senhor arcebispo, criado para todo o serviço

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Teatro infantil

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SENHOR ARCEBISPO, CRIADO PARA TODO O SERVIÇO

Personagens | BonecosApresentador

Arcebispo Frei Manuel do CenáculoCriado Frade Roberto

General Loison “Maneta”Cavalo francês

Cavalo português

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Meninos e meninas, a história que vão ler ou ouvir passou-se há muito anos atrás, faz agora 200 anos.

Em 1808, Portugal está ocupado pelos exércitos do Imperador Francês, o poderoso Napoleão Bonaparte. Os reis de Portugal fugiram para o Brasil, mas a corajosa cidade de Évora, com outras províncias de Portugal, tomou partido contra os franceses.

Tudo o que vão ler aqui são factos históricos, factos verdadeiros, provados e aprovados, contou o avô do meu avô, criado de sua excelência, D. frei Manuel do Cenáculo.

APRESENTAÇÃO

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Era uma manhã quente de Julho, no Palácio de D. Frei Manuel do Cenáculo, Arcebispo de Évora. Como todas as manhãs, Frade Roberto, criado de sua excelência, abria as cortinas e gritava:

- Bom dia, meu Bispo!

O Arcebispo, todas as manhãs, mesmo ainda com o peso do sono, não esquecia o orgulho do seu cargo e a importância da própria arquidiocese de Évora, lembrando-lhe a forma correcta de tratamento:

- Roberto, já disse mais de mil vezes, é senhor Arcebispo, se faz favor.

Mas esta manhã, a discussão foi interrompida por gritos de alegria que vinham de longe.

-Viva D. João! - Viva o Princípe Regente! Morra o francês!

- Mas que alvoroço é esse, criado? Perguntou o arcebispo.

Frade Roberto que vinha justamente com pressa de contar as novas, correu a abrir a janela.

BOM DIA, MEU BISPO!

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- É a alegria do povo, que dá vivas a D. João, o nosso querido Príncipe Regente, na Praça do Giraldo. Parece o Carnaval! Olha, puseram um soldado francês vestido de mulher. Que bela peruca loira e que lindo decote! As mulheres francesas fazem questão de estar sempre na moda! E soltou uma grande gargalhada.

Aquela confusão não agradava nada ao Arcebispo, um homem sisudo, ciente das suas responsabilidades. Quanto mais folia ouvia, mais andava de um lado para o outro, muito preocupado, antevendo as consequências da revolta contra os franceses.

- Frade Roberto, tenha modos! Essa brincadeira de Carnaval vai sair-nos cara. Mas será que estão todos loucos e não percebem que Évora não tem condições de resistir aos invencíveis, bem armados e numerosos exércitos do Imperador Bonaparte?

Na sua excitação, frade Roberto nada ouve:

- Eu, por agora, gostava era de ir brincar um pouco à rua. Gosto muito de dançar! Dava saltos de felicidade e gritava: Viva o príncipe Regente D. João! Viva Portugal! Junot! Come e dança que a tua cabeça não torna à França!

O Arcebispo estava furioso com aquela felicidade ingénua, mas percebeu

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também que precisava de ficar sozinho para começar a organizar a defesa da cidade. Quanto mais rápido melhor. Imediatamente!

- Tenha modos, Roberto! Não estamos em tempo de festas. Se vai à rua, aproveita para despejar o vaso de noite. E não demore que temos muitas providências para tomar. Eu sou um dos responsáveis pela defesa da cidade! Não tarda muito e vamos receber a visita dos franceses que, de certeza, não vem até Évora para nos entregar um ramo de flores.

Que humilhação para o frade Roberto, despejar o bispote! Será que a alegria é pecado?

- Blarg! Blarg! Bispote! Que nojo, que mal cheira! Eu sou um criado, não sou um escravo. Olha que nunca tinha percebido porque tratam ao penico de bispote. São os verdadeiros filhinhos do bispo que estão aqui, valha me Deus, que nojo, resmungava o frade.

