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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO SEMIÓTICA E ARGUMENTAÇÃO: ANÁLISE DAS OBRAS DE LITERATURA INFANTIL DE SYLVIA ORTHOF Marcia Andrade Morais Cabral Faculdade de Letras - UFRJ 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

SEMIÓTICA E ARGUMENTAÇÃO: ANÁLISE DAS OBRAS DE LITERATURA

INFANTIL DE SYLVIA ORTHOF

Marcia Andrade Morais Cabral

Faculdade de Letras - UFRJ 2017

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SEMIÓTICA E ARGUMENTAÇÃO: ANÁLISE DAS OBRAS DE LITERATURA

INFANTIL DE SYLVIA ORTHOF

Marcia Andrade Morais Cabral

Tese de doutorado apresentada ao programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal

do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários

para a obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas

(Língua Portuguesa). Orientador: Profª Drª Regina Souza

Gomes.

Rio de Janeiro

Março de 2017

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Cabral, Marcia Andrade Morais. C112s Semiótica e argumentação: análise das obras de literatura infantil de Sylvia Orthof / Marcia

Andrade Morais Cabral. -- Rio de Janeiro, 2017. 169 f.

Orientador: Regina Souza Gomes. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio

de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós Graduação em Letras Vernáculas, 2017.

1. Semiótica. 2. Argumentação. 3. Literatura

Infantil. I. Gomes, Regina Souza, orient. II. Título.

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SEMIÓTICA E ARGUMENTAÇÃO: ANÁLISE DAS OBRAS DE LITERATURA

INFANTIL DE SYLVIA ORTHOF

Marcia Andrade Morais Cabral Orientadora: Professora Dra Regina Souza Gomes

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a

obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

Aprovada por:

_____________________________________________ Presidente Profa. Dra. Regina Souza Gomes (Orientadora - UFRJ)

_____________________________________________ Profa. Dra. Renata Ciampone Mancini (UFF)

______________________________________________ Profa. Dra. Silvia Maria de Sousa (UFF)

______________________________________________ Profa Dra. Leonor Werneck dos Santos (UFRJ)

______________________________________________ Profa Dra Eliete Figueira Batista da Silveira (UFRJ)

______________________________________________ Profa. Dra. Eliane Soares de Lima (UNIFRAN), Suplente

_____________________________________________________ Profa. Dra. Maria Aparecida Lino Pauliukonis (UFRJ), Suplente

Rio de Janeiro

Março de 2017

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À Beatriz, minha luz, minha inspiração.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Regina, minha orientadora, a quem devo mais do que o

olhar extremamente atencioso ao meu trabalho, como também um companheirismo que

ultrapassa os limites acadêmicos. Seu sorriso doce, seu otimismo mesmo nos momentos mais

difíceis, que não foram poucos durante a escrita da tese, sempre foram um grande incentivo

na realização deste trabalho. Obrigada, Regina!

A Leonor, pelo incentivo inicial à pesquisa acadêmica, pela leitura atenta dos meus

trabalhos e pelo carinho de sempre. À Silvia Sousa pelas contribuições na qualificação que,

sem dúvida, foram fundamentais na constituição do trabalho final.

Aos meus familiares, agradeço pela tese e por tudo o mais. A minha pequena Beatriz,

que sempre deixava tudo mais leve com cada batida na porta enquanto eu trabalhava, ou

quando jogava todos os meus livros para o alto. Ao meu esposo Thiago, pela parceria

incondicional, pelo apoio nas situações mais tensas e pelo amor que me move a todas as

conquistas. A minha mãe Eliete e minha irmã Margareth, por serem as estrelas da minha vida

inteira, a quem devo tudo o que tenho e o que sou. Ao meu pai (in memoriam), por despertar,

desde sempre, o gosto pelo conhecimento. A minha querida sogra, a minha família

emprestada, do meu esposo Thiago, que tomei como se fosse minha e a quem devo os

momentos de mais alegria e barulho!

Aos meus queridos amigos, pelos momentos necessários de descontração e pela

compreensão da ausência nos momentos mais tensos de escrita. Muito obrigada pelas

conversas e por serem pessoas tão especiais, com quem tenho sorte de poder contar.

Aos meus queridos alunos, com quem aprendo muito mais do que ensino. A

curiosidade de vocês me motiva a ser sempre uma profissional melhor, a sempre estudar e

pesquisar mais.

Aos meus colegas de trabalho de CEFET/RJ que, além de excelentes profissionais,

tornaram-se amigos queridos, que deixam a rotina diária de trabalho muito mais agradável.

Agradeço muito por todo apoio durante minha pesquisa.

Obrigada a todos!

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RESUMO

SEMIÓTICA E ARGUMENTAÇÃO: ANÁLISE DAS OBRAS DE LITERATURA

INFANTIL DE SYLVIA ORTHOF

Marcia Andrade Morais Cabral Orientadora: Professora Dra Regina Souza Gomes

Resumo da tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

A argumentação é tema recorrente em pesquisas na área de texto e discurso, mas escassas são

aquelas que se propõem a analisá-la em textos literários. Nosso trabalho tem, pois, por

objetivo, investigar a argumentação em obras de literatura infantil de Sylvia Orthof, utilizando

como fundamentação a teoria semiótica de linha francesa. Para tanto, são analisadas 17 obras

da autora, cujo recorte compreenderá a produção da década de 80, tendo em vista que este foi

o período mais profícuo de produção da autora, que morreu na década seguinte. Como escopo

teórico, a teoria semiótica greimasiana permitirá verificar de que maneira o texto,

materialização do discurso, diz o que diz, ou seja, como se constrói o sentido, não somente

observando seu conteúdo, mas também a forma de dizer. Dessa maneira, a teoria considera

níveis de abstração diferentes (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 232), do mais profundo ao

complexo e concreto, nível em que são observadas as estratégias argumentativas utilizadas.

Essa base teórica nos auxiliará, então, a observar a argumentação na relação entre enunciador

e enunciatário, tendo em vista o contrato estabelecido entre ambos e a confiança do

enunciatário na imagem do enunciador, o que leva à adesão dos valores, ao mesmo tempo em

que serão observados os recursos argumentativos escolhidos por esse enunciador, que

reforçam essa imagem e instauram a crença no discurso. Assim, busca-se comprovar a

hipótese de que o uso de estratégias argumentativas diversas cria a imagem de um autor em

Orthof irreverente e lúdico e, dessa forma, contribui para uma aproximação entre enunciador e

enunciatário, confirma a manipulação e a crença nos valores no discurso. A pesquisa pretende

também ser um caminho de análise da argumentação nos textos, contribuindo,

consequentemente, para o estudo da argumentação em textos literários.

Palavras-chave: Semiótica, Argumentação, Literatura Infantil.

Rio de Janeiro

Março de 2017

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ABSTRACT

SEMIOTIC AND ARGUMENTATION ANALYSIS OF THE WORKS OF

CHILDREN'S LITERATURE IN SYLVIA ORTHOF

Marcia Andrade Morais Cabral Orientadora: Professora Regina Souza Gomes

Abstract da tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

This work analyzes the argumentation in children's literature by Sylvia Orthof, using the

theorical substantiaton of French semiotic. In order to do so, we analyze 20 works by the

author, whose cut will include the production of the 80's, considering that this was the most

productive period of production of the author, who died in the following decade. As a

theoretical scope, the French semiotic will allow us to verify how the text, the materialization

of the discourse, tells what it says, that is, how to construct meaning, not only observing its

content, but also the way of saying. In this way, the theory considers different levels of

abstraction (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p.232), ranging from an analysis of the deepest

structures, called the fundamental level, passing through an intermediate level, the narrative,

to the more complex And concrete, the discursive level, all composed of a syntax and a

semantics. This theoretical basis will then help us to observe the argumentation in the relation

between enunciator and enunciate, in view of the contract established between both and the

reliance of the enunciate in the image of the enunciator, which leads to the adhesion of the

values, at the same time as will be observed the argumentative resources chosen by this

enunciator, that reinforce this image and establish the belief in the discourse. Thus, it is tried

to prove the hypothesis that the use of diverse argumentative strategies creates the image of an

author in Orthof irreverent and playful and, in this way, contributes to an approximation

between enunciator and enunciate, confirms the manipulation and the belief in the values in

the speech.

Key-words: Semiotc, Argumentation, Children's literature.

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RESUMÈ

SÉMIOTIQUE ET ARGUMENTATION: ANALYSE DES ŒUVRES DE

LITTÉRATURE POUR ENFANTS DE SYLVIA ORTHOF

Marcia Andrade Morais Cabral Orientadora: Professora Regina Souza Gomes

Resumè da tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

Notre travail analyse l’argumentation dans les œuvres de littérature pour enfants de Sylvia

Orthif, en utilisant comme fondement la théorie sémiotique de la ligne française. Pour cela 20

œuvres de l’auteur sont analysées dont la division inclura la production des années 1980, en

gardant à l’esprit que ce fut la période la plus productive de l’auteur qui est décédée au cours

de la décennie suivante. Comme finalité théorique, la théorie sémiotique greimassienne

permettra de vérifier de quelle forme le texte, matérialisation du discours, dit ce qu’il dit,

c’est-à-dire comment se construit le sens, non seulement en osbervant son contenu mais

également la manière de le dire. Ainsi, la théorie considère différents niveaux d’abstraction

(GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 232), qui vont d’une analyse des structures les plus

profondes appelé le niveau fondamental, en passant par un niveau intermédiaire, le narratif,

jusqu’au plus complexe et concret, le niveau discursif, tous composés d’une syntaxe et d’une

sémantique. Cette base théorique nous aidera alors à observer l’argumentation dans la relation

entre l’énonciateur et l’énonciataire en gardant à l’esprit le contrat établi entre chacuns d’entre

eux et la confiance portée par l’énonciataire en l’image de l’énonciateur, qui mène à

l’adhésion des valeurs et au même moment où les recours argumentatifs choisis par cet

énonciateur seront observés et qui renforcent cette image et instaure la croyance du discours.

Ainsi nous cherchons à prouver l’hypothèse selon laquelle l’usage de diverses stratégies

argumentatives créé l’impression qu’Orthof est un auteur désinvolte et ludique et qu’ainsi,

elle contribue au rapprochement entre énonciateur et énonciataire, confirme la manipulation et

la croyance aux valeurs du discours.

Mots-clés: Sémiotique, Argumentation, Littérature pour Enfants.

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ÍNDICE DE FIGURAS

Figuras 1 e 2: Ilustrações obra Guardachuvando Doideiras (ORTHOF, 1992,

p.32; 2012, p.30) ......................................................................................................... Figura 3: Ilustração obra Guardachuvando Doideiras (ORTHOF, 2002, p.32)

..................... Figura 4: Ilustração obra A bruxa Fofim (ORTHOF, 2002, [n.p]) ...................... Figura 5: Ilustração obra A bruxa Fofim (ORTHOF, 2002, [n.p]) ......................

Figura 6: Ilustração obra A Fada Lá de Pasárgada (ORTHOF, 2004a, p.39) .... Figuras 7 e 8: Ilustração obra A bruxa Fofim, ORTHOF, 2002, [n.p.]) ............. Figuras 9 e 10: Ilustrações da obra Guardachuvando Doideiras (ORTHOF,

1992, p. 8; 21) ............................................................................................................. Figura 11: Ilustração da obra História Enroscada (ORTHOF, 2011, p. 20)........

p. 29

p. 107

p. 113

p. 114

p. 130

p. 131

p. 133

p. 134

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................

1 PANORAMA DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL: ONTEM

E HOJE ........................................................................................................

1.1 ORA FADA, ORA BRUXA: OS ENCANTOS DE ORTHOF ...............

1.1.1 Ecos de Orthof na atualidade .............................................................

2 A ARGUMENTAÇÃO ...............................................................................

2.1 ESTUDOS SOBRE ARGUMENTAÇÃO ...............................................

2.2. UM CAMINHO TEÓRICO-METODOLÓGICO .................................

2.2.1 Estudos de argumentação em Semiótica ............................................

2.2.1.2 A relação entre enunciador e enunciatário: a manipulação ................

2.2.1.3 Entre o sensível e o inteligível: a manipulação no texto de Orthof ....

3 OS RECURSOS DISCURSIVOS QUE LEVAM À CRENÇA ..............

3. 1. MODOS DE COMBINAÇÃO DE FIGURAS E TEMAS .....................

3.1.1 As combinações insólitas .....................................................................

3.1.1.2 Metáfora e metonímia .........................................................................

3.1.1.3 Hipérbole ............................................................................................

3.1.1.4 Ironia e seus efeitos argumentativos ...................................................

3.2. A INTERTEXTUALIDADE E INTERDISCURSIVIDADE COMO

RECURSO ARGUMENTATIVO ........................................................

3.2.1 A intertextualidade ..............................................................................

3.2.2 A interdiscursividade ...........................................................................

3.2.3 A referência interna à obra de Orthof ...............................................

3.3. AS PROJEÇÕES ENUNCIATIVAS ......................................................

3.3.1 Transgressão de níveis enunciativos ..................................................

3.3.2 O narrador intruso e a projeção do narratário no enunciado .........

3.4 A MODALIZAÇÃO ................................................................................

3.4.1 A modalização e as paixões do enunciado como orientação

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argumentativa ......................................................................................

3.4.2 O dizer apaixonado ..............................................................................

3.4.2.1 O fazer fazer na enunciação ................................................................

3.5 O PLANO DA EXPRESSÃO VERBAL ...............................................

4 INTERAÇÃO ENUNCIATIVA E ARGUMENTAÇÃO .......................

4.1 O ÉTHOS DO ENUNCIADOR ...............................................................

4.2 O PÁTHOS DO ENUNCIATÁRIO ........................................................

4.3 CONTRATO FIDUCIÁRIO ....................................................................

4.4 A CONFIANÇA E A CRENÇA ...............................................................

4.5 O LUGAR DO SENSÍVEL E DO INTELIGÍVEL NA

ARGUMENTAÇÃO ................................................................................

CONCLUSÃO ..................................................................................................

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................

ANEXOS ............................................................................................................

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INTRODUÇÃO

Tomando como base os pressupostos da teoria semiótica de linha francesa, este

trabalho tem por objetivo estudar os procedimentos de argumentação em textos de literatura

infantil da autora Sylvia Orthof (1932-1997), compreendendo seu período de escrita mais

profícuo, selecionado para esta pesquisa, na interseção entre a segunda metade da década de

80 e a primeira metade da década de 90.

Partimos do entendimento da argumentação não somente como uma tipologia textual1,

mas também como uma relação de intersubjetividade própria de qualquer gênero de texto,

inclusive de textos literários. Nesse sentido, considerando as contribuições da teoria

semiótica, a argumentação constituiria a relação entre enunciador e enunciatário e o contrato

estabelecido entre esses dois actantes, observando a troca de valores e os meios utilizados por

aquele para levar este a aderir ao discurso, a tomá-lo como verdadeiro (GREIMAS;

COURTÉS, 2008, p. 100). Essa adesão a valores diz respeito a qualquer texto e não somente

aos ditos argumentativos.

Para melhor tratar da questão da argumentação nos textos literários, há a necessidade

de escolher alguns caminhos para tratar do estatuto manipulatório nos textos. Entre as

possibilidades de análise, para a pesquisa aqui empreendida, buscou-se observar a

argumentação a partir de duas perspectivas: uma que diz respeito à relação entre o enunciador

e enunciatário e a manipulação subjacente nessa interação; e outra que examina os recursos

argumentativos utilizados pelo enunciador para fazer crer. É partir desses dois percursos que a

tese será estruturada.

Assim, de maneira a fazer um levantamento abrangente da argumentação nos textos

infantis, o estudo parte das seguintes hipóteses de que (i) a argumentação está presente em

todos os textos, inclusive nos literários, uma vez que a questão da argumentação é tomada em

sentido lato; (ii) também em textos literários, de natureza mais sensível, é possível encontrar

estratégias de manipulação que levam o outro a crer nos valores disseminados no discurso,

1 Autores como Fiorin (2008), Barros (2002) estabelecem uma diferença entre o que comumente se

entende como tipologia argumentativa e os procedimentos discursivos gerais de argumentatividade, relativos a

todos os textos.

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sendo preciso identificar em que medida os elementos sensíveis estão a serviço da

manipulação; (iii) o enunciador seleciona alguns recursos do âmbito do sensível e do

inteligível de modo a construir a sua imagem e a de seu enunciatário, que reconhece a

irreverência, a originalidade e a ludicidade nos textos, estabelecendo uma relação sustentada

pela confiança no sujeito e pela crença no dito; (iv) pelo acento do sensível no texto estético,

sua abertura para o inesperado, os recursos expressivos e argumentativos empregados

comportam um risco para o surgimento de valores não previstos, transitando entre a aventura

e o controle manipulador.

A escolha, então, da referida autora também ocorre em virtude da dinamicidade e da

inventividade observadas em suas obras, especialmente pelo modo como busca subverter

determinados valores constantes nas narrativas de literatura infantil tradicionais, empregando

recursos expressivos e argumentativos inusitados, tanto fazendo crer nos valores por

procedimentos do âmbito inteligível dos textos quanto envolvendo o enunciatário pela

emoção e por sua dimensão sensível.

Ainda no que diz respeito ao estudo da argumentação, cumpre destacar que a teoria

semiótica ainda precisa avançar nos estudos sobre argumentação, embora não se possa deixar

de destacar as importantes contribuições de Fiorin (1988, 2007, 2009, 2014, 2015), Barros

(2002, 2008) Beividas e Lopes (2007), Teixeira (2001, 2006). Alguns desses semioticistas

retomaram os desenvolvimentos teóricos e analíticos de outras teorias (Linguística do Texto,

Pragmática, etc), dando-lhes uma releitura a partir da semiótica e incorporando-os à análise.

Além disso, importam também para este estudo as pesquisas sobre modalização,

aspectualização e paixões, tendo em vista sua relação com as estratégias argumentativas

utilizadas para o fazer crer.

Como objetivos da pesquisa, busca-se sistematizar os estudos de argumentação,

considerando, para tanto, um levantamento dos pesquisas importantes na área, identificar os

principais recursos argumentativos selecionados pelo enunciador e, com isso, observar as

interações enunciativas estabelecidas e como se constitui o contrato fiduciário que serve de

base para a argumentação.

Em relação à estruturação da tese, pretende-se estabelecer a seguinte divisão: no

primeiro capítulo será feito um breve panorama da literatura infantil no Brasil, a fim de

compreender o contexto de produção das obras analisadas, sobretudo da autora pesquisada. O

objetivo, também, é compreender o papel de Sylvia Orthof no mercado de literatura infantil

brasileira e sua atuação na construção da imagem de uma criança questionadora, perspicaz,

compreendida como possuidora de uma importante função na (re)construção dos sentidos do

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texto, sendo, também, de suma relevância apresentar como a teoria semiótica compreende o

texto literário.

Já no capítulo seguinte, busca-se fazer apontamentos a respeito do tratamento da

argumentação sob a perspectiva de importantes autores que se dedicaram ao tema, ressaltando

alguns postulados fundamentais para a compreensão do estudo da retórica, essenciais para a

formação da base das reflexões sobre o tema. Relativamente à argumentação em semiótica,

este capítulo pretende destacar a importante colaboração dos estudiosos que utilizaram a base

da teoria semiótica no âmbito da argumentação, especialmente no que diz respeito às relações

entre enunciador e enunciatário.

Ganham destaque, então, nesta seção, a exposição do conceito de contrato veridictório,

o lugar da crença no âmbito das modalidades epistêmicas, a relação entre o saber e o crer e os

estudos sobre os regimes de interação, propostos por Landowski (2008). Como o corpus é

constituído de textos literários, é de extrema importância a análise dos elementos sensíveis no

texto, da elaboração dos elementos pertencentes ao plano da expressão e ao plano do

conteúdo. Assim, faz-se necessário também discutir o lugar da argumentação no texto

literário, considerando as graduações entre o sensível e o inteligível, tomando as obras infantis

estudadas da ordem do estésico e do estético.

Em seguida, considerando o outro ponto de observação da argumentação nos textos,

tratar-se-á dos recursos e procedimentos escolhidos pelo enunciador para estabelecer a crença

no discurso. Importam, então, os elementos do nível discursivo, considerando a sintaxe – as

relações entre o enunciador e enunciatário e entre enunciação e enunciado – e a semântica –

os percursos e configurações temáticas e figurativas, bem como os valores ideológicos

veiculados.

Ainda no que tange às bases teóricas e metodológicas da pesquisa, examinaremos as

estratégias argumentativas selecionadas pelo enunciador e os efeitos de sentido causados nos

textos. Não deixaremos de apontar também de que modo os recursos argumentativos

escolhidos pelo enunciador para fazer crer contribuem para a construção da imagem tanto do

enunciador quanto do enunciatário.

A questão que se coloca especialmente para esta pesquisa é a escolha feita no

tratamento da argumentação para a pesquisa. Pretendemos observá-la tanto por meio de uma

construção da confiança no dizer do enunciador, tendo em vista o contrato entre enunciador e

enunciatário, no âmbito da enunciação, bem como no estabelecimento da crença no dito, por

meio dos recursos utilizados para fazer crer no enunciado.

