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1 Seringueiros da Fronteira Brasil (Acre)-Bolívia (Pando): identidades (in)visíveis 1 Emilson Ferreira de Souza (UFAC) Da perspectiva de que as identidades estão em constante movimento na sociedade atual, em que tudo é efêmero e fluido, este artigo apresenta resultados de uma pesquisa sobre os movimentos das identidades dos seringueiros brasileiros que viviam na faixa de Fronteira de 50 km do lado boliviano com o estado do Acre. Avaliam-se (in)visibilidades que esses sujeitos têm em algumas esferas da sociedade, partindo-se do princípio de que “toda formação histórica vê tudo o que pode ver”.(DELEUZE, 1996, p. 121). O referencial teórico segue os estudos em torno da construção das identidades e sua relação com o discurso (GREGOLIN, 2008); em estudos como os de Hall (2006) e outros que se dedicam à compreensão dos movimentos identitários na sociedade contemporânea. A problemática que norteou a pesquisa buscou responder que contornos adquirem a identidade cultural e profissional dos seringueiros dessas Fronteiras. O corpus da investigação repousa não apenas sobre as falas dos seringueiros, mas sobre imagens captadas durante a incursão nas colocações dos trabalhadores brasileiros que viviam na faixa de fronteira de 50 km do lado boliviano com o estado do Acre-Brasil, em 2006 e 2012. A metodologia seguida é de natureza qualitativa. Entre os recursos metodológicos mobilizados destacam-se o trabalho etnográfico e técnicas audiovisuais derivadas da antropologia fílmica (FRANCE, 2008). Os resultados demonstram que a identidade do seringueiro, assim como toda identidade, é um construto discursivo e por ser uma construção discursiva relaciona-se a uma rede de significações que se desenvolvem nas esferas políticas, sociais, culturais e econômicas; as mudanças nessas esferas, na última década, têm afetado enormemente a configuração identitárias desses trabalhadores. Palavras chaves: Seringueiros. Fronteira. Identidades. Introdução Em nosso mestrado, realizado no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Acre (UFAC), desenvolvemos um estudo acerca das identidades dos então seringueiros das Fronteiras Brasil - Acre, Bolívia Pando. Essas identidades já se mostravam instigantes a nós no período em que produzimos o documentário “Lá Rota Del Pacífico: culturas de fronteiras”, aprovado pelo projeto DOCTV, em 2006. Nessa produção, conhecemos muitos trabalhadores que viviam da extração de látex, os quais pareciam insatisfeitos com as mudanças que ocorriam em seu dia-dia e em sua profissão. Assim surgiu esta pesquisa sobre os movimentos identitários que irrompem entre os seringueiros que vivem na faixa de Fronteira de 50 km do lado boliviano com o estado do Acre. As teorias mobilizadas neste trabalho seguiram os estudos em torno da construção das identidades em sua dimensão discursiva e para isso nos valemos de alguns conceitos propostos pela Análise do Discurso francesa, pois conforme Gregolin (2008), o entendimento das identidades passa por uma espécie de efeito de sentido produzido pela e na linguagem”. Para essa esfera teórica e também para a perspectiva 1 “Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA”.

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Seringueiros da Fronteira Brasil (Acre)-Bolívia (Pando): identidades (in)visíveis1

Emilson Ferreira de Souza (UFAC)

Da perspectiva de que as identidades estão em constante movimento na sociedade atual, em que tudo é

efêmero e fluido, este artigo apresenta resultados de uma pesquisa sobre os movimentos das identidades

dos seringueiros brasileiros que viviam na faixa de Fronteira de 50 km do lado boliviano com o estado do

Acre. Avaliam-se (in)visibilidades que esses sujeitos têm em algumas esferas da sociedade, partindo-se

do princípio de que “toda formação histórica vê tudo o que pode ver”.(DELEUZE, 1996, p. 121). O

referencial teórico segue os estudos em torno da construção das identidades e sua relação com o discurso

(GREGOLIN, 2008); em estudos como os de Hall (2006) e outros que se dedicam à compreensão dos

movimentos identitários na sociedade contemporânea. A problemática que norteou a pesquisa buscou

responder que contornos adquirem a identidade cultural e profissional dos seringueiros dessas Fronteiras.

O corpus da investigação repousa não apenas sobre as falas dos seringueiros, mas sobre imagens captadas

durante a incursão nas colocações dos trabalhadores brasileiros que viviam na faixa de fronteira de 50 km

do lado boliviano com o estado do Acre-Brasil, em 2006 e 2012. A metodologia seguida é de natureza

qualitativa. Entre os recursos metodológicos mobilizados destacam-se o trabalho etnográfico e técnicas

audiovisuais derivadas da antropologia fílmica (FRANCE, 2008). Os resultados demonstram que a

identidade do seringueiro, assim como toda identidade, é um construto discursivo e por ser uma

construção discursiva relaciona-se a uma rede de significações que se desenvolvem nas esferas políticas,

sociais, culturais e econômicas; as mudanças nessas esferas, na última década, têm afetado enormemente

a configuração identitárias desses trabalhadores.

Palavras chaves: Seringueiros. Fronteira. Identidades.

Introdução

Em nosso mestrado, realizado no Programa de Pós-Graduação em Letras da

Universidade Federal do Acre (UFAC), desenvolvemos um estudo acerca das

identidades dos então seringueiros das Fronteiras Brasil - Acre, Bolívia – Pando. Essas

identidades já se mostravam instigantes a nós no período em que produzimos o

documentário “Lá Rota Del Pacífico: culturas de fronteiras”, aprovado pelo projeto

DOCTV, em 2006. Nessa produção, conhecemos muitos trabalhadores que viviam da

extração de látex, os quais pareciam insatisfeitos com as mudanças que ocorriam em seu

dia-dia e em sua profissão. Assim surgiu esta pesquisa sobre os movimentos identitários

que irrompem entre os seringueiros que vivem na faixa de Fronteira de 50 km do lado

boliviano com o estado do Acre.

