jose e.m. knust - senhores de escravos, senhores da razão

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

JOS ERNESTO MOURA KNUST

SENHORES DE ESCRAVOS, SENHORES DA RAZO Racionalidade Ideolgica e a Villa Escravista na Repblica Romana (sculos II e I a.C.)

Niteri 2011

JOS ERNESTO MOURA KNUST

SENHORES DE ESCRAVOS, SENHORES DA RAZO Racionalidade Ideolgica e a Villa Escravista na Repblica Romana (sculos II e I a.C.)

Dissertao apresentada ao Curso de PsGraduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria.

Orientadora: Prof. Dra. Snia Regina Rebel de Arajo

Niteri 2011

Knust, Jos E.M. Senhores de Escravos, Senhores da Razo. Racionalidade Ideolgica e a Villa Escravista na Repblica Romana (sculos II-I a.C.). 327 f. Orientadora: Snia Regina Rebel de Arajo. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2011. Bibliografia: f.310-327. 1. Roma Histria Antiga 2. Escravido Roma. 3. Economia Roma. I. Arajo, Snia Regina Rebel. II Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.

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JOS ERNESTO MOURA KNUST

SENHORES DE ESCRAVOS, SENHORES DA RAZO Racionalidade Ideolgica e a Villa Escravista na Repblica Romana (sculos II e I a.C.)

Dissertao apresentada ao Curso de PsGraduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria. Aprovado em abril de 2011.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________ Profa. Dra. Snia Regina Rebel de Arajo - UFF (Orientadora)

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso UFF

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Augusto Machado UNIFESP

Niteri 2011

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Para meu pai.

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Agradecimentos um grande clich afirmar em pginas de agradecimentos de trabalhos como este que seu resultado no fruto de um esforo individual. Isso no torna menos verdadeiro o fato de que, apesar de apenas aquele que assina o texto poder ser responsabilizado pelos seus erros afinal, ele quem tem o poder de incluir ou excluir qualquer afirmao uma pesquisa nunca uma atividade intelectual solitria. Fora o fato de que no reinventamos a roda a cada vez que nos debruamos sobre uma problemtica de pesquisa estamos sempre vendo o mundo sobre o ombro de gigantes, como diria Isaac Newton , cada passo dado em uma pesquisa sempre fruto das mais diversas interaes com as mais diferentes pessoas a quem cabe agradecer, neste momento. Tendo a certeza de seu insucesso, estes agradecimentos tentaro dar conta de mencionar pelo menos o maior nmero possvel de pessoas sem as quais este trabalho seria certamente mais pobre, seno inexistente. A professora Snia Regina Rebel de Arajo, minha orientadora, dedicou-me no s uma orientao acadmica atenciosa e dedicada, como me agraciou com uma amizade sincera e generosa. Sua orientao foi sempre capaz de me indicar os rumos necessrios para o desenvolvimento da pesquisa e de me salvaguardar de possveis equvocos ao trilhar tais caminhos. Ademais, sem me podar os anseios de grandeza, Soninha foi capaz de me salvar muitas vezes das armadilhas da minha prpria megalomania acadmica, me fazendo voltar a por os ps no cho sempre que necessrio mesmo que algumas vezes eu tenha sido um tanto cabea-dura. O Grupo de Trabalho sobre Sociedades Pr-Capitalistas do Ncleo de Pesquisas e Estudos em Marx e Marxismo (o NIEP-PrK), da Universidade Federal Fluminense, deu um significado ainda mais profundo a idia de que esta dissertao fruto de um trabalho coletivo. Os debates semanais dedicados a desvendar a anatomia do macaco estimularam a formulao da maioria das grandes questes que tentei responder ao longo deste trabalho. E as respostas presentes nesta dissertao tambm so frutos das conversas e reflexes coletivas, nas reunies semanais ou nas trocas de e-mail dirias, que se tronaram um grande estmulo para o aprofundamento de minhas reflexes, nesses dois anos de existncia do grupo. Alm de estimulante academicamente, o grupo se tornou uma segunda famlia (mais clichs!) na qual o almoo de domingo foi substitudo pelo lanchinho da segunda-feira de manh. Os amigos Arthur Henriques, Daniel Tomazine, Fbio Afonso Frizzo, Gabriel Melo, Mariana Bedran, Mrio Jorge da Motta Bastos, Paulo Henrique Pach e Renato Rodrigues

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Silva sintam-se abraados por este grato colega que reconhece que sem vocs este trabalho no teria a mesma relevncia que pretende ter. O nome do autor na capa desta dissertao s no Macacada do Niep-PrK por que vocs no podem ser culpados pelas bobagens que por ventura eu possa ter escrito neste trabalho. Ao professor Mrio Jorge, assim como ao seu contra-xar Jorge Mrio Davidson, devo, tambm, os importantes comentrios e conselhos da banca de qualificao, que me ajudaram a corrigir certos rumos da pesquisa e a melhorar os dois primeiros captulos, apresentados em tal oportunidade. Alm desses dois professores, tive a sorte de poder contar com comentrios, conselhos e sugestes de diversos outros professores sobre aspectos da minha pesquisa. Em diferentes oportunidades, atravs dos mais diversos meios (como eventos acadmicos, trocas de e-mails e at comentrios em blogs), pude travar conversas com professores como Andr Chevitarese, Carlos Astarita, Fbio Faversani, Juliana Marques e Norberto Guarinello, que foram muito importantes para a realizao da pesquisa. O professor Fbio Duarte Joly muito me ajudou no apenas com seus comentrios e sugestes, mas tambm incentivando e auxiliando minha pesquisa com o envio generoso de muitos materiais importantes ainda no momento em que esta pesquisa dava seus primeiros passos. Por fim, aos professores Carlos Augusto Machado e Ciro Flamarion Cardoso agradeo pelo aceite em participar da banca examinadora desta dissertao, alm dos comentrios e sugestes minha pesquisa feitos pelos dois em diferentes oportunidades. Questes importantes para a pesquisa tambm surgiram ao longo das disciplinas que cursei no primeiro ano do Mestrado, com os professores Carlos Gabriel Guimares, Joo Lus Fragoso e Vnia Leite Fres, alm da matria que cursei com minha prpria orientadora, a professora Snia Rebel. Aos professores Carlos Gabriel e Joo Fragoso devo muitas das reflexes sobre problemas da Histria Econmica que tentei tratar nesta dissertao. professora Vnia, por sua vez, devo reflexes tericas e metodolgicas fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa. Gostaria de agradecer no apenas aos professores dessas disciplinas, mas em especial aos colegas de curso que, provavelmente sem nem desconfiar, me ajudaram a desenvolver diversas questes importantssimas para minha pesquisa enquanto comentavam textos, expunham questionamentos ou teciam consideraes sobre os mais diversos assuntos. Em todas as matrias que cursei encontrei colegas dedicados e um ambiente de inquietao e curiosidade intelectual que foram fundamentais no desenvolvimento de minha pesquisa. As reflexes que desenvolvi neste trabalho, contudo, no nasceram do dia para a noite, assim que entrei na ps-graduao. Desta forma, importantssimo no esquecer colegas da

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minha turma de graduao em Histria (tambm cursado na UFF), que nas mais diversas situaes, em conversas com os mais diferentes graus de seriedade (e inebriao), tambm ajudarem (e muito!) este que vos escreve a trilhar seus primeiros passos no ofcio do historiador. Expondo-me ao risco de esquecer nomes importantes, gostaria de agradecer a Adolpho, Bruno, Carlos, Daniele, Michel, Francisco, Gabriel Jos, Priscila, Nathlia, Samantha. Dentre estes colegas de graduao, gostaria de agradecer em especial a Thiago Krause, exemplo de historiador e de apaixonado pela pesquisa, que certamente exemplo no s pra mim, e a Vincius Ayres, meu companheiro de Histria Econmica. As constantes conversas com ambos, atravs dos diferentes meios que a tecnologia permite atualmente, sempre foram importantes para minha reflexo historiogrfica. Devo um agradecimento sem tamanho minha namorada, Aline da Cruz de Moura, que com uma enorme boa vontade aceitou o inglrio cargo de revisora da minha dissertao. Para alm dos agradecimentos acadmicos, obviamente, no posso deixar de agradecer a companhia e o carinho que ela me dedicou nestes quase dois anos que estamos juntos. O carter coletivo deste trabalho no se resume apenas s contribuies diretas dada ao trabalho pelo colegas historiadores, mas tambm a estas pessoas que tornam nossa vida mais feliz. Nesta categoria de agradecimentos no posso esquecer meus familiares. Minha irm, Carolina, e meu cunhado, Ricardo, me hospedaram incontveis vezes em sua casa sempre em que eu, morador de Nova Friburgo, precisei ir ao Rio ou mesmo a Niteri (o que por razes bvias no foram poucas vezes nestes dois ltimos anos) e este no o nico motivo pelo qual devo agradecer aos dois, obviamente. Minha me, Marilene, e meu pai, Gustavo, me deram todo o apoio, mesmo tendo o caula escolhido carreira to inglria. toda minha famlia, meus tios, tias, primos e primas, agradeo por toda a convivncia familiar to saudvel que temos e por todo o incentivo que sempre me deram. Gostaria de agradecer tambm aos meus muitos amigos no-historiadores, que certamente sentiram minha ausncia naqueles chopinhos de final de semana nesses ltimos tempos (aos quais prometo voltar em breve). Devo agradecimentos especiais, entre estes, a Rafael Herdy, que me iniciou nos mistrios do Excel, a Felipe Lopes, que me hospedou em uma abusada visita a So Paulo que me possibilitou realizar pesquisas na biblioteca da USP, e Rafael Pedretti, que me hospedou tantas vezes na sua casa em Niteri que acabou me convidando para morar l de uma vez (e pelo menos ajudar a rachar o aluguel!), o que fiz por divertidos quatro meses.

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Por fim, cabe o agradecimento ao CNPq, que me concedeu bolsa de estudos que permitiu minha dedicao a esta pesquisa.

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Por trs dos grandes vestgios sensveis da paisagem, por trs dos escritos mais inspidos e as instituies aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram, so os homens que a histria quer capturar. Quem no conseguir isso ser apenas, no mximo, um servial da erudio. J o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali est sua caa. Marc Bloch, Apologia da Histriai.