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No último capítulo, busca-se definir o éthos do enunciador em Orthof, seu correlato, o

páthos do enunciatário, e o tipo de contrato de veridicção firmado entre os parceiros da

interação. Ainda neste capítulo, sob a luz da semiótica tensiva, pretende-se analisar como os

recursos verificados na obra de Orthof atuam a partir de uma lógica concessiva ou

implicativa, e se operam a partir de uma estrutura intensiva do recrudescimento, ou seja, se de

fato irrompem o campo de presença do sujeito, arrebatando-o. Para tanto, será feito o uso das

categorias zilberberguianas que abarcam a correlação entre o sensível e o inteligível na análise

das obras. É necessário destacar que, para este estudo, não foram considerados os elementos

da expressão visual, como as ilustrações, embora sejam reconhecidos como importantes para

a construção de sentidos nos textos.

Assim, procura-se, por meio dessa configuração, investigar a argumentação no que diz

respeito aos recursos argumentativos de maior destaque observados no corpus e de que

maneira fortalecem a imagem de um enunciador, legitimando-o a dizer, reforçando a

interação entre enunciador e enunciatário.

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1 PANORAMA DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL: ONTEM E HOJE

Antes de tratar especificamente do contexto brasileiro, importa apontar brevemente a

construção de uma concepção de literatura infantil no mundo. Coelho (1985) aponta que a

literatura infantil está relacionada aos mitos e lendas, cujas origens remontam às narrativas

mágicas, superstições populares, que se constituíram em um meio privilegiado de transmissão

de culturas e valores. De acordo do Ariès (2001), as narrativas populares, como os contos,

fábulas e lendas eram, a princípio, destinados a adultos, mas que o uso livre da ficção e da

fantasia, o cômico, os temas e enredos tradicionais, características constantes nos contos,

propiciavam sua aproximação a uma identidade infantil em construção (Ariès, 2001, p. 146).

No Brasil, a literatura infanto-juvenil teve seu início no século XIX, mas somente

desenvolveu-se com bastante força no meio literário no século XX. Antes disso, há alguns

escritos de cunho familiar que, em alguns casos, foram incluídos em livros posteriormente. De

início, as crianças só puderam ter acesso a exemplares portugueses, o que distanciava muito a

realidade linguística dos padrões europeus de uma língua nacional. É no século XX que a

literatura, de maneira geral, expande-se, acompanhando o crescimento da população urbana, e

de uma elite ávida por leitura. De acordo com Martha, a produção em literatura infantil passa

de 8% da tiragem dos lançamentos editoriais na década de 1970 para 25% ao longo do final

do século XX (MARTHA, 2008,p. 09).

É a partir do momento que a criança passa a ser considerada diferentemente do adulto

que a produção infantil começa a alcançar algum espaço no cenário nacional. São, então, a

nova classe burguesa e a firmação do capitalismo que possibilitam uma estrutura familiar

centrada no núcleo composto de pai, mãe e filhos, considerando, a partir de então, os

interesses e necessidades da criança, que passa a ser reconhecida como merecedora de uma

atenção especial (ZILBERMAN, 1994). Nesse contexto, a infância ganha espaço e permite

uma união familiar, o que não significa, contudo, um legítimo reconhecimento das

especificidades da criança e, nesse sentido, a literatura infantil e a escola cumprem um papel

de controlar o desenvolvimento intelectual da criança e manipular suas emoções (ARROYO,

2011, p 75).

Assim, segundo Ariès, a literatura na escola surge com a função de incutir nas crianças

um determinado tipo de comportamento caro àquele tipo de sociedade, de modo que as

crianças fossem formadas para tornarem-se adultos exemplares e adaptados ao sistema,

reproduzindo a ideologia burguesa e propagando os bons exemplos no meio em que vivem

(ARIÈS, 1981, p. 11).

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Esse modelo social fundado pela República preconizava a instrução e o saber advindo

da prática de leitura para a formação do cidadão. É possível, pois, afirmar que a literatura

infanto-juvenil surge, de fato, através de um cunho didático, com a finalidade de ensinar

Língua Portuguesa aos alunos. A escola, então, cumpre o papel de inserir a literatura infanto-

juvenil na sociedade cultural da época, revelando um cunho pedagógico, de ensinamento por

meio dos textos. De acordo com Lajolo e Zilberman:

Além do modelo econômico deste Brasil republicano favorecer o aparecimento de

um contingente urbano virtualmente consumidor de bens culturais, é preciso não

esquecer a grande importância – para a literatura infantil – que o saber possa deter

no novo modelo social que começa a se impor. Assim, também as campanhas pela

instrução, pela alfabetização e pela escola davam retaguarda e prestígio aos esforços

de dotar o Brasil de uma literatura infantil nacional (LAJOLO, ZILBERMAN, 1984,

p. 28).

E é a escola que cumpre esse papel de fomentar o hábito de leitura nas crianças, o que,

por sua vez, permitiu o início de uma produção brasileira, ainda que por meio de traduções e

reescritura de clássicos por autores nacionais (LAJOLO; ZILBERMAN, 2007). Pode-se dizer

que poetas como Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu tiveram alguns escritos voltados para

um público infantil, mas não se pode afirmar que estes textos constituíam majoritariamente o

caráter das obras da época, até então representadas por uma grande variedade de estilos, desde

o virtuosismo parnasiano ao lirismo romântico.

Posteriormente, a fim de criar uma aproximação com a criança e a realidade nacional,

alguns autores passam a escrever suas histórias tendo como pano de fundo hábitos de higiene,

amor à pátria, obediência, laços afetivos familiares, etc. Como exemplo, é possível citar a

obra de Bilac e Bonfim do início do século XX. Publicado originalmente em 1910, o

exemplar "Através do Brasil", de Olavo Bilac e Manuel Bonfim, traz uma compilação de

histórias que têm a função de apresentar à criança uma diversidade saberes, passando por

lições de geografia, gramática, história e, sobretudo, lições de moral, como descrevem os

próprios autores:

Vejamos a lição de instrução moral. É mister começar o curso fazendo a criança

observar a sua situação moral no seio da família, - os laços e deveres de afeto que

ligam as pessoas de uma mesma família. Diz o livro de leitura na primeira página

"era a primeira vez que se separava dos filhos depois da morte da mulher...” Aí o

professor estudará com a criança as condições dessa família em particular, e as

condições de “família” em geral [...] estudará os deveres recíprocos dos diversos

membros de uma família – deveres nascidos de sentimentos naturais, tão intensos,

que levam muitas vezes os indivíduos à prática de verdadeiros sacrifícios, como os

que os pais fazem comumente pelos filhos (BILAC; BONFIM, 2000, p. 03).

No cenário da escola como divulgador da literatura infantil, cabe ao professor a tarefa

não só de organizar, mas também de escrever as antologias que se prestariam para o ensino de

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língua materna em sala de aula. A motivação da escrita de textos infantis por parte dos

professores surge da necessidade de ter em mãos um material genuinamente nacional, já que

grande parte da literatura vigente era material em língua estrangeira.

No que diz respeito ao projeto gráfico da época, poucas eram as ilustrações que

faziam parte dos textos de literatura infanto-juvenil. Quando estes apareciam, antecediam os

textos, tendo em vista que era a partir deles que se contava a história. As ilustrações tinham,

portanto, uma função didática, já que antecipavam o assunto, auxiliavam na memorização e a

compreensão dos poemas.

Cumpre ressaltar, neste ponto, o papel das ilustrações da época. Estas tinham uma

função de iconização, reiterando as figuras construídas no texto de personagens e suas

peripécias, concretizando nos desenhos as imagens que se formavam a partir da leitura. Ou

seja, os elementos visuais não somavam à leitura do texto, tampouco ofereciam outra

possibilidade de leitura através delas, mas serviam como recursos que concretizavam as

figuras verbais do texto (se o poema tratasse de um gato, aparecia um gato; se o tema fosse

uma casa, lá estava a casa antecipando o texto). Os apontamentos do projeto gráfico de

outrora serão importantes ao destacarmos o papel da ilustração em Orthof, posteriormente.

No âmbito dessa discussão, incorrem as questões sobre as quais tratam dos textos da

época para as crianças. O tema versava sobre os preceitos morais e éticos que eram ensinados

à criança, tendo em vista o caráter pedagógico, em que a exaltação à pátria, à família e aos

valores concebidos como certos pela sociedade da época eram os preceitos a serem ensinados

às crianças, de modo que estas tivessem, através dos textos, noções de “bons

comportamentos”.

O que se encontra, então, à época vigente, é uma literatura infantil em que um adulto

tem a voz no texto e representa estes valores morais que devem ser ensinados à criança. Ainda

que se simule a criança dentro da poesia, vê-se claramente que o direcionamento é o de

atitudes que os adultos esperariam que a criança tivesse. Sobre a característica da literatura

infantil, Sosa argumenta:

O que existiria, então, seriam certos valores, elementos ou caracteres, dentro da

expressão literária geral, escrita ou não para crianças, que responde às exigências de

sua psique durante o processo de conhecimento e de apreensão, que se ajustam ao

ritmo de sua evolução mental, e em especial ao de determinadas forças intelectivas

(SOSA, 1993, p.16, grifo do autor).

Assim, é possível apontar dois equívocos nos quais alguns escritores incorrem ao se

dirigirem ao público infantil, de um lado a puerilidade, ao aparentar simplicidade para

“aproximar-se” da mentalidade infantil, subestimando a criança e, de outro, o tom

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moralizador, segundo o qual a virtude é sempre recompensada, e o vício castigado. É a

presença de tais características, em muitas obras da produção literária para crianças, que fez

com que a literatura infantil fosse considerada, por muitos e por um longo tempo, um gênero

menor, subliteratura.

Além disso, a visão que se tinha da criança através dos textos era a de um ser ingênuo,

puro, inocente, uma perspectiva em que a criança representava todos os valores de candura e

bondade, distanciada dos adultos, seres já modificados pelo meio. A vivência, a experiência e

o cotidiano não faziam parte do universo das poesias infantis que circulavam no contexto

escolar.

Nessa poesia de cunho pedagógico, para continuar com o exemplo do mesmo autor

destacado acima, Olavo Billac, ressalta-se Poesias Infantis (1904), obra voltada para o

público infantil da época. O renomado escritor parnasiano dirige esta obra às escolas para que

se prestasse como livro de leitura escolar, feito, inclusive, por encomenda. O caráter da obra,

de maneira geral, também visava contribuir para a educação moral das crianças, através de

versos simples, sem muita complexidade. Segue exemplo abaixo retirado do livro citado:

A casa

Vê como as aves têm, debaixo d’asa O filho implume, no calor do ninho!... Deves amar, criança, a tua casa! Ama o calor do maternal carinho! Dentro da casa em que nasceste és tudo... Como tudo é feliz, no fim do dia, Quando voltas das aulas e do estudo! Volta, quando tu voltas, a alegria! Aqui deves entrar como num templo, Com a alma pura, e o coração sem susto: Aqui recebes da Virtude o exemplo [...] E, já homem, já velho e fatigado,

Te lembrarás da casa que perdeste,

E hás de chorar, lembrando o teu passado...

— Ama, criança, a casa em que nasceste! (BILAC, Olavo, 2009, p.85)

O texto acima consegue exemplificar bem o teor dos textos que circulavam a época.

Vê-se de maneira patente o tom moralizador de um adulto que escreve para uma criança,

como se desejasse que as ações descritas fossem cumpridas de maneira correta pelo público

leitor infantil. No texto, percebe-se uma construção isotópica que metaforiza a casa como o

lugar da segurança e do sagrado (“ninho”, “templo”), apontando a este narratário o lugar de

origem (“a casa em que nasceste”) e retorno (“quando volta das aulas e do estudo”. Não é à

toa que, para isso, o narrador utilize a metáfora inicial da ave, como aquela que, independente

do voo, sempre retorna ao ninho.

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O poema, de fato, como propõe o próprio autor por meio desta obra, possui versos

simples e, embora trate de uma temática que a princípio parece se aproximar muito de uma

realidade cotidiana – versa sobre a casa, os estudos –, o faz de maneira a tomar o ambiente da

casa de maneira sagrada e respeitosa “aqui deves entrar como um templo” e um local onde se

devem aprender os valores morais “aqui recebes da Virtude o exemplo”. Vê-se, inclusive, que

esse valor a ser buscado pelo sujeito é o da justa medida nos comportamentos, em que tanto o

excesso quanto a falta são socialmente recriminados e o meio termo é o ideal, como se pode

perceber no modo como o sujeito é instruído a retornar à casa, com o “coração sem susto”.

Ademais, a casa é representada por esse espaço onde todos os valores da benevolência se

encontram: o exemplo, a virtude, a felicidade, o calor maternal, a pureza.

Além disso, a voz marcada do adulto que encarna a autoridade ressoa,

fundamentalmente, por meio dos imperativos “vê”, “ama”, “volta”, “pede”, que demarcam as

ordenações a que a criança estava submetida. Nota-se que, em nenhum momento, há vestígios

da voz da criança expressando seu ponto de vista sobre a casa, mas este é sempre por meio de

um olhar hierárquico, que denota a perspectiva de um adulto. Não há, portanto, uma polêmica

marcada por pontos de vistas diferentes, mas sempre uma mesma perspectiva, por meio de um

observador com um ponto fixo a partir do qual a cena é descrita, orientando e julgando os

valores a serem buscados.

Nesse sentido, ao invés da traquinagem, desprendimento, alegria, os risos e as

brincadeiras, que são características frequentemente atribuídas ao universo infantil atual, dão

espaço, no texto, a um tom melancólico, triste e sofrido “e hás de chorar, lembrando o teu

passado”. A casa como um ambiente de travessura, onde a criança desenvolve sua

criatividade, também não aparece em Olavo Bilac.

A breve análise desse poema de Bilac importa, à medida que representa, nesse

contexto, o que há de mais conservador na poesia infantil brasileira, tomando-o como um

marco de um período em que o tom pedagógico, a imagem de criança como um miniadulto e

sua passividade sobressaem no texto literário.

É certo que, por mais transformações que a literatura infantil vá sofrer ao longo dos

tempos, muito desse perfil de criança inscrito em Bilac ecoará ainda na literatura

contemporânea, já que, segundo Hunt, “o didatismo (no sentido de doutrinação deliberada ou

pedantismo localizado) está longe de estar morto na moderna literatura infantil, e, talvez por

ser tanto ineficaz quanto óbvio, tende a se disfarçar em modos de contar e controlar (HUNT,

2010, p.173)”. A poesia de Bilac, nesse sentido, deverá marcar o que se nomeará de literatura

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infantil tradicional, enquanto a literatura de que faz parte Sylvia Orthof será compreendida

como contemporânea.

Destaca Zilberman (2007, p.54) que, somente com Monteiro Lobato, passa a haver

uma introdução do elemento local e contemporâneo, e a literatura passa a contar, também,

com personagens infantis. A obra A menina do Narizinho Arrebitado (1921) ilustra bem

mudança no paradigma das obras voltadas para o público infantil, como destaca Coelho:

Hoje já é fácil provar que coube a Monteiro Lobato a fortuna de ser, na área da

Literatura Infantil e Juvenil, o divisor de águas que separa o Brasil de ontem e o

Brasil de hoje. Foi ele, sem sombra de dúvida que, fazendo a herança do passado

submergir no presente, encontrou o novo caminho criador que a Literatura Infantil

estava necessitando. Rompe, pela raiz, com o racionalismo tradicional e abre as

portas para a criatividade que precisava ser liberada... (COELHO, 1981, p. 354)

A inovação da obra de Lobato passa pelas questões da oralidade, uma vez que ele dá

voz aos múltiplos narradores e, portanto, seus registros linguísticos, bem como o aspecto

lúdico e existencial, passeando pelo lúdico e o real, fantasia e imaginação, permitindo uma

maior liberdade de criação e reflexão. Mais ainda, Lobato retira a criança da postura passiva,

convocando-o à participação e construção da narrativa, como bem destaca Zilberman (2003):

Em Monteiro Lobato, o processo de leitura não pode ser desvinculado da retomada

do discurso por parte do leitor. Resgata-o de uma posição passiva e transforma-o em

indivíduo atuante, seja quando da recepção de narrativas, seja quando estas

provocam nele a produção e a escrita. A imobilidade em que a criança é jogada no

sistema educacional, a cujas linhas gerais se submete o ensino da leitura e sua

prática na sala de aula, é aqui implodida. E a criança recupera a palavra autônoma e

questionadora que lhe faltava, tornando-se proprietária dela (ZILBERMAN, 2003, p.

112).

Marca bastante típica dos livros infantis de 1960 para cá é a incorporação de um

simulacro da oralidade, tanto na narrativa quanto na poesia. A tentativa de fazer uso de uma

linguagem mais coloquial é outra forma de a literatura para crianças aproximar-se tanto das

propostas literárias assumidas pelos modernistas de 22, quanto da herança lobatiana. Essa

representação de uma oralização do discurso nos textos para crianças torna-se bastante

coerente com o projeto de trazer para as histórias infantis o heterogêneo universo de crianças

marginalizadas, de pobres, de índios. Da mesma forma que suas personagens e enredos

deixaram de ser exemplares do ponto de vista dos valores dominantes, também a linguagem

distanciou-se do padrão formal culto, indo buscar na gíria de rua, em falares regionais e em

dialetos sociais a dicção adequada aos novos conteúdos.

Ainda segundo Zilberman, a partir de Lobato, a literatura infantil sofre algumas

transformações, considerando, especialmente, as mudanças ocorridas no cenário político-

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econômico brasileiro, com a ditadura de Vargas, a II Guerra Mundial, a transferência da

capital do Rio de Janeiro para Brasília, o governo populista de Vargas e o projeto

desenvolvimentista de João Goulart (ZILBERMAN, 2003 p. 25). Nas décadas de 40 e 60 há

uma intensa expansão da literatura infantil, que passa a contar com uma variedade de temas e

com um espessamento do público leitor. Crescem, então, as editoras e o mercado voltado para

as produções de literatura infantil ganha corpo, agora com uma gama extensa de personagens

e espaços, que servem como pano de fundo para as histórias.

É mesmo a partir da década de 70 que há um grande impulso para a produção de obras

infanto-juvenis por meio de autores como Fernanda Lopes de Almeida, Ruth Rocha, Ana

Maria Machado, Stella Carr, Ziraldo, dentre outros brilhantes escritores que incorporaram ao

cenário da literatura infantil o lúdico, a criatividade, a inventividade e a busca pela linguagem

e hábitos próprios dos brasileiros, elementos tão caros a Monteiro Lobato. O real e o

imaginário, então, se fundem, transbordando a leitura de um realismo mágico, em que não se

consegue limitar barreiras entre um e outro.

Zilberman e Lajolo destacam que nessa etapa ocorrem transformações na literatura

infantil nacional, que passa a assumir uma postura contestadora, apontando os problemas e as

disparidades sociais: “Essa tendência contestadora se manifesta com clareza na ficção

moderna, que envereda pela temática urbana, focalizando o Brasil atual, seus impasses e suas

crises” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2007, p.125). Ganham espaço, então, os temas de

violência, exclusão social, preconceito, separação, etc.

Já na década de 80, os livros de literatura infantil permeiam as escolas e alguns autores

se firmam, como é o caso Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Sylvia Orthof, Ziraldo, Maria

Heloísa Penteado, Elvira Vigna, Tatiana Belinky, Ciça Fittipaldi, José Arrabal, Márcia

Krupstas, Ana Maria Bohrer, Terezinha Alvarenga. A liberdade de expressão tornou possível,

então, uma maior gama de trabalhos voltados para a reflexão e crítica da literatura infanto-

juvenil, analisando a qualidade estética das obras oferecidas aos leitores.

Deve-se considerar, no entanto, que muitos autores (COELHO, 1984; CUNHA, 1997;

LAJOLO; ZILBERMAN, 1986, 1987; PERROTTI, 1986; entre outros) atribuem a pouca

importância dos textos de literatura infantil pela crítica literária em virtude do questionamento

da real autonomia desses escritores, uma vez que, na década de 80, devido à necessidade de

fazer circularem os textos, muitos escritores escreviam sob encomenda, e muitos dos temas

tratados eram sugestões de editoras.

No rastro das tendências da literatura infantil contemporânea, pode-se dizer que há

uma propensão à busca pelas temáticas do cotidiano das crianças, considerando, agora, a

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representação do ponto de vista da criança, compartilhado no texto com o do poeta. A criação,

então, de uma outra realidade, que não aquela tradicional, cria um apelo com esta criança do

mundo contemporâneo. Martha, em estudo sobre a temática que perpassa as obras voltadas

para a criança na atualidade, indica que a infância já não é mais vista como preparação para a

maturidade, mas ganha destaque agora como uma etapa decisiva da vida. Explica a autora que

as personagens não são construídas como ainda não-adultos ou como já-não-mais-

crianças, são portadoras de uma identidade própria e completa. É verdade também

que se envolvem em situações que as obrigam a refletir e a reformular conceitos que

possuem a respeito de si mesmas e do mundo (MARTHA, 2008, p.16).

No entanto, ainda que se considere o ponto de vista da criança na produção para

crianças na atualidade, é possível destacar que o livro, quando se torna objeto de consumo, faz

aumentar consideravelmente o número de títulos disponíveis no mercado, até mesmo pelas

encomendas de livros feitas pelas editoras, aspecto citado logo acima. Assim, a literatura

infantil, como outros gêneros, não escapa à visão mercadológica do processo, construindo,

inclusive, uma imagem distorcida de criança, seus anseios e sua identidade (LAJOLO,

ZILBERMAN, 2007, p.18).