As teorias mobilizadas neste trabalho seguiram os estudos em torno da

construção das identidades em sua dimensão discursiva e para isso nos valemos de

alguns conceitos propostos pela Análise do Discurso francesa, pois conforme Gregolin

(2008), o entendimento das identidades passa por uma espécie de “efeito de sentido

produzido pela e na linguagem”. Para essa esfera teórica e também para a perspectiva

1 “Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre

os dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA”.

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dos Estudos Culturais (HALL, 2006), as identidades são construções discursivas e

históricas.

A problemática que norteou nossa pesquisa centrou-se na indagação: que

contornos têm as identidades dos seringueiros das Fronteiras entre Brasil – Acre e

Bolívia - Pando, na atualidade?

Dada nossa preocupação com a perspectiva discursiva dessa identidade,

formamos um corpus heterogêneo (corpora), constituído por falas dos seringueiros e

imagens captadas durante a incursão nas colocações dos trabalhadores brasileiros, que

vivem na faixa de fronteira de 50 km do lado boliviano com o estado do Acre, em dois

momentos - 2006 e 2012. Esse recorte de tempo foi proposto pela banca de exame de

qualificação da pesquisa, a qual sugeriu que buscássemos essas identidades antes e

durante o desenvolvimento do estudo.

A metodologia, de base qualitativa, teve entre os procedimentos metodológicos a

pesquisa in loco, por meio da qual buscamos perceber os sujeitos em suas comunidades

de modo mais natural possível, a fim de entender como aquelas pessoas habitavam e

constituíam seu mundo. Este tipo de investigação nos levou à compreensão das relações

socioculturais, comportamentos, rituais, saberes e práticas dos seringueiros. Essa

perspectiva nos permitiu uma avaliação das comunidades que visitamos em seu

conjunto, buscando explicar como ela funcionava no momento da observação. Assim, a

pesquisa in loco foi o caminho que encontramos para conhecer de modo mais apurado

os sujeitos de nossa pesquisa, em seu contexto microssociológico, a partir da relação

com o todo social do qual faziam parte (SILVA et al, 2010).

Para captação dos dados da pesquisa mobilizamos como recurso metodológico

técnicas audiovisuais, na perspectiva da metodologia fílmica tal qual proposta por

France (2008), a pesquisa que mobiliza a imagem estática ou em movimento pode servir

à observação e análise da imagem relativa ao processo filmado por outros ou ao

processo de registro e edição das imagens coletadas pelo próprio pesquisador. Neste

trabalho, ocupamos a segunda perspectiva, utilizamos o filme para a análise das

identidades dos seringueiros. Essas técnicas, segundo Serafim e Ramos (2008), têm

trazido mudanças expressivas aos paradigmas conceituais, teóricos e práticos,

permitindo novas perspectivas de investigação e possibilitando a análise da

comunicação em suas diferentes dimensões. Nesse sentido, técnicas cinematográficas

têm sido aplicadas a pesquisas acadêmicas e permitem entre outras vantagens o estudo e

análise do ser humano em uma dimensão ampla; em seus aspectos físicos, mentais,

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sociais e culturais, pois, metodologicamente, a imagem animada, sonora, ao conectar a

linguagem verbal a não-verbal e aos contextos onde se passam as atividades, permite

uma abordagem interacionista dos fatos e possibilita a apreensão da quase totalidade da

situação.

Este artigo divide-se em três tópicos. No primeiro, apresentamos um breve

histórico do processo de emergência do seringueiro na Fronteira estudada. No segundo,

discorremos sobre a relação entre identidades, fronteiras e discursos e no terceiro tópico

apresentamos alguns dados coletados em nossa pesquisa.

2. Os seringueiros na Fronteira Brasil – Acre e Bolívia – Pando: um pouco de

história

Darcy Ribeiro, em seu livro O povo brasileiro (1995), pondera que a ocupação da

Amazônia pelos portugueses ocorreu para expulsar franceses, holandeses e ingleses que

procuravam instalar-se em sua desembocadura; eles travaram lutas vitoriosas e construíram

fortificações. O antropólogo afirma ainda que os portugueses, para consolidarem seu domínio

frente aos espanhóis, introduziram “na Amazônia colonos das ilhas atlânticas, principalmente

dos Açores” (RIBEIRO, 1995, p. 314).

A população neobrasileira da Amazônia formou-se também pela mestiçagem

de brancos com índias, através de um processo secular em que cada homem

nascido na terra ou nela introduzido cruzava-se com índias e mestiças,

gerando um tipo racial mais indígena que branco. Incapaz de atender aos

apelos da gente boa da terra, que pedia mulheres portuguesas. (...) Alcançava-

se uma sociedade nova de mestiços que constituiria uma variante cultural

diferenciada da sociedade brasileira: a dos caboclos da Amazônia.

(RIBEIRO, 1995, p. 314).

No último quarto do século XIX e início do século XX, através do

desenvolvimento da indústria automobilística europeia e norte-americana, a região

amazônica sofreu um momento forte de prosperidade, através da exportação da borracha

para estes centros, o que fez mais de meio milhão de nordestinos se deslocarem para

Amazônia (RIBEIRO, 1995).

Para Tocantins (2003), até início do séc. XIX encontravam-se somente índios na

floresta acriana. Os amazonenses e paraenses foram os primeiros brasileiros

“civilizados” a explorar a região, atraídos pela hevea brasiliensis, que produz o látex, a

borracha. A ocupação do território acreano pelos nordestinos brasileiros se deu em duas

frentes: primeiro, adentraram as regiões do vale dos Rios Acre e Purus e depois, o vale

do Rio Juruá.

