sempre mais acima, sempre mais alÉm ”: criaÇÃo e … · a “ala feminina” da casa juvenal...

14
1 SEMPRE MAIS ACIMA, SEMPRE MAIS ALÉM ”: CRIAÇÃO E (TRANS)FORMAÇÃO DA ACADEMIA LITERÁRIA FEMININA DO RIO GRANDE DO SUL NA PORTO ALEGRE DAS DÉCADAS DE 1940 A 1970 CAMILA ALBANI PETRÓ Mestranda em História UFRGS/Bolsista CNPq [email protected] A alma poética não é privilégio de classe, mas de inteligência, estudo e vocação .” Lydia Moschetti 1 Antes iniciar a dissertação em si” deste trabalho, que pelo título já é possível perceber alguma relação com a literatura, cito um trecho do poema “Primavera” (1957), de Lila Ripoll, poetisa gaúcha e patrona da AFRLS: É difícil ser poeta e ser mulher. É difícil cantar sem revelar. Pode o poeta contar o seu segredo, Mas a mulher o seu deve guardar (RIPOLL, 1957). Era difícil ser poeta e ser mulher ou ainda o é? Os privilégios de classe não dificultam a trajetória de uma mulher que queira ser poeta? *** Esta produção é fruto do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em História, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PETRÓ, Camila A., 2012), e da atual pesquisa de Dissertação de Mestrado que vem sendo desenvolvida na mesma universidade. Ela foi e está sendo pensada no intuito de pesquisar e dar visibilidade à entidade em questão e as suas escritoras/intelectuais, já que elas não fazem parte de um círculo realmente conhecido da história da literatura, tanto do Brasil, como do Rio Grande do Sul (e mesmo Porto Alegre). 1 Trecho do livro “Histórico de minhas Fundações” (1971?). Lydia Moschetti foi uma das fundadoras da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul (ALFRS), sendo que foi esta escritora quem aparentemente teve a iniciativa maior da criação da instituição.

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1

“S E M P R E M A I S A C I M A , S E M P R E M A I S A L É M ”:

CRIAÇÃO E (TRANS)FORMAÇÃO DA ACADEMIA LITERÁRIA

FEMININA DO RIO GRANDE DO SUL NA PORTO ALEGRE DAS

DÉCADAS DE 1940 A 1970

CAMILA ALBANI PETRÓ

Mestranda em História UFRGS/Bolsista CNPq

[email protected]

“A alma poética não é privilégio de classe, mas de inteligência, estudo e

vocação .”

L y d i a M o s c h e t t i1

Antes iniciar a dissertação “em si” deste trabalho, que pelo título já é possível

perceber alguma relação com a literatura, cito um trecho do poema “Primavera” (1957), de

Lila Ripoll, poetisa gaúcha e patrona da AFRLS:

É difícil ser poeta e ser mulher.

É difícil cantar sem revelar.

Pode o poeta contar o seu segredo,

Mas a mulher o seu deve guardar (RIPOLL, 1957).

Era difícil ser poeta e ser mulher ou ainda o é? Os privilégios de classe não

dificultam a trajetória de uma mulher que queira “ser poeta”?

***

Esta produção é fruto do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em História,

realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PETRÓ, Camila A., 2012), e da

atual pesquisa de Dissertação de Mestrado que vem sendo desenvolvida na mesma

universidade. Ela foi e está sendo pensada no intuito de pesquisar e dar visibilidade à

entidade em questão e as suas escritoras/intelectuais, já que elas não fazem parte de um

círculo realmente conhecido da história da literatura, tanto do Brasil, como do Rio Grande

do Sul (e mesmo Porto Alegre).

1 Trecho do livro “Histórico de minhas Fundações” (1971?). Lydia Moschetti foi uma das fundadoras da

Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul (ALFRS), sendo que foi esta escritora quem

aparentemente teve a iniciativa maior da criação da instituição.