A fim de demarcar as fronteiras entre o que se considera como uma literatura

tradicional e um viés mais contemporâneo, seria possível estabelecer um paradigma entre o

poema de Olavo Bilac e o de Vinícius de Moraes, ambos sob o mesmo título – A casa – a fim

de compreendermos a mudança de enfoque da poesia infantil ao longo das décadas:

A casa

Era uma casa Muito engraçada Não tinha teto Não tinha nada Ninguém podia Entrar nela não Porque na casa Não tinha chão Ninguém podia Dormir na rede Porque na casa Não tinha parede Ninguém podia Fazer pipi Porque penico Não tinha ali Mas era feita Com muito esmero Na Rua dos Bobos Número Zero (MORAES, 1970, p.74).

Ao traçarmos um breve comparativo entre os dois textos, é possível perceber que a

visão da criança de Olavo Bilac e de Vinicius de Moraes é diferente. Ainda que sob uma

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mesma figura de base – a casa –, os dois textos constroem ideologias diferentes. Pelo conceito

de análise imanente em semiótica, as condições de produção estão inscritas no próprio texto e,

observadas as singularidades dos dois textos, é possível apontar o contexto sócio-histórico no

qual eles estão inseridos e que, portanto, marcam as características da literatura produzida no

início e no final do século XX. A casa que outrora representava um convite para o retorno,

agora, de maneira oposta, é o lugar onde não se pode entrar (“ninguém podia entrar nela

não”), ao mesmo tempo em que os valores do exemplo e da benevolência dão lugar agora à

irreverência “era uma casa muito engraçada”.

A reiteração de vocábulos que marcam a negação “ninguém”, “não”, indicam agora

um plano isotópico que instaura a ausência, reiterando a falta como um valor que antes, em

Billac, era preenchido de valores, julgado como a justa medida. Nesse sentido, nota-se agora

uma complexificação desses valores desejados pelas crianças, não mais a doutrina de uma

rotina de trabalho, estudo e retorno à casa, mas agora a construção de um lugar pleno de

significação, em que os valores são relativizados e construídos em interação com esse sujeito.

Além disso, nota-se, em Moraes, a incorporação da linguagem da criança,

compartilhando com ela esse lugar de prestígio na poesia (“fazer pipi”, “rua dos bobos”). O

que antes era o espaço para univocal, em que a voz do adulto marcava o tom hierárquico e

dominante, transforma-se em um ambiente polifônico, em que a voz da criança aparece não

pelo olhar do adulto, mas por meio de uma perspectiva própria, que instaura o lúdico e a

imaginação. A casa, templo de virtuosismo em Bilac, agora com Moraes se torna um universo

fantástico, que foge a uma representação tradicional de uma casa para beirar o surrealismo

quando se busca a concretização da imagem de uma casa que não tem nada.

Considerando os conceitos de Zilberberg (2006b), poder-se-ia também destacar a

oposição em Bilac e Moraes a partir do espaço, tomando o fechado, como um movimento de

entrada, de concentração em Bilac; e o escancarado, como aquilo que não se pode fechar, na

canção de Vinícius de Moraes. A casa, a partir desse último conceito, é o mundo, uma vez que

não há limites de portas, janelas ou paredes.

Explora-se, então, a noção do real, desenvolvendo na criança uma outra leitura a partir

do cotidiano que a cerca. Lajolo e Zilberman defendem que:

O ponto de encontro entre o poeta e a criança, na poesia infantil contemporânea,

ocorre ou pela tematização do cotidiano infantil ou pela adoção, por parte do autor,

de um ponto de vista que compartilha com seus pequenos leitores a

anticonvencionalidade, quer da linguagem, quer do recorte de realidade, como

sucede, por exemplo, no poema “A casa”, de Vinícius, que foge à representação

mimética do real, criando um universo fantástico e quase surrealista (Lajolo;

Zilberman, 2007, p. 146).

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Não é, entretanto, por inspirar-se no cotidiano nem por assumir a ingenuidade do olhar

infantil perante o mundo que a moderna poesia brasileira para crianças renuncia à

profundidade. Nesse sentido, ela incorpora bem outra lição modernista: a de que o lirismo

mais profundo pode ser trabalhado através dos temas mais prosaicos e mais cotidianos. Mas

atá agora não definimos o que seria este lirismo e de que forma ele caracteriza o texto de

Orthof como literário.

Fiorin, ao analisar o objeto artístico tomando como base a obra de Greimas, Da

Imperfeição (2002), descreve a estesia como "fratura nos acontecimentos cotidianos,

enfraquecimento do sujeito, o estatuto particular do objeto", de modo que a experiência

estética refere-se a um "evento extraordinário enquadrado pela cotidianeidade" (FIORIN,

1999, p. 103). A fim de distinguir o texto literário do utilitário, Fiorin destaca que a função

estética faz com que o primeiro se enquadre no polo da poiése, no sentido de que apresenta

relevância do plano da expressão, intangibilidade da organização linguística, criação de

conotações, desautomatização, plurissignificação (ibid, p. 113).

Já Diana Luz Pessoa de Barros, considera a necessidade de o discurso poético ser

figurativo, tendo em vista que são as figuras do discurso que conferem ao texto o caráter

visual, olfativo ou tátil (BARROS, 1999, p. 126). Além disso, aponta a autora que, em relação

à manifestação textual, no discurso poético, o sensível ocorre como expressão e conteúdo,

criando uma singularidade a partir de sua relação.

Todas as características apresentadas pelos dois autores certamente fazem o texto de

Orthof aproximar-se ao que se chama de poiése ou discurso poético. Os recursos analisados se

propõem a examinar os traços que definem o lugar do literário em Orthof, no sentido de serem

capazes de produzir nos sujeitos a fratura ou a fusão estética, de que falam Fiorin e Barros.

Corroborando a função estética do corpus, observar-se-á como o modo de dizer se mostra "tão

ou mais importante do que se diz" (FIORIN, 1999, p. 113).

É nesse lirismo que se enquadra a autora pesquisada aqui, Sylvia Orthof, e, para

compreender melhor o objeto de pesquisa escolhido, cumpre, a seguir, traçar algumas linhas

sobre o papel de Sylvia Orthof na literatura nacional, passeando por algumas de suas obras,

observando o perfil desta autora construído por meio dos seus textos.

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1.1 ORA FADA, ORA BRUXA2: OS ENCANTOS DE ORTHOF

Sylvia Orthof nasceu em 1932, filha de pais austríacos. Começou no teatro muito

cedo, tendo atuado como dramaturga, produtora teatral, diretora. Ambientada no meio

artístico, também foi atriz, desenvolveu teatro de bonecos com crianças e pescadores na

Bahia. Foi professora de teatro na Universidade de Brasília e assumiu o cargo de

coordenadora do Teatro Sesi. Aos 40 anos, inicia sua aventura na literatura e sua primeira

peça “A viagem de um barquinho” (1975) é premiada e seu texto teatral é publicado, tendo

sido esta sua porta de entrada para o mundo da literatura infantil. Fundou neste mesmo ano a

Casa de Ensaios Sylvia Orthof, dedicada a espetáculos infantis. A convite de Ruth Rocha,

passa a escrever histórias infantis para a revista Recreio, marcando definitivamente seu nome

dentre as grandes escritoras de livro infantil. Em 1981, publica a primeira de suas mais de 100

obras infanto-juvenis, de uma brilhante trajetória, que passeou pela prosa, poesia e pelo teatro

infantil.

Orthof morre aos 65 anos e, mesmo com uma carreira de escritora iniciada

tardiamente, foi uma autora premiada, tendo recebido o prêmio Jabuti pela obra “A vaca

mimosa e a mosca Zenilda” (1982), prêmio de melhor livro para a criança da FNLIJ

(Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) com a obra “Os bichos que tive” (1983) e 13

títulos premiados com o selo Altamente Recomendável para Crianças pela Fundação Nacional

do Livro Infantil e Juvenil, e outros tantos pelo reconhecimento da qualidade de suas obras.

A diversidade de títulos, personagens, apropriação de variados temas e gêneros

diversos são riquezas inquestionáveis de sua obra. Além disso, o humor e a irreverência são

marcas do texto de Orthof, como descreve Martha, ao comentar a obra de Orthof:

Acreditando que toda tristeza pode ter uma risada dentro, a escritora se vale, com

persistência, dos recursos desencadeadores do riso para recriar situações absurdas

que, ao provocarem a diversão, permitem, ao mesmo tempo, que os leitores reflitam

sobre a realidade que os circunda (MARTHA, 2004, p. l86).

A autora se vale do cômico e do ridículo para desmontar estereótipos, questionar o

mundo dos adultos, a autoridade constituída e as instituições, inclusive a escola, expondo as

fragilidades da autoridade autoritária, desmontando costumes e hábitos cotidianos (DUARTE,

2007). Ressalta-se esse tom subversivo mesmo em épocas de ditadura, tendo em vista que

muitos de seus textos dramáticos foram publicados entre 1970 e 1979 e, dentro dessa mesma

2 Título do livro organizado por Vera Tietzmann, em homenagem aos 10 anos da morte de Sylvia Orthof,

publicado pela Cânone Editorial, em 2006.

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cultura da ideologia transgressora, outras escritoras marcaram seu espaço na literatura infantil,

como Ruth Rocha e Ana Maria Machado.

Ainda enfrentando temas muito duros como a exclusão, as injustiças sociais e a

importância da liberdade, Orthof encanta e mexe com o imaginário das crianças, conseguindo,

como poucos, essa aproximação com o público leitor, definindo de maneira singular seu

estilo. A empatia criada por meio da exploração do lúdico e do riso, bem como o modo de

dizer, seja pela exploração de marcas da oralidade, ou pelos recursos utilizados em seus

textos, fazem com que sua obra seja reverberada até os dias de hoje, de diferentes maneiras,

como se observará adiante.

1.1.1 Ecos de Orthof na atualidade

Sylvia Orthof ainda conta, nos dias de hoje, com uma ampla recepção tanto no

mercado editorial, quanto no meio acadêmico. Sua obra ainda é citada, pesquisada e reeditada

por diferentes editoras no mercado nacional. Como exemplo, podem-se citar as obras Galo,

galo, não me calo, publicado originalmente em 1992 e atualmente em sua sexta edição pela

Formato; Doce, doce, quem comeu regalou-se, editado pela Paulus Editora e em sua quarta

edição; Fraca, fracola, galinha d’Angola, em sua sexta edição pela Ática; Uxa, ora fada, ora

bruxa, em sua oitava edição pela Nova Fronteira, e outras tantas obras que se poderiam

elencar.

Tamanho número de reedições por editoras diferentes mostra a grande demanda das

obras de Orthof pelo público e, consequentemente, sua boa circulação pelo mercado editorial.

Além disso, as reedições vêm acompanhadas, muitas vezes, de novas ilustrações que, em

muitos casos, atribuem ressignificações ao texto original, apontando outras possibilidades de

leitura, especialmente em virtude de novos projetos gráficos. Cabe ressaltar que muitas

ilustrações foram feitas, originalmente, pela própria autora, por seu marido, Tato, ou por seu

filho, Gê Orthof (Moqueca, a Vaca, 1999; Luana adolescente, a lua crescente,1989; Trem de

pai, uai ,1989; Guardachuvando Doideiras,1992; Enferrujado, lá vai soldado,1984, entre

outras). O fato é que, diante de tantas reedições, mesmo o traçado simples da autora, chamado

por ela mesma de “rabiscos”, de seu marido ou filho, supera muitas ilustrações atuais de sua

obra, que entendem o projeto gráfico diverso do texto e não dialogam com a obra, conforme o

texto original.

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Isso fica claro quando se comparam as edições de Guardachuvando Doideiras, a

primeira edição de1992, da Editora Atual, com ilustrações de Tato, e a edição de 2012, da

mesma editora, mas com ilustrações de Constança Lucas:

(Figura 1, ORTHOF, 1992, p.32) (Figura 2, ORTHOF, 2012, p.30)

O papel das ilustrações e os elementos visuais não serão objetos de análise, no entanto,

não podem ser desconsideradas as diferenças observadas entre as duas edições, especialmente

no que diz respeito à leitura do verbal em conjunto com o visual. Na primeira edição, o papel

está em branco, de maneira a concretizar visualmente o esquecimento e o "branco" do

narrador de 99 anos. Já na segunda edição, tal fato é totalmente desconsiderado pela

ilustração, e aparecem cores diversas e formas, inclusive com a figura de um papagaio.

Sem dúvidas, como se comprovou acima, as ilustrações são de fundamental

importância para a construção de sentido das obras, mas fogem aos limites desta pesquisa e,

portanto, não serão consideradas como exame das estratégias argumentativas, que enfocará

especialmente o plano da expressão verbal.

Além das reedições das obras, o nome de Orthof ressoa no contexto acadêmico. São,

ao menos, 11 pesquisas de trabalhos de conclusão de mestrado em Língua Portuguesa,

Literatura ou Educação, cujas abordagens variam desde a pesquisa em literatura infantil,

passando pelas análises fundamentadas pela semiótica, semântica e pragmática, até o diálogo

com outras escritoras (RAMPAZZO, 2003; BRANDÃO, 1994; MORAES, 1993). Ao menos

três artigos sobre a autora, "O universo lúdico de Sylvia Orthof", de Vera Maria Tietzmann

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Silva, publicado em Literatura Infanto-juvenil: Prosa & Poesia, organizado por Ana Maria

Lisboa de Mello, Maria Zaira Turchi e Vera Maria Tietzmann Silva, publicado pela UFG em

1995; "Silvia Orthof: o bom humor na literatura infantil", de Alice Áurea Penteado Martha,

publicado por Cuatrogatos, revista de literatura infantil n° 9, em 2002 e "O tempo, de óculos,

requebra numa bengala: Sylvia Orthof e a velhice", de Alice Áurea Penteado Martha,

publicado em Leitura e Literatura infanto-juvenil, organizado por João Luis C. T. Ceccantini

em 20043. Em todos, ganha importância para a análise o tom lúdico e o humor explorados

pela autora na maioria de suas obras. Há, também, um livro publicado em homenagem aos 10

anos da morte de Orthof, que inclusive intitula este subitem da tese, chamado Ora fada, ora

bruxa. Estudos sobre Sylvia Orthof (2006), organizado por Vera Tietzmann Silva, publicado

pela Cânone Editorial, uma coletânea de textos produzidos por alunos concluintes do Curso

de Letras da Universidade Federal de Goiás.

Para ratificar a amplitude de recepção dos textos de Orthof em diferentes meios de

circulação, dessas pesquisas de conclusão de mestrado, pode-se citar o projeto de extensão de

formação de leitores literários da Universidade do Estado da Bahia, que atua em hospitais,

escolas e em assentamentos do MST com contação de histórias para a comunidade, e que,

posteriormente, transformou em dissertação de mestrado, dada a preferência de crianças

hospitalizadas pela literatura de Orthof, conforme conclui Glaucia Silva de Moura em seu

trabalho defendido em 2013. Moura aponta que um dos sucessos da recepção de Orthof nos

hospitais devia-se, especialmente, “às situações inusitadas vividas pelas personagens e a

singularidade da escrita da autora, que confessa ‘acriançar-se’ em palavras enquanto

escreve” (MOURA, 2013, p. 77). Ressaltamos na conclusão de Moura a “singularidade da

escrita”, tendo em vista que, ao longo da pesquisa, observaremos como essa característica, a

que chamaremos de estilo, importa na construção da imagem da autora em seus textos para

levar o outro a crer nos valores instaurados no texto.

Além da escrita, a obra de Orthof ainda se propaga por meio da Companhia Teatral

Livro Aberto, que encena somente textos da autora, e nas mídias digitais por meio de um site

do Google, criado em 2010 por Maria Isabel Iorio, aluna de graduação do curso de Letras da

PUC-Rio, e de uma página no Facebook.

Para melhor compreender, então, o alcance da obra de Sylvia Orthof, esta pesquisa

propõe mais um olhar sobre seus textos, ainda na esperança de que não se esgotem as

possibilidades de leitura sobre eles. À dimensão da literatura da autora, busca-se somar os

3 Resultados obtidos a partir de uma pesquisa no Google, acesso em 27de setembro de 2016.

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apontamentos aqui feitos, construídos a partir do olhar sobre a argumentação em seus textos,

o que se fará nas linhas abaixo.

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ARGUMENTAÇÃO

Como fundamento para a pesquisa empreendida, faz-se necessário, a princípio, um

breve percurso histórico dos estudos da Argumentação e sua importância na construção de um

pensamento teórico-filosófico que fundamenta os estudos da Nova Retórica e de

Argumentação. Assim, nas linhas abaixo buscar-se-á fazer um levantamento de alguns

conceitos que consolidaram o estudo da argumentação, expondo alguns preceitos importantes

para uma compreensão do que é argumentar.

2.1 ESTUDOS SOBRE ARGUMENTAÇÃO

Para Aristóteles, a retórica, que é a arte da argumentação, tem em vista a criação e a

elaboração de discursos com fins persuasivos. O filósofo considera a retórica como a arte de

falar bem e de persuadir, já que se ocupa dos raciocínios não necessários, mas preferíveis, no

sentido de orientar para uma conclusão do provável, possível, melhor, etc. (FIORIN, 2014, p.

25). Assim, no domínio da retórica, os discursos devem persuadir o auditório de maneira a

levá-lo a considerar verdadeiras determinadas conclusões.

Para tanto, as estratégias argumentativas valem-se de provas que, para Aristóteles, são

divididas em técnicas (evidências técnicas, testemunhos e contratos escritos) e não técnicas

(meios de persuasão criados pelo orador). Estas, por sua vez, são divididas em três tipos de

argumentação: a produzida pelo caráter do orador, a imagem que o orador transmite por

intermédio do seu discurso – o éthos; a argumentação por meio da emoção produzida pelo

orador no auditório – páthos; e a produzida pelo discurso, o caráter verdadeiro ou provável

dos argumentos, o conteúdo proposicional dos enunciados – logos. Pelas definições de

Aristóteles,

Persuade-se pelo caráter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a

impressão de o orador ser digno de fé [...]. Persuade-se pela disposição do ouvinte

quando estes são levados a sentir emoção por meio do discurso [...]. Persuadimos,

enfim, pelo discurso, quando mostramos a verdade ou o que parece verdade, a partir

do que é persuasivo em cada caso particular (ARISTÓTELES, 2012, p. 15).

Além das provas retóricas, Aristóteles traz à luz dos estudos retóricos os princípios ou

fontes de argumentação chamados topoi ou tópicos. Os topoi podem se relacionar às artes e às

ciências, sendo, portanto, apropriados ao gênero do discurso oratório, ou caracteristicamente

retóricos, relacionando-se a todos os gêneros do discurso. Aqueles se dividem dentre os que

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têm como objeto persuadir como útil, justa, bela ou de qualidade contrária, enquanto estes

definem-se como os elementos preparatórios da argumentação principal, que tem como objeto

a persuasão como possível ou impossível, real ou irreal, com maior ou menor nível de

grandeza (ARISTÓTELES, 2012, p. 20). Além desses, Aristóteles ainda menciona outros,

relacionados aos lugares comuns, como fórmulas de seleção e estratégias de argumentação,

que seriam os argumentos prontos, de conteúdo fixo, manifestado por figuras recorrentes.

Na tradição latina, grandes oradores entraram para a história com os discursos

construídos de modo a provocar a adesão do auditório, especialmente por meio da relação

entre a eloquência, a arte de bem falar, e a Retórica, como afirmava Cícero: "assim, não é a

eloquência que nasce da retórica, mas a retórica que nasce da eloquência" (CICÉRON, De

l’orateur, I, XXXII)4. Nesse sentido, a retórica opera na antiguidade clássica como o poder da

palavra sobre as pessoas (PETERLINI, 2001, p. 120), se considerarmos, inclusive, a raiz da

palavra artificium, que remete à perícia, conhecimento técnico, habilidade, temos que o

grande orador é esse que, munido dessa habilidade, opera a persuasão e o convencimento dos

espíritos.

O auditório também aparece na tradição latina como fundamental no processo de

persuasão, tendo em vista que a partir de sua reação, sua adesão ou recusa ao discurso do

orador, este pode modificar sua fala, a fim de atingir seu objetivo. Em Partitiones Oratoriae

(1831), Cícero inicia seu filho na arte da retórica, explicando-lhe sobre a arte do discurso,

ensinando-o a ajustar-se à linguagem do ouvinte: "Então, o ouvido do auditório é guia ao

orador prudente e sábio, aquilo que é rejeitado, deve ser mudado" (CICERONIS, Oratoriae

Partitiones, V, p. 573)5.

Barthes, na brilhante edição da revista Pesquisas em retórica (1975) aponta para a

distinção entre a retórica de Aristóteles e a retórica ciceroniana, no sentido de que Cícero

adapta a retórica de Aristóteles ao contexto de Roma, bem como comanda um

aperfeiçoamento do estilo, por meio do desenvolvimento da elocutio, que se define pela ação

de falar, pela maneira de se exprimir, arte cara aos oradores da antiguidade latina, que

moviam povos e motivavam grandes transformações na política por meio do discurso

(PETERLINI, 2001, p.125). A ênfase na elocutio é um legado dos estudos de retórica na

modernidade, já que, por muito tempo, as pesquisas retóricas se restringiram ao estudo das

4 "sic esse non eloquentiam ex artificio, sed artificium ex eloquentia natum" (tradução nossa). 5 "Nam auditorum aures moderantur oratori prudenti et prouido; et quod respuunt immutandum est"

(tradução nossa).

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figuras, relacionadas ao esmero formal da estrutura do discurso, como se observará mais

adiante.