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Frei Manuel do Cenáculo tinha razão em apressar os preparativos para a defesa da cidade. O exército francês, comandado pelo general Loison, o terrível Maneta, em poucos dias fez cerco à cidade. Do alto da torre de Alconchel, os soldados do lado português podiam ver um cavalo português, correndo e gritando:- Fujam, fujam todos, os homens endoideceram! Matam-se com espadas, matam-se com pistolas, matam-se com granadas e canhões. Até querem matar a mim que sou apenas um pobre cavalo…E, mais engraçado, podiam ver, um pouco mais à direita, um cavalo francês, correndo e gritando numa língua misturada:Fujam, fujam todos que ils sont fous. Matam-se avec des épées, matam-se avec des pistolets, matam-se avec des grenades et des canons. Eles até querem matar a mim, que sou apenas un pauvre cheval...Naquela desenfreada correria, o choque era inevitável, e depois com medo correm a esconderem-se atrás das árvores.Pouco a pouco o cavalo português aparece e pergunta baixinho.- Quem está aí? É amigo ou inimigo?

CAVALOS E SÓ CAVALOS

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- Não, sou só eu, um cavalo, respondeu num sussuro o cavalo francês.O cavalo português, recompondo-se do susto…- Ah! É só um cavalo como eu. Boa noite. Permita que me apresente. Eu sou um cavalo do batalhão português que defende a cidade de Évora. Mas que linda farda, o senhor está do lado dos franceses? – Boa noite. Sim, tenho a honra de pertencer à cavalaria militar, quer dizer, não sei se ainda posso considerar que pertenço, respondeu um pouco embaraçado o cavalo francês.- Porque? O que é que aconteceu? pergunta o cavalo português.Com um pesado sotaque e alguns gestos, o cavalo francês responde:- Para falar a verdade, não sei bem. Primeiro ouvi uns tiros e as minhas pernas começaram a tremer. Depois ouvi bombas e o troar dos canhões, e o meu coração disparou e faltava-me o ar. Não sei porque, fechei os olhos e disparei como um louco. Saltei muros, cercas e vedações. Subi duas colinas num abrir e piscar de olhos. Não sei que tipo de doença é essa, nunca me tinha acontecido nada assim…- Hum! bombas e coração aos pulos, o diagnóstico parece difícil. Que grande medroso! riu-se o cavalo português.O cavalo francês, envergonhado procura mudar de assunto.- E o senhor, porque está aqui, no meio do campo, longe da guerra?

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- Ah, uma doença gravíssima: pânico-alérgico-de-sabre-e-espadas. Já tentei de tudo: homeopatia, acupuntura, hipnose, é completamente incurável. O cavalo francês repete, concordando:- Pânico-alérgico-de-sabre-e-espadas… Oh, sim! a medicina veterinária ainda tem muito que evoluir. Mas que grande medroso!O cavalo português explica-se gesticulando e correndo.- Apresentei um atestado veterinário, mas o capitão convocou-me na mesma. Assim que o batalhão entrou em formação de combate, senti um comichão pelo corpo, os pelos levantaram-se todos, fui possuído por uma energia incontrolável e galopei, galopei sem parar.- E o capitão português foi ao chão?- Primeiro na lama, depois arrastado pelas silvas, pelas urtigas, pelas pedras, até que finalmente os estribos partiram-se. Os meus pais tinham tanto orgulho em ter um filho no exército de Portugal. - Rações sempre certas, descanso semanal, uniformes e desfiles de gala, foi o que sempre ouvi na minha casa em Paris, completa o francês. O senhor tem para onde ir? pergunta o cavalo português.O cavalo francês como que lembrando-se novamente da terrível situação em que se encontra, responde preocupado.- Acho que não, o meu tenente também foi sendo arrastado, arrastado,

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arrastado, até que chocou contra uma árvore. Acho que tenho mesmo que abandonar a carreira militar. Que vamos fazer? Colaborar com o inimigo é traição.- Não somos inimigos, somos… cavalos e só cavalos, lembra o português, no momento em que se ouvem tiros de canhões.- Olha, lá em cima! Oh, não, os franceses conquistaram Évora e estão a hastear uma bandeira no Palácio do Arcebispo. Vamos já embora daqui antes que comecem a procurar os desertores.O cavalo francês, com toda a educação possível num momento terrível como esse convida:- O senhor primeiro, se faz favor…- Por quem sois, primeiro o senhor, responde o cavalo português.- Eu insisto, primeiro o senhor… Não me diga que está com medo?- Medo, eu? Era o que faltava. Só estava sendo educado como os franceses…, mas podemos andar juntos se preferir…Juntos e com um pouco de medo, os dois vão se afastando até desaparecerem no horizonte, protegidos pela escuridão da noite.

