de onde seguem viagem por água até a cidade de Pucalipa.

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Outro grande desafio das autoridades é coibir o aliciamento das populações ribeirinhas pelos traficantes para que elas façam o trans-porte da droga em seus próprios barcos pela região do rio Juruá Mirim, no sul do parque. A estratégia dos criminosos para levar a valiosa mercadoria até Mâncio Lima e Cruzeiro do Sul, de onde seguem até Manaus, é uma alter-nativa aos constantes patrulhamentos feitos por terra para encontrar desmatamentos ilegais e carregamentos de drogas. Os militares não divulgam números, mas os confrontos, prisões e apreensões não são raros na região.

A maioria dos índios e caboclos do local, porém, vive alheia a esses conflitos. Julio Pova,

de 27 anos, é um exemplo. Ele sobrevive da caça (a atividade é permitida para os morado-res cadastrados), do extrativismo, de lavouras de mandioca, abóbora, feijão, cana-de-açúcar, banana e milho (os roçados podem ocupar um quinto das terras de cada família), e da criação de vacas, porcos e galinhas.

Mas Julio tem um aparelho em sua arejada residência de quatro quartos com terraço coberto por sapé que quase ninguém tem aqui. Essa “coisa” é capaz de transportar as pessoas para bem longe, lá para fora, onde o mundo, dizem, é cheio de novidades.

A TV desse tranquilo rapaz, que vai a Cruzeiro do Sul, uma das cidades mais próximas ao parque, a cada cinco meses e sempre volta “correndo” para casa, pega mal, não é colorida, e as poucas horas que funciona por dia são graças a um gera-dor movido a gasolina. Seu brilho fugaz, porém, é suficiente para atrair toda a vizinhança, ávida pelas intrigas das novelas ou por uma partida de futebol. De preferência, dos times cariocas.

Os benefícios do mundo moderno assistidos via satélite divertem, mas não seduzem os mora-dores. Todos estão satisfeitos com suas pacatas vidas e não querem saber da cidade, a não ser quando vão até Cruzeiro do Sul e Mâncio Lima (outra cidade próxima) para trocar o excedente de farinha, vinho de buriti (para tempero) e açúcar gramixo (mascavo) por alguma outra mercadoria. A cozinheira Rita Pereira, por exemplo, só sai do parque quando precisa repor ou aumentar a sua coleção de panelas, diga-se, de respeito.

Diante do velho aparelho, o olhar de um tí-mido e simpático garoto parece ir mais longe do que o dos outros, a essa altura da programação totalmente entretidos com o cálido romance urbano vindo da telinha.

Viale Moreira da Silva gosta do lugar onde nasceu, mas quer se mudar para alguma cidade assim que ficar um pouco mais velho. “Meu sonho é estudar e trabalhar com computador”, diz o menino de 13 anos, que só viu o dito cujo na televisão.

Logo ao lado, no terreno da casa de Luís Moreira da Silva, 58 anos, mais conhecido por Nuda, é a vez de um improvável orelhão servir as necessidades de comunicação da comunidade cabocla com o mundo exterior. Enquanto toma conta do aparelho telefônico mais ao oeste do Brasil, seu Nuda, um típico nativo da região da Serra do Divisor, surpreende ao dizer que não tem coragem de se embrenhar na mata. “Só entro na floresta com alguém que saiba entender o que diz a bússola”, revela.

Apesar do parentesco com seu Nuda, Lauro Moreira da Silva anda pela mata fechada atrás de caça sem a necessidade de instrumentos de direção. A interconexão do labirinto das trilhas está gravada na sua mente.

Belezas reveladasO apurado senso de localização de Lauro,

também conhecido por Bilau, não serve ape-nas para abater pacas, tatus, veados, antas e queixadas. O GPS natural desse caboclo de 63 anos é muito útil também na hora de mostrar aos forasteiros as principais atrações do parque, como o cânion do rio Moa, que fica no pé da Serra da Jaquirana, um vale encaixado por pa-redões verticais de 10 metros de altura cobertos por vegetação.