É incontestável, portanto, o interesse, na Antiguidade Clássica, com a retórica e, por

consequência, com a argumentação, tendo em vista que persuadir é parte do processo

argumentativo. O convencimento, o fazer crer, a motivação que leva o outro a pensar / agir

conforme as pretensões de um orador que domina o discurso e controla-o de acordo com a

disposição dos ouvintes foram questões que fizeram parte conceito de retórica e argumentação

que se desdobrou ao longo do tempo, sofrendo modificações e novas reformulações.

De acordo com Reboul, a valorização de um conceito absoluto de verdade fez com

que, na Idade Média, a retórica perdesse espaço no cenário político-filosófico mundial,

reafirmando-se, apenas, no discurso moral da Igreja (REBOUL, 2004, p.79). Para Reboul, a

retórica se modifica ao longo da Idade Moderna, sobretudo com o impulso da racionalidade

científica, se esvaziando deveras da concepção do discurso com vistas a persuadir, restando a

função de ornamento da língua, especialmente no âmbito da poesia (REBOUL, 2004, p. 81).

Plantin (2008, p. 19-21) também afirma que, na virada dos séculos XIX e XX, a

retórica, entendida pelo autor como a utilização estratégica de um sistema significante e

construída por meio dos topoi, materializados pelos fatos discursivos complexos de lógica, de

estilo e de afetos, é invalidada como método, sendo excluída dos currículos acadêmicos.

Afirma o autor que a retórica só será retomada posteriormente nos anos 1950, na literatura, no

direito e na propaganda pós-Segunda Guerra Mundial e, em seguida, sob a perspectiva do viés

linguístico, em 1970, com Austin e Anscombre.

Sobre essa modificação da perspectiva da retórica como componente do discurso,

Fiorin (2014, p. 14) destaca que, depois de um sucessivo declínio da retórica, em meados do

século XX, surge a linguística como ciência no bojo das discussões sobre o discurso como

modo de produção de um ponto de vista e do papel da individualidade e da originalidade na

linguagem. Iniciam-se os questionamentos sobre a neutralidade da ciência, considerando a

interpretação dos dados como um elemento discutível. As questões relativas à subjetividade

da linguagem começam a, novamente, dar lugar ao cenário da persuasão e do convencimento

a fim de aclarar e fazer luz a novas ideias. É nesse contexto que Emile Benveniste inaugura os

conceitos de subjetividade na linguagem.

Fiorin destaca algumas grandes contribuições para o estudo da argumentação, como as

de Benveniste, com seus apontamentos sobre as intermediações entre língua e fala,

considerando a subjetividade e a enunciação. Entre a abstração da língua e a materialidade da

fala, há o enunciado, que instaura as categorias de tempo, pessoa e espaço e a subjetividade na

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linguagem, construída no momento em que se diz "eu", ou seja, o momento da enunciação. É

a partir dos estudos de Benveniste que se começa a perceber o texto não como uma sequência

de frases, mas como uma unidade maior – o discurso, percebido como a atividade social da

linguagem (FIORIN, 2014, p. 14).

Além de Benveniste, Fiorin também aponta o lugar de Jackobson em relação aos

elementos retóricos como processos cognitivos, considerando os eixos paradigmáticos e

sintagmáticos de Saussure no que diz respeito à similaridade e contiguidade. Esses dois

conceitos se repartiriam nos tropos da metáfora e da metonímia, fundando uma semântica de

base, a geração do sentido através desses dois recursos de construção do pensamento. Ao

fazer referência à antiga elocutio de Aristóteles, a metáfora e a metonímia deixam de ocupar o

lugar entendido por muito tempo como alegoria ou mero adereço para tornar o discurso mais

belo ou mais requintado para tornarem-se processos de encadeamento de todo o tipo de texto,

de modo a servirem de base para o estudo de um conjunto de tropos e de figuras (FIORIN,

2014, p. 15).

Por fim, Fiorin cita os esforços de Roland Barthes de unir a retórica clássica aos

estudos modernos da ciência da linguagem, por meio de seu estudo como método de análise

da cultura de massas e, por fim, tratá-la como uma ciência revolucionária. O autor aponta que

Barthes, assim como outros escritores que retomam a retórica, condicionam-na à arte e à

técnica, contemplando, sobretudo, o estudo das figuras e dispensando a “retoricidade geral”

da linguagem. Nesse sentido, além da retomada da retórica clássica nos estudos

contemporâneos, surgem estudos que contemplam a retórica como uma condição de produção

de discurso. É o que faz, então, a pragmática (FIORIN 2014, p. 18).

Além desses estudiosos, é possível ainda destacar as importantes contribuições de

Austin, Ducrot, Perelman e Olbrechts-Tyteca, também citados por Fiorin, e Plantin para o

estudo da argumentação. Nascido na filosofia da linguagem, os atos de fala de Austin (1990)

trazem uma importante contribuição aos estudos de linguagem ao considerar a linguagem

como ação. Seus postulados sobre os fatores linguísticos e extralinguísticos que cooperam

para a produção de sentido fundamentaram as bases da pragmática e dos estudos de discurso.

Austin diferencia, a princípio, os atos de fala entre constativos e performativos, sendo aqueles

representados por declarações factuais e estes como realizações de ações de falas, em

circunstâncias específicas e por falantes autorizados. O célebre exemplo “Eu os declaro

marido e mulher” ilustra bem os atos performativos, já que para o processo de significação do

enunciado importam fundamentalmente o contexto de produção e a autoridade daquele que

diz, elementos indispensáveis no teor de verdade da sentença (AUSTIN, 1990, p. 22).

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É possível relacionar a teoria dos atos de fala de Austin às propriedades de argumentar

e demonstrar. Há, pois, uma diferença entre demonstrar fatos e exemplos construídos

discursivamente como verdadeiros para convencer o outro, por meio de frases constativas, e

argumentar, utilizando, para tanto, outros meios, como a ameaça, a sedução, a provocação,

etc. Estes poderiam aproximar-se dos atos performativos, no sentido de explorar outros

recursos que não somente o enunciado em si, mas o lugar de fala do enunciador, a relação

estabelecida entre ele e o enunciatário, a imagem construída de ambos, etc.

Austin reformula, então, a distinção feita entre frases constativas e performativas,

considerando, então, as forças ilocucionárias e enquadrando as frases constativas como mais

um dos atos ilocucionários, concluindo que todos os enunciados são performativos, já que

todos, no momento em que são enunciados, realizam algum tipo de ação, mesmo que seja o de

afirmar, constatar, demonstrar.

Assim, para Austin, toda vez que se pronuncia algo, realizam-se três atos: o

locucionário, o ilocucionário e o perlocucionário. O primeiro corresponderia ao próprio ato de

dizer, de produzir uma sentença; o segundo marca uma determinada força associada a um

enunciado e pode ter um caráter de uma promessa, de um julgamento, de uma declaração, de

uma pergunta etc. Já o terceiro abarca o contexto, o efeito dos dois atos acima descritos, e que

pode ter também como resultado a persuasão do interlocutor, já que consiste no efeito do dito

no interlocutor. Dessa forma, as forças ilocucionárias recaem no enunciador, enquanto um ato

perlocucionário incide no enunciatário. O valor manipulatório, nesse sentido, leva a um fazer

crer ou a um fazer fazer que se relacionaria a uma força ilocucionária, já que abarca as

estratégias utilizadas pelo enunciador para a persuasão, ao passo que a crença, a aceitação da

verdade e os estados de alma despertados no outro dizem respeito ao ato perlocucionário, uma

vez que este se estabelece pela linguagem. Assim, os enunciados constativos são aqueles cuja

força ilocucionária está implícita (afirmar, constatar, etc) e tem valor persuasivo, uma vez que

convencem o outro pela demonstração, como se os eventos descritos tivessem a força de um

saber ser, de uma verdade incontestável (AUSTIN, 1992, p. 30).

Além dos conceitos de linguagem como ação, Fiorin inclui na discussão dos atos de

fala a propriedade de a língua implicitar ou explicitar determinados conteúdos, o que será

mais profundamente tratado pelo linguista Oswald Ducrot.

Ducrot desenvolve uma teoria da enunciação, considerando que a linguagem é

constituída de um componente linguístico e um componente retórico, sendo a enunciação a

ponte entre esses dois elementos. O autor defende que a linguagem é um instrumento de

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argumentação por natureza, provando sua tese através do tratamento dos implícitos,

pressupostos e subentendidos (DUCROT, 1987, p. 31).

Ducrot dá luz a importantes expedientes retóricos na língua, que são os implícitos e a

polifonia. Os implícitos se relacionam a um importante procedimento argumentativo, a

polifonia6, à medida que se constituem em um outro dizer apontado pelo narrador por alguma

marca no enunciado, muitas vezes recorrendo a uma voz coletiva para veicular conteúdos

implícitos.

O conteúdo pressuposto é condição para que se possa enunciar o posto e para que se

criem condições para o diálogo. Na obra “Maria vai com as outras”, de Orthof, a fim de

enfatizar todas as ações das ovelhas que eram repetidas por Maria, há a inscrição do

enunciado “Maria pensou, suspirou, mas continuou fazendo o que as outras faziam”

(ORTHOF, 1986, p. 18). Há o posto de que Maria realiza as mesmas ações das outras

ovelhas, bem como o pressuposto de que ela já o fazia anteriormente (conteúdo implícito

veiculado pelo verbo continuar). Notam-se, então, dois pontos de vista diferentes. O narrador,

ao empregar o pressuposto, assume a responsabilidade tanto pelo conteúdo posto quanto pelo

conteúdo implícito, que não pode negar.

Neste ponto reside o expediente retórico do pressuposto, já que o enunciador obriga o

enunciatário a admitir o conteúdo pressuposto e tomá-lo como verdadeiro e indiscutível, pois

recusá-lo implicaria o impedimento de prosseguir o diálogo, constituindo seu emprego como

uma tática argumentativa, uma imposição da adesão do enunciatário. Ou seja, para que o

posto Maria ainda faz as ações que as outras fazem seja admitido, o enunciatário deve

partilhar do conteúdo pressuposto de que Maria fazia tais ações anteriormente e aceitá-lo

como legítimo, pois negar o pressuposto é criar uma polêmica maior que resultaria na rejeição

do diálogo proposto pelo enunciador no momento de sua enunciação, já que o posto perde

toda sua força informativa se seu pressuposto não for admitido. Pode-se questionar o posto –

Maria realiza as mesmas ações das outras ovelhas – mas não o pressuposto – Maria as

realizava anteriormente – pois isso comprometeria o discurso e o próprio dizer.

Assim, quando o conteúdo implícito refere-se a uma voz assumida pelo narrador, mas

delegada a um actante coletivo, marcado por algum elemento no texto, há um pressuposto;

6 Cabe destacar que o conceito de polifonia difere na visão de Ducrot e no ponto de vista da semiótica de

linha francesa. Para o primeiro, a diferença entre o enunciado “posto” e o pressuposto” num discurso está no fato

de que, embora realizadas por um único locutor, cada ato de afirmar deve ser atribuído a um enunciador

diferente. Já para a semiótica, os textos são todos de sentido assumidos por um enunciador e este pode simular

outras enunciações dentro do texto, quando o narrador dá voz aos actantes do enunciado, diferenciando-se da

visão de Ducrot. No caso dos implícitos, esse outro dizer a que o enunciador se remete não pertence a outro

narrador, mas a uma voz partilhada.

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quando a própria organização dos recursos leva a esse outro dizer, desta vez atribuído ao

enunciatário, também fundamental para se chegar ao sentido do texto, trata-se dos

subentendidos.

Posteriormente, as questões retóricas de Aristóteles são retomadas na Nova Retórica

de Perelman e Olbrechts-Tyteca. Na obra, voltada para a área do Direito, os autores propõem

uma revisão da retórica de Aristóteles, observando-a não só como a arte de falar em público,

de modo persuasivo, mas transpondo os limites do discurso oral, buscando ampliar o estudo

da retórica para uma compreensão da estrutura da argumentação. Assim, os autores tratam das

formas de convencer o outro observando o que é contingente, improvável e a argumentação é

definida como um ato de “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se

apresentam a seu assentimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 50). Sob

essa orientação, a argumentação relacionar-se-ia às técnicas e recursos utilizados no discurso

para fazer com que a tese do orador tenha uma adesão por parte do ouvinte, de maneira que

este julgue os objetivos propostos por aquele.

No jogo argumentativo, os autores recobrem a importância do perfil do auditório nas

estratégias persuasivas, à medida que se entende que o conhecimento do auditório é

fundamental para a eficácia da argumentação. Os autores apontam para dois tipos de

auditório: o universal, de caráter mais geral e abrangente, e o auditório particular,

considerando um locutor específico. A ideia de auditório não subjaz os sujeitos de carne e

osso, mas os sujeitos construídos na enunciação. Nesse sentido, Perelman e Olbrechts-Tyteca

assumem a concepção da construção da imagem do outro no discurso, sob a pretensão de uma

argumentação mais eficaz.

Inaugurando a ideia de “acordo” entre o orador e o seu auditório, os estudiosos

apontam para a mútua colaboração entre os parceiros da comunicação para a construção da

argumentação. Esse acordo subsume o que é presumido pelos ouvintes e o que é previamente

preparado pelo autor, considerando a imagem deste auditório, que pode não aderir às

proposições por considerar unilateral a escolha das premissas, ou por tomá-las como

tendenciosas, no sentido de que não abrangeriam esse caráter universal da formação desse

auditório. Neste ponto, Perelman e Olbrechts-Tyteca retomam Aristóteles ao tratar dos objetos

reais (descritos pelo filósofo grego como necessários) ou preferíveis deste acordo,

relacionando os tipos de objetos ao caráter universal ou particular do auditório.

Os autores também se dedicam a uma extensa descrição das técnicas argumentativas

que são escolhas do orador para fazer com que o outro creia nas proposições como

verdadeiras. Assim, Perelman e Olbrecht-Tyteca apresentam os argumentos quase-lógicos,

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aqueles que, mesmo pautados em uma demonstração do real, abrem espaço para teses

incompatíveis ou contraditórias, os argumentos baseados na estrutura do real, a argumentação

como exemplo, a analogia, a metáfora e outros recursos discursivos que estão à disposição do

orador no ato de argumentar. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 211-511).

Nos estudos atuais, Fiorin, no prefácio de sua obra "Argumentação", afirma que não

há trabalhos abundantes sobre argumentação, já que poucos foram os esforços de estudá-la

discursivamente nas teorias do discurso. E, embora em Ducrot e Anscombre tenham

despendido longas pesquisas sobre argumentação em seus estudos, o ponto de vista destes

autores recai na questão da língua e não no discurso (FIORIN, 2015, p. 09).

Ou seja, ainda há, na literatura dos estudos sobre discurso, lacunas no que diz respeito

ao uso dos recursos discursivos com teor argumentativo, como os recursos, por um lado, são

escolhas do enunciador para um dizer verdadeiro e, por outro, reforçam essa imagem do éthos

do enunciador, estabelecendo a crença no ator da enunciação, a partir da construção de um

perfil de autor. É nesse ponto, pois, que a pesquisa aqui empreendida se faz pertinente.

Pudemos observar, ao longo desse breve inventário sobre retórica e argumentação, que, em

Aristóteles, a retórica passava intrinsecamente pelo viés do discurso, ao considerar o

auditório, a maneira de dizer, as estratégias de fazer crer, as paixões como elemento afetivo de

persuasão, mas que, ao longo do tempo, essa relação se enfraqueceu, sendo retomada

pontualmente com a Nova Retórica, de Perelman (1996), na Teoria da Argumentação da

língua, de Ducrot (1989), na Pragmática e na Análise do Discurso, mas a literatura dos

estudos sobre argumentação ainda carece de pesquisas que não só deem conta de um

levantamento das estratégias argumentativas utilizadas, mas que também as reconheça

discursivamente, como recursos selecionados pelo enunciador no sentido de estabelecer a

crença no dito e a confiança no dizer.

Assim, a presente pesquisa, assim como outros autores citados, volta às fontes

clássicas de estudos de retórica ao considerar a imagem do enunciatário na produção do

discurso, a construção da imagem de um éthos em que se deva depositar confiança e um

discurso que faça parecer verdadeiro por meio das escolhas argumentativas, ao mesmo tempo

em que acolhe as contribuições das pesquisas atuais de diferentes áreas sobre argumentação,

mas sem se distanciar das bases que norteiam o trabalho, que se fundamenta na teoria

semiótica greimasiana, cujos princípios serão mais bem delineados nas linhas abaixo.

Mas antes de tratar da argumentação para a teoria, faz-se necessário apresentar

algumas considerações sobre a teoria semiótica, utilizada no estudo como base para análise do

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corpus. Adiante, pretende-se expor os postulados da teoria, seus fundamentos e alguns

elementos importantes para entender o objeto da pesquisa aqui empreendida.

2.2. UM CAMINHO TEÓRICO-METODOLÓGICO

A semiótica constitui-se uma teoria que busca compreender a significação do texto a

partir do sistema estruturado de relações que contribuem para a construção de sentido. A

partir de uma perspectiva imanentista da linguagem, compreende as leis que regem o discurso,

sem negar as condições sócio-históricas que incidem nos textos.

A escolha pela teoria semiótica de linha francesa como fundamento para esta pesquisa

se deve ao fato de nela trabalhar-se com os textos, sendo eles os objetos de estudo,

considerando um percurso de sentido que parte dos níveis mais profundos e abstratos aos mais

concretos e superficiais, todos eles regidos por uma sintaxe e uma semântica. A partir dos

textos, busca-se o percurso da interpretação de acordo com o que é dito, considerando como o

texto diz o que diz, ou seja, que estratégias se utilizam, e como os elementos textuais se

combinam para construir a significação.

Como metodologia para a apreensão dos sentidos, a semiótica de linha francesa

considera um percurso gerativo do sentido, composto por uma sintaxe – que rege as

operações e articulações em uma relação de sentido – e uma semântica – responsável pelas

categorias, taxionomias e valores.

Compreendendo o plano do conteúdo, o percurso do sentido parte de um nível mais

simples de análise até um mais complexo, considerando um nível maior de abstração até uma

etapa de concretização das estruturas narrativas. Para tanto, a teoria busca remontar as

categorias do texto em três níveis: fundamental, narrativo e discursivo.

No âmbito do nível fundamental, observam-se as oposições fundamentais que dão

sentido ao texto. Partindo da teoria sausurreana, atualizada posteriormente por Louis

Hjemslev, tomam-se os conteúdos semânticos como compostos de oposições que instauram o

significado. No nível fundamental, essas oposições presentes no texto se estabelecem entre

dois termos que tenham algo em comum, um traço que explique sua relação de contrariedade,

já que o caráter opositivo se faz presente na sua relação de pressuposição com o termo

contrário (FIORIN, 2009, p. 22). A sua negação faz surgir os termos contraditórios, que se

diferenciam dos contrários pela presença ou ausência de determinado traço.

Tais oposições constroem a axiologia no texto com traços de positividade e

negatividade, e uma representação fórica que se dá pela euforia, valores atrativos, e disforia,

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valores repulsivos. Esses valores eufóricos ou disfóricos não são estanques e absolutos, ou

seja, são construídos no texto pelas relações que estabelecem uns com os outros no âmbito

dos textos particulares. Isso significa dizer, por exemplo, que a oposição vida x morte, em

determinado texto, pode construir como eufórica a categoria morte e como categoria disfórica,

a vida.

Esses elementos semânticos que constroem um valor de oposição no texto são

interessantes na pesquisa aqui pretendida e, embora não sejam o foco de análise (uma vez que

a argumentação é estudada do ponto de vista do nível discursivo), são importantes para se

verificar, no nível da superficialidade do texto, a estrutura que sustenta os percursos temáticos

e figurativos7. Nas obras de Orthof, é possível perceber uma relativização dos valores

eufóricos e disfóricos, construídos no texto. “A Velhota Cambalhota”, obra de Orthof de

1985, narra a história de uma senhora que se nega a comportar-se da maneira tida como a

adequada pela sociedade, já que deixa aparecer "sua calcinha e combinação" (ORTHOF,

1985a, [n.p.]), causando espanto no padre e nas vizinhas, decide viver em uma casa-trem e

vive aos tropeços, sempre levando a vida "pelo lado avesso" (idem). Nessa narrativa, por

exemplo, os valores que podem ser considerados eufóricos, do ponto de vista de um

observador social, tendo em vista o comportamento de uma pessoa de mais idade, são

relativizados, gerando um conflito entre o que se espera socialmente do comportamento da

velhota e como de fato ela se comporta, debate fundamentado pelas oposições categóricas

entre identidade vs alteridade. No que diz respeito à argumentação, a construção desses

valores que serão analisados pelo viés da tematização e figurativização no nível discursivo são

importantes para a construção do éthos do enunciador, bem como da imagem do enunciatário,

o páthos, elementos caros à veridicção estabelecida entre enunciador e enunciatário.

Buscam-se, então, nesse patamar de análise, as categorias mais abstratas possíveis que

deem conta das oposições mais latentes do texto, abarcando as diferentes possibilidades de

leitura. É por intermédio desse processo que se percebe a estruturação básica de sentido, pois

a partir dela é possível conceber o percurso traçado pelo sujeito e os valores instaurados na

narrativa. Esses elementos das oposições semânticas fundamentais converter-se-ão em

objetos-valor que serão assumidos por um sujeito configurando o próximo nível, o narrativo,

em processos de junção e transformação, organizados em enunciados de estado e de fazer

(BARROS, 2011, p. 27).

