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    4 forum almanack braziliense n06 novembro 2007

    Senhores sem escravos: a propsitodas aes de escravido no BrasilImperial

    Resumo

    O texto pretende contribuir para a explorao das prticas de re-escra-vizao na regio do Vale do Paraba do sculo XIX, suas possibilidadesefetivas e os significados a este processo atribudos pelos diversos agentessociais envolvidos. A partir da anlise de aes de escravido , processos emque o senhor acusa um suposto escravo de pretender ser livre, argumentoque os senhores envolvidos em tais prticas eram senhores de poucasposses; em um contexto de alta do preo dos cativos, o recurso Justiaera, provavelmente, a nica maneira de tentarem reaver as propriedadesque consideravam suas.

    Abstract

    The aim of the article is to understand reenslavement practices in the19th century area of the river Paraba valley (Vale do Paraba), whetherthey were really effetctive and what they meant for those who wereinvolved. From the analysis of enslavement law suits, in which mastersaccused would-be slaves of pretending to be free, it seems to me that these

    masters had few assets in a moment when slaves prices were high. There-fore, enslavement law suits were the only means these masters had to tryto get back what they considered to be their properties.

    Palavras-chave

    escravos, forros, homens livres pobres, judicirio

    Keywords

    slaves, freedpeople, poor free people, judicial system

    Masters withoutSlaves: reenslavement Lawsuits atthe Brazilian Empire

    Keila Grinberg

    Professora do Departamento deHistria da Universidade Federal doEstado do Rio de Janeiro

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    irrisrio que a testemunha que se diz professor de filosofia queira distinguirmodos de vida prprios de livres, e modos de vida prprios de escravos. Declaroque to metafsico que no compreendo. Curador de uma suposta escrava, aoironizar o comentrio da testemunha que diz saber que uma pessoa escrava porseu modo de vida. Rio de Janeiro, 1874.

    Muitos historiadores, nos ltimos anos, estudaram as formas pelas quais,durante a vigncia da escravido nas Amricas, o direito simultaneamentecontribuiu para perpetuar o poder de proprietrios sobre seus escravose para que escravos e libertos conseguissem desafiar o poder de seussenhores.1No Brasil, em Cuba e no Sul dos Estados Unidos, para mencionarapenas os casos mais conhecidos, a pesquisa arquivstica descortinouevidncias de padres complexos de demandas judiciais por escravos elibertos, que encontraram diferentes graus de sucesso.2No caso espec-fico do Brasil, o direito pode ser caracterizado, ao mesmo tempo, comoelemento fundamental para garantir a manuteno da escravido e comoveculo para garantia da cidadania. o que mostram os estudos sobrealforria e direito no sculo XIX de autores como Sidney Chalhoub, HebeMattos, Eduardo Spiller Pena, Elciene Azevedo e Joseli Mendona, que vm

    evidenciando a importncia das aes judiciais no processo de deslegi-timao da escravido na segunda metade do sculo XIX no Brasil, noapenas como recurso para pressionar pela obteno da alforria por algunsgrupos especficos de escravos principalmente aqueles localizados emreas urbanas ou em zonas rurais prximas aos locais de atuao de gruposabolicionistas mas tambm no processo mais amplo de discusso daemancipao geral, pelo menos a partir da dcada de 1860.3

    O objetivo deste texto contribuir para a explorao das prticas dere-escravizao no Brasil do sculo XIX, refletindo sobre suas possibilidadesefetivas e os significados a este processo atribudos pelos diversos agentessociais envolvidos. Trata-se, neste sentido, de aproximar a lente da anlise

    para os indivduos que vivenciaram este processo, refletindo sobre os riscosque enfrentaram em suas trajetrias, sobre a fragilidade da condio delibertoe, principalmente, sobre a instabilidade de suas vidas, marcadas pelotemor em verem revertidas suas conquistas.4

    Vejamos, por exemplo, a atitude da parda Constana, que em 1874procurou a Justia para propor o arbitramento de sua liberdade. Constanaj havia pagado a Leopoldino, seu senhor, a quantia de 300 mil ris, j haviaoferecido a ele mais 200 em juzo, mas Leopoldino s aceitava 1 contoe 100 mil ris, valor pelo qual foi avaliada, dois anos depois de ter sidoavaliada em 500 mil ris. Por isso Constana pedia um novo arbitramento

    de seu valor. At a, nada de mais. So inmeros os casos nos quais senhore escravo divergem sobre a quantia a ser paga pela obteno da liberdade.5O interessante que ela demonstrava suspeitar da pessoa que a avaliaria,e pede sua substituio, por estar determinada em no deixar dvidasfuturas sobre sua condio de livre, se a conseguir6. Se Constana estavapreocupada em no deixar dvidas sobre sua nova condio, porque elasabia que corria o risco.

    E o risco existia mesmo. Mais ou menos na mesma poca, no incioda dcada de 1870, a parda Braslia foi re-escravizada na Corte por ClliaLeopoldina de Oliveira, aps ter vivido vrios anos como liberta. Braslia veioda Bahia no processo, no mencionado quando isto aconteceu no

    paquete ingls Biela, onde no eram permitidos escravos, em companhiade sua suposta senhora. Ao chegar Corte, passou a viver como liberta,

    1

    Ver, entre outros, as vrias anlise s a respei-to na coletnea Direitos e Justias no Brasil:ensaios de histria social, organizada por SilviaLara e Joseli Mendona. Campinas: Editora daUnicamp, 2006.