Entre uma prosa aqui e outra ali, seu Bilau vai apresentando lugares tão belos quanto estra-

Proteger a região da ação ilegal de madeireiros e de traficantes é um dos principais desafios da Serra do Divisor (esquerda). Seu Nuda aprecia da janela de casa a floresta, na qual ele não entra sozinho por medo de se perder (direita)

oS benefícioS do mundo moderno aSSiStidoS na tv divertem, maS não

Seduzem oS moradoreS rita Pereira só sai do vilarejo em que mora quando precisa

comprar novas panelas para sua coleção

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viagem ao fim do mundoPor Valdemir Cunha, fotógrafoForam 18 horas de viagem para chegar ao parque, 12 das quais serpenteando pelos 80 km de curvas do pequeno rio Moa. Durante todo o tempo, o que mais chamou a atenção foi o número de barcos de pequeno porte transportando de tudo. Tudo mesmo. Botijão de gás, mantimentos, sacos de farinha, caixas de bananas e famílias inteiras apinhadas em canoinhas. Sem falar dos bois, cavalos, cabritos e animais de todo gênero e tamanho sendo levados para serem vendidos na cidade ou vice-versa. As mudanças de cenário contrariam o imaginário dos rios do norte. No alto Moa, a floresta se aproxima das margens, os morros vão ganhando o céu e grandes formações rochosas encobertas pela vegetação vão formando cânions de mais de 30 metros de altura. Paisagem totalmente diferente de outras que vi em minhas andanças pela Amazônia. Peguei carona num helicóptero do Ibama que fazia o monitoramento do parque nacional para reprimir ações de traficantes de drogas e madeireiros peruanos. Durante três horas voamos à procura dos contraventores. A 10 metros da copa de árvores gigantescas dava pra ver toda a variação da topografia. Nessa parte da Amazônia os morros chegam a 650 metros de altura e o Moa risca

o tapete verde ondulado com suas inúmeras curvas, fazendo-o parecer uma grande serpente abrindo caminho pela floresta. Naquele voo não avistamos nem traficantes nem madeireiros, mas a simples experiência de voar sobre a fronteira do Brasil com o Peru numa das regiões mais remotas do planeta foi o bastante para tornar nossa empreitada uma grande viagem.

nhos. O Buraco da Central, um poço de 1 metro de diâmetro por 1.600 metros de profundidade, é um deles. A reputação da cratera encravada no meio do rio Moa se justifica: cavado na dé-cada de 30 pela Agência Nacional de Petróleo, o buraco não expeliu o esperado combustível fóssil, mas jorra até hoje uma água sulfurosa e aquecida. A força do jato d’água é tão grande que impede as pessoas de afundarem no abis-mo. Parecem levitar.

Para se refrescar na Cachoeira Formosa, a mais alta (12 metros) e bonita do parque, é preciso um bocado de fôlego. São pelo menos quatro horas de caminhada num percurso cheio de subidas e trechos alagados. Em meio à trilha e as revoadas de maçaricos, bicos-de-brasa, nambus, japiins, socós e araçaris, é comum se deparar com bichos preguiças, queixadas e macacos. Com uma boa dose de sorte, ou azar, é possível avistar onças-pintadas.

No Morro Queimado, numa área descam-pada chamada de Mirante da Jaquirana, a vista panorâmica da floresta revela todas as suas formas e cores. Dali é possível ver não só a grande extensão de mata intocada. Do alto dos 420 metros dá para entender a razão de o Parque Nacional da Serra do Divisor ser um mundo tão isolado, desconhecido e, acima de tudo, diferente.

o rio Moa, por onde o fotógrafo serpenteou durante 12 horas (acima). Uma das canoas nas quais se transporta de tudo (abaixo)

o Buraco da Central é resultado da busca de petróleo na região, mas o que o poço jorra é apenas água

Amazonas

Acre

BrASIL

PerU

Parque Nacional da Serra do Divisor

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