senhorio e feudalidade na idade média - guy fourquin - completo

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SENHORIO E FEUDALIDADE NA IDADE MDIA

Guy Fourquin

Edies Setenta

Digitalizao Agostinho Costa

Arranjo Ftima Vieira

Este livro foi digitalizado para

ser lido por Deficientes Visuais

Fabricador

de instrumentos de trabalho,

de habitaes,

de culturas e sociedades,

o homem tambm

agente transformador

da histria.

Mas qual ser o lugar

do homem na histria

da histria na vida do homem?

LUGAR DA HISTORIA

1. A NOVA HISTORIA

Jacques Le Goff, Le Roy Ladurie,

Georges Duby e outros

2. PARA UMA HISTORIA ANTROPOLGICA W. G. L. Randles, Nathan Wachtel e outros

3. A CONCEPO MARXISTA DA HISTORIA Helmut Pleischer

SENHORIO E FEUDALIDADE NA IDADE MDIA Guy Fourquin

5. EXPLICAR O FASCISMO

Renzo de Fellce

6. A SOCIEDADE FEUDAL

Marc Bloch

A publicar

HISTORIA DO CRISTIANISMO Ambrogio Donini

O FIM DO MUNDO ANTIGO E O PRINCIPIO

DA IDADE MDIA

Ferdinand Lot

A CIVILIZAO CHINESA Mareei Granet

SENHORIO E FEUDALIDADE NA IDADE MDIA

memria de Charles-Edmond Perrin, que, em 16 de Maro de 1970, tinha escrito ao autor: A sua obra d-me a ocasio de saudar, de passagem, alguns elementos do meu ensino, mas to judiciosamente apresentados e interpretados, que adquirem um carcter de novidade, o que no me impede de murmurar a consolao dos velhos: Non omnino moriar...

Paginao - Rodap

ndice - No final

INTRODUO

O termo feudalidade presta-se a confuso. que, se o adjectivo feodalis foi utilizado na Idade Mdia, o substantivo s veio a ser criado quando a feudalidade se aproximava da morte, portanto para o fim dos Tempos Modernos. E os historiadores servem-se deste termo, que afinal anacrnico para os medievalistas, em dois sentidos diferentes.

Em primeiro lugar, pode entender-se por feudalidade um tipo de sociedade baseado numa organizao muito particular das relaes entre os homens: laos de dependncia de homem para homem estabelecendo uma hierarquia entre os indivduos. Um homem, o vassalo, confia-se a outro homem, que escolhe para seu amo, e que aceita esta entrega voluntria. O vassalo deve ao amo fidelidade, conselho, ajuda militar e material. O amo, o senhor, deve ao seu vassalo fidelidade, proteco, sustento. O sustento pode ser assegurado de diversas maneiras. Geralmente faz-se atravs da concesso ao vassalo duma terra, o benefcio ou feudo. Assim, muito rapidamente, hierarquia entre os indivduos corresponde uma outra hierarquia, a dos direitos sobre a terra, devida a uma fragmentao extrema dos direitos de propriedade. Por ltimo, dada a fragmentao do prprio poder pblico, existe em cada pas uma hierarquia de instncias autnomas que exercem em proveito prprio poderes normalmente detidos pelo Estado. Por vezes qualifica-se este tipo de sociedade de regime feudal, mas Jean Calmette e Marc Bloch preferiram, para este primeiro sentido, substituir feudalidade por sociedade feudal.

O que permite, ento, reservar a palavra feudalidade

/;

para uma segunda acepo um conjunto de instituies. Enquanto o primeiro sentido tinha sobretudo um alcance social e mesmo poltico, o segundo antes de mais jurdico, sendo o que F.-L. Ganshof utiliza no seu belo livro precisamente intitulado Quest-ce que la foda-lit?. Mas ambos os sentidos esto intimamente ligados entre si: feudal, feudalidade, derivam de feudo. Georges Duby observa que o feudo apenas uma das articulaes do sistema feudal. Todavia, como escreve F.-L. Ganshof, ele , seno a trave mestra, pelo menos o elemento mais saliente na hierarquia dos direitos sobre a terra que a sociedade feudal comporta.

Esta palavra feudalidade sobrevive enquanto invectiva. Ainda hoje se criticam as feudalidades polticas, administrativas, econmicas, etc. Aviltou-se sob este rtulo tudo o que caracterizava o Antigo Regime, e foi assim que na noite de 4 de Agosto de 1789 se aboliram pretensamente os direitos feudais, enquanto o decreto de 11 de Agosto suprimia inteiramente o regime feudal. Durante muito tempo, a invectiva conteve dois sentidos misturados. Por um lado, a equivalncia entre monarquia absoluta e feudalidade, o que ntido sobretudo nas obras de Proudhon: mas no o absolutismo a anttese dum sistema caracterizado na sua maior parte pela desagregao do Estado? Por outro lado, confundia-se feudalidade e senhorio: consideravam-se como equivalentes feudalidade e nobreza, e acontece que esta tirava a sua fora, em princpio, da posse de terras, designadas senhorios. Pensando nos seus antepassados, o grande domnio e a villa, o senhorio pode parecer uma organizao mais do que milenria que permitia aos grandes possuidores fundirios exigir dos seus tenanciers ^) tributos e servios. Na medida em que o grande proprietrio, o grande senhor, no tinha ou j no tinha

C) Tenancier aquele que detm uma tenure, i. e., que cultiva uma terra dependente dum feudo mediante pagamento ao senhor de diversas prestaes e tributos). A dependncia do cultivador em relao ao senhor constitutiva da qualidade do tenancier em terminologia medieval francesa). As formas e o contedo dessa dependncia eram mltiplas: o termo francs, no designando nenhuma em especial, tem a vantagem da generalidade que nenhum termo portugus aproximadamente equivalente oferece. Com efeito, qualquer das tradues possveis colono, malado, foreiro, etc. possui um sentido mais restrito, designando uma forma especfica de dependncia. Da termos optado por manter o termo francs na falta de equivalente rigoroso em portugus. N. T.)

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direito de justia, isso j nada tinha a ver com a decomposio do Estado. Se, em 1789, a feudalidade se encontrava moribunda, o senhorio rural mantinha-se bem vivo, mas a Revoluo matou-o ao abolir os direitos feudais, que eram quase todos direitos senhoriais.

A antiga confuso entre feudalidade e senhorio no provm apenas do facto de a nobreza participar dos vestgios de feudalidade e possuir, ainda no sculo XVIII, um grande nmero de senhorios rurais. Ela explica-se tambm porque em certas regies oeste e sudoeste da Frana, Inglaterra) tinha havido sempre confuso da linguagem, e os mesmos termos tinham duas utilizaes: por exemplo, feudo tanto designava as tenures O vasslicas como camponesas. Por conseguinte, nada h de surpreendente em que um bordels, Montesquieu, confunda facilmente feudalidade e sistema senhorial. O que no obsta a que para este grande esprito a feudalidade fosse efectivamente uma fase da histria humana caracterizada pelo fraccionamento dos poderes que o Estado deve normalmente exercer.

Em contrapartida, o marxismo confundiu feudalidade e senhorio por outras razes. A feudalidade seria muito menos uma forma de regime poltico do que um tipo de organizao da economia e da sociedade, intercalando-se entre o esclavagismo antigo e o capitalismo. Neste sistema, o essencial evidentemente a infra-estrutura, cuja caracterstica principal consiste na subordinao das massas rurais aos senhores, que se apoderaram duma parte do trabalho dos seus dependentes ao mesmo tempo que das terras. Mas isso precisamente o senhorio e no a feudalidade, dado que esta em nada um modo de produo. Para os marxistas, a feudalidade durou um milnio, quando, na verdade, a verdadeira feudalidade apenas durou cerca de trs sculos.

O carcter particularmente tenaz da confuso entre ambos os termos, confuso que renasce constantemente, tem um lado positivo porque adverte contra a tentao de estudar separadamente feudalidade e senhorio, o que no desejvel, uma vez que o feudo era ao mesmo tempo um ou vrios senhorios. Seria prefervel ver como senho-

C) Tenure a terra concedida por um senhor a um campons ou a um vassalo. Como o prprio livro ilustra, as modalidades de tenures eram as mais diversas. Pela mesma ordem de razes apontadas na N. T. n." 1, optmos por manter o termo francs. N. T.)

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rio e feudalidade puderam reagir um sobre o outro, sem perder de vista que o senhorio, na condio de tornar este termo extensivo ao grande domnio da primeira Idade Mdia, durou bem mais de um milnio. Organismo anterior, pela maioria das suas caractersticas, feudalidade, poder-se-ia estudar o senhorio sem evocar grande coisa das instituies feudais, mas o inverso seria bem mais difcil.

H duas atitudes possveis para fazer o exame da feudalidade sem nos limitarmos ao seu aspecto jurdico, e da escolha depende o lugar a tomar pelo senhorio. Se se colocar a nfase sobre os laos de dependncia de homem para homem, o estudo do senhorio ficar reduzido ao mnimo. Assim fez Marc Bloch no seu admirvel livro A Sociedade Feudal. E a sua concluso era brutal: O senhorio, em si mesmo, a nenhum ttulo dever tomar lugar no cortejo das instituies a que chamamos feudais. Porqu? Porque o grande domnio, seu antepassado, coexistira anteriormente com um Estado mais forte, com relaes de clientela mais raras e menos estveis, com uma maior circulao do dinheiro. E, sem dvida tambm, porque ele voltaria a coexistir com tudo isto muito antes do fim da Idade Mdia. Em contrapartida e a segunda atitude possvel , se, sem minimizar o poder dos laos de homem para homem em todos os escales da hierarquia social, se quiser acentuar os aspectos econmicos, o feudo, portanto o senhorio rural, no uma simples articulao, ainda que importante, mas sim a trave mestra de todo o sistema. Dos rendimentos do senhorio vive toda a sociedade feudal, do no livre ao senhor feudal. O que este retira em servios e dinheiro do seu vassalo ele prprio senhor rural j no concebvel sem o suporte da terra, a qual muitas vezes simultaneamente senhorio rural e feudo. Ns adoptaremos esta segunda atitude, que permite ligar melhor o estudo do senhorio e da feudalidade.

A pequena dimenso deste livro obrigou-nos a evocar apenas o contexto poltico, religioso, mental, econmico. E foi preciso limitar o estudo simultaneamente no tempo e no espao. O que havamos escrito sobre a villa e a vassalagem merovngias e carolngias at meados do sculo IX) no ocupou mais lugar nesta edio do que na primeira, nem mais, de resto, do que na traduo inglesa hoje publicada. Pela mesma razo, o trabalho teve de centrar-se, mais do que seria desejvel, sobre o

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sector entre o Loire e o Reno, onde, certo, o senhorio e a feudalidade, tal como a villa e a vassalagem, nasceram e revestiram os aspectos mais clssicos.

Da imensa bibliografia retenhamos apenas, pela fora das circunstncias, as obras mais importantes ou mais recentes.

PRIMEIRA PARTE

EM DIRECO AO SENHORIO E FEUDALIDADE

de meados do sc. IX aos anos mil)

I

CAPTULO I MUTAO OU EVOLUO?