    2

    Ver, respectivamente, GRINBERG, Keila . O fiadordos brasileiros: escravido, cidadania e direitocivil no tempo de Antonio Pereira Rebouas. Riode Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002, princi-palmente parte 3 e GRINBERG, Keila. Liberata:a lei da ambiguidade: as aes de liberdade daCorte de Apelao do Rio de Janeiro no scu-lo XIX.Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994;SCOTT, Rebecca. A Emancipao Escrava emCuba: a transio para o trabalho livre, 1860-1899. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas:Editora da Unicamp, 1991; HOWINGTON, Arthur.What Sayeth the Law: The Treatment of Slavesand Free Blacks in State and Local Courts ofTennessee. New York: Garland, 1986.

    3

    Para as aes de liberdade e sua vigncia mesmoantes do predomnio de uma dinmica crioula

    na relao entre senhores e escravos, ver, entreoutros, CHALHOUB, Sidney. Vises da liberdade.Uma histria das ltimas dcadas da escravi-do na corte. So Paulo: Companhia das Letras,1990. GRINBERG, Keila. Op.Cit.; AZEVEDO,Elciene. Orfeu de carapinha. Campinas:Unicamp, 1999; PENA, Eduardo Spiller. Pajensda casa imperial. Campinas: Unicamp, 2001;MENDONA, Joseli. Entre a mo e os anis.Campinas: Unicamp, 1999. Para a relao entre aconjuntura aberta pela abolio do trfico inter-nacional e a intensificao das aes de liberda-de, bem como para o prprio conceito de des-legitimao da escravido, ver: MATTOS, Hebe.Das cores do silncio significados da liberdade

    no Sudeste escravista. Brasil. Sculo XIX. Rio deJaneiro: Arquivo Nacional, 1995.

    4

    MATTOS, Hebe. Op.Cit. MATTOS, Hebe. Laosde famlia e direitos no fim da escravido. In:Histria da vida privada no Brasil II; Imprio:

    a corte e a modernidade nacional. So Paulo:Cia das Letras, 1997; CHALHOUB, Sidney. Op.Cit.GUEDES, Roberto. Pardos:trabalho, fam-lia, aliana e mobilidade social em Porto Feliz,So Paulo, c. 1798 c. 1850 . 2005. (Tese deDoutorado). Programa de Ps-graduao emHistria Social, Universidade Federal do Rio deJaneiro, 2005.

    5

    MENDONA, Joseli. Op.Cit.

    6

    Arbitramento (preo de escravos) , caixa02. 1 ofcio de notas, grupo cvel, ArquivoCartorrio do Poder Judicirio. 1874. Centro deDocumentao Histrica, Vassouras.

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    pagando, inclusive, os aluguis das casas onde morou. Ao ser perguntadapor que veio como livre, respondeu que veio como livre porque nunca seconsiderou escrava. Mas sabia que poderia s-lo: provavelmente perce-bendo as intenes de D. Cllia, pedira e obtivera pelo Juiz Municipal da 2Vara ser manutenida na posse de sua liberdade, tendo a sentena passadoem julgamento7. Muitos aspectos podem ser discutidos neste caso. Umdeles se Braslia foi registrada como livre apenas para poder embarcar emnavio ingls. Outro se o fato de ter pisado no navio ingls j no seria

    argumento suficiente para mant-la em estado de liberdade argumentoque no chegou a ser levantado por seus curadores. Por fim, caberia apergunta se Braslia no estaria se aproveitando das circunstncias paraconseguir sua carta de alforria. Mas as circunstncias, neste caso, importammenos do que o resultado da ao: Braslia, provavelmente nascida escravamas tida como livre por seus vizinhos e pelo inspetor do quarteiro ondevivia, foi re-escravizada.

    Por incrvel que parea, problema semelhante enfrentou o ento herida Independncia Antonio Pereira Rebouas, que, mesmo nunca tendo sidoescravo, passou por diversos infortnios ao viajar da Bahia para a Cortena dcada de 1820. Ao chegar em Porto Seguro, foi embaraado de seguirviagem, mas valendo-lhe o conhecimento que j a tinha de seu nome e apersuaso de sua identidade pelo conhecimento pessoal que manifestou terdas mais notveis ocorrncias patriticas e profissionalmente da legislaoem matria forense conseguiu prosseguir, no sem antes dar uma ajudinhaao Juiz ordinrio local.8Rebouas contou o episdio em sua autobiografia e,embora no especifique os motivos que levaram ao incidente, claro est queele poderia ser confundido com outra pessoa de status e condio inferior.

    Estes exemplos constituem apenas uma faceta das vrias prticas dere-escravizao existentes no Imprio Brasileiro, entre as quais podemoscitar o roubo de pessoas, freqente na regio de fronteira entre o Brasil e

    seus vizinhos republicanos que j haviam abolido a escravido em seus terri-trios, e os temores e boatos presentes em alguns movimentos populares,como o caso da revolta dos marimbondos, em Pernambuco, originada pelapromulgao do Regulamento do Registro de Nascimentos e bitos em 1851,sintomaticamente denominada, na poca, de lei do cativeiro9. Isto sem falarnos casos de re-escravizao que ocorriam cotidianamente, na Corte prin-cipalmente, mas tambm em outras cidades, em que qualquer pessoa quepudesse parecer escravo tinha, contra si, a presuno da escravido. Assim,como demonstram aqueles que estudaram as atitudes da polcia no sculoXIX, cabia queles que tinham sido detidos pela polcia provar a prprialiberdade, sob pena de serem reduzidos escravido.10