O primeiro ato histrico , pois, a produo dos meios para a satisfao dessas necessidades, a produo da prpria vida material, e este , sem dvida, um ato histrico, uma condio fundamental de toda a histria, que ainda hoje, assim como h milnios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos. Karl Marx e Friederich Engels, A Ideologia Alemii

O historiador das economias antigas est, portanto, obrigado a restringir seu emprego [das categorias da cincia econmica moderna] a um uso, por assim dizer, indireto ou reflexivo: no para imediata e simplesmente descrever, mas para formular conceitos capazes de descrever. Apenas assim a inevitvel comparao entre o antigo e o moderno pode traduzir-se numa pontual anlise das diferenas (o conhecimento histrico nada mais do que conhecimento pelas diferenas), e no numa assimilao confusa e estril. Aldo Schiavone, Uma Histria Rompidaiii

Marc Bloc, Apologia da Histria. Ou o ofcio do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.54 Karl Marx e Friederich Engels, A Ideologia Alem. So Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p.33. iii Aldo Schiavone, Uma Histria Rompida. Roma Antiga e o Ocidente Moderno. So Paulo: Edusp, 2005, p.71, nota 30.ii

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ResumoEsta pesquisa analisa a racionalidade das prescries sobre os trabalhadores escravos no De Agri Cultura de Cato e no De Re Rustica de Varro. A hiptese inicial de trabalho que Cato e Varro ilustram um processo de racionalizao das atividades produtivas e do controle social da mo-de-obra nos campos italianos dentro de um quadro ideolgico tipicamente escravista e patriarcal, fazendo frente s transformaes e contradies fundamentais do sistema econmico-social que se desenvolvia na Itlia tardo-republicana. Contudo, identificamos que o conceito neoclssico de racionalidade, amplamente utilizado como premissa dos estudos sobre a economia antiga, se baseia em premissas equivocadas e no serve como bom referencial de anlise. A partir disso, propomos uma nova abordagem ao problema, a partir do conceito de Racionalidade Ideolgica. Este conceito nos leva a ressaltar a importncia da anlise das relaes sociais que marcam a Villa, forma de apropriao do solo e de explorao do trabalho que estes autores tinham em mente ao compor seus tratados, para o estudo da Racionalidade. Para tal, em um primeiro momento, analisamos como os tipos de atividades produtivas realizadas nas Villae e as formas de circulao de seus produtos esto ligadas ao problema da extrao de excedentes dos produtores diretos. J em um segundo momento, identificamos as formas de relaes sociais de produo e a centralidade da escravido para a forma de insero social das Villae nas comunidades rurais. Tendo por referncias essas problemas das relaes sociais que marcam a Villa, analisamos as prescries de Cato e Varro sobre a mo-de-obra escrava, identificando a Racionalidade Ideolgica que fundamenta suas preocupaes bsicas. Palavras-Chave: Roma Antiga, Economia Antiga, Escravido Antiga, Racionalidade, Ideologia, Cato, Varro.

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AbstractThis study examines the rationality of the prescriptions on slave workers in Catos De Agri Cultura and Varros De Re Rustica. The initial hypothesis is that Cato and Varro illustrates a rationalization process of productive activities and manpowers social control in the Italian countryside within a typically slavery and patriarchal ideological framework in line with the changes and the fundamental contradictions of the socio-economic system that developed in late-Republican Italy. However, we identify that the neoclassical concept of rationality, widely used as a premise in studies on the ancient economy, relies on questionable assumptions and it isn`t a useful concept for this study. We propose a new approach to the problem, the concept of Ideological Rationality. This concept will lead us to emphasize the importance of the social relations that mark the Villa (form of land appropriation and work exploitation that these authors had in their mind when composing these treatises) for the study of the Rationality. At first, we analyze how the types of productive activities carried out in Villae and the forms of production circulation are linked with the problem of surplus extraction from direct producers. In a second step, we identify the forms of social relations of production and the centrality of slavery to the form of social insertion of Villae in rural communities. In face with these problems of social relations that mark the Villa, we analyze the prescription of Cato and Varro on slave labor, identifying the Ideological Rationality that underlies their basic concerns. Key-Words: Ancient Rome, Ancient Economy, Ancient Slavery, Rationality, Ideology, Cato, Varro.

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SumrioNota sobre as fontes citadas .......................................................................................................... 6 Introduo ...................................................................................................................................... 7 Captulo 1: Racionalidade Econmica da Aristocracia Romana: conceitos e debates ......... 14 1. A Racionalidade Inexistente: o paradigma de Finley ............................................. 16 1.1. Weber, Polanyi e as premissas de Finley sobre o Econmico ............. 18 1.2. Tradio, Costume e Empiria .............................................................. 24 2. A Racionalidade Limitada: o paradigma neomodernista .................................... 27 2.1. A racionalidade dos investimentos conservadores .............................. 29 2.2. New Economic History e Economia Antiga......................................... 32 2.3. Neoinstitucionalismo e Economia Antiga ........................................... 36 2.4. Crtica ao conceito neoclssico de racionalidade................................. 42 3. A Racionalidade Singular: propostas alternativas .................................................. 46 3.1. A Gesto aquisitiva no-mercantil ................................................... 49 3.2. Racionalidade Imperial ........................................................................ 55 3.3. Racionalidade do Sistema Escravista................................................... 62 4. A Racionalidade Ideolgica: uma nova proposta................................................ 67 4.1. Materialismo Histrico, Ideologia e Estrutura Social .......................... 68 4.2. Por um conceito materialista histrico de racionalidade ..................... 75 Captulo 2: Os tratados de Cato e Varro e o estudo da racionalidade ............................... 82 1. Os agrnomos latinos na historiografia .............................................................. 83 2. O De Agri Cultura de Cato ................................................................................... 88 2.1. O Autor ................................................................................................ 88 2.2. Composio do De Agri Cultura ......................................................... 89 2.3. Contexto poltico e cultural da composio ......................................... 91 2.4. De Agri Cultura como fonte para a Histria Econmica..................... 97 3. O De Re Rustica de Varro ................................................................................... 100 3.1. O Autor .............................................................................................. 100 3.2. Composio da De Re Rustica ........................................................... 101 3.3. Contexto poltico e cultural da composio ....................................... 108 3.4. De Re Rustica como fonte para a Histria Econmica ...................... 110 4. Estruturalismo Gentico e Anlise de Contedo .................................................. 114

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Captulo 3: A Villa Rustica: conceito e primeiros elementos de anlise ............................... 117 1. Estrutura Fundiria e Demografia na Itlia Republicana ..................................... 117 1.1. Arqueologia rural e a heterogeneidade da estrutura fundiria ........... 119 1.2. O problema demogrfico ................................................................... 123 2. O Conceito de Villa .............................................................................................. 128 2.1. Crtica concepo de Villa tpica ou ideal ............................... 128 2.2. A Villa e a reorganizao do espao rural ......................................... 145 3. Atividades Econmicas nas Villae........................................................................ 149 3.1. Produo de vinho e leo de oliva ..................................................... 150 3.2. Outras produes agro-pastoris ......................................................... 154 3.3. Outras atividades econmicas ............................................................ 157 4. Circulao dos produtos das Villae....................................................................... 163 4.1. Caracterizao do Comrcio na Economia Antiga ............................ 163 4.2. Comercializao dos Produtos da Villae ........................................... 170 Captulo 4: As relaes sociais de produo nas Villae Escravistas...................................... 178 1. Os trabalhadores externos ................................................................................. 181 1.1 Trabalho Livre e a Vizinhana da Villa em Cato e Varro ........... 181 1.2. Trabalho livre? ................................................................................... 199 2. Os trabalhadores fixos ....................................................................................... 204 3. A Importncia da escravido nas Villae ............................................................... 218 3.1. Escravido e a alienao das relaes sociais .................................... 218 3.2. Escravos e o surgimento de Sociedades Escravistas ......................... 220 3.3. Escravido e as Relaes Agrrias na Itlia dos sculos II e I a.C. ... 225 3.4. Roma teve uma economia genuinamente escravista? ........................ 234 Captulo 5: Controle e Explorao dos Trabalhadores Escravos nas Villae ....................... 238 1. As relaes entre senhores e escravos: violncia e cooptao .......................... 239 1.1. Controle dos escravos: a historiografia e seus conflitos .................... 239 1.2. A ausncia da violncia em Cato e Varro ...................................... 246 2. A hierarquia na organizao do trabalho: os chefes escravos .............................. 251 2.1. Varro e as caractersticas necessrias aos chefes ............................. 253 2.2. O Vilicus ............................................................................................ 256 2.3. Outros chefes: magister pecoris, custos e uilica................................ 268 3. Tratamento dos Escravos ...................................................................................... 275 3.1. Aplicao ao trabalho e fidelidade ao senhor .................................... 275

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3.2. Peclio: controle social e brecha camponesa ................................. 280 3.3. Peclio e Raes: o problema da alimentao dos escravos.............. 284 3.4. A Famlia Escrava: no ergstulo, uma flor? ...................................... 289 4. A Racionalidade Ideolgica do Escravismo ......................................................... 293 4.1. Tipos de atividades produtivas e formas de controle ......................... 294 4.2. A questo do Paternalismo ............................................................. 298 4.3. Patriarcalismo e Racionalidade .......................................................... 301 Concluso ................................................................................................................................... 306 Bibliografia ................................................................................................................................. 311 1. Edies das Fontes ................................................................................................ 311 2. Bibliografia Citada................................................................................................ 311

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ndice de FigurasFigura 1 - Estimativas para a Populao Italiana entre 200 a.C. e 1900 d.C. .............125 Figura 2 - Nmero de referncias a produtos agro-pastoris no De Agri Cultura de Cato .......................................................................................................................................137 Figura 3 - Nmero de referncias a produtos agro-pastoris no De Agri Cultura de Cato distinguindo Consumo e Produo ...............................................................................137 Figura 4 - Planimetria reconstruda de um edifcio rural prximo a Pompia (R-34) 160 Figura 5 - Ocorrncia de Termos sobre os trabalhadores na De Agri Cultura: denotao de estatuto ou de ofcio ..........................................................................................179 Figura 6 - Ocorrncia de Termos sobre os trabalhadores na De Re Rustica: denotao de estatuto ou de ofcio ...........................................................................................................180 Figura 7 - Ocorrncia de Termos sobre os trabalhadores na De Agri Cultura: trabalho fixo e trabalho temporrio.......................................................................................................180 Figura 8 - Ocorrncia de Termos sobre os trabalhadores na De Re Rustica: trabalho fixo e trabalho temporrio.......................................................................................................180 Figura 9 - Contabilizao do vocabulrio usado para se referir a trabalhadores residentes na Villa no De Agri Cultura ...................................................................................205 Figura 10 - Contabilizao do vocabulrio usado para se referir a trabalhadores residentes na Villa no Livro I da De Re Rustica .....................................................................207 Figura 11 - Contabilizao do vocabulrio usado para se referir a trabalhadores residentes na Villa no Livro II da De Re Rustica....................................................................213 Figura 12 - Categorizao das Aes do Vilicus em Cato e Varro..........................262

ndice de TabelasTabela 1 - Demanda anual de novos escravos se as estimativas de Brunt estiverem corretas ....................................................................................................................................126 Tabela 2 - Atitudes e sentimentos que devem ser estimulados entre os Escravos, segundo Varro .......................................................................................................................279