Mas afinal, quando, onde, como se deu a criação da Academia Literária Feminina

do Rio Grande do Sul? Vamos voltar no tempo, contarei uma pequena “história”: “na

cidade de Porto Alegre ‘aos doze dias do mez de abril de 1943 (...) reuniram-se, as 16

horas na sala nobre da Ass: Rio G.se

de Imprensa gentilmente cedida pelo seu director S.º

A. Pasqualini, as intelectuais que atenderam ao apelo da S.ª D’ Lydia Moschetti (...)’

(ACADEMIA, 1943, p. 1)2. No encontro realizado com a presença de outras seis mulheres

(Stella Brum, Alzira Freitas Tacques, Aurora Nunes Wagner, Áurea Pereira Lemos, Aracy

Fróes e Beatriz Regina) na Associação Rio-grandense de Imprensa (localizada na Avenida

Borges de Medeiros), a referida Lydia Moschetti tomou a palavra e, falando dos porquês

da reunião, explicitou o seu objetivo principal: a fundação de uma Academia Literária

Feminina, “a primeira a ser constituída no Paiz” (ACADEMIA, 1943, p. 1)3.

Assim, no final daquela segunda-feira, estava fundada uma nova instituição cultural

em Porto Alegre: a Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul (ALFRS) – “(...)

para proporcionar a mulher intelectual um lugar de maior realce entre os valores

contemporâneos e o merecido culto entre as gerações futuras” (ACADEMIA, 1943, p. 1).

A criação da ALFRS foi analisada, bem como a constituição de seu projeto e a

repercussão deste na sociedade porto-alegrense para a década de 1940 (e agora, expandido

até a década de 1970), a partir das atas das sessões da entidade, no período de 1943 a 1950;

nos Estatutos (versão do Diário Oficial e versão manuscrita) de 1943 e, em relação ao

último tópico (das repercussões), reportagens do periódico Correio do Povo4.

2 As transcrições realizadas são fiéis à grafia original, com os possíveis desvios do padrão da língua.

3 Este pioneirismo reivindicado por Moschetti, pelo que foi averiguado, além de recurso retórico, pode estar

atrelado ao fato da ALFRS, segundo a acadêmica, ser “a única existente [e registrada] com personalidade

jurídica em todo o país” (ACADEMIA, 1943, p. 21), pois segundo HOLLANDA (1992), a primeira

agremiação literária feminina que se tem notícia é a “Liga Feminina Cearense”, fundada em 1904 por Alba

Valdez. A “Ala Feminina” da Casa Juvenal Galeno, também do Ceará, é uma Academia de Letras fundada

em 1942 por Júlia Galeno. 4 Estas fontes fazem parte do arquivo da ALFRS.

Figura 1 - Grupo presente na Fundação da ALFRS. Sentadas da esquerda para a direita: Aura Pereira

Lemos, Lydia Moschetti e Aracy Fróes. De pé, na mesma ordem: Beatriz Regina, Alzira Freitas Tacques,

Aurora Nunes Wagner e Stella Brum (ACERVO DA ALFRS)

Para pensarmos melhor a constituição da ALFRS, apontarei alguns dados. Uma

academia literária, de modo geral, funciona com um quadro de sócios/sócias

acadêmicos/acadêmicas, o que constitui as chamadas cadeiras, as quais os/as intelectuais

tomam posse. Cada cadeira tem alguém (também literato/literata, na maior parte das vezes)

que “dá nome” aquela cadeira: o que é chamado de patrono/patrona – uma homenagem

póstuma para uma determinada pessoa, que é reconhecida pelos pares como de alto valor

(o que pode ser entendido como valor literário, de história de vida... pois o capital

simbólico se forma e acumula por diferentes frentes – também podendo ser reconvertido).5

No caso da ALFRS, em relação a sua constituição, inicialmente contava com um

número de vinte (20) cadeiras, o que foi ampliado para quarenta (40) em 1948.

5 Para exemplificar a explicação, é possível averiguar no site da Academia Brasileira de Letras a constituição

dos seus membros, disponível em: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=540. E

para exemplificar a constituição do quadro acadêmico da própria Academia Feminina do Rio Grande do Sul,

seu site tem a listagem com pequenas biografias das patronas e acadêmicas, disponível em: http://www.alf-

rs.org.br/academicas. Acesso em 04 de julho de 2014.

Posteriormente este aumento foi explicado buscando uma genealogia, por assim dizer, de

academias de letras – a mudança teria acontecido em função da organização da Academia

Francesa de Letras, que serviria de modelo para as que se seguiram (um exemplo é a

própria Academia Brasileira de Letras).6

As reuniões eram esporádicas pelo que se pôde averiguar até o momento nas atas da

instituição7, em sedes provisórias até 1953, quando adquirem um apartamento no centro da

cidade como sede própria8. Sua localização atual na cidade de Porto Alegre, tendo em vista

que ela continua em atividade, já é mencionada no final da década de 1940, pois o atual

espaço já começava a ser utilizado como “sede provisória” (uma casa que foi cedida – ou

vendida, algo ainda a se confirmar nas fontes – pela acadêmica Noemy Valle Rocha)9.