1. O deperecimento do Estado

A formao da sociedade vasslica carolngia foi um fenmeno espontneo, ignorando os quadros polticos, mas que estes no podiam ignorar. Ora, as consequncias, nem sequer distantes, deste fenmeno no deixam dvidas: a vassalagem conduziu desagregao do Imprio e do Estado carolngios. primeira vista poder-se-ia pensar que os primeiros Carolngios tivessem encarado esta transformao social com grande desconfiana. Na verdade, sem dvida desde Pepino, o Breve, seguramente desde Carlos Magno, os soberanos favoreceram conscientemente a vassalagem.

A) Os Carolngios e as relaes vasslicas

Longe de tentarem contrariar a evoluo social o que, de resto, era praticamente impossvel , Pepino e os seus sucessores favoreceram-na. E integraram mesmo a vassalagem no quadro dos organismos de Estado. Os laos vasslicos eram apenas laos privados que os representantes rgios, por conseguinte, teriam podido ignorar no exerccio das suas funes. Ora, pelo menos desde o reinado de Carlos Magno, os reis quiseram fazer da vassalagem um instrumento de governo *).

*) GANSHOF F.-L.), Lorigine des rapports fodo-vassaliques I problemi delia Civit Carolngia, Ia Settimana di Studio dei Centro ital. di studi sulValto medioevo, Espoleto, 1954, p. 27-69. P. 71-157: extenso Itlia por P. S. Leicht, e Espanha por

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Porqu esta utilizao sistemtica das relaes de vassalagem, a no ser devido prpria insuficincia e ineficcia dos quadros do Estado?

Na sequncia das guerras de Pepino e de Carlos Magno, o reino franco dilatou-se. Como os meios de comunicao eram muito medocres, o Ocidente carolngio representava, nossa escala, um continente. Impossvel, pois, recrutar pessoal em nmero bastante, suficientemente competente o Renascimento das Letras seria lento e limitado) e suficientemente seguro quanto mais no fosse devido s distncias e presena da aristocracia). Tanto mais que os recursos da realeza continuavam irregulares e limitados. Carlos Magno e os seus herdeiros apenas podiam controlar um pequeno nmero dos seus sbditos.

S lhes restava agarrarem-se o melhor possvel a esta minoria, representada pela aristocracia. O que correspondia mentalidade da poca. O rei partilha o estado de esprito dos grandes, para quem os agricultores no merecem interesse, quer se trate de no-livres quer mesmo de francos. De resto, os no-livres apenas dependem, salvo muito raras excepes, dos seus amos, e o mesmo acontece com os colonos livres, sobretudo se o respectivo dominus gozar de imunidade. Os campnios s interessam

C. E. Albornoz); Les relations fodo-vassaliques aux temps post-carolingiens lia Settimana..., Espoleto, 1955, p. 67-114); Uchec de Charlemagne C. R. de VAcad. des Inscript. et Belles-Lettres, 1947, p. 251); Limmunit dans la monarchie franque Rec. Soe. Jean-Bodin, t. I=^ p. 171-216). DLAGE A.), La vie rurale en Bour-gogne jusquau dbut du XI sicle, Paris, 1941. DHONDT J.), Etude sur la naissance des principauts territoriales en France IX-X s.), Bruges, 1948. LEMARIGNIER J. F.), Les fidles du rol de France, 936-987 Rec. Clvis Brunei, 1955, t. H, p. 138-162); De rimmunit la seigneurie ecclsiastique... 977-1108) in Etudes ddies G. Le Bros, p. 619-630. PLATELLE H.), La justice seigneuriale de Saint-Amand, Louvain, 1965. VERRIEST L.), Institutions mdivales, Mons-Frameries, 1946. Sobre a nobreza: DUBY G.), Une enqute poursuivre: la noblesse dans la France mdivale {Revue Hist., 1961, p. 1-22). GENICOT L.), La noblesse... dans Tancienne Francie, continuit, rupture ou volu-tion? {Comparative Stud. in Soe. and Hist., vol. 5, n. 1, 1962, p. 52-59); La noblesse... dans rancienne Francie Annales E.S.C., 1962, p. 1-22); La noblesse dans la socit mdivale... Le Moyen Age, 1965, p. 539-560); Naissance, fonction et richesse...; le cas de la noblesse du nord-ouest du continent Probl. de stratif. sociale, 1966, p. 83-100). PERROY E), La noblesse des Pays-Bas Revue du Nord, 1961, p. 53-59). DUBY G.), Lignage, noblesse et chevalerie au XIP sicle dans la rgion mconnaise Annales E.S.C., 1972, p. 802-823).

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ao soberano como fonte de receita fiscal. Este acha por bem governar os grupos de camponeses por interposta pessoa, por outras palavras, pelos grandes proprietrios fundirios.

Um s estrato social tem pois importncia para o rei, a aristocracia fundiria. E ele julgou que, ligando-a solidamente a si, dominaria, com ela e por intermdio dela, o Ocidente inteiro. Faltava ainda impor a autoridade real ao conjunto deste estrato, utilizando de duas maneiras o lao de vassalagem. Em primeiro lugar, multiplicando na medida do possvel o nmero dos vassalos directos do rei, aos quais seriam concedidos benefcios importantes e privilgios. Depois, pressionando os outros aristocratas portanto os proprietrios fundirios mdios ou modestos a entrar na vassalagem dos vassalos reais ou vassi dominici. A sociedade aristocrtica ficaria assim enquadrada numa hierarquia de trs nveis o rei, os vassi dominici, os vassalos destes), ligando-se estes nveis uns aos outros por cadeias de juramentos de que o soberano detinha uma ponta, e que esperava utilizar para aumentar o controlo sobre os seus sbditos E. Perroy), na impossibilidade de poder retirar um efeito prtico dos juramentos de fidelidade exigidos em diversas ocasies a todos os homens livres.

Os progressos da vassalagem real explicam-se tambm por consideraes militares. Carlos Magno e os seus primeiros sucessores alargaram o recurso vassalagem em matria militar: no s os seus exrcitos eram formados por vassalos, como estes, com os seus prprios vassalos, tinham aumentado muito os efectivos e o valor das hostes, nomeadamente quando se encontravam estabelecidos em colnias, guarnies militares instaladas nas zonas fronteirias e nos sectores mal dominados ou turbulentos, como a Aquitnia, a Baviera ou a Itlia.

Em matria poltica e administrativa, a utilizao da vassalagem foi igualmente considervel, mas muito perigosa. Desenvolvendo um costume criado no reinado de seu pai, Carlos Magno colocou sob a sua vassalagem, quando ainda o no estivessem, condes e prelados. S sob Lus, o Pio, que veio a generalizar-se completamente o costume de integrar as honores na vassalagem. Assim, em todo o territrio do Imprio de Carlos Magno, as funes pblicas e as altas dignidades religiosas sofreram graves desvios.

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Distingamos o caso dos leigos e dos clrigos. Enquanto vassus dominicus, o conde recebeu vastos benefcios. Enquanto conde, recebeu as res de comitatu *), terras da fazenda pblica que constituam a dotao da sua funo enquanto esta durasse. Ainda em 817, um diploma de Lus, o Pio, relativo dotao do conde de Tournai qualifica-a de ministerium e distingue-a dos beneficia que eram recebidos pelos vassalos reais. Mas deu-se, ao longo do sculo IX, uma espcie de fuso entre a honra e o benefcio no seio do patrimnio do conde; da a crescente dificuldade em deslocar ou destituir um conde, tanto mais que a honor, tal como o benefcio, tornou-se rapidamente vitalcia e depois hereditria de facto. Em 877, em Quierzy, foram tomadas idnticas medidas provisionais para as honores de condes que ficassem vagas e para os benefcios de vassalos: a mesma hereditariedade de facto em ambos os casos, o filho sucedendo ao pai.

Os cargos eclesisticos conheceram a mesma evoluo, salvo evidentemente no que diz respeito hereditariedade, dado que, pelo menos desde Lus, o Pio, todos os bispos e alguns abades tiveram de entrar na vassalagem real: os prelados, cujas terras beneficiavam de imunidade, eram considerados como funcionrios. Estado de coisas que se reflecte nos escritos de Hincmar, arcebispo de Reims, utilizando o mesmo termo de honores para designar as funes e dotaes dos bispos, e mesmo os benefcios dos vassalos reais: a funo episcopatus, abbatia) assimilada ao benefcio. Quanto homenagem e ao juramento do prelado, faziam-se como para os leigos: em 860, Hincmar protestou efectivamente contra o rito das mos e o juramento provavelmente sem sucesso , mas no contra a regra da commendatio em si mesma. E o prelado entrava na posse do seu bispado ou da sua abadia segundo o rito da vestitio, e o objecto simblico era neste caso o bculo. O modo como detinha os seus bens completava assim a aproximao do alto clero com a aristocracia laica, da qual, cada vez mais frequentemente, provinham os seus membros filhos mais novos de famlias poderosas).

De livre vontade ou no, os Carolngios instauraram uma poltica que se voltou quase imediatamente contra o poder real. Bispos e abades, para mais imunes, tiveram

*) Ou comitatus, au ministerium, ou honor. Aqui, honor no designa apenas, como supra, a funo pblica, mas tambm a respectiva dotao.

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cada vez mais liberdade de aco, mas no era isso o mais grave. Mais grave foi que os condes, longe de estarem mais submetidos, se libertaram da tutela real, perpetuando-se nas suas funes *). Quanto aos vassalos privados, cujo recrutamento os Carolngios haviam tentado vigiar e que em princpio tinham o direito de apelar para o soberano contra o seu dominus, ficaram dependentes da suserania deste ltimo em muito maior grau do que os primeiros Carolngios teriam desejado.

Resta o caso dos vassi dominici desprovidos de honores, portanto os mdios e os pequenos. Como o rei est longe e se vai tornando fraco, mais vale ceder presso dum senhor poderoso da vizinhana, muito frequentemente o conde. Finalmente, cerca de 900, j s se encontraro vassalos reais na regio de residncia do rei.

O fracasso carolngio ter sido verdadeiramente total? No, e a vassalagem que esteve longe de ser a nica causa do declnio da dinastia contribuir largamente, a partir do sculo X e at ao tempo das monarquias feudais, para a salvaguarda do princpio monrquico.

B) Fragmentao do poder e tentativas de reagrupamento territorial

Na Frana e na Alemanha, a runa do Estado foi simultaneamente causa e consequncia do que Marc Bloch chamou um desmembramento dos poderes pblicos em pequenos grupos de comando pessoal. Alguns condados acabaram por se dissolver e, em muitos casos, a unidade de base passou a ser o castelo e o que se chamar mais tarde a castelania. Houve um movimento de sentido inverso, uma reunio dos poderes regionais nas mos dum s homem.

Estes dois movimentos contrrios no foram coisa nova aps o tratado de Verdun: desde a poca merovngia que se haviam feito e desfeito principados, por exemplo na Austrsia e na Borgonha, sem falar da Aquitnia nem dos arremedos de ducados nacionais na Germnia

*) Uma vez que se tornassem vassalos, os condes s obedeciam ao rei na medida em que este respeitasse os seus compromissos. Havendo homenagem, os deveres so recprocos, por conseguinte o rei j no obedecido pelos seus agentes enquanto soberano. Quanto mais fraco ele for, mais os seus agentes-vassalos podem impor-lhe compromissos pesados que arruinam mais ainda o seu poder.