    Entre estes casos, chama a ateno um tipo especfico de aojudicial,ainda no suficientemente explorada pela historiografia a respeito,e sobre a qual no h, ainda, evidncias de existncia em outras paragensdas Amricas: trata-se das aes de escravido. Ao contrrio das aes deliberdade nas quais um ou um conjunto de supostos escravos inicia umprocesso judicial contra seu suposto senhor, argumentando seu direito libertao e das aes de manuteno de liberdade em que um libertoprocura a Justia para garantir seu status, quase sempre por estar amea-ado de re-escravizao, nas aes de escravido quem inicia o processo o senhor. Nelas, ele processa um outro cidado, alegando que a pessoa em

    questo se passa indevidamente por livre, sem s-lo. Em outras palavras, o

    7

    Ao de Escravido. Caixa 3688, Nmero 14318.Corte de Apelao. Arquivo Nacional, RJ.

    8

    Biografia de Antonio Pereira Rebouas. Coleo

    Antonio Pereira Rebouas, Seo Manuscritos,Biblioteca Nacional, I-3,24,61. Relatei este casoem GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros:escravido, cidadania e direito civil no tempode Antonio Pereira Rebouas. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 2002. Cap.03.

    9

    Sobre a revolta de 1851, ver os textos dePALACIOS, Guillermo, Revoltas camponesasno Brasil escravista: a Guerra dos Maribondos(Pernambuco, 1851-1852), DANTAS, MonicaDuarte, Cronica de um debate, MATTOS,Hebe Maria, Identidade camponesa, racializa-o e cidadania no Brasil monrquico: o casoda Guerra dos Marimbondos em Pernambucoa partir da leitura de Guillermo Palacios eOLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de, Sobreviver presso escapando ao controle: emba-tes em torno da lei do cativeiro (a Guerrados Marimbondos em Pernambuco, 1851-1852), todos publicados na Revista AlmanackBrasiliense, nmero 3, maio de 2006. Sobreos casos de re-escravizao na fronteira doBrasil com os pases vizinhos, ver PETIZ, Silmeide SantAna. Buscando a liberdade: as fugasde escravos da provncia de So Pedro parao alm-fronteira (1815-1851).Passo Fundo:Universidade de Passo Fundo, 2006. GRINBERG,Keila. Escravido, alforria e direito no Brasil

    oitocentista: reflexes sobre a lei de 1831 eo princpio da liberdade na fronteira sul doImprio brasileiro. In: CARVALHO, Jos Murilo de(org.). Nao e Cidadania no Oitocentos.Rio deJaneiro: Civilizao Brasileira, 2007.

    10

    CHALHOUB, Sidney. Illegal Enslavement andthe Precariousness of Freedom in Nineteenth-Century Brazil, indito; HOLLOWAY, Thomas H.Polcia no Rio de Janeiro: represso e resistn-cia numa cidade do sculo XIX. Rio de Janeiro:Fundao Getlio Vargas, 1997. SOARES, CarlosEugnio Lbano. A capoeira escrava e outrastradies rebeldes no Rio de Janeiro (1808-

    1850). Campinas: Editora da UNICAMP, 2001.

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    objeto da ao de escravido justamente questionar a condio jurdicado ru, ao argumentar que ele seria no apenas escravo, como tambmpropriedade do autor da ao.

    Encontrei as aes de escravido ao realizar levantamento das aesde liberdade existentes na Corte de Apelao do Rio de Janeiro, quandoclassifiquei-as, entre outros quesitos, de acordo com os argumentos e osmotivos que seus autores supostos escravos apresentavam para obtersuas liberdades.11Na ocasio, interessada em outras questes, limitei-me

    a classificar as aes de escravido em conjunto com as aes de manu-teno de liberdade, sem, contudo, analis-las. (ver grfico 1).

    27%

    73%

    Aes de m anuteno de

    liberdade ou de escravido

    Dem ais aes

    Fonte: Tribunal da Relao do Rio de Janeiro - Arquivo

    Nacional - RJ Total: 402 aes

    11

    Cabe esclarecer, aqui, que as referidas aessituam-se exclusivamente no mbito dos tri-bunais de segunda instncia, a saber, a Cortede Apelao do Rio de Janeiro. Embora sejamencontrados processos relativos a todo o Brasile ao sculo XIX como um todo, a maioria con-centra-se geograficamente, nas regies daCorte, das provncias do Rio de Janeiro, SoPaulo, Minas Gerais, Paran e Rio Grande doSul. Da mesma forma, embora haja aes pos-teriores a 1870, a maioria concentra-se entre1830 e 1869. Para mais informaes sobre asfontes, ver GRINBERG, Keila. Liberata: a lei daambiguidade: as aes de liberdade da Corte deApelao do Rio de Janeiro no sculo XIX.Rio

    de Janeiro: Relume Dumar, 1994.

    Embora os procedimentos jurdicos das aes de manuteno de liber-dade e de escravido fossem diferentes, ambos podem ser aqui definidoscomo sendo processos de re-escravizao, pois suscitaram debates distintosdaqueles realizados nas aes de liberdade: alm da verificao da veraci-dade das verses contadas por ambas as partes, como em qualquer processo,

    nestes casos tratava-se de discutir em que medida era possvel voltaratrs em uma doao de liberdade, principalmente quando o indivduo emquesto j foi libertado h muito tempo. Ao invs da passagem do estado deescravido para o estado de liberdade, que ocorria nas aes de liberdade,os processos de re-escravizao tratavam de discutir as possibilidades e aprpria legitimidade da passagem da liberdade para a escravido.