7 Os percursos figurativos constituem um conjunto de figuras relacionadas; já os percursos temáticos

compreendem um encadeamento de temas, ou seja, manifestadas por um conjunto de lexemas abstratos.

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No que diz respeito ao nível narrativo, cumpre ressaltar que a narratividade está

presente em qualquer texto e não somente em textos narrativos, considerando as relações que

o sujeito estabelece com o objeto. Estas relações podem ser, no âmbito da sintaxe narrativa,

de junção – conjunção ou disjunção – tendo em vista um enunciado de estado, e de

transformação – passagem de um estado para outro – quando envolve um enunciado de fazer.

Os tipos de enunciados na sintaxe narrativa são complementares; os enunciados de

estado e os de fazer são os que se relacionam às operações de transformação entre dois

actantes, e entre o sujeito e o objeto. Estes últimos, por sua vez, têm sua existência definida

através de sua relação, já que o sujeito tem sua existência delimitada por sua ligação com o

objeto e vice-e-versa. Quando se trata de enunciado de estado e de fazer, compreende-se que

um texto pode apresentar inúmeros desses enunciados, organizados hierarquicamente em

programas e percursos, tendo em vista que os textos são narrativas complexas.

Esses enunciados organizados se encadeiam de modo a formar as fases da narrativa,

que comportam não só as relações entre os sujeitos, mas também a relação entre estes e

objetos-valor (modais e descritivos). As fases da narrativa são divididas em manipulação,

competência, performance e sanção. Na fase da manipulação, o sujeito destinador age sobre

outro, com o objetivo de conduzi-lo a querer / dever fazer alguma coisa, através de um

pedido, ordem, ameaça, etc. Por meio da sedução, da tentação, provocação, etc., o sujeito

destinador manipula o sujeito destinatário. Um exemplo de como é possível explicar a

manipulação nos textos, podemos tomar a obra “A velhota cambalhota” (ORTHOF, 1985a),

em que o percurso narrativo compreende uma tentativa de um sujeito destinador –

figurativizado pela actante vizinha – levar o sujeito destinatário – figurativizado pela actante

velhota – a entrar em conjunção com o objeto de valor normalidade:

A comadre Mariquinha, Que era sua vizinha, Ficava escandalizada:

- Ó, comadre Cambalhota, Tenha modos de velhinha, Acabei de ver a renda Da perna de uma calcinha! (ORTHOF, 1985a, p. 20).

No excerto acima, verifica-se que há um sujeito que procura manipular o outro sujeito

no sentido de agir como uma “velhinha com modos”. O sujeito manipulador transmite ao

sujeito manipulado um dever fazer, coagindo-o a tomar atitudes, manipulando-o a agir

conforme o padrão, de acordo com o comportamento esperado para os idosos. Essa

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manipulação pode ou não ser bem-sucedida, dependendo para isso se esse sujeito destinatário

toma para si estes valores e de uma competencialização do sujeito do fazer.

Passa-se, então, à segunda fase da narrativa, a competência, em que um sujeito atribui

ao outro um poder e um saber fazer. Trata-se de um sujeito doador desses valores modais a

outro sujeito. É possível perceber de maneira clara a fase narrativa da competência, em que o

sujeito realizador da transformação deve ser dotado de um poder fazer / saber fazer, por um

exemplo da obra de Orthof “Uxa, ora fada, ora bruxa” (1985b), em que há o percurso

narrativo de um sujeito, concretizado pela fada / bruxa Uxa, que é dotada de um querer, dever

e poder fazer, mas não é dotada de um saber. Na narrativa, toda vez que Uxa tenta ser boa, ela

acaba realizando ações desagradáveis a outras pessoas, e quando tenta ser má, faz as pessoas

felizes, como se pode perceber em:

Nesses dias, no dia do "SIM", ela, Uxa, faz um bombom puxa-puxa...tão puxa, que puxa... como puxa! Aí ela coloca a peruca, põe um chapéu de fada e faz uma porção de bondades. Só que Uxa, sendo bruxa, não acerta de verdade. Para uma bruxa, é difícil fazer tanta caridade, mas Uxa tenta... e o mundo... aguenta. [...] E Uxa voa, por cima da igreja, faz com que cinco velhas saiam do jejum e comam a sobremesa (ORTHOF, 1985b, p. 04, 20).

No exemplo acima, é possível verificar percursos narrativos diferentes: na primeira

parte, o sujeito é manipulado para fazer bondades para ser uma fada, mas, como o destinatário

não sabe como fazer, a manipulação não é bem-sucedida ("só que Uxa, sendo bruxa, não

acerta de verdade", dá uma bombom puxa que gruda na dentadura de um velho, ou transforma

o táxi em abóbora, que acaba sendo multado)). Há o jogo, então, entre as modalidades

veridictórias do parecer e do ser – Uxa parece fazer bondades, mas não o faz. Já no segundo

trecho, nota-se um outro percurso narrativo, em que se nota um sujeito manipulado a fazer

maldades para ser uma bruxa. O sujeito quer, deve, pode, mas não sabe fazer ("faz com que

cinco velhas saiam do jejum e comam a sobremesa"), ou seja, não sabe fazer bondades ou

maldades quando deseja fazê-las.

Ao longo da narrativa, o sujeito opera uma transformação ou se transforma. Há, então,

a etapa da narrativa que se caracteriza como performance, em que há uma mudança de um

estado a outro.

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A última etapa do esquema narrativo, a sanção, é o julgamento da transformação do

sujeito no processo de performance, a quem se deve, então, um prêmio ou um castigo pela

transformação realizada. Utilizamos como exemplo outra obra de Orthof, “Maria vai com as

outras” (1986). A história trata de uma ovelha, Maria, que acompanha as outras ovelhas em

todos os tipos de ações. Ao longo da narrativa, Maria começa a refletir sobre o fato de

reproduzir as ações das demais sem questionar, até que, por fim, ela deixa de seguir as demais

e decide seguir seu próprio caminho, segundo suas escolhas.

Nota-se que há um percurso narrativo de sujeitos que buscam sempre o mesmo objeto

de valor, a alienação, figurativizado pelas ovelhas que fazem sempre as mesmas coisas que as

outras. O actante ovelha Maria, a princípio, acompanha as ações das outras ovelhas sem

pestanejar, recebendo sempre uma sanção negativa do sujeito destinador (pega gripe, por

exemplo), por suas ações corresponderem à adesão aos valores de um anti-sujeito. Mas

posteriormente decide tomar suas próprias decisões, observando-se, então, um outro percurso

narrativo, concretizado no texto pelo actante Maria em busca de identidade e, como sanção

positiva dessa transformação do sujeito, o actante Maria entra em um restaurante e come uma

feijoada, figurativizando um bem-estar e sua conjunção com o prazer gustativo. Se

observarmos as narrativas conservadoras (FIORIN, 2008, p.22), a sanção é sempre positiva

àqueles que realizam as ações consideradas como boas e negativa, se o percurso for inverso.

A sanção, nessas narrativas, está relacionada ao tom moral ou pedagógico.

Cumpre ressaltar que as etapas da narração nem sempre se manifestam na superfície

do texto nessa ordem canônica, uma vez que é possível que mais de uma etapa esteja

pressuposta. Da mesma forma, nem sempre essa organização lógica implicativa das

modalidades (crer, dever, querer, saber e poder), que organizam o percurso da ação dos

sujeitos, são suficientes para explicar as narrativas. Há textos em que as modalidades podem

ser incompatíveis, estabelecendo conflitos responsáveis pela instauração de certas paixões,

como a frustação e o ciúme. É preciso destacar que não é somente pelo arranjo das

modalidades que se explica o regime da paixão, já que este se baseia também nas modulações

contínuas da intensidade semântica, na sua relação com a quantidade, pelo acento sensível e

sua tensividade. Assim, a paixão obedeceria principalmente aos esquemas tensivos

(intensidade e extensidade), enquanto a ação obedece aos esquemas narrativos canônicos

(FONTANILLE, 2011, p. 204).

À semântica narrativa corresponde a atualização dos valores. Barros aponta que há

dois momentos na passagem da sintaxe para a semântica narrativa: a seleção dos valores e sua

relação com o sujeito (BARROS, 2002, p. 45). É o investimento de traços semânticos no

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objeto em junção com o sujeito que indica a existência semântica e a relação com o sujeito e

os valores podem ser modificadas por determinações modais. Em toda narrativa, há dois tipos

de objeto: os modais e os de valor. Os primeiros são necessários para que se realize a

performance principal, enquanto os últimos designam objetos com que se entra em conjunção

ou disjunção. Fiorin (2008, p. 37) identifica o objeto modal como aquele necessário para obter

outro objeto, ao passo que o objeto valor é o fim último do sujeito. Como dentre os objetos

modais estão o querer, o dever, o poder e o saber fazer, pode-se dizer que estes qualificam

tanto o sujeito quanto o objeto (há sujeitos que querem, sujeitos voluntariosos, portanto, e, ao

mesmo tempo, objetos desejados). Os valores descritivos podem ser exemplificados como a

ordem, a criatividade, a liberdade, etc.

Ainda sob a luz da semântica narrativa, as modalidades são tomadas na análise do

percurso narrativo, tendo em vista a competência modal do sujeito. As modalidades são

classificadas como os modos de existência que conferem ao sujeito, observadas em uma

análise que vai do potencializado, que equivale ao crer; o virtualizado, que corresponde ao

dever e ao querer; atualizado, que representa o poder e o saber; ao modo realizado, que

caracteriza o fazer e o ser. O sujeito é então motivado a fazer, qualificado-se para tal e, por

fim, efetua a ação.

Em Felipe do Abagunçado (2009b), Dona Lili, a mãe, e Felipe, o filho, concretizam

uma relação conflituosa entre uma mãe, que deseja ver o quarto do seu filho livre da bagunça,

e o filho bagunceiro. Há, pois, um sujeito que busca manipular o outro para que este entre em

conjunção com o valor do ordenamento, mas, como o sujeito destinatário não crê nesses

valores, a manipulação não é bem-sucedida, uma vez que o querer ser desordeiro é mais

intenso, prevalecendo, pois, a vontade do sujeito destinatário, que dá continuidade ao seu

estado inicial conjunto com a desordem.

É importante ressaltar que, quando se trata da manipulação, esta não se restringe à

ideia do senso comum, como a manipulação da mídia, por exemplo, mas como uma referência

à própria atividade de linguagem, na qual o homem, como ser social, busca a adesão do outro

ao seu discurso. De acordo com Teixeira, essa atividade se caracteriza por "tentações e

provocações, seduções e intimidações", à medida que vamos "aceitando ou recusando os

contratos que definem nosso caminho e nossas ações, moldam nossas vontades e dirigem

nossos gostos, ainda que precisemos da ilusão de que mantemos a vida sob controle"

(TEIXEIRA, 2001, p. 3).

O esquema narrativo é, então, considerado extremamente relevante para a investigação

da argumentação, já que, para que o texto cumpra sua função, o sujeito destinador utiliza

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variadas estratégias que, considerando a imagem do destinatário construída no texto, façam

com que este partilhe suas ideias, tendo em vista, sobretudo, que toda comunicação pretende

modificar o outro, apresentar um ponto de vista, estabelecer uma relação. Ainda de acordo

com a autora, “para tratar a argumentação como um plano de manipulação, é necessário

narrativizar o percurso do sujeito que enuncia” (TEIXEIRA, 2010, p. 4).

Assim, para um tratamento mais completo da questão da argumentação nos textos,

cumpre destacar que a sequência narrativa realiza-se no discurso e observam-se,

recursivamente, as modalizações das ações persuasiva e interpretativa do sujeito destinador e

sujeito destinatário, respectivamente, bem como os procedimentos concernentes ao nível mais

concreto dos textos. Por isso, os procedimentos que possuem um papel argumentativo e que

são utilizados pelo enunciador para produzir discursos que pareçam verdadeiros para serem

aceitos pelo destinatário, considerando o contrato estabelecido, são fundamentais para a

pesquisa aqui desenvolvida. E esses procedimentos são observados no nível mais superficial e

concreto do percurso gerativo do sentido, o nível discursivo.

A passagem do narrativo para o discursivo indica a concretização da narrativa dos

sujeitos em busca de objeto de valor, que se percebe por meio da sintaxe ou da semântica

discursiva. Lucia Teixeira observa como esse esquema narrativo pode ser aplicado

recursivamente ao analisar a argumentação como percurso de manipulação no nível do

discurso. Afirma a autora que não se pode ignorar a possibilidade de intercâmbio entre os

níveis (narrativo e discursivo), considerando o modo como os valores modais e descritivos e a

narrativa de busca de um sujeito e sua relação com o objeto podem ser explicados pelo viés da

sua concretização na sintaxe e semântica discursivas. Lucia Teixeira destaca que a

manipulação narrativa, que impulsiona um sujeito em direção ao objeto-valor a fim de entrar

em conjunção ou em disjunção com ele, pode realizar-se no discurso, já que o tratamento da

argumentação no nível discursivo também pode ser pensado, recursivamente, como um

programa de manipulação (TEIXEIRA, 2001, p. 2).

No nível discursivo do percurso, mais concreto e também complexo, estabelecem-se

as relações entre enunciador e enunciatário e entre enunciação e enunciado. As categorias

mais abstratas do nível narrativo tomam forma e concretude nesse nível, produzindo variações

de conteúdos que, no nível intermediário, eram invariantes. As estruturas são assumidas por

um sujeito da enunciação que tanto se projeta no enunciado como enunciador e enunciatário,

quanto converte os actantes do nível narrativo em temas e figuras.

As figuras constituem-se em elementos relacionados ao mundo natural ou construído,

enquanto os temas são conceitos que se referem a códigos sociais, organizando e ordenando

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os elementos do mundo natural. Nos textos predominantemente figurativos, o objetivo é

descrever, representar as coisas do mundo, já nos predominantemente temáticos, o foco está

em uma função interpretativa. Os textos de literatura infantil, por exemplo, se caracterizam

por possuírem uma configuração mais figurativa, devido a seu teor representativo das coisas

do mundo por meio de figuras, textualizadas por substantivos concretos (fada, bruxa, ovelha,

tatu, castelo, carroça, etc.). Isso significa que também apresentam uma configuração temática,

subjacente às figuras do texto, já que todo texto figurativo necessariamente concretiza

estruturas temáticas.

Essa concretização, em termos semânticos, ocorre por meio de dois procedimentos,

um mais abstrato, a tematização, e outro mais concreto, a figurativização. Muitos textos se

caracterizam por apresentar temas que se correlacionam a figuras, perfazendo o percurso

figurativo e temático, que atribuem sentido ao todo do texto. Um texto pode apresentar

características mais temáticas ou mais figurativas, conforme sua configuração, à medida que

concretizam as relações subjetivas do esquema narrativo do percurso de sentido (FIORIN,

2009, p. 90).

As projeções da enunciação no enunciado e os recursos utilizados pelo enunciador

para fazer o enunciatário aderir ao seu discurso também são procedimentos da sintaxe

discursiva. Assim, projetar no discurso um eu, aqui, agora ou um ele, lá e alhures cria efeitos

de objetividade ou subjetividade, considerando a inscrição de um ponto de vista, bem como o

papel do narrador, que pode inscrever-se por uma voz que diz eu ou apagar-se, dando a ideia

de que os fatos se desenrolam por si. Ocorrem, então, os procedimentos de espacialização,

temporalização e actorialização, além das relações entre enunciador e enunciatário, baseadas

em um contrato fiduciário, que se firma tanto na crença no que se diz, quanto na confiança de

como se diz, o que será mais bem detalhado na próxima seção.

A análise dos elementos do nível discursivo explica a argumentação, já que as relações

entre enunciador e enunciatário instauram uma intencionalidade discursiva, bem como os

processos de tematização e figurativização sustentam os valores ideológicos veiculados pela

interação enunciativa. Do mesmo modo, as projeções da enunciação no enunciado, que

podem, por exemplo, produzir o efeito de aproximação / afastamento que instauram a

confiança no dizer ou no dito, além dos recursos concernentes à superfície discursiva do texto,

configurados pelas escolhas lexicais, o uso de implícitos, a inscrição do humor e da ironia e

outros procedimentos que surgirão a partir da observação do corpus.

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2.2.1 Estudos de argumentação em Semiótica

Considerando que a teoria semiótica de linha francesa busca analisar o todo de sentido,

o estudo da intencionalidade discursiva, que dá direção e unidade aos conteúdos, e dos

estatutos do fazer crer na interação enunciativa, que explicam a argumentação, não poderiam

ser deixados de lado. Muito há que se estudar ainda sobre essas questões e pode-se dizer que

este é um caminho pouco trilhado nas pesquisas semióticas. Ainda assim, alguns semioticistas

trataram da questão da argumentação, e, nas linhas abaixo, far-se-á uma explanação sobre

como a argumentação tem sido tratada pela teoria semiótica.

Cumpre, a princípio, diferenciar tipo argumentativo de argumentatividade. Quando se

fala, geralmente, de argumentação, constrói-se a imagem de uma tipologia argumentativa nos

textos, considerando os textos propriamente ditos argumentativos, ou seja, aqueles em que há

estratégias claras de persuasão e convencimento, a presença da proposição e conclusão, etc.

Considerando a argumentação stricto sensu, é possível perceber a presença de uma tese, sobre

a qual o projeto argumentativo será desenvolvido, com a apresentação de premissas,

argumentos, dentre outros elementos, textualizados com elementos linguísticos com

características bem definidas.

Barros afirma que a distinção entre discursos argumentativos e narrativos não pode se

dar em termos de uma narratividade subjacente aos textos, mas sim em relação a uma

configuração discursiva (BARROS, 2002, p. 111). Assim, o que distinguiria os textos

narrativos de argumentativos seria a configuração semântico-discursiva, que separaria os

discursos temáticos e figurativos. A autora destaca ainda que a Teoria da Argumentação se

funda sobre a ideia de reconhecimento, em que se compara novo e o desconhecido ao já

sabido e acreditado, fundamentados sobre um compartilhamento mínimo de saberes entre os

dois parceiros da comunicação.

Assim, ressalta-se que todo texto apresenta certo teor argumentativo, já que, quando se

veicula alguma informação, o objetivo do enunciador do texto é fazer com que o destinatário

aceite a mensagem como verdadeira ou verossímil, e, dessa forma, o enunciador tenta

manipular o destinatário no sentido de fazê-lo crer nos valores transmitidos. É fundamental

entender, então, a argumentação em seu sentido amplo e alargado, que se faz presente em

qualquer texto, ainda que não se trate de textos de tipologia predominantemente

argumentativa. Desse conceito surge o interesse pela pesquisa aqui desenvolvida: observar

como se dá a instauração de uma orientação argumentativa em textos literários infantis. Como

se parte do pressuposto de que a persuasão, o fazer crer e a manipulação perpassam as

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narrativas universais do homem no mundo, entende-se que o texto literário é também espaço

para questões de argumentação.

Como a argumentação passa pela fundamental relação entre enunciador e enunciatário,

é fundamental observar o ponto de partida da construção da crença e da confiança

estabelecida entre ambos a fim de que a comunicação se estabeleça com sucesso e, mais

ainda, que haja uma adesão do enunciatário ao discurso do enunciador. Por isso, cumpre

destacar que a questão da argumentação será observada nesta pesquisa, tendo em vista o

possível caminho: verificar o caráter manipulatório existente na relação entre enunciador e

enunciatário, explicitando o conceito de contrato veridictório, o lugar da crença, o estatuto do

crer e do saber, os regimes de interação, a construção da imagem do enunciador e do

enunciatário (éthos e páthos), bem como o acento do sensível, que marca o discurso do

acontecimento pela lógica da concessão e do sobrevir, que arrebata o sujeito (Zilberberg,

2006), enquanto examinar-se-á a argumentação, considerando os recursos discursivos de

manipulação no enunciado, acolhendo, também, as contribuições de outras áreas da ciência da

linguagem, ao observar os recursos argumentativos como a heterogeneidade no discurso,

elemento caro à Análise do Discurso, ao tratar da interdiscursividade e da intertextualidade e

outras formas de incluir o discurso do outro como uma estratégia argumentativa, entre outras.

2.2.1.2 A relação entre enunciador e enunciatário: a manipulação

Para tratar da relação entre enunciador e enunciatário – expediente que ganha maior

relevância nos estudos atuais sobre argumentação –, cumpre expor, a princípio, as categorias

enunciativas, considerando o ponto de referência das relações espaço-temporais, o sujeito da

enunciação, ou seja, o responsável pela produção dos textos. A enunciação pressupõe a

existência de um enunciador que, por sua vez, estabelece um enunciatário, que é a instância a

quem se dirige. Nesse contexto, o enunciatário não é somente destinatário da mensagem

produzida, mas também contribui para a produção de sentido uma vez que “todo enunciado é

construído levando em conta uma imagem do enunciatário; sem isso, o discurso não teria

eficácia, pois não atingiria ou não seria aceito por seu destinatário” (GOMES, 2008, p.3). Há

três níveis de enunciação, de acordo com as instâncias enunciativas que se instalam no texto.

O primeiro nível compreende os actantes da enunciação, o enunciador e o enunciatário, o

primeiro fazendo as vezes do destinador e o segundo, do destinatário, ambos implícitos na

enunciação.

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Cabe salientar sempre que o enunciatário não corresponde a uma instância passiva na

enunciação, mas é sujeito responsável pelo fazer interpretativo do discurso. No momento da

produção do texto, é inevitável que o enunciador crie uma imagem do enunciatário no texto,

para que consiga atingir o objetivo de comunicar-se com ele, noções já prenunciadas outrora

no estudo da argumentação ao longo da história.