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Nota sobre as fontes citadasAs edies do De Agri Cultura, de Marco Prcio Cato, e do De Re Rustica, de Marcos Terncio Varro, utilizadas como referncia neste trabalho so as presentes na publicao conjunta das obras na conceituada srie Leob Classical Library, da Harvard University Press, organizada por William Davis Hooper e Harrison Boyd Ash1. Tal publicao utiliza os textos latinos estabelecidos pelo fillogo alemo Goetz nas edies Teubner da De Agri Cultura, de 1922, e da De Re Rustica, de 1929. A obra de Hooper e Ash encontra-se em domnio pblico e est disponibilizada na internet nos seguintes endereos: De Agri Cultura, de Cato: http://penelope.uchicago.edu/thayer/e/roman/texts/cato/de_agricultura/home.html De Re Rustica, de Varro: http://penelope.uchicago.edu/thayer/e/roman/texts/varro/de_re_rustica/home.html As citaes desses dois textos ao longo do nosso trabalho sempre traro o texto original, para garantir a verificabilidade das interpretaes propostas, antecedido de uma traduo para o portugus, com o intuito de facilitar a leitura do trabalho. As citaes traduzidas do De Agri Cultura e do Livro I do De Re Rustica foram feitas a partir das suas tradues para o portugus apresentadas por Matheus Trevizam na sua tese de Doutorado em Lingstica pela Universidade Estadual de Campinas2. Apenas em um ou outro caso optamos por manter o termo original mesmo na traduo, omitindo a traduo utilizada pro Trevizam. As citaes dos livros II e III da De Re Rustica foram tradues feitas por ns a partir do texto em latim estabelecido por Goetz e tendo por referncia a traduo para o ingls de William Davis Hooper e Harrison Boyd Ash. As demais fontes foram citadas a partir da bibliografia referente aos temas trabalhados na pesquisa; deste modo, as referncias dessas citaes sero fornecidas em cada um dos casos. Como no empreenderemos anlises detalhadas dessas outras fontes, omitiremos o texto original em latim ou grego e citaremos apenas a traduo para o portugus.

Cato, On Agriculture & Varro, On Agriculture. William Davies Hooper e Harrison Boyd Ash (Eds.), Cambridge, Mass.: Harvard University Press (Loeb Classical Library), 1935. 2 Mateus Trevizam, Linguagem e Interpretao na Literatura Agrria Latina. Campinas: IEL-UNICAMP (Tese de Doutorado), 2006.

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IntroduoEste exerccio de reflexo crtica parte do reconhecimento de que no h um ponto acima ou ideal do qual podemos descortinar o processo scio-histrico ou produzir conhecimento. Ao contrrio, mergulhado nele que o conhecimento se enriquece das inmeras determinaes que compem o real, evidenciando suas asperezas e contradies, e no as ocultando. Baseiase, portanto, na compreenso de que a vida social composta por bilhes de seres que, no agir, produzem sua existncia. Somos seres concretos, de carne e osso. Precisamos continuar concretos para produzirmos alimentos, casas, roupas, bens variados, festas, cultura, amizade, mltiplas linguagens. Somos seres annimos, que encontramos um mundo organizado de uma dada maneira, que nos parece natural. Nele, nos tornamos o que somos, ora satisfeitos, ora enraivecidos como nossa sorte. Sabemos que a vida social histrica e pode se modificar, mas nem sempre sabemos como fazer para que isso ocorra. Este livro pretende socializar um conhecimento que, adquirido em instituies pblicas, refinado e polido nas lutas sociais, procura partir do mundo real, de seres sociais concretos e manter-se nele. Se puder contribuir para que as lutas emancipatrias tornem-se mais aguadas, terei atingido meu objetivo. Virgnia Fontes, O Brasil e o Capital-Imperialismo3

A epgrafe acima no pode servir para balizar este trabalho. Cito-a mais como uma referncia ao que acredito ser o ideal de um bom trabalho de pesquisa do que para descrever o que foi de fato realizado nesta dissertao de mestrado. E to pouco eu poderia reivindicar o mesmo tipo de enquadramento de meu trabalho na atuao poltica que faz Virgnia Fontes, de imensa relevncia na historiografia e nos movimentos sociais. Porm, ao ler tal passagem da obra da professora Virgnia, no pude no pensar no que ela significaria para o meu trabalho. Mais especificamente, me levantou a difcil questo de para que(m) serve meu trabalho de pesquisa? Obviamente, minha pesquisa dialoga com debates tericos e historiogrficos que julgo relevantes para o desenvolvimento dos estudos nas reas de conhecimento em que busco me inserir, e talvez eu pudesse me dar por satisfeito com isso. No entanto, acredito que este trabalho pode ir um pouco alm. Sendo otimistas, podemos esperar que a crise econmica global que teve incio em 2009, mesmo ano em que comecei o mestrado no Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), talvez marque o fim de uma era em que imperou nos debates econmicos a perspectiva da existncia de um pensamento nico. A teoria econmica de base neoclssica, h bastante tempo hegemnica e alada ao status de

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Virgnia Fontes, O Brasil e o Capital-Imperialismo. Rio de Janeiro: EPSJV e EdUFRJ, 2010, p.16.

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Ortodoxia, tornou-se um pensamento quase sacrossanto, desafiado apenas por hereges que, ou no percebiam que defendiam idias anacrnicas, afinal o socialismo teria sido derrotado com a queda do muro de Berlim e o capitalismo triufara, ou que no tinham capacidade intelectual de perceber o bvio, a cientificidade inquestionvel e absoluta da teoria neoclssica e o erro marxista ao insistir no conceito de valor-trabalho. Obviamente, este estado de coisas no flutua na histria das idias sem qualquer contato com o mundo social e econmico. A nova fase de expanso do capitalismo (ou como melhor define Virgnia Fontes, capital-imperialismo4) iniciado em meados da dcada de 80, juntamente com a queda dos regimes que reivindicavam o Marxismo como fundamentao terica e poltica, criou o contexto scio-poltico favorvel disseminao do mito da existncia do pensamento econmico nico, ou da economia ortodoxa, que no se podia contradizer impunemente. Vivamos a poca do there is no alternative, da primeira-ministra inglesa Margareth Tatcher. O crescimento do PIB em boa parte do mundo ocidental na dcada de 90 e, especialmente, na primeira dcada do novo sculo acabou servindo de apoteose para esse mito. Como poder ser visto ao longo deste trabalho, uma das pretenses mais srias da minha pesquisa foi combater o pilar epistemolgico da economia neoclssica, o tosco conceito de racionalidade econmica que sustenta sua reflexo pois esta abordagem da teoria econmica serve de base para importantes posies terico-metodolgicas da historiografia econmica que pretendo superar neste trabalho. Sendo assim, esta dissertao de mestrado pretende contribuir para o esforo de derrubada do mito do pensamento nico neoliberal ou da economia ortodoxa, mostrando como o que se considerou nestas ltimas dcadas como nica possibilidade de pensamento econmico cientificamente vlido se sustenta sobre bases epistemolgicas extremamente frgeis. A crtica ao pensamento econmico nico fundamental para demonstrarmos que, ao contrrio da idia que se consolidou nas ltimas dcadas, as solues para os problemas da humanidade no passam pelo maior desenvolvimento do capitalismo. Mais mercado! tem sido um mantra repetido ad nauseam nas ltimas dcadas como resposta para todo e qualquer problema identificado nas sociedades contemporneas e esse estado de coisas deriva justamente da consolidao do tal pensamento nico neoliberal. Hegemonizou-se a idia de que o desenvolvimento do Mercado seria a nica resposta cientfica e racional para a soluo dos problemas da humanidade.

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Ibidem, passim, especialmente p.145-155.

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Desta forma, o combate a essa hegemonia da Teoria Econmica Neoclssica uma ponte para a defesa da superao do capitalismo (e no de seu desenvolvimento) como o caminho para a soluo das encruzilhadas da sociedade contempornea. Mostrando as singularidades do passado, podemos historicizar o presente. Historicizando o presente, podemos desenvolver alternativas para sua superao. Acima de tudo, portanto, esta dissertao pretende ajudar no esforo de demonstrar que o rei est nu, ou de que o mito tem ps de barro. De qualquer forma, os problemas que incitam um trabalho de pesquisa possuem uma trajetria intelectual de construo, e sua explicitao muitas vezes ajuda bastante a identificao dos mesmos por parte do leitor. Para tanto, posso dizer que em meados do ano de 2007, ainda no curso de graduao em Histria na UFF, comecei uma pesquisa de iniciao cientfica, sob orientao da professora Snia Regina Rebel de Arajo, cujo tema era A escravido no De Re Rustica de Varro. Meu interesse pela escravido neste texto, um tratado sobre as coisas do campo escrito no sculo I a.C. na Roma Antiga, surgira do que se poderia chamar de histria comparada intuitiva: ao ler diversos estudos sobre a escravido nas Amricas relacionando modificaes e reformulaes nas prticas e nas ideologias escravistas a grandes episdios de sublevao de escravos5, me perguntei sobre os tipos de mudanas que poderiam ter ocorrido nas prticas e ideologias escravistas romanas aps as famosas guerras servis dos sculos II e I a.C. que ocorreram no sul da Itlia e na Siclia. Certamente, esta seria uma problemtica de pesquisa complexa e profunda demais para uma pesquisa de iniciao cientfica e, portanto, busquei um recorte temtico mais delimitado. O texto sobre as coisas do campo de Varro me pareceu ideal para um estudo inspirado neste questionamento, pois o autor foi contemporneo da ltima dessas guerras servis a Revolta de Esprtaco (73 a.C.-70 a.C.). Desta maneira, desenvolvi uma pesquisa sobre a forma como Varro preconizava a administrao da mo-de-obra escrava, partindo da hiptese de que o medo de novas revoltas causado pela violncia e magnitude das grandes revoltas servis fez a classe proprietria romana rever suas prticas e suas ideologias escravistas6.