    Em texto anterior, para entender a ocorrncia destas aes, analisei aspossibilidades jurdicas existentes no direito brasileiro de ento, buscandoas leis que tornavam possvel a existncia destas aes e os instrumentosjurdicos efetivamente utilizados por advogados para argumentar a favor deseus clientes, fossem eles senhores ou escravos. Ao mesmo tempo, procurei

    concentrar-me nas solues encontradas pelos agentes da justia ao longodo sculo XIX para lidar com situaes como aquelas, avaliando a eficciadestes argumentos junto aos juzes e, principalmente, as sentenas queestes proferiram, para analisar sua legitimidade em um universo no quala legitimidade da prpria escravido comeava a estar em jogo.12Um dosargumentos que caiu em desuso ao longo do sculo XIX, como j o haviademonstrado Perdigo Malheiro em A Escravido no Brasil(1866), foi o darevogao da alforria por ingratido, conforme rezava o ttulo 63 do livro 4das Ordenaes Filipinas.

    Na ocasio, cheguei a duas concluses: a primeira, analisando

    o nmero de aes de escravido e de manuteno de liberdade quechegaram Corte de Apelao do Rio de Janeiro no sculo XIX e seus

    12

    GRINBERG, Keila. Re-escravizao, direitos ejustias no Brasil do s culo XIX. In: LARA, Silviae MENDONA, Joseli (org.). Direitos e Justiasno Brasil: ensaios de histria social.Campinas:Editora da Unicamp, 2006.

    Grafico 1: Aes civeis relativas liberdade e reescravizao do Tribunal da Relao do

    Rio de Janeirono sculo XIX

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    Como as sentenas favorveis aos senhoreseram automaticamente enviadas Corte deApelao, estes resultados tambm podem indi-car uma progressiva dificuldade na obteno desentenas favorveis nos tribunais de primeirainstncia. Esta afirmao ainda carece de pes-

    quisa especfica sobre os tribunais de primeirainstncia; alis, ainda est por ser feita a impor-tante comparao entre o desempenho dostribunais de primeira e segunda instncia nasdecises relativas liberdade de escravos.

    14

    Ver, por exemplo, MATTOS, Hebe. Das cores dosilncio significados da liberdade no Sudeste

    escravista. Brasil. Sculo XIX . Rio de Janeiro:Arquivo Nacional, 1995.

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    1808-1830 1831-1850 1851-1870

    Perodo

    NmerodeProcessos

    aes de manuteno de liberdade aes de escravido

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    1808-1830 1831-1850 1851-1870

    Perodo

    NmerodeAes

    liberdade escravido outros

    Reconhecendo que estes dados forneciam muitas informaes acercado estado das relaes entre senhores e escravos na segunda metade dosculo XIX, conclu que eles informavam ainda mais acerca da legitimidadejurdica das aes cveis de escravido e manuteno da liberdade: elesdemonstram que, paralelamente ao que ento acontecia nas ruas, dentro

    dos tribunais ao menos nos tribunais de segunda instncia , a legitimi-dade da escravido tambm estava com os dias contados.

    ***

    Sem questionar a validade deste argumento em termos gerais, hoje parece-me que os dados encontrados, analisados principalmente do ponto de vistaquantitativo, foram olhados com excessivo otimismo. Em primeiro lugar,porque no se tratava, evidentemente, dos escravos de maneira geral:para fazer apenas uma clivagem genrica, basta confirmar o que tantosj disseram a respeito das maiores possibilidades dos crioulos chegarem Justia do que os africanos.14No caso do mdio Vale do Paraba, o maior

    Grafico 2: Resultados das Aes de Re-escravisao no sculo XIX

    Grafico 3: Ocorrncia de Aes de Escravido e de manuteno de Liberdade no sculo XIX

    resultados (grficos 2 e 3), a constatao de que mais escravos iniciaramaes de manuteno de liberdade na justia do que o inverso; a segundadizia respeito conscincia dos escravos de suas chances de vitria nestesprocessos, grandes principalmente em tribunais de segunda instncia.13

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    poder dos escravos crioulos em transformar a negociao privada emprocesso judicial fica evidenciada atravs da comparao entre os dadosobtidos no levantamento das aes de liberdade em geral e os dados cole-tados nos inventrios arquivados no Centro de Documentao Histrica deVassouras, todos referentes ao mesmo perodo:

    15

    Estes ltimos dados foram coletados no mbitoda pesquisa Escravido, Liberdade e Direito em

    Vassouras no sculo XIX - Redes de sociabilida-de e ampliao de espaos de direitos da popu-lao escrava ( c. 1840 1888), coordenada porRicardo Salles, no mbito de Primeiros Projetos FAPERJ/CNPq, 2003-2006, do qual este texto resultado.

    0%

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    20%

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    40%

    50%

    60%

    crioulos

    africanos

    ignorados

    Aes Inventrios

    Embora haja um grande nmero de escravos de origem ignorada oque pode ser omisso da documentao, mas pode muito bem tratar-se deesperteza dos senhores, que omitiam dados relativos a africanos chegadosno Brasil depois de 1831, para escamotear a escravizao ilegal , comodemonstrado no grfico acima, o nmero de africanos que lograva alcanara Justia era, de fato, muito pequeno. Esta constatao corroborada pela

    leitura prpria das aes de escravido, nas quais figuram, dentre todos osprocessos, apenas trs africanos.