A fim de entender melhor como essa relação entre o enunciador e enunciatário se

constitui, cumpre tratar da ideia de acordo entre esses dois sujeitos. Em Sobre o sentido II

(2014)8, Greimas descreve o importante conceito de contrato de veridicção. Partindo do

pressuposto de que o próprio texto guarda suas marcas de veridicção na isotopia de leitura, o

teórico circunscreve a ideia de que o sujeito da enunciação não necessariamente produz um

discurso verdadeiro, mas que pareça verdadeiro. Ou seja, não se pode falar de uma realidade

que não aquela construída na e pela linguagem e o que se tem de acesso ao real não se dá,

portanto, fora do que se constrói como real. Assim, o destinador, mestre da manipulação,

constrói um simulacro da verdade e o destinatário, por sua vez, é capaz de sancioná-lo,

considerando sua eficácia ou seu fracasso. Esse acordo tácito entre os actantes da enunciação,

ou seja, entre um fazer persuasivo do enunciador e um fazer interpretativo do sujeito, é o que

se chama de contrato fiduciário, tendo em vista os valores de negociação em troca, em relação

ao que é pretendido por um enunciador e aceito como verdade pelo enunciatário.

Assim, nesse jogo de “fazer-parecer-verdadeiro”, o simulacro da verdade estaria

condicionado à representação do destinador, considerando a representação dos valores

partilhados e os conceitos de verdade e eficácia do discurso. Greimas acentua a importância

do destinador nesse contrato, tendo em vista que "a construção da verdade simulada é

fortemente condicionada, não diretamente pelo universo axiológico do destinatário, mas pela

representação deste feita pelo destinador, responsável pelo sucesso ou fracasso de seu

discurso" (GREIMAS, 2014, p. 110).

Dessa forma, esse contrato fiduciário se estabelece em todos os tipos de texto e é

necessário para a aceitação e adesão do próprio discurso como válido, assumindo o universo

de valores e conhecimentos estabelecidos pelo enunciador. O contrato é ainda definido por

Greimas como “o fato de estabelecer, de ‘contrair’ uma relação intersubjetiva que tem por

efeito modificar o estatuto (o ser e/ou parecer) de cada um dos sujeitos em presença”

(GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 99).

8 O original Du Sens II: essais sémiotiques foi publicado em 1983, em Paris, pela editora Éditions du

Seuil.

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Diana Luz Pessoa de Barros também reconhece nessa relação intersubjetiva as

estratégias de persuasão e convencimento que residem nesse caráter de verdade, nesse acordo

tácito estabelecido na troca comunicativa, que caracteriza o contrato:

Pelo contrato, o enunciador determina como o enunciatário deve interpretar o

discurso, deve ler “a verdade”. O enunciador constrói no discurso todo um

dispositivo veridictório, espalha marcas que devem ser encontradas e interpretadas

pelo enunciatário. Para escolher as pistas a serem oferecidas, o enunciador considera

a relatividade cultural e social da “verdade”, sua variação em função do tipo de

discurso, além das crenças do enunciatário que vai interpretá-las. O enunciatário, por

sua vez, para entender o texto, precisa descobrir as pistas, compará-las com seus

conhecimentos e convicções e, finalmente, crer ou não no discurso (BARROS,

2008, p. 63).

Greimas trata ainda das questões relacionadas ao verossímil, uma referência que o

discurso projeta fora dele mesmo e que visa a uma certa concepção de realidade (GREIMAS,

2014, p. 115). Considerando então não os discursos ditos verdadeiros, mas sim em discursos

que pareçam verdadeiros, importam as estratégias utilizadas pelo enunciador para tal e, ao

mesmo tempo, os procedimentos que o enunciatário utiliza para julgar um discurso como

verdadeiro. Nesse sentido, compreende-se haver um equilíbrio proveniente do acordo

implícito entre os actantes.

Como a crença construída no discurso é fundamental para uma adesão do enunciatário,

é importante que o primeiro faça saber quais são os valores nos quais quer que o outro creia.

Por isso, o saber e o crer ganham espaço no tratamento da argumentação, tendo em vista os

diferentes estatutos ocupados quando um saber sobredetermina uma crença em algo ou

quando ocorre o inverso, a predominância do crer em relação ao saber.

A crença e confiança no discurso enunciado relacionam-se ao processo de aquisição de

conhecimento, já que a transformação de um estado de não saber para a admissão de um saber

é concretizada pela adequação entre informações novas e conhecidas, na medida em que se

reconhece como verdadeiro o saber transmitido. Assim, o fazer persuasivo do enunciador é

também condicionado por uma base epistêmica, na medida em que, antes de submeter seu

discurso à avaliação do enunciatário, o enunciador também realiza esse processo de

reconhecimento entre os dados novos e os já conhecidos, tomado também por suas crenças e

valores. Essa base espistêmica atua, então, tanto na produção do enunciado quanto no fazer

persuasivo do enunciatário.

Relacionando esses conceitos ao corpus de análise, os livros infantis de Sylvia Orthof,

somos levados então a considerar que, em alguma medida, há previamente os valores e

crenças instaurados por esse enunciador que, antes de levar a apreciação do enunciatário o seu

discurso – concretizado no leitor dos livros infantis – constrói a verdade por meio desse

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processo de reconhecimento entre o novo e o conhecido, a argumentação. Em muitas obras,

há um saber prévio construído a partir da intertextualidade com outros contos de fada, a

respeito dos valores de felicidade, bondade, justiça, etc., que já são tomados como

pressupostos para a instauração de um novo saber que, muitas vezes, se inscreve pela

complexificação, reiteração ou negação dos valores já conhecidos das narrativas de literatura

infantil.

É necessário ainda esclarecer as posições ocupadas pelo saber e o crer no imaginário

cultural ao longo de toda a história. Segundo Greimas (2014), durante a Idade Média, o crer

sobredeterminava o saber à medida que crer era algo independente de saber sobre sua

veracidade, ou até mesmo negá-la – credo quia absurdum – e apenas a confiança no

destinador bastava para tomar como certos e verdadeiros determinados discursos. Já na era da

ciência, pode-se dizer que o saber ocupou um lugar de destaque, especialmente nos discursos

científicos, em que o saber sobre algo significava a verdade das coisas e, portanto, sua crença

como verdadeiro.

No entanto, mesmo que em lugares diferentes sócio-historicamente, Greimas afirma

que

[...] tudo se passa como se o crer e o saber estivessem alinhados em uma estrutura

elástica que no momento extremo de tensão se polarizasse produzindo uma oposição

categórica, mas que ao relaxar chegasse ao ponto de confundir os dois termos

(GREIMAS, 2014, p. 128).

Ainda assim, explica o estudioso que qualquer saber passa antes por um crer, pois, ao

se colocar uma opinião por meio de um enunciado como "eu penso que...", existe um estatuto

de crença anterior, em que se leia "eu creio que eu penso que...". Além disso, previamente, ou

no momento da produção do discurso, há também o contrato fiduciário, que leva o

enunciatário a crer na possível veracidade desse discurso, fundamentada no mínimo de

confiança possível nesse enunciador, ao mesmo tempo em que o enunciatário sanciona

positiva ou negativamente esse dizer, não sem antes tomar as proposições desse enunciador

acolhendo o novo (saber) e adequando-o ao antigo (crer), como uma operação de

reconhecimento.

O reconhecimento de um saber, tomando como base o mínimo de conteúdo partilhado

pelos actantes em jogo na enunciação, e a adesão a esse dado novo constitui a base polêmica

de toda argumentação. A argumentação reside sobre uma proposição que seja não consensual

entre os parceiros, já que há sempre um destinador querendo manipular o destinatário sobre a

verdade dos fatos, esta que não é considerada, a princípio, como válida pelo destinatário. Ou

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seja, se ambos acolhem a mesma verdade, não há a necessidade de argumentar, de convencer

ou de persuadir, mas é preciso um conflito de ideias, opiniões e valores para que se dê a

argumentação.

Beividas e Lopes apontam essa tensão entre o saber e o crer como uma espécie de

degrau, em que o gradiente se dá a perceber através de uma pesquisa semântica de termos

como demonstrar – argumentar – persuadir, que indicam o movimento tensivo de uma

diminuição do saber e um respectivo aumento do crer. Assim, a demonstração fundamentar-

se-ia mais no saber, minimizando o crer; a argumentação tenta prevalecer um saber novo

sobre um crer anterior e a persuasão institui um crer ainda que sobreposto a algum saber

(BEIVIDAS; LOPES, 2009, p. 445-446).

Tomando, então, como pressuposto, a afirmação de Greimas sobre, de um lado, a

tensão de polarização categórica do saber e do crer e sua distensão de outro, os autores

propõem que a argumentação estaria na inter-relação com os correlatos, ou seja, seria o meio

termo entre a persuasão e a demonstração, observada a elasticidade tensiva entre saber e crer,

aventando a hipótese de que o crer tensiona enquanto o saber distensiona, ou seja, mais crer,

maior tensão, mais saber, maior distensão.

Essa distensão entre o saber e o crer no fazer persuasivo vai da afirmação à dúvida e

da refutação à admissão, considerando os termos contraditórios e contrários e suas

graduações, a partir do esquema abaixo:

CERTEZA EXCLUSÃO AFIRMAR RECUSAR

CONJUNÇÃO DISJUNÇÃO

PROBABILIDADE INCERTEZA ADMITIR DUVIDAR

NÃO-DISJUNÇÃO NÃO-CONJUNÇÃO

(BEIVIDAS; LOPES, 2007, p. 36)

Nessa tensão entre crer e saber, a carga modal é lexicalizada, a fim de tratar as formas

que pertencem ao âmbito do fazer. Assim, afirmar e recusar são tidos como polarizações

extremas bem ou malsucedidas, enquanto em polos passíveis de graduação situam-se os

termos contraditórios admitir e duvidar, considerando sua tensão e distensão, à medida que é

possível admitir mais ou menos ou duvidar mais ou menos. Essas graduações permitem a

classificação de determinados tipos de crença, desde o fanatismo ao ceticismo, o que contribui

para uma maior amplitude do alcance da teoria, especialmente no estudo aqui empreendido, a

argumentação em textos infantis.

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Ainda considerando essas tensões entre saber e o crer, como se viu anteriormente, este

último é definido, então, como a modalidade que sobredetermina todas as outras, tendo em

vista que, anterior a um dever / querer / poder / saber, há um crer como uma modalidade

epistêmica que rege as demais. Assim, no fazer persuasivo, que compete à manipulação, e no

fazer interpretativo, que corresponde à sanção, consideram-se as modalidades veridictórias,

tendo em vista a manipulação segundo o querer (tentação e sedução), o dever (provocação e

ameaça) e o saber, dada a utilização de argumentos lógicos e demonstração científica. No

entanto, como esse esquema modal não está apartado de uma cultura, é possível dizer que a

relação entre o crer e o saber é complexa e exige maiores reflexões.

No que diz respeito ao contexto da literatura infantil, objeto de pesquisa da tese,

cumpre destacar que o saber, especialmente nas origens da literatura infantil no Brasil,

ocupava um lugar de destaque em detrimento do crer. A literatura cumpria uma função social

com fins pedagógicos de capacitar a criança para atender aos padrões exigidos e a escola tinha

um papel fundamental em preparar a criança para o convívio com adultos, por meio,

inclusive, de obras de literatura infantil que resguardavam esse teor moralista e pedagógico

(ZILBERMAN, 1985, p. 13). Assim, em Olavo Bilac, Manuel Bonfim, Figueiredo Pimentel,

por exemplo, por meio das traduções dos clássicos internacionais, as crianças tinham acesso a

um saber sobre as coisas do mundo, aquelas que eram caras à formação cidadã, como o

ufanismo, o patriotismo. Manuel Bonfim, por exemplo, entendia a educação como própria

tarefa da República e da Pátria, em que os elementos da vida nacional deveriam ser tema em

todas as disciplinas.

Todos os exemplos de composição e redação, todos os problemas de matemática;

todos os exemplos de moral, de política, e de sociologia podem ser referidos à vida

nacional e são elementos de que pode se servir o professor inteligente e apto para dar

à sua escola um caráter nacional (BONFIM, 1932, p. 15).

Já na década de 1970, especialmente com Monteiro Lobato, a literatura infantil abre

espaço para a fantasia, a imaginação e a criatividade e o saber perde espaço para o crer, à

medida que se passa a construir uma representação de realidade que não deve estar

necessariamente atrelada a um saber sobre a realidade e a crença é, então, construída no texto.

Seres imaginários, criações de espaços distintos da escola ou da casa e o universo fantasioso

operam mais sobre um fazer crer do que necessariamente um fazer saber. Ou seja, a

manipulação dos livros infantis do final do século XIX e início do século XX baseia-se no

saber ser e no dever ser, na apresentação de uma ordem do mundo como verdadeira e até

imutável. Já na literatura infantil contemporânea, minimiza-se essa ênfase no saber ser, base

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do discurso pedagógico e moralizante, e abre-se espaço para a manipulação fundada em um

crer ser, querer ser, considerando então uma possível relativização entre um saber e um crer e,

portanto, há abertura para a instauração de diferentes pontos de vista. Certamente, não se

considera aqui polos estanques entre o crer e o saber ocupando lugares diferentes na literatura

infantil, mas gradações que acentuam a importância do saber no contexto da literatura para

crianças de cunho mais moralizante e o minimizam na literatura contemporânea.

De maneira geral, pode-se dizer que, no contexto da literatura infantil baseada nos

contos populares ou produzida para ter um papel formativo moralizante, os papéis temáticos

são bem definidos, constantes e previsíveis, dada a interação entre os sujeitos da

comunicação. Sobre isso, Landowski afirma

no universo do conto popular [...] a identidade de todo ator é concebida de maneira

radicalmente substancialista e se reduz à definição de um papel temático-funcional

do qual [...] não poderá escapar nem desviar de modo algum. Se o personagem é

definido como "pescador", apenas pescará; se outro é "rei", será somente rei: cada

qual se limita, em suma, a "recitar sua lição" (LANDOWSKI, 2014, p. 23).

Há um sujeito dotado de um saber, uma verdade absoluta, e o outro, ignorante,

aprende determinados valores passivamente. Certamente, isso diz respeito ao estatuto dos

atores da enunciação, considerando a hierarquia entre os parceiros da comunicação, entre

aquele que sabe, detentor, portanto, de uma verdade absoluta, e o outro que ignora o saber,

que aprende e aceita passivamente os valores, por meio de papéis temáticos fixos e

previsíveis. O tipo de contrato estabelecido, nesse sentido, reitera, de um lado, a confiança

nesse sujeito, detentor do saber e, de outro, a crença no que diz, a partir dos esquemas da

argumentação e da persuasão (LANDOWSKI, 1992). Discutiremos, após examinados os

recursos, que tipo de contrato se constrói em Orthof e qual o estatuto dos atores da

enunciação.

É nesse cenário de tensão entre o saber e o crer no texto literário que, a seguir, nos

propomos a discutir um pouco mais sobre a relação entre o sensível e o inteligível,

observando o lugar da manipulação e do estabelecimento de valores.

2.2.1.3 Entre o sensível e o inteligível: a manipulação no texto de Orthof

No Dicionário de Semiótica o saber aparece relacionado ao modo de presença, dado

que é “sempre saber sobre alguma coisa, pois é inconcebível o saber sem o objeto do saber”

(GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 425). Neste caso, o saber equipara-se à noção de existência

semiótica, pela "relação transitiva entre o sujeito do conhecimento e o objeto cognoscível" (

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GREIMAS; COURTÉS, p.383). Discini estabelece que o cruzamento entre intensidade e

extensidade indica modos de percepção diferentes, com variações de presença. Afirma a

autora:

A noção transitiva de um sujeito cognoscente, necessariamente relacionado a um

objeto cognoscível, se refinada sob os parâmetros tensivos da semiótica, viabiliza a

investigação de um sujeito dado na intersecção escalar, logo gradativa, entre o

sensível e o inteligível, vistos como dimensões da tensividade, a qual supõe a

correlação entre o intenso e o extenso: naquele se ancora a medida dos afetos; neste,

o estado das coisas numericamente percebido (DISCINI, 2010, p. 2).

Retomando os conceitos de Zilberberg (2006), Discini aponta percepções diferentes de

tempo e espaço pelo actante-obervador, à medida que as subdimensões se atenuam ou se

tornam mais distensas. Por exemplo, a aceleração abrevia e contrai o tempo, ao passo que a

desaceleração alonga e dilata o espaço (DISCINI, 2015, p. 237). Assim, o que se percebe é

essa presença sensível do sujeito, daquilo que o afeta, que vem, a princípio, como um

sobressalto e que, posteriormente, é classificado, numerado no nosso universo do discurso.

Greimas, em Da Imperfeição (2002), aponta que o plano da percepção e da interação

no mundo responde a transições e rupturas entre momentos de aparição de sentido e

movimentos em direção ao sem sentido. É a partir daí que Landowski (2009) trata do

contínuo e do descontínuo de sentido, dando luz à noção de risco, resultante dos princípios da

construção de sentido e das modalidades de interação entre os sujeitos.

No tipo de literatura feita por Orthof, objeto da pesquisa aqui empreendida, abre-se

espaço para o risco, o inusitado e a construção de novos valores, considerando, especialmente,

a interação. Ao mesmo tempo, é necessário observar o acento do sensível na obra literária e a

argumentação constitutiva dessa interação, bem como os recursos utilizados na construção

desses novos valores. Assim, tendo em vista a interação entre os sujeitos que participam desse

jogo comunicativo e a importante função do elemento sensível no estabelecimento da crença

no que é dito, bem como na confiança no dizer, far-se-á uma breve exposição dos regimes de

interação propostos por Landowski e sua relação com o estudo da Argumentação. Mais

adiante, propõe-se uma reflexão acerca dos estudos de Discini sobre as gradações entre

sensível e inteligível na construção de uma imagem de um autor e de um corpo enunciativo.

Os regimes de interação foram propostos por Eric Landowski (2014), considerando a

gama de relações sociais que envolvem os sujeitos e suas relações com os objetos. Landowski

propõe que as relações intersubjetivas envolvem noções de risco, havendo gradações, desde a

ausência de risco, até o non sense total. É com este estudioso que a teoria passa a contar com

uma sistematização das formas de interação, a partir de quatro regimes, que passam a

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considerar agora, além dos já reconhecidos pela semiótica (a programação e a manipulação), o

elemento sensível como mais uma forma de interação.

Os regimes de interação dizem respeito a como os actantes agem uns sobre os outros,

no sentido de explicar seus modos de “estar no mundo”, o fazer ser (modos de existência),

quando atuamos sobre o mundo material ou modificamos seus estados, e o fazer fazer (modos

de ação), quando delegamos a outrem a ação pragmática. A partir desses dois eixos,

Landowski identifica, respectivamente, os regimes da programação e do acidente, da

manipulação e do ajustamento (LANDOWSKI, 2014, p. 22).

O primeiro regime a ser analisado, o da programação, é, segundo Landowski, apoiado

nas regularidades de comportamento de quaisquer tipos de atores possíveis, com

comportamentos autômatos, semelhantes às máquinas. Nesse sentido, esse tipo de

regularidade estaria baseado em motivações físicas bem como em sujeições socioculturais que

são o objeto de aprendizagens e são representadas por práticas do cotidiano (ordem social),

partindo do conceito de que esse regime operaria sobre objetos com papéis temáticos bem

definidos e, portanto, livre de maiores riscos. No que diz respeito às causalidades físicas,

podemos considerar uma tal regularidade que se observam os mesmos efeitos para as mesmas

ações (como, por exemplo, aquecer a água até 100 graus para que se atinja a fervura). Já em

relação às práticas rotineiras, Landowski refere-se a regularidades de comportamento que

dizem respeito a costumes sociais e simbólicos (“boas maneiras”, comportamentos

engessados), assim como a coerções sociais, que, de tão internalizados, soam como uma

ordem natural das coisas. Tanto nos elementos referentes ao aspecto biológico e físico, quanto

nas regularidades de comportamento, os actantes operam a partir de um programa de

comportamento previsto (LANDOWSKI, 2014, p. 24).

Quando pensamos no regime de programação, imaginamos situações que demandam

previsibilidade, regularidade, hábito. Devido à tamanha constância, as práticas enquadradas

nesse regime podem levar a dessemantização dos conteúdos e as relações que se instauram

entre os sujeitos já estão previamente estabelecidas. Este regime se manifesta nas narrativas

por meio do desenvolvimento de um percurso narrativo em que o actante tem um papel

temático fixo, de modo que este predetermina rigidamente sua atuação. Nas narrativas

tradicionais de literatura infantil, por exemplo, a fada é aquele actante que sempre exerce

ações boas e age no sentido de tornar melhor a vida de outrem, o que implica necessariamente

uma posição fixa e cristalizada no universo narrativo. O regime da programação pode ser

associado, portanto, a regularidades simbólicas que são representadas por meio papéis

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temáticos constantes e que envolvem um baixo teor de risco, já que lida com a operação de

sujeitos com papéis temáticos bem definidos.

Considerando o princípio de intencionalidade, em que as condutas do sujeito se

explicam por meio de motivações ou razões, Landowski (2014, p. 22) descreve o regime da

manipulação, mostrando as nuances entre o regime anterior de programação, constatando que

os regimes não são estanques e absolutos e que a gradação indica como uma forma de

interação pode estar inserida mais em um regime do que em outro.