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cf. a Baviera de Tassilo), enquanto se desvaneceram unidades mais restritas. A novidade est em que diversas unidades regionais nascidas do declnio carolngio iriam conservar por muito tempo a sua configurao geogrfica. No apenas na Germnia, onde os ducados, salvo na Lorena, eram nacionais, possuindo portanto um certo particularismo tnico, lingustico, jurdico, mas at mesmo em Itlia e na Fr anci. Alguns condados foram assim unidos sob a dominao dum mesmo aristocrata.

Foi na Francia Occidentalis, onde o particularismo era todavia menos acentuado do que na Alemanha e as divises polticas de antiga data menos sentidas do que na Itlia, que o apagamento do poder real foi mais grave e o nascimento de principados um fenmeno generalizado, ainda que, no conjunto, relativamente pouco preparado pelos tempos anteriores.

O desaparecimento definitivo dos Carolngios em 987 no se deveu nem ao acaso nem a m sorte: O acesso ao trono dos Capetos no constitui uma ruptura; a consagrao duma realidade de facto. J. Dhondt demonstrou irrefutavelmente que o apagamento do poder rgio na Frana Ocidental proveio da progressiva retraco geogrfica e territorial do fisco. Como os primeiros Merovngios, os primeiros Carolngios tinham assentado o seu poderio num vasto domnio composto de grandes e numerosos fiscos disseminados por todo o pas, fonte de grande riqueza, principal meio de subsistncia para o Palcio, reserva de benefcios a criar para assegurar novas fidelidades ou consolidar antigas. Se os reis conseguiram, durante bastante tempo, assegurar um equilbrio E. Perroy) entre o fisco = conjunto dos fiscos) e os domnios dos grandes, o mesmo j no aconteceu a partir de Lus, o Pio: o Imprio estava territorialmente estabilizado no momento em que as rivalidades entre filhos do rei, depois entre candidatos ao trono Robertianos contra Carolngios), obrigavam a pagar cada vez mais cara a fidelidade cada vez mais vacilante dos grandes, incitados a subir a parada cada vez mais. O resultado era ntido no fim do sculo X: a fortuna fundiria carolngia tinha vindo a reduzir-se progressivamente e o seu possuidor era rei j s de nome.

Isto acontecia no momento em que se formavam principados, portanto territrios nos quais o soberano s podia intervir por intermdio do prncipe, ou seja, muito raramente e sem grande sucesso. Os Carolngios

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tinham-se apercebido do perigo e tentaram, mas sem grande esforo, constituir um principado para si mesmos. Em vo. A definitiva vitria dos Capetos, na pessoa de Hugo Capeto 987), deve ser posta em paralelo com a substituio dos Merovngios por Pepino, o Antigo, e seus sucessores: estes eram ricos em terras e os ltimos reis merovngios j quase as no tinham. Hugo encontrava-se cabea dum grupo de condados homogneos entre o Sena e o Loire mdios, enquanto os ltimos Carolngios j s detinham o Laon e umas vinte propriedades do fisco ao longo do Aisne e do Oise.

O ano 987 foi marcado pela vitria dos principados territoriais, pelo menos de um deles e do seu senhor. As atribuies militares, judiciais, econmicas terrdigos, oficinas de cunhagem, etc), a proteco das igrejas, etc, em suma, as regalia, tal como a autoridade sobre a sociedade rural e vasslica, o duque ou conde possuidor de um ou vrios condados) que as exerce. E j no o rei. Por outras palavras, em finais do sculo X os primeiros Capetos j s so duques no seu reino, sendo para eles a nica base real de autoridade o seu prprio principado.

Iniciado pouco depois de 850, o movimento de usurpao acelera-se fortemente no tempo de Eudes f 898). Foi a partir do fim do sculo IX que Balduno II criou a Flandres, que Ricardo, o Justiceiro, edificou o ducado da Borgonha, que da heterclita amlgama dos condados de Bernardo Plantevelue nasceram ao mesmo tempo o primeiro ducado da Aquitnia e a marca de Tolosa. Foi ainda por volta do ano de 900 que apareceram o principado neustriano dos Robertianos e a Normandia, sendo esta ltima uma formao das mais originais, porque devida ocupao da regio pelos Vikings, antes que Carlos, o Simples, a cedesse, em 911, ao chefe Rolo. Se nem todos os poderes pblicos no interior do principado esto ainda, a partir de 900, concentrados nas mos do prncipe, este detm j a maior parte deles e no passar muito tempo at que se apodere do resto.

Os principados da Francia occidentalis possuem trs caractersticas principais: s alguns conservaram o quadro inicial; os seus contornos eram vagos e, se os seus chefes sempre cultivaram os particularismos regionais, nenhum deles conteve uma populao verdadeiramente homognea.

No nmero dos principados com alguma coerncia, que duma maneira geral conservariam os seus con-

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tornos iniciais por vezes at 1789, pomos os ducados da Normandia e da Bretanha, at mesmo o domnio dos Robertianos, bero da futura Ilha-de-Frana. Colossos com ps de barro, como algum escreveu, uma vez que os principados vieram a sofrer dos mesmos males que os reinos. Sim, mas na medida em que eram demasiado grandes e em que a circulao dos homens e das ordens se tornava a particularmente difcil, na medida tambm em que os prncipes no souberam impor regras sucessrias que refreassem a fragmentao. Foram pois vrios os que, a partir do sculo X, se dividiram em unidades mais bem adaptadas s condies do tempo, tal como a Aquitnia. Impossvel traar um mapa de conjunto para este sculo X, de tal modo os contornos permaneciam fluidos. Cerca do ano mil, ainda ento, o duque da Borgonha s exercer poder efectivo no centro do seu ducado entre Autun, Avallon, Dijon e Beaune), enquanto os condes perifricos de Nevers a Lan-gres, de Troyes a Mcon) apenas reconhecero a sua autoridade por intermitncia.

No entanto, ducados e condados da Frana ocidental foram por vezes, apesar da sua fragilidade, votados a um longo futuro. E, contudo, a sua populao nunca era perfeitamente homognea. Nem os Borguinhes, nem os habitantes da Aquitnia, nem os da antiga Nustria chegaram a estar todos reunidos num principado nacional: depois da estabilizao dos anos mil, os ducados da Borgonha e da Aquitnia apenas viriam a incluir uma parte reduzida da Burgundia e da Aquitnia de outrora. O condado da Flandres reuniu Romanos e Alemes. O centro de gravidade da Bretanha, de maioria celta, ficou situado na franja ocidental do ducado, nas zonas romanas de Nantes e de Rennes. E, na Normandia, os verdadeiros Normandos os Vikings nunca passaram duma minoria.

Na Germnia as coisas eram completamente diferentes. A morte de Lus, o Menino 911), os Alemes renunciaram a apelar para outro carolngio, na pessoa de Carlos, o Simples, rei de Francia Occidentalis. A designao dum novo soberano chocou com o particularismo dos grupos tnicos e polticos, o dos ducados nacionais Stammesherzogtum), que remontavam a um passado remoto e tinham sobrevivido conquista merovngia e carolngia. Memrias, lngua e costumes comuns se bem que as antigas leis dos Alemes, Bvaros e Saxes) tivessem cado em desuso davam a cada ducado uma

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base possvel para a sua unidade efectiva. Alm disso, os Stammes da Baviera e da Alemanha tinham conservado os seus duques nacionais depois da entrada para o reino franco. Mas, no princpio do sculo X, embora cada Stamni ainda tenha um duque, este j no um descendente da antiga dinastia: o herdeiro dum funcionrio nomeado por um dos primeiros carolngios e que terminou por adoptar o ttulo de dux. A fraqueza do poder real no fim do sculo IX, as incurses normandas, eslavas e hngaras, tiveram por efeito o renascimento do particularismo dos Stammes, que se colocaram sob a proteco do dux. Cerca de 900, quatro Stammes vieram assim a reconstituir-se: os ducados da Saxnia, da Francnia, da Baviera e da Subia. Alm disso, a Lota-rngia, desprovida de unidade tnica porque povoada de Romanos, Alemes, Prises, etc, viu as peripcias que afectaram o seu destino dar nascimento a um particularismo lotarngeo. Viria a formar, a partir de 925, o quinto ducado da Germnia.

Dois destes ducados, a Francnia e a Saxnia, foram a partir de 911 os beros da realeza: mais cedo do que na Francia Occidentalis, os Carolngios foram na Alemanha definitivamente suplantados pelos prncipes territoriais. Conrado I, rei em 911, era da Francnia. O seu sucessor foi o duque da Saxnia, Henrique I, cuja dinastia iria ocupar o trono at sua extino, em 1204. Vai ento comear a reinar a grande dinastia dos Slios, com Conrado II: os duques da Francnia pretendiam-se descendentes dos Francos Saltos, eles como os seus homens; da lhes vinha glria, uma glria que os predestinava a retomar a obra carolngia.

A oposio entre os ducados foi mais acentuada do que em Frana por causa do seu particularismo, e viria a prolongar-se para l da Idade Mdia. E a designao dum novo rei pressupunha o acordo entre os grupos nacionais, da o ter-se mantido o princpio da eleio, enquanto em Frana este princpio cedeu rapidamente o lugar a uma hereditariedade de facto, depois de direito. Quanto aos grandes, deviam retirar do particularismo dos ducados uma fora excepcional que faltou aos grandes de Frana e de Inglaterra na sua oposio aos soberanos. No entanto, sendo certo que sob Conrado I e Henrique I, portanto entre 911 e 936, as lutas contra os duques e depois as solues conciliatrias a que se chegou enfraqueceram bastante a monar-

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quia, ia efectuar-se um ntido restabelecimento do poder real sob Oto I, que soube mant-los com a rdea presa, limitando os seus direitos e tratando-os como funcionrios. Isto significava um retorno regra carolngia. Os duques so os vassalos do rei a partir do novo imperador, que os pode destituir e no reconhece, por princpio, ao filho o direito de suceder ao pai nos seus ttulos e funes. Isto passava-se ainda roda do ano mil. Mas por quanto tempo?

Provisoriamente, por conseguinte, o rei da Germnia parece mais favorecido do que o rei da Frana Ocidental. Este, de resto, j nem se mostra em pessoa nas zonas afastadas da sua residncia e, ao sul do Loire, a maioria dos prncipes j nem sequer lhe presta homenagem. Apenas ao norte do rio quase todos os prncipes se encomendaram ao rei, so os seus fiis. Mas estes rompem e reconciliam-se com o soberano, assistindo ou no s sesses da sua Cria, participando ou no nas suas expedies, conforme estejam ou no em estado de revolta, aquando dos tumultos ocasionados pela rivalidade entre Robertianos e Carolngios. Em resumo, o nmero dos prncipes territoriais e dos condes efectivamente fiis ao rei pouco elevado, e varia ao sabor das desordens. O rei j no mais do que um prncipe territorial e s o desde que seja Robertiano; no entanto, todos os condes, todos os prncipes, reconhecem, ao menos formalmente, a autoridade suprema do rei, nascida simultaneamente da sagrao e da tradio, datando os seus actos pelo ano do seu reinado, chegando mesmo a apelar para ele em caso de perigo extremo cf. o caso de Borel, conde da marca de Espanha). Nisto reside uma esperana para o futuro.