    Em segundo lugar, se maior o nmero de aes que tm como resul-tado a liberdade do que o inverso, o nmero de processos que, ao final,reiteravam a escravido de seus atores ainda era grande. O mesmo vale paraa ocorrncia das aes de escravido o que talvez seja o dado mais inte-ressante. Embora a quantidade de aes de manuteno de liberdade fossemaior crescentemente maior, ao longo do sculo XIX do que a ocorrnciade aes de escravido (grfico 3), impossvel deixar de perceber o ligeirocrescimento no nmero destes processos no mesmo perodo.

    Por fim, o prprio argumento do recurso Justia: como j o demons-

    traram Silvia Lara e A.J.R. Russell-Wood, entre outros, buscar a mediaoda justia e do monarca para resolver contendas privadas era prticacomum desde o tempo do Antigo Regime portugus.16Interessante que, nosprocessos de que dispomos, os argumentos encontrados j eram marcada-mente modernos. De todos os processos encontrados, apenas um, ocorridoem 1826, em Salvador, utiliza o argumento da ingratido da liberta paraobter a revogao da alforria, como previa o ttulo 63 do livro 4 das Orde-naes Filipinas.17Mesmo assim, era uma situao em que o argumento daingratido servia, na verdade, de cortina para um tringulo amoroso entreo senhor, a escrava (com quem ele tinha dois filhos) e a senhora. Fica claro,

    lendo os argumentos de ambas as partes, que ele libertou a cativa a pedidode sua mulher e depois, com cimes, se arrependeu.18

    16

    LARA, Silvia. Introduo,Ordenaes Filipinas livro 5. So Paulo: Companhia das Letras,1999; RUSSELL-WOOD, A.J.R. Acts of Grace:Portuguese Monarchs and their Subjects ofAfrican Descent in Eighteenth Century Brazil.Journal of Latin American Studies, vol. 32,p. 307-332, maio de 2000. WEHLING, Arno& WEHLING, Maria Jos. Direito e Justia noBrasil Colonial: o Tribunal da Relao do Rio deJaneiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar,2004; HESPANHA, Antonio Manuel. Da iustitia disciplina. Textos, poder e poltica penal no

    Antigo Regime. In: Justia e Litigiosidade: his-tria e prospectiva.Lisboa: Fundao CalousteGulbenkian, 1993.

    17

    Este ttulo da ordenao filipina foi citadoem 12 outras aes, alm desta; mas a refe-rncia lei, nestes casos, no correspondiadiretamente a seu contedo. Ver, a respeito,GRINBERG, Keila. Re-escravizao, direitos e

    justias no Brasil do s culo XIX. In: LARA, Silviae MENDONA, Joseli (org.). Direitos e Justiasno Brasil: ensaios de histria social.Campinas:Editora da Unicamp, 2006.

    18

    Ao de Escravido, caixa 3683, nmero 81828,Corte de Apelao, Arquivo Nacional RJ.

    Fonte: Aes de Liberdade da Corte de Apelao do Rio de Janeiro Arquivo Nacional e Inventriosrelativos a proprietrios de escravos depositados no Centro de Documentao Histrica, Vassouras15

    Grafico 4: Comparao entre Origens dos Escravos - Aes de Liberdade e Inventrios -

    sc XIX - Vale do Paraiba Fluminense

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    Os outros argumentos encontrados, no entanto, so diferentes.Todos envolvem disputas sobre a validade de documentos como cartas dealforria, assentos de batismo, testamentos. Questiona-se se determinadofato citado por uma das partes aconteceu ou no, questiona-se se taldocumento verdadeiro ou no. Isto no significa, evidentemente, que apretenso de escravizao ilegal estivesse diminuindo com o tempo: muitopelo contrrio. Mas, ao que parece, a lgica da argumentao jurdica,tanto em termos formais citao da legislao quanto reais contedo

    da ao , estava efetivamente em mudana ao longo do sculo XIX. Coisa,alis, que j havia notado Perdigo Malheiro em 1866, ao estabelecer que,na prtica, a revogao da alforria por ingratido j no existia o quesignificava que a ordenao filipina correspondente, embora ainda emvigor, j no era mais legtima.19

    Para Perdigo Malheiro e outros jurisconsultos da poca, apenas osescravos que ainda estavam cumprindo condio poderiam ter suas alfor-rias revogadas por ingratido j que, por no estarem ainda no pleno gozodos seus direitos civis, no podiam ser considerados cidados. Mas, se oindivduo j estivesse em posse plena de sua liberdade, no podia mais serreduzido escravido por motivo de ingratido, porque j seria um cidadoe cidados, de acordo com a Constituio de 1824, no podem perderseus direitos de cidadania ( exceo de 3 razes, no contempladas nestaquesto). Curioso que nem Perdigo Malheiro nem seus colegas juriscon-sultos discutiram as questes jurdicas relativas s possibilidades de re-escravizao de africanos, ou seja, daqueles libertos que, mesmo estandoem plena posse de sua liberdade, no eram considerados cidados porqueno tinham nascido no Brasil.20

    Cabe esclarecer, no entanto, se o movimento da argumentao jurdicacorresponde a alguma perda de legitimidade da proposio de aes deescravido ao longo do sculo XIX. No o que parece. Conforme demons-

    trado no grfico 3, embora o nmero de aes de manuteno de liberdadecresa num ritmo mais rpido do que as aes de escravido, principal-mente no perodo posterior a 1850, tambm h um crescimento no nmerode propostas destas aes. Neste sentido, a questo que se coloca :mesmo que os casos de re-escravizaotenham ocorrido ao longo de todoo perodo de vigncia da escravido e possivelmente tenham aumentado nofinal do sculo XIX, no seriam as aes de escravido(ou, pelo menos, seuuso recorrente) um produto do Oitocentos?