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A revolução industrial liderada pela Inglaterra, França e Estados Unidos

impulsionou de forma acentuada o comércio mundial da borracha, pois a vulcanização

permitiu a troca das rodas de ferro das carruagens pelas de pneu. Logo depois vieram os

carros, as bicicletas etc. Assim, o Acre torna-se o centro produtor da matéria prima, a

borracha, que foi disputada pelas maiores nações industrializadas. O preço da borracha

sobe em demasia, o que fez, cada vez mais, atrair trabalhadores para os rincões da

floresta.

Empresários, donos de Casas Aviadoras, das cidades de Manaus e Belém,

através do capital internacional, financiavam as atividades extrativistas na floresta

acreana. Os trabalhadores nordestinos foram atraídos para Amazônia, fugindo da seca e,

com a promessa de enriquecimento, foram convertidos em seringueiros solitários,

presos pelo inferno verde. Estes sujeitos foram inseridos no “centro” do sistema

produtivo do seringal.

O nordestino, declara Hardman (2009, p.69), “convertido em seringueiro

anônimo nas florestas do Acre”, chegava com uma dívida pelo transporte até a floresta.

Lá, recebia os utensílios para fazer o corte da seringa, recebia também os alimentos para

sua manutenção. Em troca, toda sua produção de borracha era entregue no barracão,

onde ficava o patrão, para pagar sua dívida.

Esse sistema de produção, chamada aviamento, foi cruel para com os

seringueiros, pois, a cada ano, sua dívida só aumentava. Os preços dos gêneros

alimentícios eram abusivos; a pesagem da borracha era quase sempre burlada, roubada.

Muitos desses seringueiros morreram na floresta. Alguns poucos conseguiram voltar

para o Nordeste, mas sem conseguir conquistar o sonho do Eldorado.

Por outro lado, os seringalistas, e seus financiadores, ficavam cada vez mais

ricos, e incentivavam a busca de mais terras, para abrirem mais estradas de seringas, o

que fez surgirem colocações de seringueiros por todos os rios acreanos. A única forma

de comunicação com o resto do Brasil e o mundo era estabelecida via rios e se dava

somente no período das chuvas, quando o volume das águas dos rios aumentava,

permitindo a navegação dos navios, que traziam gêneros alimentícios, bebidas, tecidos

etc. e escoavam a borracha, a castanha e peles de animais até as cidades de Belém e

Manaus.

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O tempo áureo da borracha, para o Brasil, começou a findar por volta de 1913,

após empresários ingleses e holandeses pegarem sementes das seringueiras brasileiras e

fazerem plantio na Ásia, nos países: Ceilão, Indonésia e maciçamente na Malásia, com

novas tecnologias e mais eficiência, conseguiram aumentando a produtividade de forma

significativa. Começaram a colocar essa produção no mercado mundial, o que fez o

preço da borracha cair, fazendo o extrativismo amazônico entrar em uma forte crise,

pois o sistema produtivo que se estabeleceu nessa região era de baixa produtividade.

Durante a segunda guerra mundial (1939 – 1945), os japoneses, aliados à

Alemanha e à Itália, conquistaram o sudeste asiático, área produtora de borracha para os

países aliados: Inglaterra, França e Estados Unidos. O governo Brasileiro assinou

acordo com os Estados Unidos através do “tratado de Washington” para reativar os

seringais nativos amazônicos e fornecer borracha para esse eixo, isso fez o Acre receber

um novo alento de pessoas vindas do nordeste brasileiro, o que fez aquecer a economia

da borracha. Esses trabalhadores passaram a ser denominados de soldados da borracha,

pois foram alistados como “voluntários” de guerra para extração da borracha

amazônica. Foram recrutados trabalhadores urbanos que trabalhavam em construção

civil, na indústria têxtil entre outros setores e pequenos proprietários de terras

(MARTINELLO, 1988).

Com o final da Segunda Guerra Mundial, em meados da década de 1940, os

seringais asiáticos foram retomados do Japão. Depois veio a borracha sintética,

produzida a partir de restolhos do petróleo, o que levou novamente os seringais nativos

amazônicos a entrarem em colapso, pois o mercado interno brasileiro não conseguia

absorver toda sua produção.

Nas décadas de 1970 e 1980, a região amazônica foi alvo de uma política de

expansão e ocupação territorial pelo Governo Militar, que incentivou a migração

massiva de pessoas do centro Sul e Sudeste do Brasil para a Amazônia, facilitando a

compra de terras na região da floresta, para formarem fazendas de gado. Essa política

desenvolvimentista trouxe sérios problemas para região. Com a transformação da

floresta em fazendas, iniciou-se a devastação. Milhares de quilômetros de mata virgem

deram lugar a pastos. Não se pensou nos homens que já moravam na mata: seringueiros

sobreviventes dos ciclos da borracha e que permaneceram na floresta, com uma cultura

extrativista e de subsistência. Centenas de famílias foram expulsas por estes “paulistas”,

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como ficaram conhecidos os forasteiros. O destino deles, assim como o da floresta, foi

trágico: seguiram para as cidades e se viram obrigados a se adaptar a uma nova

realidade. Analfabetos e sem preparo para a mão de obra urbana, muitos caíram na

marginalidade e foram viver nas áreas de periferia. Já outros foram para floresta

boliviana e peruana, países vizinhos ao Estado do Acre. Lá fixaram residência, fugindo

da pressão dos pecuaristas.

Segundo Paula (1991), esses sujeitos receberam várias denominações ao longo

de sua estada no espaço conhecido hoje como Acre. Passaram a serem tratados primeiro

como “brabos”, quando migraram do Nordeste para Amazônia. Depois, quando

apreenderam o ofício do seringal, receberam o nome de “mansos”. Durante a segunda

guerra, período que novamente nordestinos migraram para Amazônia, foram chamados

de “arigós”. Quando começaram a serem expulsos dos seringais, nos anos de 1970,

pelos “paulistas”, receberam a denominação de “acreanos” (PAULA, 1991, s/p).