Esta esperana no existe de todo em Itlia. O processo de fragmentao territorial foi acelerado pelas divises polticas preexistentes. No Norte os bispos exercem o poder dos condes, criam para si mesmos principados eclesisticos Brgamo, Placncia, Cremona, Parma, etc), fundam-se marquesados Frioul, Ivre). O Estado da Igreja fica contido entre o marquesado da Toscnia e os ducados lombardos ou bizantinos do Sul. A autoridade real apagou-se, j s intervm momentaneamente. Sendo exterior ao pas, o seu futuro parece desesperado.

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2. Da villa ao senhorio rural

A evoluo ou a mutao as opinies dividem-se que levaram da villa ao senhorio devida principalmente transformao duma instituio antiga, a imunidade, e apropriao pelos poderosos do direito de bannum. ^) Em que medida que este processo modificou a vida dos camponeses?

A) A imunidade

Desde o fim dos tempos merovngios, as propriedades da Igreja distinguiam-se das dos leigos por uma vantagem de que estes, mais cedo ou mais tarde, querero beneficiar. Trata-se da imunidade, que os Carolngios outorgaram com maior liberalidade ainda do que os seus antecessores.

A origem da imunidade, que tem suscitado controvrsias, remonta ao Baixo Imprio. O fisco, portanto a fazenda do Estado, encontrava-se isento de todo o imposto directo ou indirecto, e os seus habitantes, os colonos, no pagavam a capitao. Sob os Merovngios o domnio do Estado continuou a beneficiar de iseno fiscal, a que vinha juntar-se, como corolrio, a iseno judicial: o administrador duma villa real cobrava dos habitantes todos os rendimentos reservados ao rei e exercia por delegao os poderes de justia. Assim, os habitantes, subtrados aos tribunais pblicos, ficavam unicamente submetidos aos poderes de coaco do administrador.

Desde que o rei alienasse uma parte do fisco, esta perdia logicamente o privilgio de imunidade. Mas, talvez desde o sculo VI, considerou-se que o lao entre domnio estatal e imunidade era indissolvel, uma vez que esta ltima se encontrava ligada quele para sempre: alienando a terra, o rei, ipso facto, alienava o privilgio. As consequncias desta indissolubilidade sero imensas, a prazo, para a transformao da villa em senhorio.

Ao longo dos sculos VI e VII, os reis esbanjaram o seu imenso capital fundirio mais vasto do que o dos

C) O droit de ban consiste num poder geral de comandar, coagir e punir os homens livres. Significa um conjunto de prerrogativas dos senhores feudais. Em portugus apenas existem o substantivo e o adjectivo derivados, banalidade e banal.

imperadores, porque acrescido de espoliao e de conquistas), sobretudo em benefcio da Igreja, a tal ponto que Carlos Martel, em muitos casos, no far mais do que recuperar doaes que lhe tinham sido efectuadas pelos Merovngios. Assim, no conjunto, os bens temporais dos episcopados e abadias, constitudos em larga medida sob os reis brbaros, provm de terras de fisco e gozam, salvo reserva expressa, de imunidade. E, a pretexto de simplificar a sua prpria administrao, os detentores de villae imunes, clrigos na maioria, obtiveram a extenso do privilgio a todos os seus outros bens: vrios diplomas e frmulas concedem assim a imunidade ao conjunto desta ou daquela propriedade da Igreja. Por fim, ltima transformao importante da imunidade anterior aos Carolngios, o acessrio o judicial) tornou-se o essencial, dado que a fiscalidade se diluiu ainda mais depressa do que o Estado: No h imunidade sem excluso dos juizes rgios Fustel de Coulanges). Estes deixam de poder advogar as suas causas, condenar, apreender, prender, e de beneficiar do direito de pousada no territrio colocado desta forma margem das instituies pblicas. A vantagem material para o senhor imune aprecivel; recebe os lucros da justia, devendo apenas, mas nem sempre, contribuir com uma parte das multas para o soberano. A justia comea a proporcionar aos proprietrios de villae belos lucros, e estes, sem dvida alguma, representam j uma percentagem importante dos rendimentos dominiais.

No que respeita imunidade, a poca carolngia teve menos influncia do que a sua predecessora. No se modificando da em diante, as novas caractersticas da imunidade no fizeram mais que acentuar-se. Mas foi ento que ela se generalizou: proliferam diplomas de concesso, e no apenas de confirmao, a tal ponto que quase todas as terras eclesisticas dela beneficiam. Mas deixa de haver concesso de imunidade a leigos coisa que sempre fora rara , o que significa que a imunidade de ento em diante o regime normal dos bens da Igreja, e s deles. O conde e os seus subordinados vem vedar-se-lhes os bens temporais de bispados e abadias, e quase todos os seus poderes, at mesmo no que respeita ao recrutamento de contingentes militares, passam para os prelados, nicos representantes do rei nos seus imensos e numerosos domnios.

Financeiramente, a iseno immunis significa isento to completa como no plano militar: a todos

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os seus vassalos e tenanciers o prelado cobra, por conta do rei, os terrdigos, as contribuies ligadas quer ao exrcito o hostilicium, taxa de substituio do servio militar), quer s incurses normandas os Carolngios lanaram impostos para pagar os tributos aos invasores), quer ao exerccio da justia o senhor imune deve pagar ao rei um tero das multas). Mas, no plano judicial, a imunidade no completa. O prelado e o conde partilham entre si o poder de julgar e condenar, tendo Carlos Magno provavelmente assegurado que este ltimo continuasse a exercer uma parte da autoridade. Distinguem-se em matria penal as causae minores delitos), que no so passveis de multa igual a 60 s. e relevam do tribunal do senhor imune e j no do centurio, subordinado do conde), e as causae majores. Trata-se dos delitos mais graves e dos crimes passveis da multa de 60 s. reservada ao bannum dominicum), de priso, de penas corporais, inclusive a morte. O tribunal do conde permanece o nico competente, e o senhor imune tem o dever de lhe submeter os delinquentes, sob pena de pesadas sanes, que podem ir at confiscao ou deposio.

Os efeitos da imunidade foram imensos, e no s nas terras da Igreja. Mas no os esperados pelos soberanos, que julgavam ter criado uma ligao imediata com os territrios imunes e consolidado o seu prprio poder enfraquecendo os condes, colocados, por esta forma, em oposio aos senhores imunes. Porque a fidelidade dos condes era bem mais aleatria do que a dos prelados, nomeados pelo rei e cuja dedicao era mais fcil de assegurar. Mas os Carolngios tinham-se iludido e o controlo real sobre os domnios imunes ia diminuir rapidamente. E isso por culpa dos reis, de Carlos Magno em primeiro lugar, que outorgaram novos privilgios s igrejas, financeiros o rei abdica da sua parte das multas, iseno do terrdigo para o prelado e sua famlia, at mesmo abandono completo do terrdigo a favor deste ltimo) e tambm militares limitao do contingente a fornecer ao exrcito).

Da a cobia dos leigos, nomeadamente dos condes. Contra ela, contra a rebelio eventual de senhores imunes, os Carolngios promulgaram pesadas penas. Facto significativo: os soberanos renderam-se depressa evidncia, os seus clculos tinham falhado.

At mais ainda do que parece. As terras imunes no permaneceram por muito tempo em ligao imediata

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com o rei, e uma nova barreira ia rapidamente interpor-se entre o rei e os seus sbditos das terras eclesisticas. O senhor imune, na verdade, viu-se na obrigao de criar um embrio de administrao, recrutando cobradores de terrdigos, juizes, etc, escolhidos muitas vezes de entre os clrigos que o rodeavam. Mas os homens da Igreja no podiam exercer a justia de sangue em caso de flagrante delito) nem conduzir um contingente guerra. Tornou-se pois necessrio delegar estas funes laicas num subordinado, escolhido entre os membros da aristocracia local. Desde o princpio do sculo IX, designou-se este leigo de advogado advocatus) ou vidama vice-domi-nus); sendo este ltimo ttulo reservado aos domnios episcopais. Havia duas maneiras possveis de lhe retribuir os servios: entregando-lhe uma parte dos lucros cedidos pelo rei ao senhor imune ou, ento, concedendo-lhe em benefcio villae da Igreja, ou, ainda, acumulando estes dois processos. Tendo quase as mesmas funes que o conde, o advogado em breve se revelou to rebelde em relao ao prelado quanto o conde em relao ao rei. Tal como o conde foi roendo o poder real, o advogado consolidou rapidamente o seu controlo sobre uma parte dos bens da igreja. Eis aqui, a curto prazo, graves ameaas para os domnios eclesisticos. De intermedirios entre o Estado e o territrio imune, os advogados iriam transformar-se, a partir do sculo X, em protectores necessrios e incmodos.

Os documentos, raros no sculo X, abundam no sculo seguinte. Ento, a funo do advogado apresenta caractersticas radicalmente diferentes das do sculo IX. Estas caractersticas, que muito provavelmente se afirmaram antes do ano mil, mostram que a funo do advogado carolngio se transformou, no intervalo, em algo de completamente novo Ch.-Ed. Perrin).

A funo menos gratuita do que nunca. No sculo IX, o advogado recebia um beneficium vitalcio como prmio pelos seus servios. Com os tempos, este benefcio transformou-se em feudo, de facto hereditrio e alienvel, uma vez que no seu benefcio que o advogado talha os feudos que concede aos subadvogados. O feudo do advogado dum tipo muito particular dado que cria obrigaes puramente unilaterais, consistindo na proteco do senhor pelo vassalo, sem reciprocidade. Contrariamente aos seus predecessores da poca carolngia, o advogado cobra um direito de hospitalitas de cada vez que penetra em territrio imune para o exerc-

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cio das suas funes e, quando preside aos julgamentos senhoriais trs vezes por ano, em geral), recebe uma parte das multas. Encontramo-nos na poca obscura do nascimento das justias privadas, mas um dado certo que alguns senhores imunes, no contentes em julgar as causae minores, se tinham apoderado das causae majores, em detrimento dos condes. Multiplicaram-se assim as causas julgadas nos tribunais senhoriais, mas o aumento dos rendimentos derivado do maior nmero de multas no beneficiou os religiosos. Os seus advogados foram os nicos que lucraram com isso, eles que tinham abandonado as causas de baixa justia aos agentes dos clrigos que tomavam parte nos julgamentos ordinrios, de importncia diminuta.

Muitos bispados puderam resistir presso dos advogados. Mas muito poucas abadias. E esta funo representava um encargo muito pesado: a troco da sua proteco, os advogados impuseram exaces aos homens da abadia, a tal ponto que houve tendncia para substituir o senhorio das abadias pelos dos advogados. Da, em finais do sculo XI, aquando da reforma gregoriana, a vigorosa aco dos monges para limitar todas as exaces dos advogados.

Da geografia da funo juiz-delegado avouerie) ainda s ressaltam os traos essenciais. Duma maneira geral, esta teria tido tendncia a prosperar, no sculo X e mais tarde, nas regies onde o poder do rei ou do prncipe era fraco, mas nem sempre foi este o caso. verdade que a funo do advogado ps-carolngio no pde desenvolver-se na Normandia, uma vez que o prprio duque exercia a proteco das igrejas. Em Frana, o novo advogado ou advogado senhorial, como o designou Ch.-Ed. Perrin s sucedeu ao carolngio a leste duma linha unindo os limites orientais da Normandia, Chartres, Orlans, Bour-ges e Lyon; ora, coexistiam a prncipes fortes e prncipes fracos. Coisa mais estranha: no Sul da Frana, frequentemente anrquico, a funo manteve-se sob a sua forma carolngia, portanto humilde, desempenhando o seu titular apenas um modesto papel de representante do senhor imune em matria judicial. De qualquer maneira, a monarquia capeta retomar foras no sculo XII e vai absorver esta funo, que desaparecer, em muitos casos, antes de 1200: de ora em diante o rei quem assegurar a guarda das igrejas. Mas, no Imprio, a situao devia evoluir em sentido mais ou menos contrrio. Durante toda a primeira Idade Mdia o rei da Germnia tinha

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sido suficientemente forte para assegurar a proteco das casas religiosas e impedir que o poder dos advogados se alargasse. Este advogado carolngio devia ter a uma vida mais longa do que noutros lados, uma vez que s desaparecer no limiar da poca revolucionria.