    Embora no se disponha de dados passveis de comparao para operodo anterior a 1808, a situao da escravido no sculo XIX leva a crerque estamos diante de um quadro especfico. Vejamos. De acordo com os

    dados levantados por Manolo Florentino, Mary Karasch e Ricardo Salles, entreoutros, o sculo XIX, principalmente na regio da Corte e do Vale do Paraba,conheceu uma retrao no nmero relativo de alforrias em relao ao sculoXVIII. Alforriava-se muito no sculo XVIII, muito pouco no sculo XIX, pelomenos at a entrada em vigncia da Lei de 1871.21A razo principal? A altados preos dos escravos, decorrente das presses inglesas, da Lei de 1831 e,posteriormente, da Lei Euzbio de Queirz, de 1850.22

    Assim, com a alta sucessiva do preo dos escravos, era mais difcil,para aqueles cativos que vinham economizando para comprar suas liber-dades, que alcanassem seus objetivos. Isto fazia com que a negociao

    entre senhores e escravos, sempre existente nos processos de obtenode liberdade, muitas vezes, gerasse conflitos que tanto podia provocar

    19

    MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigo. Aescravido no Brasil ensaio histrico, jurdico,social. Petrpolis: Vozes/INL, 1976 (1866), vol.1, p. 167.

    20

    Para a discusso sobre o status dos libertos naConstituinte de 1823 e na Constituio de 1824,ver RODRIGUES, Jos Honrio. A AssembliaConstituinte de 1823. Petrpolis: Vozes, 1974;RODRIGUES, Jaime.O infame comrcio:pro-postas e experincias no final do trfico deafricanos para o Brasil (1800-1850). Campinas:Unicamp, 2000 e Liberdade, humanida-de e propriedade: os escravos e a As semblia

    Constituinte de 1823. Revista do Instituto deEstudos Brasileiros da USP, N .39, p.159-167,1995; MARQUESE, Rafael e BERBEL, Mrcia. Laesclavitud en las experiencias constitucionalesibricas, 1810-1824. In: FRASQUET, Ivana (org.).Bastillas, cetros y blasones. La Independenciaen Iberoamrica. Madrid: Fundacin Mapfre-Instituto de Cultura, 2006, p.347-374.GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros:escravido, cidadania e direito civil no tempode Antonio Pereira Rebouas. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 2002. cap.03.

    21

    FLORENTINO, Manolo. Sobre minas, crioulos ea liberdade costumeira no Rio de Janeiro, 1789-1871. In: Trfico, cativeiro e liberdade Riode Janeiro, sculos XVII-XIX.Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 2005 e SALLES, Ricardo.E o escravo era o Vale.Vassouras - sculo XIX.Senhores e cativos no corao do Imprio.Riode Janeiro: Civilizao Brasileira, no prelo.

    22

    Manolo Florentino demonstra que o valor deum escravo homem, entre 15 e 40 anos deidade, dobrou entre o final do sculo XVIII e osanos 1820; entre esta data e a dcada de 1830,o valor dobrou novamente. Finalmente, entreo preo deste escravo em 1840 e na dcadaseguinte, o valor chegou a triplicar, continuando

    ainda a subir na dcada de 1860. FLORENTINO,Manolo. Op.Cit.

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    atitudes como fugas e crimes quanto podia gerar processos na Justia.Afinal, tanto as aes de manuteno de liberdade quanto as aes deescravido so a tentativa de solucionar, no mbito pblico, um longoprocesso de negociaes ocorridas na esfera privada.

    ***

    Todas estas razes me levam a crer que acabei deixando de considerar,

    na anlise anterior, o aspecto que hoje me parece crucial para entender asprticas de re-escravizao no Brasil oitocentista: as prprias razes daexistncia das aes de escravido e de sua permanncia ao longo do sculoXIX, principalmente nas regies vizinhas Corte, no Vale do Paraba e emMinas Gerais. Afinal, por que um senhor sairia de sua casa para ir Justiareclamar seu suposto escravo? No haveria outros meios, mais rpidos eeficazes, para for-lo a voltar ao lugar de onde no deveria ter sado?Por que anos e anos de debate, por meio de curadores e advogados, emprocessos que transitavam em diversos tribunais, sem a certeza de um resul-tado favorvel? Ou seja: para alm das questes jurdicas, existentes a partirdo momento que a ao iniciada, quais eram os motivos, na relao entresenhores e escravos, que provocavam uma ao de escravido?

    A situao inversa mais clara. Afinal, num contexto de crescente insta-bilidade do estado de liberdade e ameaas de re-escravizao, principalmentedepois do fim do trfico atlntico quando a demanda por escravos no Valedo Paraba cresceu de tal maneira que muitos libertos, de diferentes regies,se viram ameaados, como demonstrou Judy Bieber23, entende-se quelibertos tenham procurado a Justia para garantir suas condies e refreartentativas de captura. Mas, os senhores? Por que fariam o mesmo?