Cf., por exemplo, Silvia Hunold Lara, Do singular ao plural: Palmares, capites-do-mato e o governo dos escravos in: Joo Jos Reis e Flvio dos Santos Gomes, Liberdade por um fio. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, especialmente p.83-88; Joo Jos Reis, Rebelio Escrava no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, especialmente p.509-515 e 525-536; e Keith Bradley, Slavery and Rebellion in the Roman World. Indiana University Press and B.T.Batsford, 1989, p.13. 6 Jos Ernesto Moura Knust, Escravido, Produo e Controle na De Re Rustica de Varro. Niteri: Departamento de Histria, Universidade Federal Fluminense (Monografia de concluso de curso), 2008. A possibilidade de relacionar alguns dos conselhos varronianos sobre o controle dos escravos com as guerras servis

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Como costuma ocorrer com todas as pesquisas, ao aprofundar minhas reflexes sobre esta temtica me deparei com problemas mais fundamentais que eu no havia previsto inicialmente. Ao tentar entender as razes dos conselhos de Varro sobre a relao do proprietrio com seus escravos, emergiu um problema mais profundo a ser resolvido: a abordagem de Varro sobre os trabalhadores rurais, em especial os escravos, permeada por uma racionalizao da atividade produtiva e das relaes de controle social? A polmica envolvendo esta questo considervel, j que durante dcadas a historiografia, principalmente anglo-sax, foi dominada por uma caracterizao minimalista e primitivista da Economia Antiga, negando a possibilidade de qualquer tipo de crescimento econmico e do desenvolvimento de qualquer espcie de pensamento econmico na Antiguidade. Moses Finley, o autor fundamental desta percepo da Economia Antiga, por exemplo, afirmava que os autores de tratados sobre a agricultura da Antiguidade nunca iriam alm de observaes rudimentares baseadas no senso comum em seus textos7. Como durante a pesquisa de iniciao cientfica no era possvel desenvolver uma questo desta profundidade, acabei deixando-a de lado. Foi esse questionamento noresolvido que me fez retornar s consideraes de Varro sobre os escravos em seu tratado sobre o campo. Nesta retomada do problema, achei importante expandir um pouco o corpus documental incluindo nesta nova pesquisa o tratado similar de Cato (anterior ao de Varro) por ele ter sido produzido em um perodo (incio do sculo II a.C.) que alguns autores, especialmente aqueles que no concordam com a abordagem minimalista de Finley sobre a Economia Romana, apontam como de grande transformao da economia rural italiana. Temos, ento, como fontes primrias, dois tratados que foram escritos em momentos que teriam sido crticos para possveis processos de racionalizao da atividade produtiva e das relaes de controle social, o objeto de pesquisa neste trabalho. A centralidade dessas fontes nesta pesquisa no significou a ignorncia de todas as outras fontes que podiam ser relevantes para pesquisa. Muitos estudiosos, a fim de evitar generalizaes abusivas, buscam um recorte do objeto de pesquisa bastante especfico, circunscrevendo fontes determinadas e remetendo-se exclusivamente ao universo conceitual identificvel nessas fontes. Acredito que existem melhores formas de evitar generalizaes abusivas do que este procedimento que acaba, muitas vezes, empobrecendo pesquisas muito

j fora aventado por Zvi Yavetz em Slaves and Slavery in Ancient Rome. New Brunswick and London: Transaction Publishers, 1988, p.127-128 7 Moses Finley, A Economia Antiga, Porto: Edies Afrontamento, 1981, p.22-23.

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bem realizadas. O problema da racionalidade identificvel nos tratados de Cato e Varro serviu como eixo ao longo do trabalho, mas muitas vezes outras fontes foram citadas para o estabelecimento do quadro explicativo. O prprio dilogo historiogrfico estabelecido ao longo dos captulos me levou a contemplar, ainda que de maneira indireta, outras fontes primrias. Porm, uma diferena importante na apreciao dessas fontes poder ser percebida ao longo da leitura deste trabalho. Enquanto os tratados de Cato e Varro foram exaustivamente analisados, e interpretaes originais foram oferecidas, a abordagem a outras fontes sempre se deu a partir de interpretaes j estabelecidas por outros pesquisadores e apenas debatidas ao longo do trabalho. A realizao destes dilogos com a historiografia foi importante neste trabalho devido insero desta pesquisa na encruzilhada de dois debates historiogrficos clssicos sobre o mundo antigo: as caracterizaes da Economia Antiga e da Escravido Antiga. Ademais, minha proposta de abordagem insere estes debates historiogrficos em um debate fundamental da teoria social: o problema da racionalidade do comportamento humano, o que acredito ter possibilitado novas abordagens frutferas a reflexo sobre estes temas clssicos. A hiptese inicial de trabalho a de que Cato e Varro ilustram um processo de racionalizao das atividades produtivas e do controle social da mo-de-obra nos campos italianos dentro de um quadro ideolgico tipicamente escravista, fazendo frente s transformaes e contradies fundamentais do sistema econmico-social que se desenvolvia na Itlia tardo-republicana. Porm, como pretendi demonstrar, possvel falar neste processo de racionalizao somente a partir de uma reconstruo do conceito de racionalidade, abandonando o aporte da teoria econmica neoclssica referncia bsica quando se fala em racionalidade. Tal reconstruo do conceito de Racionalidade pode ser feito a partir de referenciais marxistas de autores como Maurice Godelier, Wiltold Kula, Lucien Goldmann, Edward Thompson e Ellen Meiksins Wood e da associao direta desse conceito com o conceito de ideologia. As definies do objeto de pesquisa, das fontes a serem utilizadas e do aporte terico estabelecem dois problemas iniciais: o que exatamente entendemos por racionalidade? Que tipo de abordagem das fontes empreender para poder realizar este estudo? Estes so os temas dos dois primeiros captulos deste trabalho. No primeiro captulo so analisados diferentes tipos de abordagens historiogrficas sobre o problema da racionalidade econmica dos antigos romanos que derivam de diferentes conceitos de racionalidade utilizados. Meu intuito identificar a importncia de cada uma destas abordagens para o desenvolvimento do debate,

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mas tambm seus problemas e limitaes, tudo isto a fim de delimitar o conceito de racionalidade que ser utilizado no trabalho, definido no termo racionalidade ideolgica. A detalhada reviso historiogrfica e terica empreendida neste captulo, porm, no visa apenas definir pontualmente o que entendo por racionalidade nesta pesquisa. Pretendo neste captulo identificar o que acredito ser o maior problema dos estudos sobre a racionalidade econmica antiga: a falta de uma boa definio do conceito de racionalidade. Alm disso, o cotejamento de uma ampla bibliografia pretende tambm identificar certos insights teis para reflexes nos captulos seguintes. No segundo captulo, a vez de enfrentar o problema metodolgico fundamental: qual a forma de abordagem dos tratados permite o estudo da racionalidade a partir deles? Para responder a tal questionamento, a forma tradicional de abordagem desses tratados na historiografia e a crtica contempornea que se faz a essa abordagem so identificadas. A partir desta crtica, so discutidas separadamente as singularidades de cada um dos tratados para estabelecer suas formas de composio, suas caractersticas e seus objetivos polticoideolgicos. Com isto, acredito ser possvel estabelecer como abordar estes tratados para atingir os objetivos da pesquisa, determinando, por fim, os parmetros metodolgicos para a pesquisa a partir do dilogo com o Estruturalismo Gentico e com a Anlise do Discurso. Este trabalho terico-metodolgico nos dois primeiros captulos define a importncia, para nosso trabalho, da correta identificao das estruturas e transformaes scioeconmicas da histria agrria romana. O terceiro e o quarto captulos, que, como o leitor poder perceber, formam uma unidade coerente, tratam deste problema. A questo fundamental identificar o que era uma uilla e os diversos problemas analticos que tal conceito traz consigo. Tradicionalmente os tratados de Cato e Varro so identificados como descries de um tipo especfico de propriedade, as uillae. Como mostramos no segundo captulo, esta idia parte da premissa equivocada de que Cato e Varro pretendiam descrever a realidade dos campos italianos. Porm, em parte, concordamos com a idia de que estes autores tinham em mente, ao escrever seus tratados, este tipo especfico de propriedade mas no sem discordar veementemente da forma rgida e equivocada em que as uillae tm sido definidas. A partir disso, discutimos no incio do terceiro captulo como definir de uma maneira mais interessante o fenmeno da uilla, enfatizando o problema da insero social desta forma de propriedade no contexto rural. A partir das consideraes sobre este problema, levantam-se trs questes importantssimas: as atividades econmicas realizadas nas uillae, as formas de circulao de sua produo e as relaes sociais de produo deste tipo de propriedade. As

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duas primeiras questes so discutidas ainda no terceiro captulo, mostrando a centralidade do problema da extrao de excedentes dos produtores diretos para entend-las. A terceira questo, as formas de relaes sociais de produo da uilla, no por acaso mereceu uma anlise mais cuidadosa, e por isso a ela dedicamos todo o quarto captulo. Neste captulo identificamos as diferentes formas de trabalho que existiam no contexto da uilla, que podem ser basicamente divididas entre o trabalho fixo, residente, realizado por escravos, e o trabalho temporrio ou sazonal, realizados por camponeses livres. Ao longo deste captulo buscamos entender qual a importncia do escravismo no contexto da uilla. No quinto captulo, so analisados detalhadamente os preceitos defendidos por Cato e Varro acerca da mo-de-obra. O captulo comea como uma discusso sobre a importncia da violncia no controle dos escravos e uma explicao sobre a pouca ateno dada a este elemento nas prescries dos nossos dois autores. Depois disso, identifico a importncia dada s hierarquias entre os trabalhadores, destacando o importante papel desempenhado pela figura do escravo encarregado da administrao da propriedade, o uilicus. O terceiro tema do captulo so as formas de tratamento dos escravos, analisando os objetivos dos preceitos deste tratamento e sua incorporao em uma racionalidade da organizao do trabalho agrcola e do controle dos trabalhadores. Concluindo o quinto captulo, tentamos caracterizar a Racionalidade Ideolgica que identificamos nestes preceitos. Por fim, a concluso busca retomar as idias centrais do trabalho, identificando como a organizao da unidade produtiva e, especialmente, a organizao do trabalho descritas nos tratados de Cato e Varro podem ser analisadas dentro do quadro conceitual da Racionalidade Ideolgica.