Estes seringueiros foram divididos em quatros grupos: uma parte foi convertida

em mão de obra nas fazendas de criação de gado, uma outra foi morar nas periferias das

cidades acrianas, outra ficou na mata resistindo a presença dos fazendeiros, liderados

por Chico Mendes, estes conseguiram criar as reservas extrativistas e a quarta parte foi

morar nas áreas de fronteiras do território peruando e boliviano. Em terras bolivianas,

esses seringueiros continuaram seus modos peculiares de viver em harmonia com o

meio ambiente. Eram, na grande maioria, extrativistas, viviam do corte da seringueira e

da coleta de castanhas, praticavam a agricultura de subsistência, criavam pequenos

animais, com poucas cabeças de gado e viviam um modelo de vida que preservava a

floresta, de forma quase autossustentável.

A partir de 2006, o presidente da Bolívia Evo Morales, amparado pela

constituição boliviana que não permite a estrangeiros terem terra na faixa de 50

quilômetros da fronteira de seu território, começou uma política de deslocamento desses

seringueiros para o Brasil. Um número não exato desses sujeitos foi assentado em

projetos agrários do INCRA, no estado do Acre, em lotes de 10 a 25 hectares e um outro

número foi viver nas periferias das cidades acrianas.

A opção por realizar uma pesquisa com esses trabalhadores relaciona-se ao fato

de eles simbolizarem a história de construção do Estado do Acre e, também, pela

importância desses sujeitos para história econômica do Brasil, pois a borracha que eles

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produziam, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, chegou a

representar o segundo produto do PIB brasileiro, fato que contribuiu fortemente para

surgirem como metrópoles duas cidades amazônicas - Belém e Manaus. Também vale

lembrar que as principais indústrias mundiais se beneficiaram do trabalho dos

seringueiros brasileiros, acentuando-se, assim, a relevância social desta pesquisa.

3. Identidades, discursos, fronteiras e outros conceitos

Para Hall (2006), a identidade deve ser apreendida como uma "celebração

móvel", formada e remodelada continuamente em relação às formas pelas quais somos

representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 2006).

Ela é definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito incorpora identidades

diferentes em diferentes situações; as identidades não são unificadas em torno de um

"eu" lógico, coeso. Dentro de nós há identidades conflitantes, movimentando-se em

várias direções, de tal modo que nossas identificações são continuamente deslocadas. A

sensação de que temos uma identidade integrada, do nascimento até a morte, resulta de

uma história sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu", afirma Hall

(2006). Na visão do autor, a identidade completa, estável, inabalável e coerente é uma

ilusão. À medida que os sistemas de significação e as representações culturais se

multiplicam, somos apresentados a uma pluralidade de identidades possíveis, com cada

uma das quais podemos nos identificar - ainda que instantaneamente.

Para as reflexões acerca das identidades dos seringueiros deslocados da Bolívia

para o Brasil, apresentamos neste item alguns conceitos ligados à noção de fronteira,

tendo em vista que esses sujeitos pertenciam a um espaço fronteiriço, localização

geográfica que os colocava em uma situação de pluralidade identitária.

Conforme Pesavento (2002, p.35), as fronteiras, antes de serem marcos físicos

ou naturais, são, sobretudo, elementos simbólicos, balizas de referência mental que

guiam a percepção da realidade. Esses limites são produto de uma capacidade de

representar o mundo por meio de outro mundo, de sinais por meio dos quais os homens

percebem e qualificam a si próprio, ao corpo social, ao espaço e ao próprio tempo. As

fronteiras são acima de tudo representações culturais, são construções de sentido, são

elementos que estabelecem classificações, hierarquias e limites, direcionando olhares e

apreciações sobre o mundo.

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A fronteira relaciona-se a definições como as de espaço e território. Raffestin

(1993) esclarece que o espaço não tem valor de troca, somente de uso. O espaço é

sempre anterior a qualquer ação; é metaforicamente uma matéria-prima, um local de

possibilidades, pré-existente a qualquer conhecimento ou prática dos quais será o objeto

a partir das intenções de apropriação de alguém.

A apropriação do espaço, esclarece o autor, leva-nos ao conceito de território,

entendido como uma produção dada a partir da dimensão espacial, a qual é sempre

constituída por relações de poder, de controle. Qualquer representação de espaço

expressa um desejo, uma “vontade de verdade” dos sujeitos que o representam. Afirma

o autor:

Toda prática espacial, mesmo embrionária, induzida por um sistema de ações

ou de comportamentos se traduz por uma produção territorial que faz intervir

tessitura, nó e rede. É interessante destacar a esse respeito que nenhuma

sociedade, por mais elementar que seja, escapa à necessidade de organizar o

campo operatório de sua ação. (RAFFESTIN, 1993, p.150).

Ao ocuparem determinados pontos, os indivíduos administram poderes e

controlam o espaço conforme suas necessidades. Diante dessa observação, Raffestin

(1993) afirma não haver fronteiras naturais, pois os limites são sempre estabelecidos por

relações de poder. O limite é um componente importantíssimo nessa demarcação, pois

exprime a relação que um grupo mantém com uma porção do espaço. Muitos limites se

estabelecem por meio de zonas e nesse sentido a área delimitada não é o centro de uma

soberania rigidamente fixa, mas a sede de uma atividade econômica ou cultural que não

é totalmente explorada no território, mas de modo progressivo.