Em relação à manipulação, o autor destaca a necessidade de um sujeito motivado

(LANDOWSKI, 2014, p. 25), que avalia os valores em jogo, estes previstos pelo

manipulador. Nesse regime, há estratégias de persuasão sobre cujas bases um sujeito age

sobre o outro, levando-o a querer e/ou dever fazer alguma coisa, a buscar os valores previstos

a partir de seu próprio interesse ou movido pelas paixões. No regime de manipulação, temos

situações que se caracterizam pelos aspectos de persuasão, manipulação, contrato, transmissão

de valores. O risco, nesse caso, é controlado, tendo em vista que há uma intencionalidade e

uma menor regularidade, os comportamentos dos sujeitos em interação já são esperados,

ainda que possa haver negociação.

Assim, o regime da manipulação inscreve, indispensavelmente, um querer que o outro

queira, envolvendo relações de doação de um saber e também de um querer. No entanto, a

manipulação só ocorre quando o manipulador faça o outro fazer a partir do conhecimento das

vantagens deste querer fazer, independente se isso se dá por provocação, ameaça, etc. Nesse

sentido, as operações de manipulação lidam com certo grau de risco, dado que essas

estratégias podem não obter o efeito desejado.

Já no regime de interação por ajustamento, o contato explica a influência de um ator

sobre o outro (LANDOWSKI, 2014, p. 48). Há, então, situações que envolvem valores de

afetos, sensações, havendo uma desestabilização do previsível. Esse tipo de regime promove a

ressignificação dos conteúdos a medida que os valores são construídos na e pela inter-relação

entre os sujeitos. Agora, não há mais a busca por fazer um sujeito fazer, mas fazer junto, ao

mesmo tempo em que sentem juntos.

No regime do ajustamento, a produção de sentido se dá na própria relação entre os

actantes e nas transformações que sofrem, a partir da presença conjunta, que instaura o

sensível. Não há, necessariamente, uma dinâmica prévia, mas é a interação que a estabelece.

O contágio fundamenta a interação por meio de um fazer sentir e não mais sobre um fazer

crer, característico da persuasão. Para Landowski, o contágio determina um tipo de sentido

em que o sentir é fundamental. Assim, nota-se um tipo de transformação que não se dá por

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meio de uma ação, mas por uma transformação mútua de estado, a partir do ajustamento de

um ao outro (LANDOWSKI, 2014, p. 50).

Nas interações por ajustamento, o actante com o qual se vai interagir não tem um

comportamento previsível, pois seu comportamento é composto de uma dinâmica própria e

não se pode reduzi-lo a um papel temático, como no regime de programação. É na própria

interação entre os sujeitos que os comportamentos se manifestam. Para ilustrar esse regime,

Landowski busca o exemplo da dança, em que há, de fato, um ajustamento, considerando que

cada parceiro se completa como dançarino no momento em que dança, sentindo o movimento

do outro.

É possível estabelecer uma relação entre esse regime e o domínio dos textos literários.

Neles, o sentido é construído por meio da interação entre os actantes e, ainda que haja valores

a princípio estabelecidos pelo enunciador, é possível que as variadas experiências desse

enunciatário, figurativizado pelos leitores das obras literárias, suscitem diferentes maneiras de

ler o texto. Além disso, há vários elementos nos textos literários que promovem a interação

pelo sensível, como provocar o riso através do humor e da ironia, estimular sensações e

paixões que nos libertam à catarse da obra e a fruição, por meio de aspectos tanto do plano do

conteúdo quanto da expressão. Isso se dá, fundamentalmente, por meio da experiência do

contágio, em que, nessa interação entre os sujeitos, no caso da experiência de leitura de obras

infantis, o interlocutorário sente medo, quando um dos actantes da narrativa o sente;

compaixão, alegria, etc., considerando a reciprocidade como fundamental no contágio entre

sensibilidades. De acordo com Gomes

Os gêneros que compõem o domínio literário e artístico [...] oferecem-se mais

intensamente como um convite para o jogo de sensibilidades, próprio do regime de

ajustamento, fazendo sentir mais que entender cognitivamente o conteúdo veiculado.

Seu sentido é apreendido como uma descoberta e uma aventura. Por isso,

caracterizam-se por uma elaboração da forma do conteúdo e da forma da expressão,

em graus variáveis, de modo a fazer o destinatário experienciar os universos de

sentido construídos no texto (GOMES, 2009, p. 586).

Já no último dos regimes descritos por Landowski (2014, p. 71), há práticas que se

baseiam no acidente, no imotivado, apresentando total imprevisibilidade. A ausência de

sentido é total, retomando o universo lúdico, o caótico e trata-se de um processo interativo

fundado sob o princípio da probabilidade, da imprevisibilidade, da aleatoriedade. O regime do

acidente é definido pelo autor como uma contraposição, pois, ainda que considerados eufórica

ou disforicamente, os acidentes são a contramão do mundo ordenado e dos comportamentos

rígidos e predeterminados. Ele está relacionado à ruptura das regularidades de qualquer

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ordem, configurando-se a partir do possível, mas absolutamente incerto. É, portanto, o regime

do caótico, do puro risco.

A seguir, o quadrado semiótico proposto por Landowski que permite perceber as

operações lógicas que se constroem por meio de relações de contradição, contrariedade e

implicação. O quadrado demonstra como os regimes, ainda que estruturados por meio de

oposições, são intercambiáveis dadas as práticas sociais existentes no mundo, no sentido de

que os regimes se interdefinem e se complementam, de alguma forma, cabendo, portanto,

falar dos regimes em relação à sua gradualidade (maior programação, menor manipulação,

etc.), e não os tomar como rígidos e estanques.

Diagrama 3, Regime de interações (LANDOWSKI, 2014, p. 100)

No quadrado acima, pode-se verificar a inter-relação entre os regimes, considerando também

a noção de risco envolvida em cada etapa. Nos regimes de programação e de manipulação, o

risco é mais controlado. No primeiro, o risco teria como consequência a perda de controle e

um possível erro nos resultados, observando que esse regime opera sobre hábitos e costumes

sociais ou a partir de elementos do mundo físico e/ou biológico. Como o risco é diminuído, há

possibilidade da dessemantização. Já no regime de manipulação, o risco está na interação

intersubjetiva, em prejudicar a relação com outro, em face de alguma estratégia de fazer-fazer

malsucedida e, nesse caso, a possibilidade de risco é um pouco maior em relação à

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programação. Envolvendo altos graus de risco, estão os regimes do ajustamento e do acidente.

No primeiro, o risco reside na falta de sintonia, já que o sentido se constrói exatamente na

dimensão sensível das relações e, no último, o risco total envolve a total perda de sentido,

cabendo ao sujeito a aceitação do acaso.

Relacionando os regimes de interação de Landowski ao objeto de estudo desta

pesquisa, considerando, inclusive, a definição de cada regime, certamente somos levados a

crer que os textos infantis estudados nesta tese poderiam inscrever-se mais intimamente no

regime do ajustamento, tendo em vista que, conforme já tratado anteriormente, o texto

literário é o espaço para a construção de sentido com o outro, em que o elemento sensível

domina as interações. O lúdico e a descoberta ganham espaço nesse domínio e a aventura

encontra lugar por meio dos diferentes percursos narrativos construídos nas obras e por meio

da união entre elementos do plano do conteúdo e do da expressão. Sem dúvida, há muitos

elementos que buscam instaurar o sensível nas obras infantis e, certamente, fazem parte dele o

humor, os recursos expressivos de rima, aliteração e assonância, a experiência somática entre

o livro e o leitor, dentre outros.

No entanto, ao analisar especificamente as obras de Orthof, alvo de análise desta

tese, é possível pensar, em algum nível, na sua inserção no regime de manipulação nas obras

infantis, na medida em que o sujeito utiliza estratégias para levar o outro a crer em

determinados valores, o que, certamente, explica a relação entre a argumentação e os textos

infantis, intento deste estudo. A partir da leitura de variadas obras de Orthof, nota-se que a

própria intencionalidade de buscar reverter determinados valores tidos como mais

convencionais e conservadores, faz com que haja, previamente, um valor a ser buscado como

verdadeiro. Assim, é lícito pensar em uma gradação existente entre o nível do ajustamento e o

da manipulação, já que, de acordo com Landowski

no plano das relações intersubjetivas, pode-se muito bem buscar ajustar-se à maneira

de ser do outro, a sua hexis, apenas para chegar, a partir dali, a melhor manipulá-lo,

como acontece comumente no discurso da publicidade (LANDOWSKI, 2014, p.

89).

Ou seja, mesmo que o enunciador se afaste das outras obras infantis em que os

valores eufóricos sejam, por exemplo, o matrimônio bem-sucedido (como no famoso desfecho

“e viveram felizes para sempre...”), as boas maneiras que as crianças devem aprender, o

respeito aos mais velhos, etc., a negação desses valores, naturalmente, faz com que sejam

tomados como disfóricos. E isso não se dá senão pelo viés da manipulação, mas também

utilizando elementos do sensível, já que se trata de uma obra literária.

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Cria-se, assim, um problema de definição dos regimes e de descrição do objeto de

análise. De fato, é possível perceber que Landowski deixa clara a possibilidade de graduação

entre os regimes, na medida em que não os toma como estanques e que permite que

determinada prática seja entendida como pertencente mais a um regime do que a outro. No

entanto, essa fluidez não pode significar falta de clareza na distinção dos regimes de interação

e uma liberdade indiscriminada para enquadrar certas práticas em um, dois ou mais regimes.

Isso pode comprometer a análise e levar a resultados equivocados.

Então, como relacionar o programa de manipulação, condizente ao domínio da

argumentação, e os elementos sensíveis pertencentes ao âmbito dos textos literários? De fato,

há que se considerar a complexidade do objeto, já que os textos de literatura infantil são, ao

mesmo tempo, formativos e literários. Ainda que não haja uma intencionalidade clara de

convencimento, como no caso dos gêneros de propaganda, por exemplo, há um destinador

que busca manipular o destinatário de maneira a crer em determinados valores. Por outro

lado, há os elementos que constituem o texto literário e que, por meio do contágio, abrem

espaço para um risco maior, para a instauração de outros sentidos.

É ponto pacífico que a gradualidade está presente em Landowski (2014) ao apontar a

fluidez entre os regimes de programação. Por outro viés, também atento às gradualidades, ao

sensível e ao inteligível, Zilberberg (2006), propõe que, ao lado do acento de sentido e da

gradualidade das categorias, ganham espaço os estudos do contínuo entre o sensível e o

inteligível, identificando uma correlação entre uma dimensão intensa, relativa aos estados de

alma, e uma dimensão extensa, relativa aos estados de coisa. Zilberberg (2006b) distingue

dois modos que uma grandeza se instala no campo de percepção do sujeito: pelo sobrevir,

constituindo o acontecimento; ou pelo conseguir, que caracteriza o exercício. O autor define o

acontecimento a partir de um verbete do Micro-Robert que toma o andamento – aquilo que

acontece – em relação à tonicidade – aquilo que tem importância para o homem. O

acontecimento "arrebata para si todo o agir, não deixando ao sujeito nada além do suportar"

(ZILBERBERG, 2006b, p. 198). Na esteira dos esforços de Zilberberg para entender a

presença determinante dos conteúdos emocionais e afetivos na construção do sentido, Norma

Discini aprofunda as reflexões sobre autor e estilo a partir dos estudos sobre as modulações

tensivas de aspectualização do ator da enunciação, como sujeito sensível e como sujeito

inteligível.

A partir dessas pesquisas, a autora publica uma contribuição muito importante no

campo dos estudos sobre o sensível. Trata-se da obra Corpo e Estilo (2015), em que traça

caminhos para o estudo do sentido dos textos, buscando o elemento afetivo como fundamental

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na origem dos discursos. Para tanto, a autora parte do percurso gerativo de sentido,

aprofundando-o a partir das contribuições da semiótica tensiva, investigando como esses

componentes relacionam-se às configurações de corpo e estilo.

É assim, então, que Discini inicia a obra, conceituando corpo e estilo, bem como

explicitando uma definição de éthos como uma "imagem de quem diz dada por um modo

sistematizado de dizer, depreensível de uma totalidade de enunciados, que se vincula à

concretização discursiva de um estilo" (DISCINI, 2015, p. 23), considerando, não só a

totalidade dos enunciados, mas o dizer em processo, ou seja, os enunciados a se realizar,

caracterizados pela protensividade. A partir desta totalidade, por meio das marcas da

enunciação, constitui-se o corpo do ator da enunciação e, do efeito da unidade depreensível

dos textos, configura-se o estilo. Todas essas categorias são tomadas pela autora considerando

a aspectualização do ator como constituinte de um corpo, posicionado e afetado pelo mundo.

A aspectualização do ator vincula funções distintas exercidas por um actante-observador: um

sujeito inteligível, moralizador e judicativo, de um lado, e, de outro, um sujeito sensível,

afetivo e pático, constituindo, portanto, um perfil social e um perfil sensível do ator da

enunciação. Assim, incorpora tanto uma dimensão inteligível (e ética) quanto uma dimensão

sensível (e afetiva) do sujeito da enunciação, que integram um perfil ético e judicativo, de um

lado, e o estético e o estésico, de outro, em diferentes gradações, variáveis nos diversos

gêneros de textos. Além desse componente aspectual que explica a argumentatividade e o

estético nos textos literários analisados, seus estudos contribuirão para a compreensão da

instauração do éthos do enunciador, visto de forma mais dinâmica e complexa, e sua

importância na sua interação com o enunciatário.

Discini defende o conceito de totalidade nas partes, tomando os enunciados como unos

e completos, mas, ao mesmo tempo, formadores de uma totalidade que dá forma ao estilo nos

textos. Afirma, então, que "cada enunciado encerra em si o princípio unificador que rege a

presença do todo nas partes para que haja uma totalidade estilística" (ibidem, p. 24).

Nesse ponto, é possível considerar a relevância dos estudos de Discini para a pesquisa

aqui empreendida. Certamente, tratamos as categorias da enunciação instauradas no interior

dos textos de Orthof, ressaltando as escolhas feitas pelo narrador e a imagem construída de

um éthos a partir dessas escolhas, o que configura o corpo do autor e, portanto, seu estilo. A

partir do perfil do éthos, instalado em cada enunciado e também no intervalo entre um e outro,

existe o que Discini nomeia de "quase-presença", definida do seguinte modo:

O todo, que concerne a uma totalidade de discursos, é subjacente não só a cada texto

de determinado conjunto, mas é também subjacente às distintas fases da quase-

presença, por meio das quais se manifesta o princípio unificador de um estilo. Esse

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princípio desempenha um papel de sistematização do sentido no interior de cada um

dos enunciados assim reunidos. Desempenha ainda o papel de orientação do que

ocorre no intervalo entre um enunciado e outro. Tal intervalo, disposto segundo

orientação imprimida às relações estabelecidas entre as variadas fases da quase-

presença, faz emergir as distintas densidades da própria presença (DISCINI, 2015,

p.23).

Na nossa pesquisa, consideramos, de fato, a imagem construída do ator nas obras de

Orthof, mas, especialmente, o que constrói esse estilo próprio da autora, o que se configura

em uma obra, no conjunto da totalidade de textos da autora, mas também nesse intervalo, que

cria uma expectativa, um componente protensivo de espera em relação ao próximo texto, sem

deixar de considerar, para tanto, os enunciados anteriores. Ou seja, ainda que o corpus

selecionado seja uma amostra qualitativa, tendo em vista que não se trabalha a totalidade da

obra, cada enunciado, ou cada livro de Orthof, guarda elementos não só da sua unidade,

conferindo à obra as marcas da enunciação do éthos, como também, por sua ausência, remete

ao que ainda está por vir.

Ao se tratar, então, de determinado estilo de Orthof, caracterizado pela construção de

um éthos marcado pela ludicidade, pelo estilo jocoso, zombeteiro, brincalhão, tomam-se os

enunciados na sua unicidade, bem como o conjunto coletado de obras, o corpo, e o intervalo

entre eles, o que faz com que o leitor de Orthof reconheça, por meio dos textos já lidos, o que

pode esperar de um próximo, tomando por base os enunciados pretéritos, ou seja, o corpo

formado no conjunto. Assim age a quase-presença, que passa de presença realizada no nível

discursivo, considerando-se a unidade integral, ou seja, um único texto que consiste em parte

constitutiva do todo, atualizada no nível narrativo, considerando-se a totalidade integral, ou

seja, o conjunto total, virtualizada no nível fundamental e potencializada no nível tensivo.

Para respaldar o conceito de quase-presença, Discini traz luz ao inacabamento, que

desfaz a homogeneidade e concebe uma duratividade entre um enunciado e outro. Assim,

concebe a dêixis da ausência, como o componente virtualizado e potencializado, reconhecido

como fraca e átona, e a dêixis da presença, como o realizado e atualizado, como forte e tônico,

pensando sobre o conjunto de textos formadores de um estilo. Dessa forma, Discini justifica a

organização de sentido dos textos, remontando à sua totalidade, como encadeamento

sintagmático entre os textos, e ao interior de cada texto, tomando as transformações no eixo

paradigmático no percurso gerativo de sentido (DISCINI, 2015, p. 25).

Partindo do pressuposto de que todo éthos é conotado, Discini discorre sobre as

diferenças de estilo que variam conforme os movimentos graduais, desde a atonia à tonicidade

do éthos conotado, sobre o qual se delineiam tanto o estilo do gênero quanto o estilo autoral.

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Nas valências plenas do conotado, repousa o estético e entre as valências nulas, sobressai o

estésico, considerando uma graduação entre as valências.

A autora, ao entender as relações entre o estético e o estésico como uma gradação,

indica a existência de um papel temático e, portanto, uma intelegibilidade, em textos poéticos

e não poéticos, bem como de um papel patêmico em textos midiáticos e não midiáticos. A

avaliação ética e a perspectiva de avaliação do sensível não se excluem, mas são dependentes,

à medida que se configura o estilo em que o acento de sentido seja convocado mais a um

ponto do que o outro. Nesse âmbito, verifica-se a proposição de Zilberberg retomada por

Discini, no sentido de que mesmo para um observador social ou para um observador sensível

configuram-se paixões, que podem ter uma inclinação moralizante, como as paixões do éthos,

ou com inclinação sensibilizante, como as paixões do páthos. Delineiam-se, portanto, páthos

em diferentes ambientes discursivos.

Ao analisar artigos de opinião de Luiz Felipe Pondé e poesias de Cecília Meireles,

Discini analisa a instauração das paixões do desdém e da admiração, respectivamente. Ao

construir a análise do sensível em um texto de opinião, mostra a sobredeterminação do afetivo

sobre o inteligível, já que, mesmo para um perfil judicativo, configurado pelo tom

moralizador e ético, relacionam-se aspectos do sensível, construídos, por exemplo, nos textos

de Pondé, pelos recursos de metáfora, hipérbole e ironia, que encadeiam a persuasão e criam o

éthos beligerante de Pondé. Em relação à construção do páthos da admiração em Cecília,

embora em um poema ou outro se perceba um perfil judicativo, ele não prevalece no estilo

autoral de Cecília, em que a admiração é fundada na profundidade figural e “o estado de alma

mantém sua incidência de impacto sobre o estado de coisas” (DISCINI, 2015, p. 296).

Por meio da análise aspectual, conclui que a invariância do sujeito indica determinado

grau de conotação: Discini mostra, no artigo de opinião, um observador social com perfil

judicativo, caracterizado por ser predominantemente imperfectivo, cinético e atélico e, na

poesia de Cecília, um perfil sensível, perfectivo, estático e télico. Aponta, portanto, para essa

gradualidade, tendo em vista a densidade e o impacto de presença, considerando a tonicidade:

para um lógos estético, uma valência plena do conotado e, para um lógos estésico, valências

nulas. O estilo seria, então, marcado por esses movimentos entre as valências que marcam

uma maior tonicidade ou atonia nos âmbitos da realização, atualização, potencialização e

virtualização. Assim, para além de uma definição de gênero e estilo autoral previamente

construída e com características já bem definidas a priori, Discini propõe uma abordagem que

parte da análise aspectual do ator construído na unicidade e na totalidade dos textos,

considerando as modulações e graduações do éthos conotado.

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Nesse ponto, reside também outra questão instigante em Discini e que contribui muito

para a pesquisa aqui empreendida. É considerado hodiernamente ponto pacífico que a

argumentação está presente em todos os textos, uma vez que em todos há uma relação

fiduciária entre enunciador e enunciatário fundamentada por uma troca de valores, em que um

é responsável pelo fazer persuasivo e outro pelo fazer interpretativo. No entanto,

considerando como corpus o texto literário, há uma certa complexidade no que diz respeito

exatamente a essa relação entre o sensível e o inteligível. Como já foi tratado anteriormente,

Landowski (2014) preocupou-se em estabelecer uma gradação entre um regime de interação e

outro, de modo que se desfizesse a oposição entre um componente mais inteligível e mais

sensível, mas ressalta a criação de valores em conjunto no regime de interação em que o

sensível prevalece.