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Captulo 1: Racionalidade Econmica da Aristocracia Romana: conceitos e debatesOs estudos sobre a Economia Antiga so dominados h mais de um sculo pelo debate entre duas diferentes abordagens bsicas, iniciado ainda no sculo XIX, sob forte impacto do grande desenvolvimento da economia industrial capitalista. Por um lado, economistas da Escola Histrica Alem, como Karl Rodbertus e Karl Bcher, defendiam a idia de que o Mediterrneo Antigo pertencia a uma fase inicial do desenvolvimento econmico-histrico universal, que seria justamente a anttese do desenvolvimento industrial capitalista que lhes era contemporneo. A economia antiga seria, desta forma, marcada pela economia domstica, essencialmente agrcola e voltada para a auto-suficincia das unidades produtivas, e por isso desprovida de relaes comerciais relevantes. Esta posio ficou conhecida como primitivista. Por sua vez, renomados classicistas da virada do sculo XIX para o sculo XX, como Eduard Meyer e Michail Rostovtzeff, defendiam uma viso mais corrente no senso comum sobre o mundo clssico Greco-romano: to imponente sociedade, vista como espcie de mito fundador da civilizao ocidental, no poderia ser sustentada por uma economia to dbil como a postulada pelo primitivismo; pelo contrrio, haveria de possuir uma economia similar ao capitalismo moderno. Esta posio ficou conhecida como modernista. Entre o final do sculo XIX e a dcada de 60 do sculo passado, a viso modernista dominou os estudos sobre a economia antiga talvez por apresentar uma viso mais convergente com a viso geral que se tinha sobre o mundo Greco-romano, ou talvez por lidar melhor com as fontes histricas, abundantes no que pareciam exemplos de trocas comerciais e produes mercantilizadas8. A partir da dcada de 60, porm, Moses Finley iniciou uma releitura da histria econmica greco-romana crtica ao modernismo dos autores mencionados, que visava recuperar muitos dos aspectos do primitivismo, especialmente de Karl Bcher. Influenciado por Karl Polanyi e Max Weber, Finley afirmava que os antigos no possuam uma economia autnoma da sociedade e que a cidade antiga era essencialmente um centro de consumo e no de produo9. Como brilhantemente identifica o historiador dinamarqus Peter Fibiger Bang, as teses de Finley surgiam no contexto do choque ps-colonial, um perodo no qual idias

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Aldo Schiavone, Uma Histria Rompida. Roma Antiga e Ocidente Moderno. So Paulo: EdUSP, 2005, p.82. Finley, A Economia Antiga, op.cit. passim.

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crticas ao Ocidente capitalista ganharam fora. Nesta poca, os povos no-europeus, que durante o perodo ureo do imperialismo neocolonialista haviam sido repetidamente taxados de primitivos, atrasados e brbaros, passaram a ser analisados de maneira mais positiva e os estudos antropolgicos sobre esses povos ganharam maior influncia10. Caracterizar as sociedades fundadoras do mundo ocidental, Grcia e Roma, a partir de insights produzidos por esses estudos deixou de ser algo to assombroso ou reprovvel dentro do senso comum historiogrfico e as teses de Finley tiveram amplo espao para circulao. A obra de Finley era um ataque muito bem elaborado contra vises anacrnicas do mundo romano e contra o uso indevido de mtodos quantitativos a partir das fontes primrias Greco-romanas. A importncia da obra deste autor para os estudos scio-econmicos da Antiguidade inegvel, visto que sua abordagem se tornou paradigmtica desde a dcada de 60 e fixou alguns problemas centrais em torno das quais se desenvolveram os estudos posteriores sobre a economia antiga. Um desses problemas centrais que Finley estabeleceu foi a questo da racionalidade econmica. A partir de sua obra, muito se discutiu o quanto os investimentos de recursos pelos antigos, especialmente da elite proprietria de terras, refletiam de fato uma racionalidade econmica. A compreenso dos critrios que definiam o comportamento dessa elite na relao com suas propriedades fundirias passou a ser vista como um elemento chave para a caracterizao qualitativa da economia romana, permitindo distinguir as caractersticas especficas dessa economia com a de outros perodos da histria11. Atualmente, existe uma preocupao muito grande no debate acerca da economia antiga em estabelecer a magnitude e as possibilidades de crescimento do produto interno bruto do imprio romano a partir de abordagens inspiradas no neoinstitucionalismo de Douglass North12. Sem diminuir a importncia desse tipo de estudo, acreditamos que fundamental sua complementao por perguntas mais primordiais sobre as relaes sociais de produo que estruturam tal economia, sendo o estudo da racionalidade econmica da elite proprietria de terra uma das chaves para este empreendimento. Caso contrrio, ficaremos eternamente refns dos termos do debate oitocentista, que estabelecia que, ou a economia romana era subdesenvolvida e, por isso, diferente da economia capitalista, ou era desenvolvida e, por isso,Peter Fibiger Bang, Antiquity between "Primitivism" and "Modernism", Workpaper 53-97, Centre for Cultural Resarch, University of Aarhus, 1997, verso online disponvel em www.hum.au.dk/ckulturf/pages/publications/pfb/antiquity.htm (acessado em 24/11/2010) 11 Dennis Kehoe, Investment, Profit and Tenancy. The Jurists and Roman Agrarian Economy. Ann Arbor: Michigan University Press, 1997, p.1 12 Cf., por exemplo, Alan Bowman e Andrew Wilson (Eds.), Quantifying the Roman Economy. Methods and Problems. Oxford: Oxford University Press, 2009, em especial os artigos de Elio Lo Cascio, Urbanization as Proxy of Demographic and Economic Growth, Willem Jongman, Archaeology, Demography and Roman Economic Growth, e Walter Scheidel, New ways of studying incomes in the Roman Economy.10

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similar a economia capitalista sem pensar diferenciaes qualitativas entre os diversos sistemas econmicos histricos. Analisando as obras que, nos ltimos quarenta anos, vm debatendo o problema da racionalidade econmica dos grandes proprietrios de terras romanos, identificamos trs tipos bsicos de abordagem: 1) aqueles que identificam racionalidade econmica com o comportamento tipicamente capitalista e negam a existncia deste tipo de comportamento entre os antigos isto , que advogam a inexistncia de racionalidade econmica na Antiguidade; 2) aqueles que tambm identificam racionalidade econmica com o comportamento capitalista, mas acreditam que este tipo de comportamento existe em algum nvel na Antiguidade, mesmo que limitado por fatores fundamentais ou seja, que advogam a existncia de uma racionalidade econmica limitada na Antiguidade; 3) e, por fim, aqueles que advogam a existncia de mltiplas racionalidades econmicas na histria, distintas da racionalidade capitalista, e que buscam identificar a racionalidade econmica especfica da Antiguidade. Analisaremos alguns dos principais autores que defenderam cada uma destas posturas ao longo destes quarenta anos de debates, buscando identificar as potencialidades e os limites de suas abordagens. Trs sero as pretenses dessa anlise: demonstrar os termos superficiais em que o conceito de racionalidade vem sendo tratado nos estudos sobre economia antiga, identificando isto como o principal problema dos termos em que o debate vem sendo colocado; identificar aspectos inspiradores e insights nos modelos analisados (especialmente entre aqueles que identificam singularidades na racionalidade antiga) a serem utilizados neste trabalho; e construir uma nova proposta de abordagem para este conceito a ser utilizada em nossa pesquisa, que permita contribuies mais ricas ao debate sobre a caracterizao da economia antiga.

1. A Racionalidade Inexistente: o paradigma de FinleyAo discutir a produo agrcola romana, no captulo Senhores e Camponeses de A Economia Antiga, Moses Finley apresenta sua principal contribuio ao problema da racionalidade econmica dos grandes proprietrios de terras da Antiguidade clssica. Ele critica a tendncia modernista de imputar aos proprietrios de terras da Antiguidade raciocnios produtivistas comuns realidade moderna, afirmando que os pesquisadores fazem isso a revelia da analise emprica por no acreditarem que os gregos e romanos tivessem sido

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to incapazes de melhoramentos to simples13. Contrariando estes modernistas, Finley afirma que a estabilidade e riqueza obtidas pela elite romana a partir de suas propriedades rurais eram conseqncias da magnitude de suas posses e riquezas, e no de qualquer forma qualitativamente diferente de encarar a produo agrcola14. A idia bsica a de que os fatores que hoje chamamos econmicos, maximizao de rendimentos (...) ou clculos de mercado15 no exerciam um papel importante no comportamento dos antigos papel exercido, na verdade, por valores fundamentais16. Deste modo, a economia no possua um carter autnomo, visto que, acima de tudo, a satisfao de necessidades no se dava pelo mercado, o que, para Finley, torna impossvel uma anlise do comportamento econmico dos antigos pois se no h maximizao de rendimentos atravs de clculos de mercado nem sequer existiria um comportamento econmico a ser analisado17. Para fundamentar empiricamente a idia de que no havia racionalidade econmica entre os grandes proprietrios romanos, Finley identifica uma srie de comportamentos que ele considera constituintes da racionalidade econmica e que no podem ser identificados entre esses proprietrios. O primeiro deles a economia de escala, isto , a minimizao dos investimentos necessrios para gerir a produo atravs da utilizao de fatores de produo fundamentais em larga escala18. O segundo a inexistncia de incentivo ao aumento da produtividade das tcnicas agrcolas. Finley afirma que a direo e controle do trabalho, tema recorrente nas fontes antigas devido ao absentesmo dos proprietrios, insistia no problema da honestidade dos trabalhadores e no na melhoria qualitativa da eficincia da fora de trabalho atravs da utilizao de melhores tcnicas agrcolas que ajudassem a poupar trabalho19. Por fim, Finley afirma que o investimento em terras nunca foi uma questo de decises sistemticas e calculadas, daquilo a que Weber chamava racionalidade econmica, pois no havia conceitos claros de distino entre custos de capital e de trabalho, ou reinvestimento planejado de lucros, emprstimos com fins produtivos ou nada que se assemelhe com uma contabilidade bem desenvolvida. Isto , economias de escala, incentivo ao aumento da produtividade atravs de melhores tcnicas agrcolas e tcnicas contbeis bem desenvolvidas caracterizam, para Finley, o comportamento econmico racional e nenhum desses fatores est presente na Antiguidade.Finley, A Economia Antiga, op.cit., p.149. Ibidem, p.150. 15 Ibidem, p.55. 16 Ibidem, p.80. 17 Ibidem, p.26. 18 Ibidem, p.153-155. 19 Ibidem, p.15614 13