Colocam-se a imunidade c esta funo do advogado cabea das causas que provocaram a passagem da villa ao senhorio rural principalmente porque a extenso da imunidade s villae possudas por leigos tinha assumido grandes propores atravs dos tempos. Se bem que s se tenha conservado um diploma de imunidade passado em favor dum leigo 888), no h dvida de que, dentro dos limites das suas possesses, os leigos exerceram uma jurisdio anloga dos clrigos nos seus territrios imunes: nas capitulares de Pitres 864), Carlos, o Calvo coloca no mesmo plano o domnio imune e o dum potens leigo, o que significa que ento todo o potens leigo era assimilado, do ponto de vista da imunidade, ao potens eclesistico. Assim, os leigos gozaram, nas suas terras, duma imunidade de facto, tolerada ou suportada pelo rei. Tolerada, a princpio: o conde estendeu aos seus prprios aldios os direitos que exercia nos limites do seu condado; muitos leigos edificaram toda ou parte da sua fortuna com benefcios retirados dos domnios pblicos ou eclesisticos, e estas terras continuaram a beneficiar da sua anterior imunidade. Suportada, depois: foi certamente por usurpao, sem a menor aceitao tcita do soberano, que muitos leigos se apropriaram da imunidade nas suas prprias terras.

A imunidade, me das justias privadas que se encontram completamente constitudas cerca do ano mil, em parte consequncia do declnio do poder real, tal como o senhorio rural ou o senhorio banal que dela derivam. Poderes de origem pblica juntaram-se) aos velhos direitos dominiais escreveu algum, e tornaram mais pesado o poder j antigo do senhor do solo sobre os seus dependentes rurais. A partir do sculo X, os senhores imunes ou os advogados tornaram-se os juizes de quase todos os camponeses.

B) O direito de bannum

Sob os Carolngios, o smbolo da autoridade pblica era o bannum do rei. To rudimentar e imperfeito quanto o prprio poder real, era a sua significao. Tendo o rei

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por misso primordial manter a paz entre os francos, o bannum era um poder geral de comandar, coagir e punir os homens livres.

Em relao ao soberano, os homens livres tinham assim um duplo dever, a obedincia o rei coage e pune), o servio militar o rei comanda). No que se refere ao representante local do poder, o conde, este duplo dever materializava-se sobretudo na obrigao de participar nos contingentes do condado a cada convocao do exrcito franco e na de tomar parte nas assembleias judiciais em que se julgavam crimes ou delitos e que eram encarregadas de manter a paz entre os francos = livres). Trata-se do que nos tempos feudais se iria chamar servio de hoste e servio judicial.

Entre os anos 850 e o ano mil, os condes e os seus delegados continuaram, como detentores da autoridade pblica, a exigir o cumprimento destas obrigaes. Mas passou a ser, de ento em diante e salvo excepes, em proveito prprio. O que significa que os maiores proprietrios fundirios dispunham, a partir da, do bannum sobre todos os homens das suas terras, reforando assim os seus poderes sobre os camponeses, dado que este bannum era evidentemente mais eficaz do que a imunidade. Poderes militares, poderes judiciais, mas tambm poderes econmicos. A sua aplicao viria a ser muito ampla: todos os homines dependentes) iam ter de aceitar novos servios, novos tributos, ou suportar a reentrada em vigor de antigos impostos cados em desuso. em nome do direito de bannum que as fontes de lucro para o senhor da antiga villa se vo multiplicar, cerca do ano mil, no continente, no fim do sculo XI em Inglaterra, quando o regime senhorial tiver endurecido na sequncia da conquista normanda.

Este direito de bannum conferiu ao seu detentor tais poderes sobre os tenanciers que o senhorio banal foi o tipo de senhorio que mais pesou sobre a vida dos camponeses. Mas que aconteceu aos proprietrios de villa que o no obtiveram? Podemos supor que, por contaminao, a autoridade vaga que segundo alguns o dominus tinha desde h muito estendido a todos os homens da sua terra se tenha reforado gradualmente: o dominus tornou-se um senhor fundirio.

Por fim, acrescentemos que o bannum que pode dividir-se em bannum superior e inferior conforme o seu possuidor o detenha ou no na totalidade) no devia ser adquirido partida por todos os potentes. Pensa-se

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que, num primeiro tempo, s dele beneficiaram os condes e os alcaides. Mas, pouco a pouco, este direito vai descer hierarquia dos possuidores fundirios: no Mconnais, a vulgarizao da justia e dos poderes de comando e a confuso do senhorio banal com o senhorio fundirio s se tero consumado depois do ano 1200. A evoluo anuncia-se, embora, por vezes, bastante lenta.

C) Os grupos de dependentes rurais: fora numrica e fraqueza social

Durante toda a primeira Idade Mdia, os dependentes rurais formaram a grande maioria da populao: afora eles, apenas havia diante da aristocracia fundiria pequenos proprietrios livres em nmero decrescente e habitantes urbanos mercadores ou no em nmero reduzido.

Dizer que o nvel de vida dos camponeses permaneceu miservel explica que os humildes nunca tenham ento podido opor resistncia vontade da aristocracia, cujas exigncias no podiam seno originar uma baixa do nvel de vida, porque se vivia numa economia deprimida. O enfraquecimento da situao econmica dos camponeses foi mais ou menos contnua.

A documentao merovngia indigente. Ela continua insuficiente, apesar de grandes progressos, sob os carolngios. No contemos com as capitulares, que no se interessam pelos camponeses, mesmo livres: durante sculos os reis deixaro os dependentes rurais discrio dos aristocratas. As outras fontes por exemplo, os polpticos) tambm comportam riscos. Apenas conhecem uma nica linha de demarcao, a que separa livres e no-livres. Conhece-se a resposta de Carlos Magno a um dos seus missi: S existem duas condies, a de liher e a de servus. Mas, a despeito desta demarcao jurdica, livres e no-livres, desde que explorassem uma Tenure, encontravam-se todos sob a estrita dependncia do dominus da Villa: as condies de vida unificavam o que os diversos estatutos pessoais podiam separar. Eis porque seria difcil falar de classes rurais da dos livres e da dos no-livres , uma vez que o conceito de classe nunca pode assentar exclusivamente em critrios jurdicos.

No direito das pessoas como no sistema judicial, o direito romano e as leis brbaras opunham nitidamente livres e escravos. Ora, ao longo da alta Idade Mdia, esta

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oposio atenuou-se na prtica progressivamente. De tal modo que as distines entre os estatutos pessoais tenderam a perder quase toda a fora, tendo-se os camponeses fundido num s estrato de dependentes *).

1) Do colonato galo-romano ao colonato da alta Idade Mdia. No Baixo Imprio o termo colonus, que designava anteriormente qualquer agricultor, tinha adquirido na legislao um sentido simultaneamente restrito e preciso, o do homem ligado terra. Os camponeses rendeiros dum grande proprietrio foram apanhados num movimento visando tornar hereditrias muitas profisses para tentar atenuar as dificuldades sociais e a decadncia material resultante da desero dos campos. A instituio de colonato fez pois parte dum plano de conjunto: tal como a aristocracia se encontrava fixada hereditariamente ao seu cargo municipal, de igual modo o rendeiro duma terra, explorada pela sua famlia desde h pelo menos trinta anos, ficava ligado a esse bocado de terra que os seus descendentes tambm no poderiam abandonar. Se o colono permanecia teoricamente livre ao contrrio do escravo, no tinha senhor), tornava-se contudo escravo da sua terra. Em contrapartida, o proprietrio no podia tirar-lha, e o regime do novo colonato, em princpio, proporcionava aos homens subjugados a certeza do dia de amanh. Mas, na realidade, o colonato favorecia muito mais a aristocracia: a sua principal razo de ser era impedir que os grandes tivessem falta de mo-de-obra para a explorao dos seus domnios. Tanto mais que a legislao estipulava que o colono deveria aos seus proprietrios os tributos e os servios consuetudinrios, e que este, indo mais longe, imps as condies de trabalho que quis: a verdadeira sorte do colono aproximou-se da do escravo fixado terra. E a aristocracia arrecadava o imposto fundirio sobre os

*) No devem esquecer-se os livres no dependentes em virtude de serem pequenos proprietrios. Mas os seus efectivos reduziram-se progressivamente durante o Baixo Imprio, durante a poca brbara e depois sob os Carolngios. A realeza desempenhou um papel nesse declnio: a independncia e a plena liberdade tinham o seu lado mau porque as obrigaes militares e judicirias dos pequenos proprietrios eram muito pesadas. Ora, os potenes da vizinhana, sobretudo detendo funes pblicas ou um privilgio de imunidade, no careciam de meios de presso para obrigar os francos a ceder a propriedade das suas terras e a retom-las a ttulo de tenure. Quando a sua pequena propriedade entrava desta maneira para uma villa, o franco perdia simultaneamente uma parte da sua liberdade.

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colonos, com o encargo de entregar o respectivo produto ao Estado, donde abusos frequentes.

Em que medida foi aplicada a legislao do Baixo Imprio? O imperador no disps de meios suficientes de coero para ligar todos os colonos ao solo, da que tenha persistido no Ocidente uma certa mobilidade da populao rural.

Mobilidade que aumentou muito depois das invases germnicas: concebe-se dificilmente que os funcionrios merovngios ou lombardos pudessem perseguir os colonos fugitivos. Podemos pois estar certos de que a obrigao antiga caiu em desuso, ainda que alguns aristocratas tenham tentado lutar pelos seus prprios meios contra o que os sculos ulteriores chamaro as deseres.

Assim, o colono carolngeo no podia ser inteiramente semelhante ao colono do Baixo Imprio. certo que, a avaliar pelos polticos, o termo continua muito difundido. Mas evidente que os homens assim chamados no descendem todos do colonato romano. Mesmo sem a relativa mistura de povos devida s grandes invases germnicas, teria havido, como em todos os tempos, transferncias de populao de um lado para outro, a extino de certas famlias, etc. Entre os colonos duma villa carolngia deviam figurar simultaneamente descendentes longnquos dos colonos primitivos, imigrantes por vezes arroteadores e sobretudo, talvez, antigos pequenos proprietrios livres.

Os Carolngios definiram claramente o novo estatuto dos colonos: eram tenanciers livres cuja dependncia do senhor da villa tinha sido reforada pelos reis. Que cada dominus ordenou Carlos Magno numas capitulares de 810 faa presso sobre os seus juniores = dependentes) para que estes obedeam cada vez melhor e aceitem as ordens e as prescries imperiais. Em suma, os primeiros Carolngios levaram consolidao e extenso do escalo mais baixo da pirmide dos laos de dependncia, tal como o fizeram para os outros escales, e sempre com a mesma iluso: controlar as massas camponesas por intermdio dos grandes, s ficando em ligao imediata com estes atravs da vassalagem. Tanto verdade que a marcha para a vassalagem e a marcha para o senhorio rural se processaram paralelamente.