Caro/a Leitor/a, alguns dados apontados... Prosseguiremos em relação a como foi e

esta sendo estruturada e executada a pesquisa.

A fundação da Academia foi em 12 de abril de 1943, em Porto Alegre. Ou seja, ela

completou 71 anos e, aparentemente, sem um (re)conhecimento pela comunidade

acadêmica não vinculada à ela, bem como da sociedade porto-alegrense em geral, sendo

que foi declarada em 2007 “Patrimônio Histórico Cultural do Rio Grande do Sul”, o que

demonstra certa legitimidade da entidade frente ao poder público estadual. No TCC,

portanto, pretendeu-se iniciar a investigação sobre a história da ALFRS, sabendo dos

limites que pautavam um exercício inaugural de pesquisa e sabendo que este é o primeiro

trabalho acadêmico de maior fôlego sobre a instituição. Contudo, a pesquisa se desdobrou

em Projeto de Mestrado em História, e a investigação, atualmente, foi expandida da década

de 1940 até a década de 1970.

6 Maria Josepha P. Motta, que escreveu quando era presidente da instituição o editorial da Coletânea

acadêmica comemorativa do 40.º aniversário da ALFRS (CARRÉ, 1984), apontou que esta seguia a tradição

histórica da Académie Française, criada em 1635 com 40 membros titulares (sendo que Louis XIV teria

cedido uma sala no Louvre para as reuniões). A Academia Francesa, salienta Motta, passou por reformas

administrativas, porém manteve a composição original, servindo de modelo para “todas que se seguiram”

(CARRÉ, 1984, p. 12). Não encontrei nas atas e/ou nos Estatutos referências a essa “tradição francesa”, no

entanto a menção é feita constantemente em históricos publicados pela Academia para explicar o aumento do

número de sócias efetivas. 7 Em dez anos de instituição (1943-1953) foram transcritas cerca de 190 atas. Então, levando-se em conta que

havia recesso nos meses de janeiro e fevereiro, a média era de encontros quinzenais, aproximadamente. 8 A inauguração de sua sede própria aconteceu em dezembro de 1953, e localizava-se na Rua General

Vitorino, 300, apartamento nº 3-E do Edifício Prync, Salgado, Cia Ltda. (ACADEMIA, 1953, p. 91). 9 Rua Sarmento Leite, 933, Cidade Baixa, Porto Alegre. Disponível em: https://www.google.com.br/maps/@-

30.03707,-51.223622,3a,74.6y,336.72h,87.1t/data=!3m4!1e1!3m2!1sa1bMRAmzWKHIpkCmjDh_Tw!2e0.

Acesso em 14 de julho de 2014.

A sua criação foi abordada no TCC a partir da análise da cidade de Porto Alegre

como certo campo de possibilidades no período. Buscou-se, primordialmente, responder a

seguinte pergunta: qual o projeto de instituição foi pretendido e possível de ser construído

pelas fundadoras, tendo em vista o campo de possibilidades oferecido pela Porto Alegre da

década de 1940. No Projeto de Dissertação de Mestrado, continuo utilizando os conceitos

do antropólogo Gilberto Velho (projeto e campo de possibilidades), porém, com uma

ampliação temporal, o que acarreta outros pontos de análise da constituição da academia e

não somente sua criação (“qual o projeto de instituição foi pretendido e possível de ser

construído, bem como suas transformações, tendo em vista o campo de possibilidades

existente em Porto Alegre ao longo das décadas de 1940 a 1970?”).

A busca pela compreensão do campo de possibilidades se fez e se faz com ênfase

em duas dimensões: uma referente ao espaço das práticas dos intelectuais e outra

relacionada ao gênero, que direcionam o debate sobre o que seria uma intelectual naquele

momento. Esta reflexão, consequentemente, apontou para quais espaços estavam

disponíveis àquelas mulheres na década de 1940 na capital gaúcha, o que, por sua vez,

conduziu no TCC ao estudo das biografias coletivas destas primeiras integrantes da

entidade – as “fundadoras”.10

O recorte de tempo foi pensado para abarcar o período anterior à criação do seu

órgão de intercâmbio cultural, a revista Atenéia, que circulou do final de 1949 até 1972, em

um total de 55 exemplares – e é desta revista que vem o título deste trabalho: “Sempre

mais acima, Sempre mais além”, uma frase de Littré, que, se tornará lema da ALFRS a

partir de 1949, com a edição do órgão (ou seja, agora no mestrado, a revista será

incorporada a pesquisa, sendo o final de sua circulação o recorte temporal final).