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A abordagem de Finley em A Economia Antiga seguida de perto por Richard Saller e Peter Garnsey nos captulos sobre economia em seu influente manual The Roman Empire: Economy, Society and Culture. Saller e Garnsey afirmam que a Economia Romana deve ser caracterizada como subdesenvolvida, pois a maior parte da populao vivia em um nvel prximo ao da subsistncia20. Uma das chaves para a explicao deste nvel de subdesenvolvimento, ao lado do baixo nvel tecnolgico, o comportamento da elite romana. Dois aspectos deste comportamento so fundamentais: os proprietrios romanos eram essencialmente consumidores, e no investidores; e as riquezas investidas no eram direcionadas para atividades que buscassem o lucro na produo manufatureira em larga escala. Isto , no existia uma classe de empreendedores capitalistas no mundo romano; as riquezas eram desviadas para emprstimos (empregados no consumo poltico ou social ostentatrio, e no em investimentos produtivos) e para a compra de terras. Estas eram vistas como um investimento seguro que garantia uma renda estvel, mas atraam a elite, especialmente, por garantir prestgio e poder poltico, sendo o caminho de entrada para a aristocracia. Ou seja, o comportamento comum de investir riquezas em terras se devia mais a fatores sociais e polticos do que econmicos. Isto ocorria devido predominncia de valores aristocrticos, que subjugavam o empreendedorismo e a habilidade nos negcios, decorrncia do fato de um sistema de valores que premiava a ostentao de riqueza no ser compatvel justamente com o reinvestimento produtivo da riqueza21.

1.1. Weber, Polanyi e as premissas de Finley sobre o EconmicoFinley parte de duas premissas equivocadas: primeiro, que racionalidade econmica significa busca por aumento da produtividade e diminuio de custos atravs de clculos econmicos refinados; segundo, que o termo economia limita-se maximizao de rendimentos a partir de clculos de mercado. Garnsey e Saller fazem as mesmas identificaes equivocadas, buscando contrapor o empreendedorismo capitalista ao comportamento aristocrtico da elite romana. necessrio lembrar que esses autores esto fazendo uma crtica direta a abordagem modernista que imputava um ethos burgus, capitalista e moderno aos grandes proprietrios de terras gregos e romanos, e dentro desta crtica que sua nfase na inexistncia de comportamentos capitalistas na Antiguidade precisa

Peter Garnsey e Richard Saller, The Roman Empire: Economy, Society and Culture. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1987, p.43. 21 Ibidem, p.44-45 e p.74

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ser compreendida. Para contrapor-se a autores que defendiam a existncia do capitalismo na Antiguidade, Finley, Garnsey e Saller identificavam o comportamento econmico racional tipicamente capitalista como inexistente no mundo antigo. Porm, para o avano do debate sobre o problema da racionalidade, fundamental lembrar, tambm, que mesmo dentro daquilo a que Weber chamava racionalidade econmica, essas duas premissas de Finley, seguidas por Garnsey e Saller, podem (e em nossa opinio, devem) ser criticadas. Mais do que isso, as duas premissas que estruturam a tese de Finley sobre a inexistncia de comportamento econmico entre os antigos (da qual tambm partem Saller e Garnsey) podem ser criticadas a partir dos prprios ensinamentos dos dois autores que, aparentemente, mais o influenciaram: Max Weber e Karl Polanyi. No captulo sobre Sociologia Econmica de Economia e Sociedade, Weber distingue dois tipos fundamentais de racionalidade econmica: a racionalidade formal e a racionalidade substantiva. A racionalidade formal nada mais que o desenvolvimento de tcnicas de clculo da forma mais precisa e eficiente de resolver problemas atravs de regras abstratas e universais. J a racionalidade substantiva aquela que direciona a ao dentro de um postulado de valores. Num sentido mais estritamente econmico, refere-se ao grau em que o abastecimento de bens de determinados grupos de pessoas (...) ocorre conforme determinados postulados valorativos22. Os trs comportamentos que Finley identifica como constituintes da racionalidade econmica e inexistentes entre os antigos pertencem essencialmente ao campo do conceito weberiano de racionalidade formal. Ou seja, apesar de reivindicar a obra do socilogo alemo, Finley ignora por completo a idia weberiana de racionalidade substantiva, limitando a racionalidade econmica a racionalidade formal. Este procedimento compromete o melhor desenvolvimento das idias de Finley. Sua percepo de que o comportamento dos grandes proprietrios romanos difere em pontos fundamentais do comportamento capitalista correta. Contudo, ao identificar racionalidade exclusivamente com o comportamento tipicamente capitalista, Finley se limita a caracterizar a racionalidade econmica dos antigos negativamente, chegando concluso final (inevitvel ao partir dessa identificao equivocada) de que no existia qualquer racionalidade deste tipo no mundo antigo. Mesmo atuando dentro dos referenciais weberianos, reivindicados por Finley, no possvel afirmar que um comportamento deixa de ser racional por no estar baseado em clculos economizantes, mas em valores, pois para Weber um comportamento

Max Weber, Economia e Sociedade, Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Vol.1. 3 Ed. Braslia: EdUnB, 1994, p.52.

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baseado em postulados valorativos pode ser to racional quanto aquele baseado no clculo economizante, possuindo o que ele chama de racionalidade substantiva. Essa limitao da racionalidade econmica racionalidade formal um modus operandi bastante comum. Isto se explica pelo fato de o termo racionalizao ser amplamente utilizado por Weber em seus estudos sobre a formao do mundo moderno, o que acabou levando-o a ser associado completamente idia de expanso do Capitalismo e do Estado Burocrtico Moderno - processos histricos ligados a profundos desenvolvimentos de racionalidades formais. Mesmo Weber toma este caminho nos trabalhos sobre o mundo antigo que escreveu entre 1891 e 1897, tentando identificar comportamentos racionais e irracionais a partir das possibilidades de formalizao e acreditando que tal procedimento permitiria estabelecer a existncia ou no do capitalismo na Antiguidade. John Love, em um importante trabalho de anlise da obra weberiana e sua relao com o estudo da economia antiga, identifica, precisamente, que no momento da carreira em que escreveu estes trabalhos sobre Antiguidade, Weber equalizava racionalidade, racionalidade formal e comportamento capitalista, s percebendo o equvoco desta formulao em suas obras sociolgicas do final da carreira, notadamente em Economia e Sociedade23. Segundo o prprio Love, um ardoroso weberiano, a abordagem a partir destas obras sociolgicas muito mais promissora para o estudo da economia antiga do que a abordagem a partir das obras sobre o mundo antigo, aparentemente o caminho tomado por Finley. Desta forma, em Economia e Sociedade, racionalizao no necessariamente aquela ocorrida no Ocidente moderno, mas a busca pelo controle da realidade por um princpio de racionalizao, que busca banir percepes particularizadas e ordenar a percepo de mundo em regularidades inteligveis, coerentes e consistentes com um sistema de valores24. Isto , no existem racionalidades absolutas e universais, possivelmente derivadas de um racionalismo formal baseado no clculo, mas inmeras racionalidades substantivas que dependem de sistemas de valores especficos. Mesmo a racionalizao capitalista do Ocidente moderno, vista por Weber como aquela que melhor desenvolveu a racionalidade formal e por Finley como o padro universal da racionalidade econmica, depende de seus valores especficos, como o prprio socilogo alemo estudou em seu famoso tica Protestante e o Esprito do Capitalismo.

John Love, Antiquity and Capitalism: Max Weber and the sociological foundations of Roman civilization. Londres e Nova York: Routledge, 1991, p.34. 24 Stephen Kalberg, Max Webers types of rationality: Cornerstones for the analysis of rationalization processes in history. The American Journal of Sociology, Maro de 1980, Vol.85, n5, p.1155-1157 e 1160.

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Os problemas desta viso limitada do conceito de racionalidade econmica esto intimamente ligados ao problema da segunda premissa equivocada de Finley: identificar o mercado como o elemento chave para a definio de economia. Finley cita um conceito um pouco confuso de economia, pinado do economista Erich Roll, segundo o qual o problema central da investigao econmica a explicao do processo de troca ou, mais particularmente, a explicao da formao de preo25. Porm, ao equalizar troca formao de preos e, principalmente, ao identificar comportamento econmico com maximizao de rendimentos atravs de clculos de mercado, percebemos que Finley tributrio da concepo marginalista que define economia como cincia que estuda a alocao racional de recursos escassos entre fins alternativos, cunhada pela primeira vez pelo economista britnico Lionel Robbins26. Finley constri uma dicotomia entre economia de mercado, na qual esta definio formalista funcionaria e na qual o comportamento econmico existe e deve ser estudado, e sociedade sem economia autnoma, na qual no existe comportamento econmico. Esta dicotomia condizente, em parte, com a construo terica de Polanyi, j que o antroplogo hngaro tambm considera que o formalismo marginalista til anlise do mundo capitalista. Porm, Finley subverte a percepo polanyiana ao considerar que, no existindo este comportamento descrito pelo formalismo nas sociedades sem mercado, no h comportamento econmico. Polanyi diferencia Economias de Mercado e Economias sem Mercado, e no Sociedades com Economia e Sociedade sem Economia, como acaba fazendo Finley ao afirmar que no existe comportamento econmico sem mercado. Polanyi prope, em substituio ao conceito formalista de Economia, justamente um conceito substantivo de economia, que a define como a necessidade humana de um meio fsico de subsistncia e a relao dos homens com a natureza e seus semelhantes para obter os meios materiais para a satisfao de suas necessidades (materiais ou no)27. Toda sociedade humana precisa deste meio fsico de subsistncia construdo a partir das relaes dos homens com a natureza e seus semelhantes; logo, toda sociedade humana possui uma economia em sentido substantivo.