Os limites políticos e administrativos, nas fronteiras, são mais ou menos

estáveis, enquanto os econômicos são sempre moventes e obedecem às dinâmicas de

certas conjunturas. Esse contíguo de pontos constitui “malhas definidoras da tessitura de

organização de um espaço”. Essas malhas nunca são homogêneas e abrigam elementos

que revelam nodosidades ou marcos. Nelas se elabora a existência e as identidades de

grupos, “quer se trate de cidade, de aldeias ou metrópoles”. Esses pontos são locais de

referência que se determinam de forma absoluta ou relativa, neles se busca saber onde o

Outro se situa, o que pode auxiliar ou prejudicar, o que tem ou não tal recurso, o que

tem mais acesso ou não a tal lugar etc. Esses pontos revelam, dessa forma, imagens de

um poder do ou dos atores dominantes (RAFFESTIN, 1993, p.53-157).

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Essa interação marca diferenças funcionais que contribuem para ordenar o

território de acordo com a importância dada às ações dos grupos. Por isso, a noção de

território é atravessada pela noção de identidade, traçada sempre por símbolos que

nutrem a ideia que uma comunidade tem de si e de outros sujeitos. Nas linhas

territoriais, homens e mulheres lutam em defesa de seus lugares de vida, de sua

memória.

Em análise de processos de territorialização de ação local e desenvolvimento

sustentável, Teisserenc e Teisserenc (2014) observam que, em geral, grupos tradicionais

reivindicam o território a partir de lutas pela apropriação – em alguns casos,

reapropriação – dos recursos do local onde se inserem como forma de resistência a

tentativas de apropriação global desse meio pelo capitalismo. Resulta daí uma

“desflorestação”, dada pela “transformação” dos territórios de vida desses grupos em

territórios “abstratos”, influenciada pela globalização com o objetivo único de explorar

mais eficazmente seus recursos, em uma implantação do desenvolvimento industrial de

monocultura e de pecuária extensiva.

É comum comunidades responderem a esse tipo de apropriação por meio de

movimentos sociais. Essas lutas têm várias facetas e podem se apresentar “sob a forma

de uma defesa dos lugares de vida das comunidades, de sua memória, de seu

enraizamento econômico, social e cultural”. Muitas se apoiam em organizações

coletivas inspiradas em princípios de autogestão. São lutas geralmente para buscar um

“território social” definido como espaço de pertencimento pelos grupos e comunidades

que promovem a reivindicação, “e que é ao mesmo tempo um espaço de mobilização

onde se afirma a legitimidade de cada comunidade para se proteger, se desenvolver, se

fazer reconhecer”. (TEIRESSENC e TEIRESSENC, 2014, p.07).

Os autores ainda fazem observações importantes acerca de deslocamentos

compulsórios de algumas comunidades e em alguns casos, como os episódios de

construção de barragens, há uma reconfiguração da concepção de território marcando

novas relações das comunidades com o seu entorno. A perda do território reivindicado

pode ocasionar a perda da territorialidade, ou seja, a relação da comunidade com suas

referências, porque o território é simultaneamente material e imaterial e não se limita a

aspectos concretos e físicos. No território sempre existem “valores simbólicos das

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instituições, dos eventos, das práticas que compõem a vida das comunidades que vivem

do e para o território”. (TEIRESSENC e TEIRESSENC, 2014, p.08).

Isso significa que a análise da territorialidade só pode ser feita pela apreensão

das relações reais postas em seu contexto socio-histórico e espaço-temporal. A

identidade de qualquer povo só pode ser avaliada a partir do conjunto do que é vivido

por ele cotidianamente, sua relação com o trabalho e o não-trabalho, a família, os

amores, as autoridades políticas etc. (RAFFESTIN, 1993, p. 162).

Os processos de deslocamento dos homens e mulheres brasileiros, trabalhadores

que sobreviviam da extração do látex, residindo em território boliviano, e passaram

compulsoriamente a morar em Projetos de assentamento do INCRA, no Brasil, e

cidades do estado do Acre também se relacionam aos movimentos de sentido que

subjazem à noção de sustentabilidade e natureza, na contemporaneidade. Para isso, é

pertinente observar a relação que o homem tem estabelecido com a natureza, a qual tem

gerado inúmeras consequências, entre as quais a mais relevante nos últimos tempos tem

sido a preocupação com a sustentabilidade do planeta.

Conforme Giddens (2002), a relação homem-natureza se alterou imensamente

com o advento da modernidade, período em que os homens passaram a tratar a natureza

como um conjunto inativo de forças a serem manipuladas para finalidades humanas, ao

interpretarem que a natureza seria um domínio separado da sociedade. Para o autor, a

natureza “chega ao fim” e o homem atua dia-a-dia em uma espécie de “socialização da

natureza”, no sentido de que o mundo natural é ordenado cada vez mais de acordo com

os sistemas internos da sociedade. Essa forma de se relacionar com a natureza

certamente tem afetado as decisões que mantêm afastados os seringueiros dos seus

espaços de produção, alterando também a imagem que eles têm de si próprios.

De acordo com Vale (2010), o trabalho é uma das atividades que constituem

parte da identidade social de qualquer pessoa. Ele se coloca como uma expectativa

social desde o nosso surgimento, pois as pessoas esperam sempre que, no momento

certo, ocupemos um espaço no mundo do trabalho, definindo, por essa via, uma

identidade. Não por acaso a forma elaborada para questionar a profissão é: o que você

é? Ao invés de qual a sua profissão?

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“A identidade profissional resulta na vinculação do ser humano a uma atividade.

Ser médico, secretária, professor, comerciante, motorista de ônibus” (VALE, 2010, s/p)

ou seringueiro, indiscutivelmente, territorializa nossas ações, o olhar do outro sobre nós

e nosso olhar sobre o mundo. O autor ressalta ainda que:

Não apenas o modo como o trabalho é realizado, mas também o que resulta

desse trabalho, o seu produto são importantes na construção da identidade

humana. Ambos devem trazer satisfação e bem-estar. (VALE, 2010, s/p).