Os conceitos projeto e campo de possibilidades utilizados para a formulação do

problema principal e para abordar a criação da ALFRS dizem respeito ao livro Projeto e

Metamorfose do Gilberto Velho (2003). Em linhas gerais, o antropólogo conceitua como

projeto algo que seria do nível mais individual, mesmo que de indivíduos reunidos em

grupo, enquanto o campo de possibilidades seria o espaço para a formulação desses

projetos. Na perspectiva do autor, mesmo que o projeto possa ser coletivo, ele não é vivido

10

Foi retirada deste quadro a biografia de Beatriz Regina Fortunatti, visto que ela apareceu apenas na

fotografia do grupo fundador e não se fez representar posteriormente na constituição do projeto da Academia.

de forma homogênea pelos seus participantes, pois cada sujeito tem a sua trajetória

existencial. Os projetos individuais interagem com outros dentro de um campo de

possibilidades, e não operam num vácuo.

Tabela 1 – Extrato do “Quadro: origem, vida escolar e pessoal, e carreira” (PETRO, Camila A., 2012, p. 48)

INFORMAÇÕES

ACADÊMICA

Data

e lugar de

nasciment

o

Filiação

Pai e Mãe

profissões

Educação

(escola,

nível,

local,...)

Carreira

e/ou

Profissão

e/ou

Atividades Desempenhadas

Casada?

Com quem?

Quando?

Profissão do

Marido

Patrona e

cargo(s)

na

ALFRS.

Tipo de

Produção.

LYDIA

MOSCHETTI

“Lydia Bastogi-

Gianonni”

Cadeira nº 1

14/09/1888

(?)

Fucecchio

(Itália)

Veio para

o Brasil

em 1907,

ficando em

São Paulo.

Depois

passou a

residir em

POA em

1919

(quando se

casou).

Fabrízio

Bastogi

Gianonni e

Giulia Carli

Gianonni

Pai era filho

de uma

Condessa,

mãe de

família

modesta.

Mesmo

assim, teria

passado

necessidades

na infância.

Primário e

Ginásio

(Internato) na

Itália

Em SP fez

cursos de

desenho,

pintura,

música, canto

e outras

línguas.

Desde a

Itália dava

aulas, foi

professora

também em

SP (escola e

em casas).

Também

trabalhou

num

Instituto de

Beleza.

Soprano,

pintora,

“assistente

social”

(filantropa)

Luiz

Moschetti,

em 1919 (ou

1920).

Engenheiro

italiano, veio

ao Brasil

(POA-1915)

como

representante

da FIAT e

Casa Marelli

Instalou-se

em POA e

montou uma

firma de

papel.

Delfina

Benigna da

Silva

Presidente

1943-1947

Diretora do

Intercâmbio

Cultural

1948-1950

Romance

Poesia

Figura 2 – Reprodução do Quadro de Perfis das Fundadoras da ALFRS (PETRÓ, Camila A., 2012, p. 45)

Portanto, investigar as biografias destas fundadoras no TCC foi uma forma de

melhor compreender o projeto pretendido e possível no campo de possibilidades que

existia em Porto Alegre na década de 1940, já que, os projetos estão em constante

interação e, para ser viável, um projeto precisa negociar com outros projetos, a partir das

circunstâncias do campo de possibilidades em que os indivíduos e/ou grupo estão

inseridos. No caso das criadoras da ALFRS, a dimensão de gênero e a de espaço para as

práticas das/os intelectuais se relacionam diretamente ao campo de possibilidades do

momento da formulação do projeto de uma “academia literária feminina”.11

A partir de agora, tratar-se-á da categoria gênero. Esta dimensão foi pensada

segundo principalmente a conceituação de Joan Scott no intuito de abarcar este elemento

que se faz presente e influência toda a sociedade (ou seja, influência também o campo

literário), e mesmo não sendo o único elemento, é dos primordiais para este estudo, pois

11

Atualmente, o estudo das biografias das acadêmicas do período de 1943-1972 (47 no total), que no projeto

inicial foi incorporado à pesquisa pode vir a ser retirando, tendo em vista a incorporação e análise da nova

fonte (Revista Atenéia) e do tempo para conclusão da especialização.

define espaços sexualizados e hierarquias entre eles (homens escritores versus mulheres

escritoras).