Esta evoluo no sentido do senhorio rural particularmente visvel no que respeita aos poderes judiciais do dominus, mesmo daquele que no era imune ou

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mais tarde detentor do bannum. Os proprietrios romanos tinham-se arrogado um poder de coagir e punir todos os seus tenanciers, mesmo aqueles que, tal como os colonos, eram em princpio livres. E Justiniano cujas leis foram aplicadas na Itlia bizantina reconheceu aos aristocratas o direito de punir moderadamente os seus colonos sem apelar para os tribunais pblicos. Os Carolngios deviam ir mais longe: conhece-se a sorte dos tenanciers dos senhores imunes, mas at mesmo os outros foram da em diante levados para o exrcito pelos seus domini. O mesmo acontecia, a fortiori, nos fiscos grupos de domnios rgios), onde os judices regedores), vindos provavelmente do meio aristocrtico, desempenhavam esse ofcio. Por toda a parte se interps uma barreira entre colonos e poderes pblicos e, perante uma realeza impotente, os tribunais pblicos ficaram desertos desses livres ou francos que eram os colonos: estes, mais ou menos impedidos pelos grandes proprietrios de frequentar esses tribunais, caram sob o poder judicial dos seus senhores, excepo da justia criminal, uma vez que o dominus ainda era obrigado a apresentar o culpado ao tribunal do conde.

O colono era pois, desde o sculo IX, tratado de facto como um no-livre. Tanto mais que deixara de ser chamado para o exrcito, uma vez que o senhor resgatara a obrigao militar dos seus colonos repartindo entre estes a quantia a pagar ao rei. Ora, a sociedade carolngia, tal como a sociedade feudal que se lhe seguir, era uma sociedade predominantemente guerreira que desprezava os indivduos que no iam para o exrcito. A tal ponto que, apesar das afirmaes repetidas da sua liberdade terica, por vezes o colono acabava por ser tratado como os escravos: no dito de Pitres 864), Carlos, o Calvo, decidiu submeter, j no a multa, mas a sessenta chicotadas, os colonos que infringissem o bannum real. Tal como os escravos.

Como os colonos formavam, sem dvida alguma, a maioria dos grupos rurais no fim da primeira Idade Mdia, v-se quanto a liberdade tinha retrocedido. Os colonos j no passavam de semilivres, cuja sorte tinha piorado, enquanto a dos escravos seguia a evoluo inversa.

No dever esquecer-se, todavia, que se o colono, em princpio, no era mais do que o usufruturio da terra cuja plena propriedade romana os seus antepassados tinham abandonado, forados ou voluntaria-

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mente, quando eram pequenos proprietrios livres, podia dispor dela a ttulo gratuito ou at mesmo a ttulo oneroso. Muito mais tarde ter-se- conscincia de que este direito, decorrente da ruptura da antiga ligao do colono sua terra, podia ser gerador duma melhoria da sua sorte, at mesmo duma verdadeira promoo social.

2) Da escravatura antiga servido medieval. Os escravos carolngios, em menor nmero do que os colonos, eram muito diferentes dos escravos antigos. O que explica que certos historiadores prefiram falar de servos e j no de escravos.

Os rebanhos de escravos que trabalhavam nos grandes domnios romanos tinham-se progressivamente reduzido em nmero e em efectivos, de tal modo que a partir do sculo VIII j no passavam dum grupo residual. Esta ltima expresso, de resto, no totalmente exacta porque a sorte dos servi tinha nitidamente melhorado ao longo dos tempos. Os escravos antigos eram autntica mercadoria que o proprietrio podia vender e por vezes mesmo destruir. Se nem sempre eram maltratados, os seus descendentes carolngios mas ser que se tratava realmente duma parte da sua posteridade?) levavam uma vida muito menos difcil. Em partes graas ao Cristianismo. certo que os servi dos sculos IX e X continuavam a ser uma gente muito pobre, mas a sua vida era menos precria: s alguns eram alojados em cabanas, prximas da habitao do senhor da villa, ficando inteira disposio deste, sendo o seu trabalho dirigido pelo administrador, que lhes fornecia a subsistncia. Aparentemente, nada possuam de prprio, mas, permanecendo embora um objecto de comrcio, j no eram verdadeiramente uma mercadoria.

As causas do quase-desaparecimento da escravatura foram mltiplas. Antes do sculo VII ainda havia mercados de escravos, e o testemunho de Gregrio de Tours, por exemplo, denota que a sociedade da Glia continuava a ser, no sculo VI, uma sociedade esclavagista em muito larga medida E. Perroy). Com o sculo VII, o quadro modificou-se. Ser necessrio ter em linha de conta o aprofundamento do sentimento religioso, a irregularidade do abastecimento sobretudo externo) e a concorrncia dos mercadores de escravos muulmanos, ou ainda a longa depresso econmica conjugada com a decadncia da administrao dominial nas mos de

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administradores ignorantes, que incitaram os domini a desembaraar-se dos seus escravos, difceis de dirigir e de vigiar em grupo, fixando-os terra, portanto, concedendo-lhes tenures? mais fcil exigir, em certos dias ou em certos perodos, os servios dum tenancier, do que dirigir e vigiar todos os dias o rebanho de servi cujas carncias era necessrio satisfazer. A fixao terra) dos servi, que deve ter dispersado importantes grupos de escravos, tem de ser relacionada com a transformao dos vassalos sustentados em vassalos fixados, portanto dotados com um benefcio. No entanto, a transformao dos servi em tenanciers no pode explicar-se apenas pelo desejo de simplificar a manuteno da casa do aristocrata.

Em que medida ter a verdadeira sorte dos servi no fim da alta Idade Mdia correspondido ao seu estatuto jurdico?

a) Estatuto jurdico. O servus termo que significou escravo antes de dar servo em romano era marcado por uma tara hereditria transmitida pela me. Se os cnjuges fossem ambos no-livres, as crianas seriam servi. De igual modo no caso de um homem livre casar com uma escrava. Dir-se- mais tarde que o no-livre o homem de corpo, inteiramente propriedade do seu senhor, o dominus da villa.

Sob os Carolngios, tal como durante os sculos posteriores, no havia verdadeiramente impostos especficos da servido: se certo que se encontra o chevage, imposto ligeiro, como obrigao servil em alguns polpticos, provvel que no se tratasse dum imposto generalizado. A servido era apenas fundada na nascena, no sendo o chevage mais do que a contrapartida duma proteco especial, de uma igreja nomeadamente.

Um lao de homem a homem unia o servus ao seu proprietrio. Este podia requerer o seu escravo sempre que desejasse, retomar a qualquer altura o mansus ^) em que o tivesse fixado e reduzi-lo ao seu antigo estado de domstico. Mas tinha o dever imperativo de o defender contra tudo e contra todos. Em contrapartida, o senhor podia mandar perseguir o seu servo fugitivo, pois evidente que o lao de homem a homem no se

O No existe traduo portuguesa para o francs manse. Da termos utilizado o termo latino mansus, plural mansi. N. T.)

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rompia pela fuga do no-livre. Deste lao decorria um problema em caso de exogamia formariage) ^): uma escrava que casasse com o escravo de outro senhor passava a morar nas terras deste ltimo, que adquiria assim uma mo-de-obra suplementar a esposa e as crianas que nascessem). Este ltimo senhor apenas obtinha a mo-de-obra, no a propriedade da mulher e das crianas, que era ou passava a ser propriedade do senhor da esposa. Dificuldade que s mediante acordo entre os dois senhores se podia resolver: estes repartiam geralmente a descendncia ou chegavam a qualquer forma de acordo pecunirio. Em todo o caso, a fim de controlar esta migrao da mo-de-obra e a dissociao entre o direito de propriedade e o direito mo-de-obra, os domini impuseram o direito do aprovarem ou no o casamento em caso de exogamia. provvel que tenha aparecido, a partir do sculo IX, uma compensao em dinheiro, o imposto de formariage, devido pelo servo ou pela serva. Mesmo fixado terra, o servus no se dilua completamente na massa rural. Sofria de incapacidades graves, tais como a interdio de entrar para a vida religiosa e a excluso dos tribunais pblicos, onde no podia nem testemunhar nem prestar juramento. Estava submetido autoridade arbitrria do seu senhor, que dispunha de todo o poder para o punir em caso de delito ou at mesmo de crime.

b) Condio econmica. A instalao dos escravos em mansi servis, mais pequenos do que mansi ingnuos, melhorou muito a sorte dos no-livres: no caso de o senhor vender um servus, vende-o, a partir de ento, juntamente com o mansus, e o indivduo no mudar de vida. Simplesmente, o no-livre tem mais obrigaes do que o colono, e estas o que perigoso nem sempre so perfeitamente precisas.

Em virtude duma relativa mobilidade da populao, e sem dvida por outros factores tambm, desde antes de Carlos Magno deixou de haver coincidncia necessria entre o estatuto de cultivador e a categoria a que pertencia o mansus: havia escravos que detinham mansi ingnuos e colonos que detinham mansi servis.

C) Droit de formariage: direito pago pelo servo que pretendesse casar fora do respectivo senhorio. N. T.)

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Quanto aos escravos domsticos, cujo nmero se tornou muito reduzido, a no ser em regies mediterrnicas como a Itlia, tambm a sua sorte melhorou consideravelmente. Constituindo, de entre os habitantes da villa, aqueles que o dominus conhecia melhor, foi de preferncia a alguns deles que atribuiu os encargos de confiana administrao do moinho, do forno, do lagar, oficina de preparao do mosto, funes de mordomo ou administrador), bem como os trabalhos de artesanato. Nas casas muito grandes, as misses importantes, os servios de administrao ministeria), eram-lhes confiados. No sculo X, estes homens da familia, tornados indispensveis, chamar-se-o ministeriales. E, no Imprio, viriam a formar o grupo poderoso dos cavaleiros-servos.

No obstante oposies jurdicas, as condies econmicas uniformes aproximaram livres e no-livres. Mas a fuso relativa ter-se- operado pela base ou por cima? Pela base, respondeu Marc Bloch, para quem os colonos ttulo que deveria desaparecer cerca do ano mil) teriam adquirido a condio de no-livres entre o final da poca carolngia e o princpio do sculo XI. Por cima, respondeu L. Verriest. Juridicamente, a linha de partilha entre livres e servos no mudaria entre a poca carolngia e o sculo XI, fundando-se no nascimento e no em atribuies pretensamente caractersticas {chevage, mo-morta, formariage para os servos, segundo Marc Bloch). De facto, os no-livres ganharam um pouco em relao aos antigos colonos, segundo L. Verriest, dado que todos os camponeses se tornaram semilivres. Do ponto de vista social, no deve exagerar-se a oposio entre regime dominial e regime senhorial. Muitos traos caractersticos do senhorio rural j estavam presentes na villa carolngia e houve muito mais uma evoluo do que uma mutao.