    Para aprofundar a discusso, vejamos o caso de Andr Luiz Quaresma,que foi a juzo tentar anular as liberdades de seus dois escravos mulatos

    Felisberto de 22 anos e Joo de 18 que sua me havia libertado nadecrpita idade de mais de oitenta anos, cega e molesta, sem seu consen-timento nem aprovao. Andr argumentava que sua me no podia terfeito isto, at porque eram estes escravos que mantinham, com os seusservios, a subsistncia de ambos. Aconteceu em 1812, no Rio de Janeiro. 24As testemunhas reafirmaram a importncia dos dois escravos para aeconomia domstica. Em 1836, em Mag, caso semelhante ocorreu. MiguelMarques da Silva entrou com uma ao contra Maria crioula por ela tersido libertada por sua me, senhora de 90 anos, enferma e sem juzo, sedu-zida por pessoas de m conduta25. Da mesma forma, Miguel argumentouque necessitava da escrava para sua subsistncia. Em ambos os casos, a

    sentena favoreceu os senhores, mandando que os ditos escravos voltassemao poder de seus supostos senhores.

    Como estes, vrias so as aes de escravido nas quais o autor alegaserem os escravos em questo os principais, se no os nicos, bens dafamlia. Em outras, a ao uma maneira de tentar resolver disputas conju-gais, nas quais a mulher , formalmente, escrava de seu companheiro. Emoutras, ainda, a contenda envolvia senhores que eram, eles prprios, forros.Como no caso de Anna Rosa de Vasconcelos, que em 1838 processouAntonia, de nao mina, por esta se recusar a servi-la. Antonia havia sidoescrava de um certo Antonio Pinto, preto forro, tambm mina. Em dificul-dades financeiras, Antonio havia hipotecado sua escrava Antonia a d. Anna.Como no tivesse pago sua dvida no prazo acordado, perdeu a escrava

    23

    A autora cita casos de pessoas que j haviamconseguido suas alforrias em regies comoMinas Gerais e Gois foram escravizadas e ven-didas para o sul, inclusive com a participao deautoridades municipais. FREITAS, Judy Bieber.Slavery and social life: in the attempts to redu-

    ce free people to slavery in the Serto Mineiro,Brazil, 1850-1871. Journal of Latin AmericanStudies, vol.26, n.3, 1994, p.597-619; para pos-sibilidades de re -escravizao de indgenas, verMONTEIRO, John Manuel. Negros da terra. SoPaulo: Companhia das Letras, 1995.

    24

    Ao de escravido, caixa 3690, nmero 9, 1812.Corte de Apelao. Arquivo Nacional RJ.

    25

    Ao de escravido, caixa 3695, nmero 7, 1836.Corte de Apelao. Arquivo Nacional RJ.

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    para ela. Mesmo assim, a nova senhora consentiu que Antonia continuassevivendo com Antonio Pinto, trocando-a por um outro escravo, de nomeJoo. Tempos depois, Antonio Pinto morreu, deixando Antonia forra emtestamento. Foi quando Anna Rosa reclamou a posse de Antonia e de suafilhinha, nascida depois da transao, e comeou toda a confuso. Antoniaalegou que era forra, mas os juzes entenderam o oposto: mantida comoescrava, ela foi obrigada a passar posse de d. Anna.26

    Ou como o caso formalmente ao de manuteno de liberdade de

    Joaquim Francisco Pacheco, forro mina, e Rita, tambm mina, ocorrido em1867 na Corte. Rita afirma ter pago 350 mil ris de uma vez a seu antigosenhor, Jos Gomes de Oliveira e Silva, e depois mais 368 mil ris em presta-es, sem que seu novo senhor tivesse passado documento algum referenteao dinheiro recebido. Joaquim, por sua vez, diz que nunca recebeu nada desua escrava. A histria merece um olhar mais detido: pelo que relatam astestemunhas, Rita estaria em uma casa de comisso para ser vendida por900 mil ris. Como no quisesse ser vendida e s dispunha de cerca de 300mil ris o valor exato no est claro no processo , ela teria implorado aJoaquim para que este completasse seu valor. O que no est claro se elateria ficado livre, tendo pago o que devia aos poucos, ou se teria passado aser escrava de Joaquim, e o dinheiro que teria lhe dado seria referente aosjornais. O juiz concluiu que Rita era escrava de Joaquim.27

    Do conjunto destas citaes, alguns exemplos dos cerca de cem casosrelativos re-escravizao encontrados na Corte de Apelao do Rio deJaneiro ao longo do sculo XIX, fica claro que os senhores envolvidos nestasaes esto longe da caracterizao genrica atribuda aos senhores deescravos, como elite branca. Brancos, at pode ser que alguns o fossem;mas elite com certeza no eram.

    Muito pelo contrrio: o que a anlise destes processos deixa entrever que estas disputas envolvem pessoas de situao social muito prxima. So

    forros, ou descendentes daqueles tantos que lograram conseguir suas alfor-rias ao longo dos sculos XVII e XVIII. O que os distingue a condio, oumelhor, a suposta condio de alguns, se livres, libertos ou escravos. No pouco, evidentemente. Mas trata-se de pessoas que freqentam os mesmoslugares, tm amigos em comum, falam a mesma lngua.

    Este o principal aspecto a ser ressaltado. Se as pessoas que iniciamas aes de escravido podem ser caracterizadas como senhores, sosenhores de poucas posses. Da mesma forma, as pessoas a quem elesquerem caracterizar como cativos, de fato, viviam como livres, agiam comolivres, trabalhavam como livres. Impossvel, primeira vista, distinguir estesescravos dos livres. Foi, alis, o que disse o curador de um deles, ironizando

    uma testemunha, professor de filosofia, que afirmou ser a acusada escravaporque o modo de vida da r na Bahia prova sua escravido: irrisrioque a testemunha que se diz professor de filosofia queira distinguir modosde vida prprios de livres, e modos de vida prprios de escravos. Declaroque to metafsico que no compreendo28.