Gênero para esta pesquisadora “é um elemento constitutivo de relações sociais

baseadas nas diferenças entre os sexos”, mas também é “uma forma primária de dar

significado às relações de poder”. Quanto a este segundo item, Scott (1995, p. 88)

acrescenta que seria melhor dizer que “o gênero é um campo primário no interior do qual,

ou por meio do qual, o poder é articulado”. Então, mesmo não sendo o único campo, o

gênero é um elemento que possibilita a significação das relações de poder – portanto, se

faz presente e influencia toda a sociedade, inclusive o âmbito literário (ou intelectual), ao

definir espaços sexualizados e hierarquias entre eles.

Desta forma, segundo Scott (1995, p. 89), o gênero “fornece um meio de

decodificar o significado e de compreender as complexas conexões entre várias formas de

interação humana”, pois este conceito legitima e constrói as relações sociais, já que teria

uma relação recíproca com a sociedade. Gênero, portanto, não é sinônimo de mulheres,

mesmo que por algum tempo os “estudos de gênero” tenham sido identificados como

“estudos de mulheres”, acarretando dificuldades na incorporação dos sujeitos masculinos

(LEAL e BOFF, 1996). Para Joan Scott, as diferenças entre os sexos são construídas pela

cultura e biologia, sendo que a biologia ainda é de certa forma pensada como um fator

estável; essas diferenças implicam necessariamente em relações de poder, e estão

articuladas com outros fatores, tais como raça, classe, entre outros12

.

A história dos intelectuais, por sua vez, segundo Jean-François Sirinelli (2003, p.

237), é “um campo histórico autônomo que, longe de se fechar sobre si mesmo, é um

campo aberto, situado no cruzamento das histórias política, social e cultural”. O autor

apresenta ainda o percurso das mudanças de análise e a importância que o campo de estudo

dos intelectuais teve em diferentes períodos nas pesquisas dos historiadores, sendo que foi

a partir do final da década de 1970 que “a história dos intelectuais começou a superar a sua

indignidade (...)” (SIRINELLI, 2003, p. 232). Os contornos vagos dos intelectuais e a

12

Judith Butler (2003) vai um pouco além do argumento de Scott, e salienta que às vezes as categorias

homem e mulher não são suficientes para definir algumas pessoas, pois existem as que estão além da

coerência entre “sexo”, “gênero” e “desejo”. Para essa pesquisadora, a anatomia não pode ser tomada como

um referencial estático, já que também é fruto da linguagem discursiva. Então, desta forma, faz crítica ao

substrato biológico da noção de identidade sexual.

pequena quantidade que representavam no conjunto da sociedade seriam causas específicas

do porquê este âmbito ficou, por muito tempo, à margem do arcabouço de pesquisas dos

historiadores13

.

No que tange à bibliografia sobre academias literárias femininas, não foram

encontrados trabalhos específicos. As principais referências são relativas à Academia

Brasileira de Letras (ABL), em especial a pesquisa de Rodrigues (2001), que analisa as

relações entre literatura e política na Academia Brasileira de Letras no período de 1896 –

ano de sua fundação - até 191314

.

Os objetivos gerais pretendidos com o problema-questão e as dimensões citadas de

gênero e espaço para as práticas intelectuais são: 1) analisar a constituição e

transformações da ALFRS, a partir do campo de possibilidades, tendo em vista a dimensão

de gênero e os espaços disponíveis para as práticas dos/das intelectuais da cidade de Porto

Alegre nas décadas de 1940 a 1970; 2) Contribuir com esta pesquisa sobre a ALFRS no

que tange aos estudos de gênero, bem como de uma história dos/das intelectuais, a fim de

enriquecer uma História da cidade que incorpora a atuação de suas mulheres.

***

Por fim, leitor(a), vamos delinear alguns pontos do que já foi possível averiguar.