3. Da vassalidade feudalidade

A passagem duma outra deve ter-se efectuado, em geral, durante esse perodo to confuso que se estende de meados do sculo IX at cerca do ano mil. No foi s e directamente a consequncia do desaparecimento do Estado nem duma certa vulgarizao dos laos de vassalagem, mas tambm de outros factos, que de resto lhes esto associados.

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A) Estratificao das fortunas fundirias: estratificao dos poderes sobre os homens

No final da primeira Idade Mdia, a estratificao das fortunas no seio da aristocracia fundiria corresponde a uma estratificao dos poderes. Nada h aqui de surpreendente: a base do poder sobre os homens permanece a terra. O poder, de maneira geral, reparte-se como aquela.

1) A estratificao das fortunas fundirias. Esta estratificao, facilmente perceptvel nas suas grandes linhas, no na verdade conhecida em pormenor em algumas regies privilegiadas. Na maioria das vezes, os estratos da sociedade feudo-vasslica s se conhecem indirectamente, atravs de fontes eclesisticas, e ainda h poucos estudos regionais. Por falta de documentao, muitas vezes indigente ou pouco clara, no certo que se possa um dia cobrir todo o Ocidente com trabalhos de histria social relativos a este perodo.

Em vez de incorrer em extrapolaes imprudentes, prefervel apoiarmo-nos sobre o exemplo mais seguro, porque melhor conhecido, o da Borgonha e particularmente de Mconnais cerca de 950. Mas tratar-se- dum caso mdio? No certo, porque os bens eclesisticos aparecem a com pouca importncia: os antigos mosteiros foram vtimas de graves espoliaes por parte de leigos e os novos, em meados do sculo X, encontram-se apenas no estdio inicial da constituio das suas fortunas. Assim, nesta provncia, os leigos detm a imensa maioria do solo, seja em aldios seja em tenures a ttulo de benefcio ou a ttulo precrio).

Nesta poca de transio entre a vassalidade e a feudalidade, h um desfasamento no tempo entre as relaes pessoais e o regime das terras E. Perroy). Quase todos os aristocratas so senhores ou vassalos, encontrando-se a vassalagem mltipla j bem implantada. Em muitos casos, o vassalo possui um benefcio recebido do senhor de concesso ou retomado dum terceiro), mas este apenas constitui uma parte da sua fortuna fundiria, parte tanto maior quanto mais alto se situe na hierarquia social. Assim, os aldios representam ainda um papel importante nos patrimnios mdios e pequenos, e figuram igualmente nos mais ricos. Dever-se- relacionar este facto com a tardia penetrao da vassalidade e do benefcio no Centro e no Sul da Francia? No s porque, roda do ano mil, havia aldios, e muitas

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vezes importantes, entre o Loire e o Reno. Por toda a parte a feudalizao subiu de baixo para cima, e no existe pirmide feudal acabada no sculo X. Tambm se devem ter formado aldios fraudulentos: por esquecimento de antigos contratos de vassalagem, negligncia do senhor, m-f do vassalo, antigos benefcios, hereditrios ou precrios sobretudo tratando-se dum potens face ao qual a Igreja se encontrava indefesa), entravam para o patrimnio alodial dos seus possuidores, efeito da hereditariedade de facto das tenures vasslicas.

No falaremos de classe nem mesmo de grupo aristocrtico, porque a aristocracia se dividia em numerosos estratos. Demasiados matizes, demasiados graus, um leque excessivamente grande das fortunas, s contribuam para a tornar pouco coerente. Os patrimnios podiam estar dispersos por vrios sectores, mas tambm podia acontecer apenas compreenderem uma s parte do senhorio. Numa extremidade da gama temos os potentes, nohiles ou optimates, muito ricos, pouco numerosos. Na outra, temos os detentores de senhorios menores vivendo sob certos aspectos de forma prxima da dos seus vizinhos camponeses, dos quais talvez ainda nenhuma distino jurdica ntida os separasse.

cabea dos potentes, os duques, margraves, marqueses, condes, e alguns destes comeavam a criar os seus prprios principados. Outros s tinham adquirido ou conservado um nico condado, como por exemplo, na Borgonha, o conde de Chalon ou de Mcon. Uns e outros podiam ser mas s de nome os vassalos directos do rei, ou dum prncipe, ou podiam talvez, por vezes, dizer-se independentes, mesmo no plano jurdico. Mas todos tinham integrado no seu patrimnio o comitatus, ou seja, o conjunto das prerrogativas realengas que os seus antepassados tinham exercido em nome do rei. Trata-se dum conjunto de poderes e de rendimentos dos condes:

de poderes: de ordem judiciria presidncia dos tribunais, cobrana de multas, etc), militar proteco de alguns castelos que faziam a cobertura do condado, termo tomado aqui enquanto demarcao geogrfica; direito de impor o servio de guarda a homens livres; comando dos contingentes destinados ao exrcito... do prncipe ou do prprio conde, na falta do de rei), econmico cobrana, em

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I

proveito do conde, dos terrdigos, portagens, etc); de rendimentos: existiam outros alm dos da justia e dos impostos sobre a circulao e venda de mercadorias. o que se chamava sob os carolngios as honores, termo cuja utilizao decaiu durante o sculo X. Nesta altura, as res de comitatu passaram, sem permisso rgia, para o patrimnio do conde, que pde mesmo enfeudar algumas partes a homens tornados seus prprios vassalos. Nisto consistia o essencial das fortunas dos conde no sculo X. E, nos casos mais favorveis, os condes tinham podido apoderar-se das terras desertas florestas, matagais, pntanos): assim aconteceu com Balduno II, fundador do poderio dos condes da Flandres, e a prazo quer dizer, aquando dos grandes desbravamentos tal facto proporcionar dinastia um notvel acrscimo de riqueza e de poder.

Muitas vezes o conde tanto mais forte quanto a sua famlia se possa ter ligado a algumas grandes linhagens do condado. No Mconnais foi possvel detectar trs ou quatro famlias poderosas que no pertenciam a condes. A fortuna destes potentes aumentou de gerao para gerao: nicos apoios possveis para o rei, o prncipe ou o conde, receberam destes novas concesses, incluindo os cargos de viscondes delegao tornada hereditria de direitos do conde), a guarda ou a posse de alguns castelos. E a Igreja tivera de lhes conceder algumas terras ricas a ttulo precrio, rapidamente transformadas em aldios. Eis aqui, pois, um grupo de algumas dezenas de pessoas a linhagem do conde e as linhagens suas aliadas. o nico grupo dirigente que, passado o ano mil, viria a formar o grupo dos alcaides e senhores banais.

Bem mais numerosos eram os senhores de importncia mdia. Alguns dos seus rendimentos eram de origem religiosa: a linhagem tinha-se apropriado ao menos duma igreja paroquial e das respectivas dzimas. Os outros provinham de terras detidas a ttulo de benefcio ou alodial, portanto de um ou de vrios senhorios rurais. Como estes homens no tinham podido apossar-se de vastas extenses desertas, geralmente no enriquecero muito com os prximos desbravamentos. Quanto aos muito pequenos senhores, cujos efectivos variavam muito de regio para regio, as suas terras eram redu-

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zidas, como era reduzido o nmero dos seus tenanciers. Por um aparente paradoxo, a maioria dos senhores pequenos e mdios possua um patrimnio composto principalmente de um ou de vrios aldios. No tinham sido suficientemente fortes para extorquir terras a ttulo precrio s igrejas e, uma vez colocados sob a necessria proteco dum grande, apenas receberam benefcios sem importncia, como os direitos duma tenure campesina ou uma parte da dzima, ou ento apenas um pedao de terra como reserva. O senhor no necessitara de pagar mais cara a fidelidade destes homens, que ele no temia, que necessitavam prementemente da sua proteco e que no poderiam efectuar servios dispendiosos. O resultado claro: pelo menos na Borgonha, antes do ano mil, a sociedade vasslica permanecia pouco coesa e incompletamente organizada, dado que a maioria dos vassalos apenas devia poucas terras s concesses senhoriais, portanto prestavam muito poucos servios vasslicos estes cada vez mais ligados ao feudo e sua importncia, cada vez menos homenagem em si mesma. Seria errado imaginar que a sociedade vasslica do final do sculo X formava uma pirmide completa.

Dado que o sculo X ainda vive sem dvida num relativo marasmo econmico, que as trocas comerciais continuavam pouco animadas, as causas econmicas no teriam podido abalar ou modificar a composio das fortunas e a respectiva hierarquia. Se modificaes houve, deveram-se principalmente s partilhas sucessrias, tanto mais frequentes quanto ento era breve a vida humana. Uma poca de subpopulao, como foi a primeira Idade Mdia, no necessariamente uma poca de famlias pouco numerosas. A restrio dos casamentos e dos nascimentos, muitas vezes efectiva, no impediu por completo o fraccionamento dos patrimnios aristocrticos. Era necessrio dar dotes s raparigas e os filhos que no entrassem para a vida religiosa no renunciavam sua parte, a qual podia ir parar s mos dos sobrinhos, a menos que tivesse sido doada Igreja. Os costumes que, mais tarde, tentaro limitar as partilhas cf. o direito de morgadio) ainda no se tinham formado: sem dvida que por quase toda a parte, na Francia do sculo X, os filhos dividiam igualmente entre si a herana materna ou paterna. E nessa altura ainda no era necessrio o consentimento da linhagem em caso de alienao a ttulo gratuito ou oneroso, nem de legado, por parte de um dos seus membros. Da que o fraccionamento se repe-

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tisse a cada gerao. De tal modo que, nos pequenos patrimnios compostos originariamente de um ou dois senhorios, as partilhas conduziam quase-pobreza dos herdeiros que no encontrassem a possibilidade de obter qualquer novo benefcio. Um paliativo medocre e provisrio: os herdeiros podiam manter entre eles a indiviso fraternitas, frresche).

Outra causa levava ao desaparecimento dos patrimnios. Eram as doaes e legados pios feitos por muitos senhores e que so bem conhecidos, evidentemente, atravs dos documentos dos mosteiros, catedrais ou colegiadas. Mas ter de facto havido, como se insiste em afirmar, uma to vasta transferncia de bens a favor dos clrigos? No exageremos a sua amplitude, que no entanto foi real no sculo X, muito mais do que vir a s-lo para o fim da Idade Mdia. Esta transferncia justifica-se pela mentalidade aristocrtica do sculo: a melhor maneira de ser protegido por Deus c na terra e de assegurar a salvao consiste em dar esmolas aos seus santos, portanto aos patronos das igrejas. E a esmola era o meio de resgatar um erro, mesmo abominvel. Habilmente, os clrigos contriburam para a ideia de esmola, necessidade moral. As ddivas Igreja, repartidas em cada gerao, lesaram os herdeiros e acentuaram o empobrecimento dos patrimnios devido s partilhas sucessrias.

As linhagens pouco abastadas sofreram com certeza mais do que as outras. Tanto mais que os senhores pequenos e mdios possuam sobretudo aldios, ao passo que os grandes detinham sobretudo benefcios e terras a ttulo precrio, das quais s algumas tinham sido fraudulentamente transformadas em aldios. Ora, se um aldio, como toda a propriedade, susceptvel de ser dividido em tantas partes quantas se queira e pode ser livremente dado, uma tenure vasslica ainda no , em princpio, divisvel nem objecto de liberalidade.