    Assim, no caso das aes de escravido, principalmente naquelescasos que o prprio senhor forro, a fronteira que o separa de seu prprioescravo parece ser muito tnue (no seria este senhor, ele tambm, nolimite, passvel de re-escravizao?). No h, em nenhum dos casos,senhores de muitas posses envolvidos, em nenhuma poca do sculo XIX,

    em nenhuma regio.

    26

    Ao de escravido, caixa 3691, nmero 11,1838. Corte de Apelao. Arquivo Nacional RJ.

    27

    Ao de manuteno de liberdade, mao 225,nmero 2536, 1867. Corte de Apelao. ArquivoNacional RJ.

    28

    Ao de escravido, caixa 3688, nmero 14318,op. cit.

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    Interessante que, ainda seguindo estas indicaes, estas pessoas deambos os lados das contendas estariam, se fssemos retomar a categoriade Maria Sylvia de Carvalho Franco, confortavelmente classificadas comohomens livres e pobres, situadas no limbo entre os cativos do eito e osgrandes proprietrios. Ou ento, como argumentou Manuela Carneiro daCunha, justamente por se tratar de pessoas sem posses, fora da dinmicapaternalista que ditava a relao senhor-escravo dita tradicional, ao Estadocabia a regulao de suas atividades, porque no havia quem deles se

    ocupasse.29Mas no o caso de retomar estas interpretaes. Ao contrrio: as

    aes de escravido analisadas demonstram justamente a capacidade e astentativas de ao regulatria do Estado, tanto no que se refere ao controleda populao liberta de um modo geral, quanto a estas tentativas de rees-cravizao por parte de senhores e s resistncias de seus escravos. Estasconstataes mudam completamente o sentido das questes enunciadasanteriormente. Nestes casos, um senhor sairia de sua casa para ir Justiareclamar seu suposto escravo porque este era, possivelmente, o bem maisvalioso de que dispunha. Valia a pena, para eles, mesmo que tivessem queesperar vrios anos pelo resultado. Quanto aos meios, a Justia era, prova-velmente, o nico de que dispunham.

    As caractersticas das pessoas envolvidas nas aes de escravidodemonstram que, sem deixar de ser senhores e escravos, eles esto nolimiar de sua condio. Quase-senhores enfrentam ainda-escravos e vice-versa. desta zona de fronteira social que as aes de escravido falam. Ainstabilidade da situao dos envolvidos de tal monta que s o apelo Justia garantiria mesmo assim sem certeza absoluta, j que suas situa-es eram reversveis a segurana de suas condies.30

    Afinal, se em meados do sculo XIX, em poca de aumento brutal dopreo dos escravos, se era difcil para um cativo alcanar a alforria nestas

    circunstncias, para o senhor de poucos escravos, a perda de um porqualquer motivo tambm era irreparvel. Literalmente: seria impossvelpara ele conseguir comprar novamente um escravo. Estas so justamenteas situaes descritas nas aes de escravido: um pequeno proprietrioherda alguns escravos com a morte de seus pais; ao abrir o testamento, noentanto, descobre que sua me, j velha e em sinal de gratido, libertoudois de seus trs escravos. Pronto, acabou-se a herana. Na maioria dasvezes, seu futuro como senhor tambm.

    Em se tratando de forros e descendentes de africanos de maneirageral, este quadro torna-se ainda mais drstico. Perder o escravo compradoou herdado a tanto custo significava, na prtica, perder o acesso ao mundo

    dos livres. Muito j se analisou sobre a importncia da concentrao dapropriedade escrava no que diz respeito ao processo de perda de legitimi-dade da instituio escravista na segunda metade do sculo XIX;31trata-seagora e esta uma questo que apenas se insinua, j no fim do texto de pensar o que a concentrao do nmero de escravos em poucos e pode-rosos proprietrios significa para quem a perdeu. Para estes, a discussosobre uma carta de alforria ou sobre a legitimidade de uma doao deextrema importncia: no s que se tratava de muito dinheiro, s vezestodos os bens de que dispunham os autores das aes de escravido;tratava-se, fundamentalmente, de defender na Justia sua prpria condio

    senhorial. Sob o risco de virarem senhores sem escravos.

    29FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homenslivres na ordem escravocrata. So Paulo: tica,1974. CUNHA, Manuela Carneiro da. Sobreos silncios da lei: lei costumeira e positivanas alforrias dos escravos no Brasil do sculoXIX. In: Antropologia do Brasil. Mitos, hist-ria, etnicidade. So Paulo: Brasiliense, Editorada Universidade de So Paulo, 1986. Para estaautora, a lgica da manuteno da ordem noBrasil Imperial supunha que os escravos seriamcontrolados por seus senhores, no mbito pri-vado; e o Estado cuidaria dos homens livres epobres, no mbito pblico.

    30

    Aqui caberia explorar a diferenciao entreproprietrios feita por Ricardo Salles a respei-to dos senhores da regio de Vassouras, nosculo XIX: micro-proprietrios (de 1 a 4 e scra-vos), pequenos (de 5 a 19), mdios (de 20 a49), grandes (de 50 a 99) e mega-proprietrios(100 ou mais). Ver SALLES, Ricardo. E o escravoera o Vale.Vassouras - sculo XIX. Senhores ecativos no corao do Imprio.Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, no prelo.

    31

    Ver, principalmente MATTOS, Hebe. Das cores dosilncio significados da liberdade no Sudesteescravista. Brasil. Sculo XIX . Rio de Janeiro:Arquivo Nacional, 1995.

    Recebido para publicao emsetembro de 2007