A importância do trabalho atualmente faz com que essa atividade apresente-se

como determinante de grande parte do significado das identidades culturais. Na

profissão, o indivíduo identifica parte daquilo que ele é. A profissão representa muito

mais do que um conjunto de aptidões e funções, é também uma forma de vida que se

assume, uma vez que a relação entre o trabalhador e sua profissão é característica pelo

envolvimento, pelo sentimento de identidade e de adesão aos seus objetos e valores

(CAMPOS, 2000). Assim ao se distanciarem da sua atividade profissional, o seringueiro

e vê desterritorializado, ao ter suas referências abaladas.

A constituição das identidades é um assunto que embora bastante exercitado,

ainda oferece muito a debater. Muitos autores (HALL, 2006; GREGOLIN, 2008) têm se

dedicado a responder a indagações sobre as identidades, nas sociedades ditas pós-

modernas. Buscam explicar como se constituem e qual o papel da língua(gem) e do

discurso nesse processo? Perguntas como essas suscitam os mais ardentes debates, em

diferentes campos de investigação científica.

Para Gregolin (2008), o entendimento da noção de identidades passa pelo que

ela define por efeito de sentido produzido pela e na linguagem. Sendo assim, as

identidades são construções discursivas, por isso podem ser estudadas a partir das bases

da Análise do Discurso (AD). O discurso, nesse campo do saber, é entendido como o

entrelaçamento entre a língua, a história e as verdades de uma época e sua materialidade

pode ser verbal ou não-verbal.

A relação implícita entre os dizeres é chamada pela AD de interdiscurso

(COURTINE, 1999), elemento que permite identificar vozes do outro (BAKHTIN,

2000), na busca dos sentidos que são retomados ou apagados, enfim, no entendimento

das várias posições enunciativas possíveis. Para a AD, o sujeito é historicamente

determinado, pelo interdiscurso, pela memória do seu dizer. Nessas condições, algo fala

antes, em outro lugar, independentemente. Palavras já ditas e esquecidas, ao longo do

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tempo e de nossas experiências de linguagem que, no entanto, nos afetam em seu

‘esquecimento’. Assim como a língua é sujeita a falhas, a memória também é

constituída pelo esquecimento (ORLANDI, 2006, p.21).

A memória se estabelece a partir da relação da linguagem com a história e

pensá-la implica observar os diálogos entre a historicidade e os processos da linguagem.

A memória discursiva, portanto, tem um estatuto importante no funcionamento de todo

dizer, pois é a partir dela que, segundo Courtine (1999), a memória histórica é evocada

quando se materializam os enunciados de um discurso, naquilo que ele chama de

interdiscurso.

É também por meio de processos discursivos que certas identidades adquirem

visibilidade em nossa sociedade. Ser visível ou invisível depende de certos jogos de

poderes e, por essa ótica, Deleuze (1996, p.120) retoma Michel Foucault para afirmar

que é preciso “pegar as coisas para extrairmos delas a visibilidade e a invisibilidade de

uma época, que são o regime de luz, as cintilações, os reflexos que se produzem no

contato da luz com as coisas”. Assim o autor traz à discussão o que segundo ele foi “o

grande princípio histórico de Foucault”- a ideia de que “toda formação histórica diz

tudo o que pode dizer e vê tudo o que pode ver” (DELEUZE, 2006, p.121).

Trazemos essas afirmações para o nosso trabalho por acreditarmos que os

movimentos identitários por que passam os seringueiros em estudo têm levado esses

sujeitos a uma espécie de invisibilidade diante das autoridades do Brasil, enquadrando-

os em outros lugares e em outros “regimes de verdade”.

4. CAPTANDO FALAS, IMAGENS E IDENTIDADES

Conforme já explicitamos, o objetivo deste trabalho é saber que contornos

adquirem as identidades profissionais dos seringueiros nas Fronteiras brasileiras (Acre),

e nas fronteiras bolivianas (Pando), com a intenção de compreender aspectos

emblemáticos dessas identidades, em permanente processo de troca cultural. Assim,

seguimos descrevendo e analisando o corpus da pesquisa, o qual se constitui de falas e

imagens colhidas nos materiais bruto dos documentários Lá Rota Del Pacífico: culturas

de fronteira ( 2006) e Amazônia Viva ( 2013).

O recorte do corpus obedeceu a uma seleção de cenas e depoimentos que

deixavam explícitas a nós a problemática da identidade profissional dos seringueiros, na

região das Fronteiras do Brasil e Bolívia. Algumas imagens da pesquisa foram retiradas

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do material que compôs o filme documentário Lá Rota Del Pacífico: Culturas de

Fronteira, produzido no ano de 2006. A produção desenvolveu a pesquisa através de

visitas à região, explorando o espaço da Tríplice Fronteira (Bolívia-Pando, Peru-Madre

de Dios, Brasil-Acre), com o intuito de documentar, principalmente através da imagem

e do som direto, a cultura local.

Em 2012, voltamos a essa área. Agora mais próximos dos arranjos do método

fílmico, operando a câmera e fazendo a captação de som direto. Contamos com a

colaboração de um guia, ex-seringueiro da região, que nos auxiliou em nossa primeira

entrada, seis anos antes. Entrevistamos 13 trabalhadores brasileiros, entre eles, os que

insistiam em permanecer no lado boliviano e aqueles que já se encontravam em cidades

acrianas. Também coversamos com agentes do poder público, como o Secretário de

Justiça e Direitos humanos do estado do Acre - Nilson Mourão e o Superintendente do

INCRA João Taumaturgo Neto.

Para uma descrição muito breve sobre quem são os seringueiros das Fronteiras

do Brasil - Acre, Bolívia – Pando, destacamos inicialmente seu modo de vida, sua

cultura, em relato feito a partir da nossa pesquisa de campo realizada em 2006, feita nas

colocações dos seringueiros brasileiros, que viviam na faixa de fronteira de 50 km do

lado boliviano com o estado do Acre. Na ocasião, verificamos que esses sujeitos viviam

do extrativismo, da agricultura de subsistência, da criação de pequenos animais e alguns

eram pecuaristas de pequeno porte. Muitos deles foram expulsos do estado do Acre

pelos fazendeiros, apoiados pelo governo militar, que transformaram seringais acrianos

em fazenda de criação de gado.