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As coisas não estão fáceis para o Arcebispo de Évora, agora que o General Loison, o terrível Maneta, hospedou-se no palácio, de onde dita ordens para toda a cidade de Évora.

-Criado Arcebispo!

- Mandou me chamar, senhor General Loison? atende prontamente o arcebispo.

-Prepare imediatamente um banho quente.

-Sim, meu general Maneta.

Não se passaram nem cinco minutos e já se ouvem novamente os gritos do general pelas salas do palácio.

-Criado Arcebispo!

- Mandou me chamar, senhor General Loison?

-Criado, tenho sede, resmunga o general.

-Sim, vou buscar imediatmente uma jarra de água.

- Espero que esteja bem fresca, observa o mal humorado general francês.

ARCEBISPO E CRIADO

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-Sim, meu general.

Mal o arcebispo afasta-se, como de propósito, o General Loison volta a chamá-lo.

- Criado Arcebispo!

- Mandou me chamar senhor General Loison?

- Prepare o meu jantar! ordena o francês.

O Arcebispo, já farto de tantas ordens, responde afrontosamente:

- Mas senhor General, os soldados franceses mataram o meu cozinheiro.

- Criado mal criado, jamais questione as minhas ordens! Olha que eu corto-te a língua. Eu sou o terrível Maneta, e toda a terra treme só de ouvir falar o meu nome.

- Perdoe-me senhor General Maneta.

- Assim está melhor. Eu quero, deixe me ver, lebre com feijões…

- Mas senhor General, os soldados franceses saquearam a dispensa e se eu encontrar algumas batatas velhas já estamos com sorte, interrompe novamente o Arcebispo criado.

Irritado, o General Loison, desembainha o sabre e sobe para cima da mesa.

- Criado mal criado, eu já disse para não me interromper! Olha que eu

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corto-te as orelhas! Eu sou o terrível Maneta, e o universo todo espanta-se só de ouvir falar o meu nome.

Tremendo de medo, o Arcebispo tenta acalmar o general francês.

- Perdoe-me general Maneta, e aqui entre nós, deixe-me dizer que como estratega militar é muito superior ao grande imperador Napoleão e é tão belo e formoso como os grandes heróis gregos.

- Assim está muito melhor, meu criado arcebispo. Aonde íamos… lebre com feijões, bacalhau assado, pudim de ovos, tudo servido em pratos de porcelana, talheres de prata, para quarenta comensais. Ainda deve haver umas garrafas de vinho francês…

- Mas senhor General, os soldados franceses espatifaram os móveis, as porcelanas, destruindo tudo na sua busca insaciável de ouro e prata, implora o arcebispo.

- Criado mal criado, se interromper mais uma vez, se eu ouvir a sua voz mais uma vez que seja, eu corto-te a cabeça! Corto-te a cabeça e a uso como um jarro de flores para enfeitar a mesa! Não quero ouvir mais nenhuma palavra. Prepare o jantar imediatamente, enquanto eu vou tomar aquele banho que me preparou.

O arcebispo corre para cozinha, mas na dispensa não existe nada que

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se coma. Não há batatas, nem cenouras, não há lebres, nem bacalhau. Num canto esconde-se um pobre sapo, com um olhar tão triste como o do arcebispo. Frei Manuel do Cenáculo tem, então uma ideia. Porque não preparar uma surpresa ao general francês? Ele jamais vai se esquecer da culinária portuguesa. - Num instante vou servir um prato de os fazer saltar de alegria, exulta o arcebispo. Imediatamente dá ordens a um soldado francês que vá avisar o general que o jantar será servido dentro de quinze minutos.

Momentos depois, na biblioteca, reunem-se os principais comandantes e soldados franceses, e preparam-se todos para comemorar a vitória e saborear uma das melhores iguarias portuguesas.