Finley, A Economia Antiga, op.cit., p.26. Carlos guedo Nagel Paiva e Andr Moreira Cunha, Noes de Economia. Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo, 2008, p.22, n.10. 27 Karl Polanyi, A Iluso da Economia. Editora Joo S da Costa, 1997, p.23-24 e Idem, La Economia como actividad institucionalizada, in: Idem, Conrad Arensberg e Harry Pearson. Comercio y Mercado en los Imperios Antiguos. Barcelona: Labor Universitria Monografias, 1976, p.289 e 291.26

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Polanyi v a chave para a compreenso do comportamento econmico humano em outra abordagem que no a anlise das escolhas individuais, como faz o marginalismo. E aqui se percebe a clara diferena entre a fundamentao funcionalista de Polanyi e o individualismo metodolgico da anlise econmica marginalista. O importante para Polanyi entender a economia em seu sentido substantivo como atividade institucionalizada. Estudo da atividade sugere identificao de movimentos, e para Polanyi existem dois tipos fundamentais de movimentos econmicos: de situao (no qual ele inclui a produo e o transporte) e de apropriao (que ele classifica como circulao, no caso de transaes entre dois ou mais sujeitos, ou como administrao, no caso de disposies unilaterais). As atividades econmicas so compostas por diversos elementos que podem ser agrupados como ecolgicos, tecnolgicos ou sociais28. Porm, as atividades econmicas, para garantirem a subsistncia econmica dos homens, precisam estar integradas e estabilizadas no tempo e isto ocorre com a institucionalizao dessas atividades. A institucionalizao garante a unidade e a estabilidade da atividade econmica, permite a constituio de uma estrutura com uma funo determinada e canaliza o interesse sobre valores, motivaes e a atuao prtica29. Para analisar tal institucionalizao deve-se comear pelo que d unidade e estabilidade s atividades econmicas, que para Polanyi so as formas de integrao de suas partes. Existiriam trs formas fundamentais de integrao das atividades econmicas: a reciprocidade, a redistribuio e o intercmbio30. Sem entrar em maiores detalhes sobre tais formas de integrao, por que isto fugiria de nossos objetivos aqui, ao analisarmos como Polanyi v a institucionalizao dessas formas de integrao, percebemos bem a concepo de explicao do comportamento econmico dele. Existe uma preocupao exaltada em afirmar que a institucionalizao dessas formas de integrao no ocorre pela agregao de condutas individuais estas so, para Polanyi, insuficientes para explicar as estruturas institucionais. Os efeitos sociais de integrao propiciados por determinados comportamentos no dependem apenas da existncia de tais comportamentos, mas peremptoriamente da existncia de determinadas condies institucionais. Comportamentos desviantes enfrentaro um duplo problema: sua eficincia ser extremamente limitada, devido inexistncia de instituies adequadas para auxiliar sua

Idem, La Economia como actividad institucionalizada, op.cit., p.293-294. Ibidem, p.295. 30 Ibidem, p.296.29

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performance; e suscitaro uma forte reao coercitiva por agir fora dos canais sancionados pelo costume31. A institucionalizao das atividades econmicas pode se dar nos mais diversos tipos de instituies, e da que vem a idia de economia integrada, incrustada ou submersa32 na sociedade. Uma distino importante passa a ser, desta maneira, a entre sociedades nas quais a atividade econmica se institucionaliza em instituies no-econmicas e aquelas em que se institucionalizam em instituies econmicas33. disto que Finley deriva sua idia de Sociedades sem Economia. Acreditamos que Polanyi cria uma confuso terminolgica neste ponto, que gera interpretaes equivocadas de sua proposta, como julgamos ser o caso de Finley. O sentido de econmico em instituies econmicas parece ser justamente aquele que o prprio Polanyi combateu, isto , identificam-se como instituies econmicas as instituies mercantis. Desta forma, para manter a prpria linha de argumentao de Polanyi, seria melhor falar em sociedades nas quais as atividades econmicas se institucionalizam em instituies mercantis e aquelas sociedades nas quais isto ocorre em instituies nomercantis, do que utilizar instituies econmicas. A diferena entra a institucionalizao das atividades econmicas em instituies mercantis ou no cria, de fato, questes importantes. O mercado, como entendido por Polanyi, uma instituio integradora de imenso poder, pois unifica em um nico sistema a apropriao de uma gama quase ilimitada de bens e servios34. Nas sociedades sem mercado, este princpio homogeneizante do mercado no existe. As atividades econmicas se institucionalizam em diversas e distintas instituies. Com isso, cada um dos acontecimentos das atividades econmicas se funde com diversas lgicas das instituies onde esto integradas, impossibilitando a visualizao dos agentes de uma lgica unificada do econmico (no sentido substantivo). Ademais, como se integram em instituies diversas, as atividades econmicas de um mesmo processo econmico muitas vezes no so percebidas pelos agentes desta maneira, devido descentralizao de sua performance35. Essa impossibilidade de identificao do econmico como uma unidade, porm, no impede que os indivduos realizem suas atividades econmicas cotidianamente; pelo contrrio, uma hipottica identificao unificadora do econmico apenas causaria confuso na ao de um indivduo,

Ibidem, p. 296-298. Na verdade vrias formas no muito boas de traduzir o termo original de Polanyi, embedded 33 Polanyi, Aristteles descubre la economa, in: Idem, Conrad Arensberg e Harry Pearson. Comercio y Mercado... op.cit., p.117 e Idem, La Economia como actividad institucionalizada, op.cit. p.295 34 Idem, La Economia como actividad institucionalizada, op.cit., p.309. 35 Idem, Aristteles descubre la economa, op.cit., p.118.32

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pois as atividades econmicas da realidade social na qual ele est inserido esto fragmentadas em diversas instituies diferentes, que se regem por lgicas diversas36. Desta forma, ao falar em sociedades sem Economia, Finley est interpretando de maneira equivocada a proposta polanyiana. Todas as sociedades possuem economia muitas no possuem mercado, mas, se de fato isto cria singularidades importantes para a anlise do comportamento econmico nestas sociedades, no impede de maneira alguma o estudo de tal comportamento, como pretende Finley.

1.2. Tradio, Costume e EmpiriaAo adotar estas premissas equivocadas, identificadas acima, Finley forado a assumir uma posio ainda mais criticvel ao tentar explicar o comportamento da elite proprietria romana em relao produo agrcola. Segundo ele, Tradio, hbito e regras empricas so os determinantes deste comportamento. Estes so conceitos extremamente problemticos que Finley utiliza sem fazer qualquer definio mnima, como se fossem pontos pacficos. Mas o que ser que Finley entende por cada um deles? Como ele no nos d definies claras e diretas destes conceitos, precisamos investigar sua argumentao mais detalhadamente para descobrir isso. Comecemos pelo ltimo dos trs conceitos: regras empricas. Para entend-lo, preciso lembrar que Finley afirma no primeiro captulo de A Economia Antiga que a inexistncia de um desenvolvimento verdadeiramente cientfico do pensamento econmico na Antiguidade indcio da inexistncia de uma economia autnoma nesta sociedade. Citando Schumpeter, Finley contrape o verdadeiro pensamento econmico surgido com o capitalismo aos conhecimentos pr-cientficos baseados meramente no senso comum, existentes no mundo antigo37. Ou seja, Finley iguala racionalidade econmica e teorias econmicas modernas, contrapondo a isto a reflexo emprica cotidiana a que se limitariam os proprietrios de terras da Antiguidade. Novamente Finley ignora aspectos importantes da sociologia weberiana. Alm da tipologia que contrape racionalidade formal e racionalidade substantiva, que apontamos acima, Weber contrape, em outra tipologia, mais dois tipos de racionalidade: a racionalidade prtica e a racionalidade teortica. Como podemos inferir de suas denominaes, a racionalidade prtica a avaliao cotidiana das prprias aes pelos

Ibidem, p.117 e 119. Finley, A Economia Antiga, op.cit. p.22-23 e Idem, Technical innovation and economic progress in the ancient world. Economic History Review, vol.18, 1965, p.40.37

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agentes para que seus objetivos sejam alcanados, enquanto a racionalidade teortica a construo de concepes abstratas sobre a realidade (e no a ao na realidade propriamente dita)38. Esta distino weberiana impede que se cometa a confuso em que Finley incorre: a reflexo emprica pode ser to racional quanto o pensamento cientfico; so tipos ideais diferentes de racionalidade e precisam ser analisadas respeitando suas especificidades. Desta forma, afirmar que os proprietrios romanos agiam por regras empricas, e no baseados por uma reflexo cientfica, no impossibilita a existncia de uma racionalidade que fundamenta as decises desses proprietrios. certo que Cato, Varro e outros autores que aconselhavam como os grandes proprietrios de terras deveriam gerir suas propriedades no estavam estabelecendo uma cincia econmica como a que conhecemos no capitalismo. Porm, ao se basearem em suas experincias prticas ou na conversa com outros proprietrios de terras, estes autores poderiam estar refletindo acerca de um conhecimento prtico que exprimia a racionalidade construda pragmaticamente a partir das relaes de produo destas propriedades. Sobre os conceitos de hbito e de tradio, o problema mais complicado. Dentro do quadro terico weberiano existe a distino entre dois tipos de ao social economicamente orientada: a tradicional e a racional referente a fins39. Weber no detalha o que entende por ao econmica tradicional, mas podemos pens-la em paralelo com a ao social tradicional, descrita como reao surda a estmulos habituais que decorre na direo da atitude arraigada40. Aparentemente, Finley se baseia nesta distino weberiana entre tradio e racionalidade para contrapor o comportamento tradicionalista dos grandes proprietrios de terras da Antiguidade ao comportamento verdadeiramente racional da sociedade de mercado. O problema neste ponto que Weber e, conseqentemente, Finley encaram a ao tradicional como dada, pensando-a como algo que existe por si, espcie de reminiscncia inconsciente da histria, sem necessidade de explicao. Porm, o comportamento costumeiro precisa ser problematizado, pois se ele existisse por si s, sem necessidade de explicao para seu surgimento e, principalmente, reproduo, no existiria explicao para a transformao histrica. Isto , a existncia do comportamento costumeiro precisa ser explicada, especialmente as condies que estimulam sua reproduo, pois se um comportamento repetido por muitas pessoas por um longo espao de tempo a ponto de passar a ser visto como tradicional ou costumeiro, faz-se necessrio explicar justamente o que faz estas pessoas

Kalberg, Max Webers types of rationality, op.cit., p.1152 Weber, Economia e Sociedade, op.cit., p. 41. 40 Ibidem, p.15.39