Na Bolívia, eles fixaram residência, casaram e tiveram filhos que nasceram em

território boliviano, mas foram registrados em cartórios brasileiros, como se tivessem

nascidos no Brasil. Nesse caso, explica Valcuende (2009), “a nacionalidade assume um

caráter instrumental”. Assim, o hábito de registrar os filhos em um lado e outro da

fronteira visa ao desfrute de alguns benefícios que alguns lugares oferecem. Muitos

desses homens e mulheres, nas últimas décadas, registram seus filhos no Brasil, por

exemplo, porque o crescimento econômico do país tem sido maior, assim como a

qualidade de serviços prestados pela administração pública é melhor que as dos outros

Estados da Fronteira. (VALCUENDE, 2009, p.176).

No âmbito imagético, percebemos, em 2006, entre os seringueiros, aspectos de

um processo de intercâmbio cultural entre as nações que integram a Fronteira estudada.

Na imagem que segue, um seringueiro, vestido com a camisa de um dos times mais

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populares do Brasil, mascava folha de coca, emblemático hábito adquirido no novo

lugar. Esses dois elementos (a camisa do time brasileiro e a mastigação da folha de

coca) nos levam a refletir sobre os jogos identitários que acontecem em situação de

deslocamentos por que certos sujeitos passam. Também acentuam como identidade e

diferença são faces de uma mesma moeda que estabelece fronteiras entre o outro e nós

(HALL, 2013).

Figura 1 – seringueiro dando depoimento

Foto: Emilson Ferreira (Ano: 2006)

As identidades, na fronteira, estão inevitavelmente fadadas a sofrer influências

de outros lugares e, portanto, de outras culturas, pois como um discurso, elas estão

abertas a diferentes vozes. Dessa maneira, em relação aos aspectos híbridos que

compõem as identidades desse sujeito, destacamos que embora marcando pelas vestes o

amor ao futebol brasileiro, usando a camisa do seu time, o seringueiro masca folhas de

coca, um costume que provavelmente adquiriu morando em terras bolivianas. Burke

(2008) explica que isso ocorre porque essas zonas fronteiriças são locais não apenas de

encontros, mas de sobreposições ou interseções entre culturas, nas quais o que começa

com uma mistura pode se transformar em algo novo e diferente.

Essa imagem retrata, ainda, teorias sobre a hibridização das culturas, segundo as

quais se esperam sempre modificações de hábitos quando se está em uma situação de

intercâmbio cultural. Mesmo não convivendo diretamente, ou cotidianamente com

bolivianos, a proximidade entre brasileiros e bolivianos sempre propicia trocas culturais

entre esses sujeitos.

As observações in loco e as imagens captadas dessa Fronteira entre Brasil,

Bolívia revelaram um distanciamento desses atores de sociedades ditas “desenvolvidas”.

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A distância dos desenvolvimentos técnicos ou tecnológicos, a nosso ver, compõe uma

das marcas identitárias desses trabalhadores, na região.

Figura 2 – Casal pilando arroz

Foto: Emilson Ferreira (Ano: 2006).

Nessa imagem, o arroz é rusticamente processado, por meio do pilão, para o

consumo, o que sugere que a industrialização dos alimentos ainda está longe da

realidade local.

Ainda no que se refere ao cotidiano dos seringueiros, destacamos imagens como

esta, em que flagramos um grupo de seringueiros produzindo farinha, para consumo

próprio.

Figura 3 – Fabricação de farinha

Foto: Emilson Ferreira (Ano: 2006).

Seguimos agora apresentando algumas falas dos seringueiros, que encontramos

no final de 2012. Não omitiremos o nome das pessoas que entrevistamos, pois esses

sujeitos concordaram em participar do nosso documentário chamado Amazônia Viva

(2013).

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O Sr. Claudio Ribeiro da Silva, contou que nasceu na Bolívia e, quando criança,

viveu alguns anos em Rio Branco, mas depois voltou para a Bolívia e nunca mais saiu.

Nos relatou ainda:

Meu trabalho era cortar seringa, quebrar castanha, botar roçado, mas agora

ninguém pode fazer mais isso, porque tá sujeito de botar a gente pra fora e

deixar tudo aí. Hoje eu vivo do trabalho de carpintaria, de um lado ao outro,

fazendo barco, casa, fazendo cerca para gado e, portão nas fazendas, mas

minha vontade era voltar a ser seringueiro.

Nessa declaração, vemos a profissão seringueiro ser posta como uma experiência

que fez parte do passado, porque as questões jurídicas e políticas da Bolívia determinam

o que pode e o que deve ser feito no local, determinando, por consequência, que sujeitos

e que identidades devem se alojar naquela localidade.

Com o dinheiro que ganha, Sr. Claúdio afirma que faz a feira uma vez por mês,

compra tudo na cidade de Xapuri, e da mata ele retira só “a castanha para temperar um

alimento” e, de vez em quando, mata uma caça e pesca junto com seus filhos no rio

Chipamano.

Mais uma vez a insegurança de ter a terra ou não, a ameaça de serem expulsos

de sua colocação tem se mostrado como fator de alteração da identidade desses

trabalhadores.