Pretendeu-se, no TCC, compreender como se estruturou esta academia de letras

exclusivamente de mulheres. Foi observado que a fundação da ALFRS teve repercussão no

âmbito intelectual da sociedade porto-alegrense, e mesmo que certos literatos não

quisessem expressar nitidamente suas opiniões relativas às mulheres escritoras (algumas

bem depreciativas e machistas), o fato é que, por ser uma nova academia de letras (ainda

mais feminina – aparentemente a primeira a ser fundada e registrada no Brasil), estas

opiniões apareceram em cartas e reportagens.

13

Em relação a estudos sobre intelectuais no Brasil, o trabalho de Miceli (2001) é importante, mesmo

tratando do final do século XIX e início do XX, pois o sociólogo analisa formas de recrutamento no campo

literário a partir da origem social dos intelecuais neste momento político de declínio da oligarquia. Neste

sentido, Daniel Pécaut (1990), pensa mais especificamente na relação dos intelectuais com a política, em um

plano das representações, e também é interessante para pensar a ligação dos intelectuais com a classe

dirigente no Brasil. Entretanto, as possíveis definições de “intelectual” e de uma “história intelectual” ainda

estão por ser melhores aprofundadas no que tange a continuação desta pesquisa.

14 Outra importante pesquisa que analisa a ABL é o livro A encenação da imortalidade de Alessandra El Far

(2000).

Para citar um exemplo, a reportagem “Adão não quer saber da concorrência de

Eva na literatura...” foi o título da entrevista que Lydia Moschetti concedeu ao jornal

Correio do Povo em 24 de agosto de 1943, sobre a missiva que lhe foi encaminhada pela

Academia Riograndense de Letras, “assinada pelo seu Secretário perpetuo Sr Ary Martins”

(ACADEMIA, 1943, p. 28-30), onde este sugere

em nome de seus pares que, “para merecer o apoio da Academia Riograndense”

– deveria a Academia Feminina – “se arregimentar não numa outra Academia,

mas num simples grêmio de letras”; porquanto aquele cenaculo, “não quer fugir

ao cumprimento do principio em que se firmou de não reconhecer a existência de

qualquer grêmio de letras, no Estado, que se venha a [se] constituir com o titulo

“Academia”, principio este decorrente de outro, já implicitamente aprovado

desde fins de 1941, de que tudo se fará dentro da Academia Riograndense de

Letras, para que desapareça do cenário intelectual do Estado essa pluralidade de

academias que com razão, é tão acremente comentada e ridicularizada em todas

as rodas.”(ACADEMIA, 1943, p.29)..

A carta na íntegra foi divulgada na reportagem referida e ela possui um tom

bastante irônico e sensacionalista ao abordar este atrito, e, poder-se-ia dizer machista. Por

exemplo, a chegada da carta ao sodalício feminino é tratada da seguinte forma: “A carta

caiu como uma bomba em pleno grêmio literário de saias”; e, ao se referir à recepção do

conteúdo da missiva, o texto sugere que “como resultado, estabeleceu-se um animadíssimo

‘poligolo’ (espécie de conversação em que se empenham mais de duas mulheres. Todas

falam e ninguém se entende)”. A notícia desde o seu título (“Adão não quer saber da

concorrência da Eva na literatura...”), até o seu conteúdo (em parte aqui citado), apresenta

o assunto com certo menosprezo, indicando também não reconhecer a nova entidade como

Academia, mas como um grêmio literário de saias. Porém, o tratamento dispensado à

Lydia Moschetti é de grande respeito, demonstrando o prestígio que a escritora tinha

naquela sociedade: “esqueceram-se que à frente da Academia Feminina estava Lidia

Moschetti, quer dizer, uma senhora acostumada a levar a diante quantos empreendimentos

tem empreitado e que havia feito, da novel entidade, a ‘menina dos seus olhos’”.

Mesmo assim, o projeto da ALFRS na década de 1940 não contrariava, ao menos

de maneira frontal, os princípios vigentes daquela sociedade, pois se a sua estruturação se

concretizou é porque havia um movimento que acolhia as pretensões. Céli Pinto (2003), ao

citar eventos envolvendo mulheres nas décadas de 1920 e 1930, descreve a alegação que

Júlia Alves Barbosa defendeu em audiência, no Rio Grande do Norte, para obter seu direito

de alistamento eleitoral, em 1927. Na ocasião, ela utilizou argumentos que englobavam o

fato de ser “solteira e independente”. Isto significaria para a autora que

havia um movimento de opinião que acolhia esses comportamentos. Não se trata

unicamente de mulheres com idéias estranhas para sua época ou apenas

excepcionais, pela cultura ou pela coragem. Poderiam até ser tudo isso, mas um

novo espírito da época, do qual eram ao mesmo tempo frutos e construtoras

começava a tomar forma nas cidades, por meio de movimentos de opinião que

buscava alastrar a participação política por intermédio da inclusão de setores que

dela haviam sido alijados pelas oligarquias (PINTO, 2003, p. 28).