Dever-se- estender maior parte do Ocidente o que Georges Duby notou para o Mconnais, isto , que no sculo X um certo nmero de famlias da pequena aristocracia empobreceu ao ponto de terminar por desaparecer, seja por extino da linhagem seja por reduo condio camponesa. Para este autor, o ano mil teria pois sido o tempo das despromoes sociais. No se pode extrapolar, e o declnio das pequenas linhagens pode ter sido limitado noutras provncias. Um facto, contudo, parece ter sido geral: os detentores de aldios

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do sculo X, ante a diminuio das suas terras, tiveram de renunciar sua liberdade de aco para se aproximarem mais frequentemente e de maneira mais estreita dos poderosos, que eram, a partir de ento, os detentores do bannum real.

2) A estratificao dos poderes. Apesar do aparecimento de principados, foi ao nvel do condado que as instituies do Estado carolngio se perpetuaram e que, a despeito dum declnio menos acusado ao Norte do rio Somme), ainda subsistiam em finais do sculo X, em particular no sector setentrional do Ocidente. Mas o conde no era, ou j no era, o nico detentor do poder.

a) O conde, outrora representante do soberano e de agora em diante o seu substituto a diversos ttulos, continua a impor o seu bannum ao conjunto dos homens livres do condado ou pagus, o que ainda acontece cerca do ano mil. Apesar da extrema carncia de fontes para o sculo X, nitidamente perceptvel que os condes continuaram a ser os chefes militares dos homens livres, mas estes tornaram-se seus soldados e j no do rei cf. as inmeras revoltas de condes e duques, eles prprios condes em diversos pagi). Ora, comea a afirmar-se uma distino de facto, perceptvel desde os grandes reinados carolngios. Dum lado, os camponeses livres e os muitos pequenos proprietrios, demasiado pobres para se armarem e abandonarem as suas terras: o conde dispensa-os das suas obrigaes mediante imposto de substituio ou servios de transporte militar. Do outro, aqueles que no se tardar muito a chamar os milites: os aristocratas suficientemente ricos para se armarem e possurem um cavalo de batalha so os cavaleiros que cumprem pessoalmente o servio militar agora devido ao conde.

Estes aristocratas, os fiis, tornaram-se os vassalos do conde. Esto em vias de fazer do velho mallus publicus uma corte vasslica. Porque, se as antigas instituies judicirias persistiram, sofreram uma transformao importante. Tenanciers livres e pequenos proprietrios alodiais viram vedar-se-lhes o acesso ao tribunal do conde, e encontram-se a partir de ento sob a alada do tribunal pblico inferior, o do centurio. Por conseguinte, s os proprietrios poderosos ou mdios continuaram a apresentar as suas causas perante o tribunal do conde. Em suma, os grandes comearam a submeter os seus diferendos aos seus pares, dado que o conde

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julgava com os seus fiis, particularmente os seniores, os seus homens mais ricos.

Na guerra, no tribunal, em todas as circunstncias importantes, vem-se os condes rodeados da sua companhia vasslica, que se tornou a principal base da sua fora, b) Os vigrios delegados do conde): as vrias jurisdies em que eram divididos os condados viram aumentar a sua competncia, dado que todos os homens livres continuavam a frequentar os respectivos tribunais a rea de cada jurisdio era de pequena dimenso) e os mais pobres tinham ficado, de facto, quase exclusivamente sob a alada dos mesmos. Da o ttulo de placitum generale dado sesso presidida pelo juiz-delegado vicarius) ou centenarius), assistida por assessores recrutados entre a gente mida.

Se, por delegao, os subordinados do conde tinham recebido uma parte importante do poder pblico os homens livres, mas pobres, eram, evidentemente, mais numerosos do que os outros homens livres, nem por isso os juzes-delegados, de condio bastante modesta, chegaram alguma vez a desempenhar um papel poltico. Para muitos deles como para os que se encontravam sob a alada da sua justia, o futuro parecia sem perspectivas: a distino de ordem econmica entre livres pobres e livres ricos poderia no futuro transformar-se facilmente em distino jurdica.

c) Os alcaides eram os defensores das fortalezas pblicas encarregadas de garantir a segurana da regio circunstante. Quanto sua origem e ao seu nmero, avanaram-se propostas exageradas. Sobretudo quanto ao seu nmero: imagina-se uma verdadeira proliferao de castelos. Na realidade, distavam em mdia uns vinte quilmetros uns dos outros. Quanto sua origem tambm. Essas fortalezas provinham de duas pocas. As mais antigas tinham nascido no sculo IX, aquando das perturbaes e, mais ainda, das incurses normandas: para Henri Pirenne, elas teriam dado lugar aos burgos e serviam de refgio s populaes vizinhas em caso de desastre. As mais recentes tinham aparecido no sculo X, nos tempos mais inquietos da anarquia feudal: geralmente, tinham sido erguidas pelos reis, ou, mais tarde, pelos condes tornados independentes.

Mesmo um conde de poderio mediano, como o conde de Mcon, possua no seu condado uma meia dzia de castelos. Tinha pois sido necessrio assegurar a guarda destes e os condes tinham-nos confiado aos mais pode-

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rosos dos seus fiis, queles cujos senhorios rurais mais importantes se agrupavam nas redondezas. evidente que estes guardas, por seu turno, se tinham tornado hereditrios no sculo X, mas no haviam ainda logrado libertar-se da tutela do conde e apenas eram ainda, em princpio, os representantes, no os detentores do poder pblico. No entanto j eram os detentores reais do bannum, trazendo para as hostes do conde os pequenos e mdios senhores rurais da sua rea geogrfica que se estendia num raio duma dezena de quilmetros) depois de eles prprios os terem convocado. Impunham servios aos homens livres pobres em substituio das obrigaes militares abastecimento, reparao do castelo, etc). Finalmente, aplicavam no seu sector as sentenas do tribunal do juiz-delegado do conde.

Defensores da paz pblica, esses alcaides eram-no. Mas defensores por vezes embaraosos e cpidos. No ano mil, o futuro prximo deles: vo-se interpor frequentemente como uma barreira entre o conde e os habitantes da sua rea, e muitos deles pelo menos na Francia conseguiro, durante a primeira idade feudal clssica, tornar-se verdadeiramente independentes.

B) Da aristocracia nobreza: continuidade, ruptura ou evoluo?

Durante a baixa Idade Mdia e mesmo at ao sculo XVIII, os nobres fixaram as origens das suas linhagens num passado muito recuado. Mesmo na poca moderna, muitos pensaram remontar aos conquistadores francos, tendo os Galo-Romanos dado origem ao Terceiro Estado. Por reaco contra o carcter evidentemente fantasista de muitas genealogias, Marc Bloch, seguido pela maioria dos historiadores franceses, julgou que as grandes famlias da aristocracia galo-franca se tinham extinguido antes do ano mil, devendo ter-se constitudo uma nobreza inteiramente nova nos tempos feudais em funo dum nvel mnimo de fortuna fundiria, duma aptido para o exerccio exclusivo da cavalaria e duma maneira de viver fora do comum. Neste ponto como noutros, as ideias de Marc Bloch, to estimulantes para a investigao, deixaram de ser aceites desde h uma ou duas dcadas.

Por outras palavras, teria havido conforme se cr hoje em dia continuidade de certas linhagens aristocrticas, que mais tarde se transformaram em linhagens

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de cavaleiros. At esta pgina, empregmos sempre propositadamente os termos aristocracia e aristocratas de forma a no estabelecer qualquer preconceito quanto s explicaes que se vo seguir. tempo de nos perguntarmos se, antes do ano mil, no se poderia j falar de nobreza.

Seriam os prprios aristocratas da poca franca homens novos? No, respondem os germanistas: desde a Antiguidade que existia uma nobreza a leste do Reno, e ela teria subsistido tal qual durante a primeira Idade Mdia. Os prncipes ou nobiles de Tcito no eram apenas aristocratas, dado que se distinguiam dos outros Germanos por uma ascendncia que sempre fora ilustre e por vezes divina. Tinham direito a um squito de fiis, o comitatus, composto de diversas centenas de homens que eles sustentavam com os recursos das suas terras e com as ddivas dos outros habitantes do sector, estes ltimos protegidos pela fortaleza do nobilis. Mas no ser isto reportar a um passado muito remoto as noes de senhorio banal e de reduto fortificado? Seja como for, para H. Dannenbauer, um dos mais recentes defensores da tese germanista, na Innendeutschland Baviera, Turngia, etc.) essa nobreza pouco numerosa ter-se-ia mantido sem grandes transformaes at plena Idade Mdia. E, depois das grandes invases, ela ter-se-ia implantado no Imprio, abrindo-se tanto mais facilmente aos descendentes das famlias senatoriais quanto os potentes do Baixo Imprio se tinham arrogado atribuies que normalmente competem ao Estado em matria judicial e fiscal: os romanistas, esses insistem muito mais na permanncia de certas linhagens de potentes depois dos anos 400. Segundo H. Mittteis, os Francos, nomeadamente, deveriam ter acolhido nas fileiras da sua prpria nobreza muitos membros da nobreza autctones.

Teria pois havido, para muitos, evoluo e no ruptura entre a Antiguidade germnica ou romana e a primeira Idade Mdia, ainda que os historiadores estabeleam matizes e creiam que a nobreza das tribos germnicas se tenha podido formar mais lentamente e caracterizar-se durante muito tempo tanto pelo mrito como pelo nascimento.

Para outros, entre os quais se encontram historiadores alemes, os nobres seriam pelo contrrio homens novos e no teria havido continuidade biolgica: o servio do rei que teria assegurado a esses homens privilgios

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e riquezas. A poca merovngia apenas teria conhecido uma famlia nobre, a do rei stirps nobilium), enquanto os aristocratas s se teriam constitudo na segunda metade do sculo IX em famlias independentes da linhagem real, s ento se tendo tomado nobres. Por conseguinte, na poca ps-carolngio ter-se-ia transposto do domnio econmico para o domnio jurdico o facto de que nem todos os francos portanto todos os livres eram iguais; s os poderosos os nobres detinham o exerccio da justia e por vezes o direito de bannum. Haveria portanto ao menos uma certa continuidade de conceitos.

Existir pois uma nobilitas desde a primeira Idade Mdia e, se sim, quais eram os seus contornos e as suas caractersticas? Ao abordar os textos mesmos os da alta Idade Mdia), o medievalista encontra nobiles, escreveu L. Genicot. s fontes narrativas e diplomticas demonstram-no, quer se trate de Gregrio de Tours, que cita nobiles, um nobile genus, etc, ou ento das capitulares decretando esta ou aquela medida aplicvel aos homines laici, tam nobiles quam ignobiles. Os nobiles detm sempre os papis mais importantes, mas este critrio, em rigor, s basta para definir uma aristocracia, no uma nobreza, a qual algo de mais preciso e de mais afirmado. O termo nobilis ambguo pode at ser simplesmente sinnimo de livre): o seu alcance pode ser individual, social, jurdico, aplicar-se a homens de grande valor pessoal, ou ento a um grupo social e politicamente superior, beneficiando dum estatuto de excepo. De facto, os escritos da primeira Idade Mdia usam a palavra para designar um homem pertencente a um grupo cujos membros apresentam todos uma identidade de mentalidade e comportamento, o orgulho de pertencer ao estrato superior e privilegiado da sociedade. Eis o que parece peio menos meio milnio anterior feudalidade clssica e cavalaria. E se os nobres nunca foram os nicos livres, nem por isso deixaram de ser