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repetirem tal comportamento tantas vezes e a inrcia nunca uma boa explicao para historiadores. Para conseguir este tipo de explicao sem ir muito longe do aporte terico reivindicado por Finley, podemos recorrer ao antroplogo noruegus Fredrik Barth, cujas formulaes tericas coincidem com o individualismo metodolgico de Weber, porm, apresentando uma explicao bem mais interessante para o comportamento tradicional ou costumeiro. Barth defende uma teoria da ao social focada na importncia da construo de estratgias racionais de interaes pelos agentes sociais que buscam a maximizao daquilo que eles consideram valioso a partir de seus sistemas de valores, posio prxima, de certa forma, do conceito weberiano de ao econmica racional referente a fins. Porm, depois de desenvolver toda a teoria baseado nesta percepo do conceito de racionalidade, Barth matiza sua teoria afirmando que ele no considera que os agentes, de maneira geral, constroem estratgias de ao a todo tempo. Na verdade, eles agem guiados pelas suas aes rotineiras em situaes similares anteriores, caso tais comportamentos no tenham sido obviamente desastrosos e tenham recebido a aprovao social. De um ponto de vista estratgico, porm, essa forma de ao faz sentido: reduz a necessidade de informaes para a tomada de deciso e aumenta a previsibilidade das conseqncias do comportamento. Isto , dentro de um sistema hiper-complexo de relao de fatores a serem levados em considerao para a tomada de deciso, como a vida em sociedade, o comportamento costumeiro uma forma eficiente de ao ao reduzir os riscos assumidos41. Por outro lado, porm, isto no significa que Barth esteja apenas chegando a uma percepo automatista do comportamento humano salientando certa racionalidade nesse procedimento. Ele afirma que apesar da fora do comportamento costumeiro, as pessoas esto a todo o tempo fazendo julgamentos na vida, analisando as performances sociais de si prprias e dos outros. Isto por que as pessoas: tm impresses inter-relacionais do que devem ser as prestaes nas relaes sociais; tm expectativas e traam planos nos termos destas, por mais inadequados que possam ser suas informaes sobre a realidade; se no so oportunistas, tambm no deixam de perceber quando as coisas vo bem ou mal para si prprias; e esto realisticamente preocupados em buscar o melhor para si e sabem que se no o fizerem, outros tiraram vantagem delas42.

Fredrik Barth, Process and Form in Social Life. Selected essays of Fredrik Barth: Volume I. Adam Kuper (ed.). London, Boston, Prenley: Routledge & Kegan Paul, 1981, p.98-99. 42 Ibidem, p.100.

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Desta forma, Barth foca sua ateno no processo de institucionalizao dos comportamentos costumeiros. Segundo ele, o conceito de racionalidade maximizadora de valores no nos prov um modelo geral para anlise das decises individuais, mas ilumina o processo de institucionalizao dos comportamentos. Isto ocorre de duas maneiras: 1) Quando um agente adota um curso de ao prximo ao que seria a estratgia mais racional nos termos de seus valores, so grandes as chances de ele interpretar os resultados de tal comportamento como benficos e repetir tal curso de ao em outras oportunidades similares; 2) Quando este processo descrito acima ocorre com outra pessoa, e a situao e comportamento so replicveis por um agente que o observa, o comportamento daquele servir de exemplo para este, que conseqentemente ser estimulado a reproduzir o tal comportamento. Percebemos, desta forma, que para Barth o comportamento costumeiro resultado de um movimento convergente dos agentes na direo de estratgias timas. Explica-se, portanto, o comportamento costumeiro pela institucionalizao processual de uma estrutura racional de comportamento43. Sendo assim, mesmo o comportamento costumeiro pode ser explicado atravs do conceito de racionalidade e, portanto, a dicotomia entre hbito/tradio e racionalidade, reivindicada por Finley sem maiores definies ou argumentos, no se sustenta pacificamente. Desta maneira, acreditamos que tanto as premissas finleynianas que sustentam a identificao da inexistncia de racionalidade econmica quanto os conceitos utilizados pelo historiador estadunidense para explicar a relao da elite com suas propriedades fundirias se baseiam em posturas tericas equivocadas.

2. A Racionalidade Limitada: o paradigma neomodernistaA Economia Antiga de Moses Finley teve uma repercusso imensa nos estudos de histria econmica do mundo antigo. Sendo o alvo prioritrio de suas crticas a abordagem modernista, uma das conseqncias mais importantes desta influncia da obra de Finley foi a perda de espao, nos anos seguintes a sua publicao, de anlises que identificassem a economia Greco-romana como uma economia de mercado. Isto no significou um consenso geral em torno das teses de Finley, porm, as crticas a sua viso minimalista da economia antiga originavam-se, basicamente, de duas fontes: marxistas italianos e franceses que defendiam a idia de uma economia mais pujante do que previa o modelo de Finley,

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Ibidem, p.101-102.

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impulsionada pelo desenvolvimento do Modo de Produo Escravista, mas concordando com a idia de Finley de que a economia antiga no podia ser analisada a partir dos conceitos forjados para a economia de mercado capitalista44; e arquelogos que afirmavam serem incompatveis os dados arqueolgicos existentes com a viso minimalista proposta por Finley, isto , polemizavam com a percepo finleyniana de que a economia antiga era pouco desenvolvida para alm do nvel de subsistncia, mas recorrendo apenas a uma espcie de empiricismo positivista, sem entrar no debate quanto ao carter mercantil ou capitalista desta economia45. Entre as dcadas de 70 e 80, defensores da idia de que a economia romana era uma economia de mercado conseguiram pouco espao na historiografia sobre o tema, mesmo quando as idias de Finley eram criticadas. A partir da dcada de 90, porm, alguns autores (majoritariamente anglo-saxes) voltaram a identificar a existncia de comportamento racional no mundo antigo dentro de um quadro terico que identifica, em algum nvel, racionalidade com o comportamento capitalista. Se durante as dcadas anteriores o impacto ps-colonial favorecera vises crticas ao Ocidente capitalista, com a queda do bloco socialista na Europa Oriental o triunfalismo capitalista, fundamentado no consenso neoliberal do pensamento nico e na idia de fim da histria de Fukuyama, favoreceu amplamente vises apologticas sociedade de mercado. Como afirma Peter Fibiger Bang, o Ocidente se recuperara do choque ps-colonial e no acreditava mais em possveis solues vindas do terceiro mundo para os problemas da sociedade de mercado46. Pelo contrrio, a sociedade de mercado passou a ser apontada como a soluo para os problemas do terceiro mundo. Obviamente, esta recuperao da utilizao do conceito de racionalidade econmica neoclssico para o estudo da economia antiga necessariamente passaria pelo dilogo com a crtica de Finley caracterizao da economia antiga como uma economia de mercado, pois seria impossvel ignorar sua influncia nos debates sobre o tema. De maneira geral, o resultado deste dilogo crtico com a obra de Finley, por parte destes autores que defenderam nas ltimas dcadas a existncia de um comportamento racional-mercantil na Roma Antiga, tem sido a afirmao de que a diferena entre o comportamento racional capitalista e o comportamento racional na Antiguidade reside em limites estruturais impostos aoDiscutiremos as idias destes autores abaixo. Kevin Greene, The Archaeology of the Roman Economy. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1986, p.170, Robert Bruce Hitchner, Olive Production and The Roman Economy: The Case for Intesive Growth in the Roman Empire. In: Walter Shciedel e Sitta von Renden, The Ancient Economy. Nova York: Routledge, 2002, p.72 (trabalho originalmente publicado em 1993) e Martin Frederiksen, Theory, Evidence and the Ancient Economy. The Journal of Roman Studies, vol.65, 1975 46 Peter Fibiger Bang, Antiquity between "Primitivism" and "Modernism", op.cit.45 44

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desenvolvimento do mercado na Antiguidade, e no na inexistncia completa de um comportamento econmico. Trs tm sido os caminhos para esta concluso. Primeiro, certos autores tm lidado com o conceito de racionalidade de maneira superficial, sem maiores preocupaes com uma definio conceitual clara do termo. A conseqncia disto tem sido a utilizao acrtica da abordagem marginalista do conceito de racionalidade, estimulada pela fora que a teoria social racional-utilitarista47, base do marginalismo, tem no mundo anglo-saxo. No discutindo o conceito de racionalidade, esses autores assumem como bvio o conceito mais comum em seu meio acadmico. Outros autores, porm, perceberam a importncia deste conceito no debate e construram argumentaes defendendo o uso do conceito marginalista de racionalidade frente a crtica polanyiana e finleyniana ao seu uso para o mundo antigo. Dentre estes autores, podemos identificar aqueles influenciados por idias marginalistas mais clssicas e sua variante historiogrfica, a New Economic History, e aqueles inspirados pela renovao marginalista nascida a partir da New Institutional Economics de Douglass North. Apesar de trilharem caminhos um pouco diferentes para chegar a mesma concluso (a existncia de uma racionalidade limitada entre os agentes econmicos da Antiguidade), todos os autores que defendem esta hiptese, no por acaso, partem de um mesmo tipo de abordagem, fundamentalmente racional-utilitarista, e tributria em especial da concepo marginalista de racionalidade econmica. Analisemos, agora, alguns trabalhos deste tipo para identificarmos como opera tal abordagem e quais so seus problemas fundamentais.

2.1. A racionalidade dos investimentos conservadoresA carreira acadmica de Neville Morley tem se destacado pela sua preocupao em incentivar debates tericos e conceituais em um ambiente bastante avesso a isso, o mundo dos estudiosos da Antiguidade48. Alm disso, Morley tambm responsvel por um dos trabalhos mais interessantes sobre a economia agrria romana, Metropolis and Hinterland. Porm, esta interessante combinao (um historiador com preocupaes tericas estudando a histria econmica da Antiguidade) no foi o suficiente para evitar que Morley, ao discutir o

Utilizarei, neste trabalho, a terminologia racional-utilitarista para definir abordagens que buscam a explicao do mundo social atravs do individualismo metodolgico, especialmente quelas que enfatizam o problema da escolha racional dos agentes, como define Randall Collins, Quatro Tradies Sociolgicas. Petrpolis, RJ: Vozes, 2009, p.107-110. 48 Cf. Neville Morley, Writing Ancient History, Cornell University Press, 1999 e Idem, Theories, Models and Concepts in ancient history, Nova York: Routledge, 2004.

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problema da racionalidade econmica dos proprietrios de terra romanos, utilizasse acriticamente o aparato conceitual marginalista. Ele comea sua apreciao justamente criticando o que considera ser o postulado do homo oeconomicus da teoria econmica marginalista. Segundo ele, irreal para o mundo antigo a concepo de que tomadores de deciso so dotados de informaes completas sobre tudo que influencia suas escolhas e so capazes de efetuar os clculos necessrios a fim de otimizar um determinado objetivo. Morley destaca a fora da incerteza sobre o comportamento humano, identificando os limites da circulao de informaes, da contabilidade e da previsibilidade do clima (elemento fundamental para a produo em uma sociedade agrria) como fatores que