O próprio general prepara-se para servir o prato principal.

- Isso cheira muito bem, diz o General Loison, enquanto levanta a tampa da terrina. - Mas o que isso? Um ensopado… de sapo! Tragam-me aquele energúmeno, eu próprio vou cortar aquele maldito criado arcebispo em pedacinhos…

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Depois de vencida e castigada, os franceses abandonam Évora, mas os tormentos do arcebispo de Évora estão longe de estar terminados. A Junta Militar de Beja, formada durante a revolta popular, acusa os dirigentes da cidade de colaboração com o inimigo, mandando prender o arcebispo de Évora.

Frei Manuel do Cenáculo, fechado na biblioteca não se conforma.

- Oh, que grande humilhação, preso no meu próprio palácio, com sentinelas à porta! Será que não percebem que tudo fiz para proteger Évora e seus habitantes? Com que autoridade julgam-se esses malfeitores para manter preso o arcebispo? Oh, desgraça, minha desgraça, todos os meus amados livros da biblioteca despedaçados, os preciosos manuscritos e incunábulos rasgados e espalhados, todos desfeitos sem dó nem piedade! Que mal terei feito eu para merecer tamanho castigo?

Frade Roberto atirado para um cadeirão, não tem forças para consolar o Arcebipo, que continua a caminhar pela sala, falando para as paredes,

OS MEUS AMADOS LIVROS

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cheias de livros.

Oh, os meus amados livros e as minhas preciosas moedas dispersas como milho para os pombos… Que terei eu feito para merecer tamanho castigo? Oh, tempos de treva e ignorância!

O Arcebispo pára e repara no seu criado.

-Que humilhação, Roberto! Preso por aqueles que mais me deviam respeito e covardemente acusado de traição! Essa cambada de contrabandistas de Beja devia pelo menos respeitar os poucos cabelos brancos que ainda me restam! E dizendo isso cai ao chão, ficando em silêncio por uns momentos.

- Meu bispo, meu bispo, está bem? preocupa-se o frade, que aproxima-se do Arcebispo.

– Roberto, estou aflito, diz o Arcebispo num sussuro.

– Mas o que é que tem? Parece que morre. Aí meu bispinho, está tão sem voz, quase não respira. Aí meu bispinho…

–Roberto, preciso ir à casa de banho!

- Ah, é só isso. Guardas, guardas, o Arcebispo precisa ir a casa de banho! grita Roberto.

- Isso aqui não é a Pousada dos Lóios. Não há serviço de criados! responde o guarda sem abrir a porta. - Liberdade, Igualdade e Fraternidade!

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- Guarda, guarda, é urgente, o Arcebispo está muito aflito! insiste o criado.

- Quantas vezes precisamos de repetir, não há serviço de criados! Faça aonde quiser! Liberdade, Igualdade e Fraternidade!

O frade Roberto, muito preocupado com a situação, tenta comove-lo.

- Guarda, guarda, é urgente, o Arcebispo está muito aflito!

- Quantas vezes é preciso repetir, faça aonde quiser! Olha, faça pela janela! Liberdade, Igualdade e Fraternidade!

- Pela janela! Oh, com todas as pessoas a verem o Arcebispo da rua! exclama o frade.

Sem outra solução, os dois acabam por aceitar o humilhante conselho. Abrem a janela sem fazer ruído e o Arcebispo faz xixi lá de cima.

Alguns eborenses de passagem estranham aquelas figuras.

- Mas o que isso? Está a chover de repente? Olha, é o senhor arcebispo! -Mas ele não está preso?

-Está, mais ainda assim consegue nos benzer a todos.

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AOS PAIS E EDUCADORES

O texto da peça de teatro SENHOR ARCEBISPO, CRIADO PARA TODO O SERVIÇO baseia-se na memória escrita pelo próprio Arcebispo de Évora, onde se descrevem os principais factos relacionados com o “Saque de Évora” em Julho de 1808.

De maneira cómica acompanham-se aqui as inversões dos papéis sociais e as justificações do

No site do Museu de Évora, na edição número 3 do CENÁCULO. Boletim do Museu de Évora, está disponível u transcrição da memória do arcebispo

htpp://museudevora-ip.pt/

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