Ele relata ainda que quando alguém de sua família adoece vai para a cidade de

Xapuri buscar tratamento e remédios. Quando o encontramos, ele aplicava uma injeção

na veia de seu filho, pois o garoto estava tratando uma leishmaniose. Todos os seus

filhos estão estudando em escolas brasileiras. Naquele dia, sua mulher e o filho mais

velho estavam em Rio Branco para realizarem a prova do Enem. Torcia pra sua mulher

passar e fazer uma faculdade para depois vir dar aula na escolinha do Ramal da

Piçarreira. Contou ainda que é evangélico e que vê televisão com sua família em casa,

pois tem motor elétrico, tocado a gasolina. Disse que não tem vontade de sair de sua

terra, por ele continuaria morando na fronteira. Desses relatos podemos extrair várias

mudanças nos hábitos dos seringueiros, a exemplo da busca de remédios

farmacológicos e não mais de medicamentos naturais, a busca pela educação formal em

escolas, as novas crenças religiosas, além da presença da TV.

A crise que se fez na região está fazendo esses sujeitos adquirirem novas

identidades, eles estão sendo obrigados a se afastar dos hábitos e costumes ligados à

floresta: nos anos precedentes a esta pesquisa pudemos conviver com muita gente que

era descendente ou era ex-seringueiros, que nos relataram uma identidade bem diferente

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da que apontou o Sr. Claudio, os seringueiros tratavam suas doenças com rezas e

plantas da floresta. Os valores religiosos também se modificaram - a religião que eles

frenquentavam era o Santo Daime, religião essa nascida no Acre, com origem indígena.

Entre os seringueiros já deslocados da Fronteira Braisil-Bolívia, encontramos na

periferia de Rio Branco, o Sr. Rivelino Pereira Silva, que nos revelou:

Minha vida lá era muito boa, eu cortava seringa, se pudesse eu voltaria prá lá.

Aqui é ruim, eu vivo roçando quintal pros outros, trabalhando na diária; lá eu

era seringueiro, aqui eu não sou nada. Os bolivianos invadiram nossa terra,

fizeram picadas nas matas e pegaram a castanha. O que tinha futuro por lá

ainda era a castanha.

Ele afirma que procurou a defensoria pública:

Eles prometeram uma terra para gente. Já faz cinco anos e nunca mais

ninguém ouviu falar nesse negócio. Falaram que o nosso lugar era aqui, por

que se acontecesse alguma coisa com a gente lá, eles não podiam fazer nada

por nós.

Na fala de Sr. Rivelino é marcada a importância que o trabalho tem para a sua

identidade, ao declarar que “lá eu era seringueiro, aqui não sou nada”, evidenciando a

forte relação entre o trabalho e a identidade dessas pessoas, pontuando ainda que a

desterritorialização desses sujeitos afetou não apenas sua relação com espaços físicos,

mas também com dimensões sociais.

Mesmo havendo em certos lugares do Estado do Acre iniciativas que visam a

reinserir o seringueiro na atividade extrativista, com propostas de retorno a velhas

estradas de seringa, como ocorre com a fabricação de preservativos à base de látex,

gerenciada pela FUNTAC, os relatos nos mostram que na área em estudo a realidade é

bem outra: há um constante deslocamento desses trabalhadores que tentam sobreviver

de forma precária na cidade, deparando-se com falta de emprego e de condições de

sobrevivência.

Para muitos, ainda resta uma possibilidade de ter a posse da terra. E isso ocorre

talvez porque, nessa Fronteira, a questão da terra é definidora de situações e posições.

Observamos ainda que o discurso jurídico ordena as ações de muitos moradores

da fronteira que temem os preceitos da lei e assim muitos decidem deixar tudo o que

construiu a enfrentar a justiça. As leis que regem a realidade dessa Fronteira

determinam que os direitos agrários se estendam apenas a uns, provocando revolta, dor

e sofrimento a muitos moradores da região. Colocando, desse modo, muitos deles em

um regime de invisibilidade aos olhos do poder.

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Considerações finais

Neste artigo buscamos apresentar alguns resultados de uma pesquisa sobre os

seringueiros da Fronteira Brasil (Acre), Bolívia (Pando), desenvolvida a partir da

metodologia fílmica (FRANCE, 20018). O objetivo da investigação foi entender os

movimentos de identidades e que assolam os seringueiros dessa fronteira, como a

história tem imposto deslocamentos a esses sujeitos.

Para a maioria dos sujeitos entrevistados, a zona rural ainda é mais atraente que

a cidade, pois em seu território possuem meios mais naturais e eficientes de

sobrevivência.

Os relatos coletados sugerem que os seringueiros das Fronteiras do Brasil – Acre

e Bolívia - Pando estão cada vez mais distante do seringal e, portanto, aos poucos vão

tendo sua identidade diluída, pois a desarticulação do sistema socioeconômico com base

no látex os leva a um redimensionamento territorial, em que sua identidade se reorienta

para outros sentidos. Assim, novos cenários econômicos, políticos e mesmo culturais da

região os impelem ao encontro de outras identidades e os colocam em sistemas opacos

de visibilidade, pois sua causa não tem interessado às autoridades. Esses homens e

mulheres deixam de cortar seringas e se enquadram em outras atividades, como o

trabalho no comércio, nas construções civis de cidades mais desenvolvidas, ou mesmo

como empregadas domésticas, no caso das mulheres. Esse movimento converge para a

ideia de que as fronteiras são espaços fluidos, mutantes.

A metodologia fílmica foi muito apropriada para este estudo, pois possibilitou

que elementos situados apenas no campo do visível fossem captados e analisados para a

compreensão do modo de vida e das identidades dos seringueiros, sujeitos desta

pesquisa.

Este trabalho, apenas um recorte do tema aqui abordado, foi uma tentativa de

explicar o que ocorre com as identidades dos trabalhadores das Fronteiras do Brasil -

Acre, Bolívia - Pando, atualmente. Partimos do princípio que pesquisas científicas

podem dar visibilidade aos seringueiros da Fronteira Brasil (Acre) - Bolívia (Pando),

tirando-os da invisibilidade de alguns regimes de verdade de nossa sociedade, para

terem suas identidades ancoradas novamente em territórios sociais mais seguros para

eles.

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