Neste sentido, a escrita, dentre esses outros modos de contestar a “ordem

estabelecida”, pode ser considerada como elemento de grande importância no processo de

emancipação da mulher, sendo uma ferramenta utilizada progressivamente na virada do

século XIX para o XX, já que houve um aumento gradativo da alfabetização da população

feminina15

.

E também é preciso ressaltar que havia certos pressupostos “morais” que deveriam

ser preenchidos para se tornar uma imortal, os quais eram analisados pelas acadêmicas que

já integravam o quadro – ou seja, não eram quaisquer mulheres escritoras/intelectuais que

poderiam tornarem-se imortais: a imortalidade era decidida entre as pares, segundo

critérios próprios, que são, sobretudo, políticos.

Também foi possível perceber que a criação da ALFRS, mesmo com a pretensão de

um caráter puramente literário segundo seus estatutos, foi um ato político, como o é a

fundação de qualquer outra entidade, e, portanto, a política permeou suas relações –

mesmo não sendo uma política explicitamente partidária. Muitas acadêmicas tinham

ligações com políticos do governo, municipal e estadual, e sempre lançavam mão,

pessoalmente ou como instituição, de parabenizações seguidas de pedidos de subvenção e

outras ajudas materiais (e imateriais).

SILVEIRA (2008), em sua dissertação sobre o Parthenon Literário (instituição

bem anterior à Academia), aponta para o fato de que aqueles literatos também tinham a

pretensão de criar uma entidade com caráter puramente literário, como aparece

igualmente no artigo acima citado dos Estatutos da ALFRS, pois “não viam com bons

15

BESSE (1999) apresenta uma tabela das taxas de alfabetização no Brasil para o período de 1872 a 1940.

Em 1872, a porcentagem de alfabetizados na população feminina total era de cerca de 11%, já em 1940 este

número cresce para aproximadamente 34%, sendo que em geral as porcentagens femininas são quase 10%

inferiores às masculinas (BESSE, 1999, p. 126).

olhos” a ligação da política com a literatura, já que aquela tiraria a “pureza” dessa última.

Estas duas dimensões eram vistas como opostas pelos seus membros, mesmo o Parthenon

Literário não tendo sido, segundo a historiadora, um local de consagração apenas literário.

De forma semelhante, RODRIGUES (2001) demonstra que a proposta da

Academia Brasileira de Letras de limitar-se ao “cultivo das letras e a preservação da língua

portuguesa” foi o modo pelo qual os acadêmicos gostariam que os víssemos – mesmo

atualmente (RODRIGUES, 2001, p. 26). Entretanto, a ABL estava longe de ser uma

instituição apolítica, e isso também vale para o caso aqui estudado, e por isso é preciso

atenção para não adotar o discurso da entidade.

Agradeço a atenção da leitora e do leitor que chegaram até o fim deste texto e, para

encerrar, voltemos ao questionamento inicial. A “alma poética” pode realmente não ser

privilégio de classe... Contudo, se a escrita de mulheres no período de criação da ALFRS

ainda é restrita se comparada a dos homens (não tanto pensando apenas quantitativamente,

mas em relação ao teimoso rebaixamento daquela em relação a esta por eles), também é

preciso constatar que, tal qual Virgínia Woolf (2014) alerta sobre o fato de que uma “renda

fixa” e um espaço destinado à mulher para a sua escrita acarretam (melhores ou as

próprias) condições para que esta se desenvolva, e que se Shakespeare tivesse uma irmã,

ela não poderia ter escrito suas peças, dadas às condições de vida diferenciadas que teriam

naquele período, arrisco a seguinte conclusão: a criação da ALFRS demonstra insatisfação

de um grupo frente ao que aqui se convencionou chamar de “espaços para as práticas

intelectuais”. Só que este grupo não é, nem poderia ser, da totalidade das mulheres, pois

“um teto todo seu”, com tempo disponível para escrever o que a “alma poética” esboça

quiçá em pensamentos, ainda era (e em parte, ou quase totalmente, ainda é) um privilégio

de classe.

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