Observadas inicialmente as obras, parece-nos lícito elencar a ideia de uma

gradualidade nas obras de Orthof entre o sensível e o inteligível, coocorrentes, pois, conforme

colocado anteriormente, há uma intencionalidade de subverter ou complexificar valores

conservadores postos nas obras de literatura infantil de caráter mais moralizante, apontando

sempre para novos valores a serem buscados, mesmo que sejam a negação daqueles. Ou seja,

há, sem dúvida, elementos do regime sensível, pois se trata de um texto literário em que a

fruição, a imaginação e o riso ocupam um lugar de destaque, mas ao mesmo tempo há o fazer

crer e a manipulação, de modo que o enunciatário creia em determinados valores que podem

já estar previamente estabelecidos pelo enunciador e não construídos imprevisivelmente a

partir da interação entre os sujeitos. Mas, considerando os recursos expressivos empregados,

não se pode negar o risco da instauração de valores inesperados e não controlados pelo

enunciador.

De acordo com a perspectiva teórica de Landowski, conforme exposto anteriormente,

na manipulação há um sujeito motivado capaz de avaliar os valores pretendidos pelo

manipulador, levando a um querer / dever fazer alguma coisa, a decidir a partir dos desejos e

interesses do sujeito manipulador; ao passo que no regime do ajustamento, o sentido é

produzido em conjunto, é a interação que permite a construção do sentido por meio do fazer

sentir, que ocupa o espaço que antes, na manipulação, era reservado à persuasão. Vejamos

como isso ocorre em Orthof.

Na obra A fada de lá Pasárgada (2004a), são recorrentes os convites para que o

leitor participe ativamente da história, interagindo com a própria narrativa no sentido de

completar espaços, continuar a história, exigindo do enunciatário não só um papel cognitivo,

mas também uma experiência somática, de lidar com o livro como objeto físico, em que se

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desenha, escreve, etc. Em um desses convites, elenca-se os possíveis hospedeiros de piolhos,

como se vê:

Um dia ela estava catando piolhos nos cabelos de uma estrela desgrenhada, ... que tinha apanhado piolhos de um dragão, ... que tinha apanhado piolhos da bruxa piolhina, ... que tinha pegado piolhos dos pelos da vassoura, ... que tinha pegado piolhos de... (pode completar) (ORTHOF, 2004a, p. 22)

Há uma história em curso que o leitor precisa acompanhar de maneira que o sentido

seja produzido, mas a escolha do enunciador diz respeito à participação ativa do sujeito que

lê, de maneira que aceite o contrato proposto e as orientações do enunciador para que se

complete a história, escrevendo-a também. Nota-se, portanto, que, por meio de uma simulação

de criação e de invenção há, na verdade, valores previstos pelo enunciador, uma vez que o

enunciatário só pode completar a história e não recriá-la completamente, estabelecendo outros

sentidos, de modo a construir determinados parâmetros que faz o enunciador não abandonar

de vez o controle.

No que diz respeito à noção de risco, pode-se observar que ele existe, uma vez se

delega ao outro a participação na história, mas ele é atenuado, minimizado, tendo em vista

que, para que haja coerência, a história deve ser completada respeitando os limites e fronteiras

estabelecidos pelo enunciador. Há, sem dúvida, elementos que caracterizam esse texto como

literário, como a linguagem plurissignificativa, o universo das fadas criando a temática do

maravilhoso, a própria experiência somática, mas é clara, também, a orientação

argumentativa.

Poder-se-ia afirmar que o efeito desse tipo de recurso é o humor e que esse tipo de

componente sensível estabelece, pelo contágio, uma transformação mútua em que o sentido se

dá pelo ajustamento de um ao outro. No entanto, pode-se discutir se o riso, efeito de um

recurso escolhido pelo enunciador, emerge da interação, ou seja, se é um riso com o outro, ou

se já é fruto de uma intencionalidade, tendo em vista a hierarquia desigual dos parceiros da

interação. Parece-nos mais condizente a última opção, mas como, então, validar a existência

de dois regimes em um mesmo corpus, tendo em vista especialmente a construção dos

valores, em que, na manipulação, já é previsto e, no ajustamento, é construído na interação?

Aqui, parece-nos mais adequada à pesquisa as considerações de Discini, pois, apoiada

em Zilberberg, defende o sensível em todos os tipos de texto, sendo impossível haver em

algum texto a ausência completa do sentir, tampouco de um denotado puro. Ou seja, em

alguma medida, os textos apresentam tanto um viés mais sensível, quanto um mais inteligível,

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sendo a gradação do nível de conotação do éthos – mais estésico ou mais estético – o

componente desencadeador de uma definição de determinado estilo. Discini comprova que a

paixão e o perfil patêmico se constroem no enunciado e no conjunto, sobretudo em textos de

predominância de um perfil judicativo, assim como justifica a concretização de uma

inteligibilidade implicativa em textos de predominância de um perfil sensível, em que o

estético se sobrepõe.

Ou seja, quando se considera a possibilidade da coocorrência do inteligível e do

sensível, permite-se considerar o componente argumentativo (inteligível, judicativo e ético) e

o componente estético/estésico (sensível, conotativo, passional), ambos como constitutivos do

texto infantil, abarcando as possibilidades de sua prática ser, ao mesmo tempo, formativa e

literária, validando, portanto, a análise da interação persuasiva em um texto literário.

Auxiliam também na análise da argumentação no texto literário a composição da

imagem do éthos do enunciador, à medida que essa imagem deva ser positiva, confiável,

divertida, atrativa e, por consequência, o enunciatário inscrito deve reconhecer-se nessas

características de forma que seu corpo, tom e estilo possa harmonizar-se com o enunciador,

por um processo de complementaridade, ao que tudo indica. O contrato fiduciário se firmará a

partir dessa interação entre enunciador e enunciatário, considerando a imagem de um e de

outro para o fazer crer.

Além disso, verificar em que medida o discurso é organizado por meio da lógica

concessiva e não implicativa, a tonicidade de sentido que arrebata o sujeito pelo sobrevir, à

medida que ele primeiro seja impactado para organizar o sentido de maneira inteligível,

concretizando o discurso do acontecimento, importa na discussão da argumentação no texto

literário, já que se considera também o componente retórico do discurso.

Nesse jogo argumentativo, em que se inscreve a imagem do éthos do enunciador e do

páthos do enunciatário, buscando a aproximação e a adesão aos valores por meio da

confiança, o controverso ganha destaque, já que a inscrição da imagem competente,

considerando também o lugar de fala do enunciador, é fundamental para a construção dessa

parceria. No entanto, para crer nessa imagem do enunciador, é preciso que ele disponha de

artifícios que busquem o convencimento, já que se parte do princípio de que sempre se

argumenta a partir de um discurso polêmico, ou seja, de uma base não consensual, que é

fundamento da argumentação. Como há a necessidade de fazer o outro crer em um valor, que

a princípio é negado ou posto em dúvida, desconhecido ou indiferente para o destinador,

instaura-se o risco do rompimento do contrato fiduciário, já que não há um consenso entre as

proposições. Nesse ponto, reside a argumentação, já que só se pode argumentar a partir de

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uma polêmica, de algo que não é consensual entre as partes. A falta de certeza na aceitação

imediata dos valores faz surgir os recursos argumentativos, que são as escolhas do enunciador

para levar o outro a crer, e que serão analisados a seguir.

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3 OS RECURSOS DISCURSIVOS QUE LEVAM À CRENÇA

Os recursos utilizados pelo enunciador para conquistar a adesão do enunciatário são

essenciais para compreender como se estabelece o teor argumentativo nos textos. É possível

notar que a própria escolha desses recursos determina a forma como o enunciado deve ser lido

e como deve ser a interpretação do enunciatário. Ou seja, a opção por determinados recursos

constrói, por um lado, a imagem desse enunciador e, de outro, também indica como o

enunciado deve ser interpretado para ser tomado como verdadeiro ou verossímil, construindo,

assim, essa cumplicidade entre enunciador e enunciatário.

Considerando o exame dos recursos discursivos para a argumentação, é fundamental

citar, além dos procedimentos arrolados pela teoria semiótica, importantes contribuições de

alguns estudiosos que empreenderam análises dos recursos argumentativos, sejam de outras

áreas da ciência da linguagem, como a Pragmática, a Linguística do Texto, entre outras, sejam

semioticistas que as acolheram em seus estudos. Dentre esses, o tratamento da argumentação

na língua, empreendido por O. Ducrot, especialmente no que diz respeito à questão dos

implícitos, e o ponto de vista do acolhimento das teorias de texto na perspectiva semiótica,

com José Luiz Fiorin e Diana L. P. de Barros, merecem destaque.

O estudo da argumentação também mereceu atenção especial do semioticista Fiorin

em duas de suas mais recentes obras. A primeira, “Figuras de Retórica” (2014), a partir das

considerações de estudos clássicos, tratou do exame das figuras de linguagem tomadas com

um emprego retórico e que empreende diversos sentidos ao texto, questionando o lugar do

estudo das figuras de linguagem na tradição literária, que as considera um ornamento da

linguagem e um recurso de adorno empregado por alguns escritores. Assim, o autor opera

com esses recursos utilizados pelo enunciador, trazendo à tona alguns conceitos de retórica,

dialética e argumentação.

Já em sua segunda obra, “Argumentação” (2015), o autor destaca a dimensão

argumentativa de qualquer discurso, bem como a herança retórica nos estudos de

argumentação atuais, tomada não em relação à arte do bem falar e do bem dizer, mas em seu

viés discursivo. Para tanto, Fiorin atualiza conceitos bakhtinianos em relação à

heterogeneidade constitutiva de todo e qualquer discurso, estabelecendo uma relação entre a

natureza dialógica da linguagem e os recursos utilizados pelo enunciador para fazer crer.

Diana L. P. Barros, em “Teoria do Discurso: fundamentos semióticos” (2002),

admite três possíveis caminhos para a análise dos recursos argumentativos nos textos. O

primeiro diz respeito ao exame dos pressupostos e subentendidos no texto, tendo em vista a

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perspectiva de Ducrot sobre o uso dos implícitos como um recurso argumentativo. Assim, ao

considerar a aceitação do implícito como indispensável para o dizer, a autora retoma o aspecto

retórico da relação entre enunciador e enunciatário. Já na segunda perspectiva, são os estudos

pragmáticos de Austin e Grice, por meio dos atos ilocucionais, que descrevem essa relação

entre enunciador e enunciatário, tomando como fundamentais o lugar de fala do sujeito da

enunciação e, por consequência, a aceitação do dizer por parte do enunciatário.

Por fim, o tratamento da Argumentação para Barros deve considerar a argumentação

em relação a sua perspectiva retórica, qualificando-a sob o ponto de vista social da linguagem.

Retomando Perelman e Olbrechts-Tyteca, a autora destaca os meios para se obter a adesão

dos espíritos, bem como o importante conceito de auditório, como a inscrição do enunciatário

na produção do discurso. Há, ainda, a noção de contrato, que se relaciona à ideia de contrato

fiduciário, esse acordo tácito entre enunciador e enunciatário, fundamental no estabelecimento

da crença.

Portanto, cabe agora tratar de alguns dos mais importantes recursos discursivos da

manipulação recorrentes nas obras analisadas, ou seja, algumas das estratégias utilizadas pelo

enunciador para fazer crer e como a escolha dessas estratégias inscreve uma imagem de um

enunciador e de um enunciatário no discurso. Para tanto, análise considerará alguns recursos

discursivos para a abordagem da argumentação nos textos. No primeiro item serão analisadas

as combinações entre figuras e temas, as figuras de retórica decorrentes da combinação e sua

argumentatividade; no segundo, a intertextualidade e a interdiscursividade como atuantes na

subversão de valores; no terceiro, as projeções enunciativas e sua complexidade nas obras,

compreendendo também os modos de dizer como escolhas argumentativas e, por fim, a

orientação argumentativa como efeito das modalizações e das paixões.

Esse conjunto representativo de recursos não esgota a riqueza de procedimentos que se

podem encontrar nos livros infantis analisados, mas são suficientes para que se possa

compreender como funcionam para imprimir uma orientação argumentativa dos conteúdos e

como, por sua escolha, constroem a imagem qualificada do enunciador, em quem o

enunciatário possa confiar.

3. 1. MODOS DE COMBINAÇÃO DE FIGURAS E TEMAS

As figuras e temas são considerados o lugar da inscrição ideológica, uma vez que, por

um lado, recobrem as determinações sócio-históricas que se inscrevem no texto, construindo a

ideologia e, por outro, indicam escolhas do enunciador, a partir das figuras que “concretizam,

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dão corporalidade” aos temas (BARROS, 2004, p. 12). A semântica discursiva é, pois, nível

profícuo da argumentação, tendo em vista a representação dos valores de uma cultura, que

define a ideologia, e o modo como são interpretados pelo enunciador, a partir de um conjunto

de crenças e saberes.

Na relação entre as figuras e temas que criam a coerência semântica dos textos, estão

as figuras de retórica, recursos que atuam não só no âmbito da manifestação, mas também

possuem um importante papel argumentativo. Considerando as dimensões de intensidade e

extensidade das grandezas linguísticas, o modo de coexistência dos traços semânticos, o modo

de presença dos traços coexistentes e os graus de assunção enunciativa, Fiorin (2014) faz um

extenso inventário das figuras de retórica, buscando retomar a função argumentativa dessas

figuras.

Fiorin (1988, p.14) confirma o componente argumentativo das figuras de linguagem

tratando da relação entre o enunciador e enunciatário, no sentido de que o primeiro cria

efeitos a fim de chamar a atenção do segundo para seu discurso. Afirma o autor que as figuras

são procedimentos que fazem com que o enunciatário aceite melhor o enunciado, "dizendo

sem ter dito, simulando moderação para afirmar de maneira enfática, fingindo ênfase para

dizer de maneira atenuada, apresentando uma nova combinação de figuras" (idem). Desse

modo, o enunciador apresenta como se deve ler o enunciado, apresentando também modos de

ver o mundo.

Em Orthof, mostrou-se extremamente recorrente como recurso argumentativo a

combinação inusitada de figuras e temas, que, pelo insólito, complexificam valores rígidos e

fixos, apontando para sua relativização, buscando a adesão do enunciatário aos valores

subvertidos, em detrimento dos postos de maneira inexorável, construídos socialmente. Nesse

caso, o fazer crer é estabelecido por meio de comparações, metáforas e metonímias,

hipérboles, bem como a mistura de figuras do universo fantástico dos contos de fada (mundo

ficcional) e das figuras do mundo vivido pelo leitor, criando uma ilusão referencial. Em

muitos casos, há uma sobreposição de figuras e uma coocorrência de mais de uma em um

mesmo exemplo, criando efeitos interessantes.

Além disso, o embate entre o ser e o parecer, de um enunciador que dissimula o dizer,

construindo simulacros de verdade, falsidade, segredo ou mentira são fundamentais para a

persuasão. Assim, considerando que o modo de combinação entre figuras e temas também

designa um ponto de vista do enunciador em relação ao enunciado, será analisado outro

recurso relevante no corpus, a ironia. Abaixo, consideraremos algumas figuras de retórica

mais recorrentes em Orthof, apontando seu efeito argumentativo nos textos.

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3.1.1 As combinações insólitas

Ao se combinarem no texto, as figuras criam um percurso coerente que concretiza um

tema, não a partir dos lexemas isolados, mas de uma rede figurativa que instaura o sentido e a

coerência. No entanto, é possível, em alguns textos, observar percursos figurativos distintos

que, a princípio, não se conectam, causando uma aparente incoerência no texto. Trata-se,

então, de uma estratégia do enunciador, que visa "tematizar relações entre duas ou mais

ordens de fenômenos distintos" (Fiorin, 2009, p. 99). A organização figurativa, nesses casos,

cria determinados efeitos de sentido obtidos pela conjunção de figuras inusitadas.

É o que ocorre de maneira recorrente no corpus analisado. Ganha destaque, em muitas

obras, a combinação inesperada entre percursos figurativos distintos, mas que se explicam

pelo cruzamento e pelo efeito de sentido criado. Além da combinação, ressalta-se o insólito

em muitas figuras, revelando o humor e a irreverência.

Em A bruxa Fofim (2002), a narrativa se baseia na troca da palavra mágica

"Abracadabra" por "Abracadim", o que faz com que a bruxa vá perdendo suas peças de roupa,

até terminar nua (usando apenas um chapéu e um sapato). No texto, há de um lado, um

percurso figurativo que remete ao universo das narrativas de contos de fadas, como "bruxa",

"palavra encantada", "abradacadabra", "receitas bruxais", "chapéu" e, de outro lado, figuras

como “elástico da calcinha”, “sapato vermelho”, "sutiã", "traseiro ao vento" que instauram o

insólito e provocam o riso, à medida que incluem elementos estranhos àqueles do universo de

valores inscritos nos contos de fadas conhecidos, misturando universos temáticos distintos.

Não são somente estranhos aos contos de fada, mas inesperados para uma narrativa infantil,

pelo despudor, pela ousadia, já que recobrem o tema da nudez.

Em Fada Fofa em Paris (1995), narra-se a história de uma fada que, de tão gorda, ao

subir na torre Eiffel, deixa-a torta, e fica entalada no Arco do Triunfo, ao tentar passar por ele.

As figuras da "balança", "farmácia", onde a fada se dirige a fim de verificar o peso, bem como

a "boca colada com esparadrapo" para não comer mais, as figuras da torre Eiffel e do Arco do

Triunfo, em Paris, remetem a um efeito de realidade, ao explorar figuras e temas do universo

vivido pelo próprio leitor, abarcando temas da beleza e da saúde relacionados a um modelo de

corpo, tão discutidos nos dias atuais, conflitando com o mundo fantástico e maravilhoso dos

contos de fada, em um movimento que, ao mesmo tempo, cria uma aproximação do leitor

pelo uso de figuras e temas de seu universo experiencial e um afastamento, considerando o

universo maravilhoso, condizente aos contos de fadas, distante do leitor. Essa dinâmica e essa

mistura provoca o humor, causando surpresa ao enunciatário.

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Nessas combinações que marcam o insólito, muitas vezes pelo desconcerto nos

percursos temáticos e figurativos, é possível perceber que há um entrecruzamento entre

elementos que criam um efeito de referencialidade dentro da narrativa ficcional. Na verdade,

o confronto entre as figuras se relaciona a uma representação figurativa do tempo, de uma

época imaginária ou histórica. Os contos de fadas ancoram-se no tempo indefinido do "era

uma vez", por meio de figuras e temas de um tempo distante, diferentemente dos percursos

temático-figurativos que concretizam os tempos mais contemporâneos, aludindo a uma

preocupação estética do corpo, como dissemos, considerando a ideologia de um padrão de

beleza nos tempos atuais, que aqui se misturam.

Nesse ponto, é importante destacar as nuances entre contos de fadas e contos

maravilhosos, a fim de que seja clara a referência aqui feita ao universo do maravilhoso. De

acordo com Coelho (1991, p. 13), ambos, contos de fadas e maravilhosos, fazem parte do

universo do maravilhoso, com a diferença de que aquele desenvolve-se dentro da mágica

feérica, tem como eixo gerador a realização essencial do herói ou da heroína, relacionada à

união homem - mulher. Já os contos maravilhosos caracterizam-se pela ausência de fadas,

desenvolvem-se em um cotidiano mágico, tendo como eixo gerador uma problemática social,

geralmente relacionada a um desejo de autorrealização do herói (ou anti-herói) no âmbito

socioeconômico, por meio da conquista de bens riqueza, poder material (COELHO, 1991,

p.14).

O que se pode perceber, considerando os textos de Orthof, é uma mescla entre

elementos dos contos de fadas (como reis, príncipes, bruxas, objetos mágicos) e os elementos

dos contos maravilhosos (presença de espaços reconhecíveis e familiares, elementos ligados à

vida prática e concreta), por meio, especialmente, da combinação entre figuras e temas que

instaura o insólito nos textos.

Essa mescla do universo do conto de fadas com a representação figurativa dos contos

maravilhosos ocorre também em Manual de Boas Maneiras das Fadas (1995). O Manual,

como o próprio nome indica, parece ditar regras de comportamento, em que o sujeito deve

entrar em conjunção com normas de conduta e conjunto de regras de etiqueta, adquirindo a

competência para /ser fada/. Observando-se os elementos figurativos, é possível recobrir o

universo maravilhoso das fadas, da ficção e do faz-de-conta, a partir das figuras "gnomo",

"fada", "varinha de condão", e que também reiteram a temática do universo dos contos de

ficção infantis. No entanto, esse manual, que na manifestação também mantém uma relação

com o gênero discursivo nomeado no título, pelo uso dos verbos no presente do indicativo,

por exemplo, se constrói somente no nível do parecer, uma vez que, dentre as figuras que

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concretizam o dever fazer das fadas, verificam-se outras como dever "mastigar de boca

fechada", nunca "palitar os dentes" ou "arrancar a obturação".

Há, então, uma quebra na isotopia que parecia recobrir o tema da fantasia, do conto de

fadas, inscrevendo um outro percurso temático, relacionado ao humano, criando um efeito de

realidade, próprio do conto maravilhoso, e uma polêmica com o discurso fantasioso dos

contos de fada. Esse aparente conflito entre um percurso temático-figurativo do universo

fantasioso e o efeito de atualidade fica claro no trecho:

Uma fada boazinha, coitadinha, deve saber dobrar sem dar nó na linha, ser criatura pura, comer muita verdura, nunca ficar gripada. Se possível, não usar dentadura (ORTHOF, 1995, [n.p.]).

Misturam-se figuras como "fadas", "criatura pura", "nunca ficar gripada" e "não usar

dentadura", causando um estranhamento pela combinação entre dois percursos temático-

figurativos: um que diz respeito ao universo fantástico e o outro da experiência reconhecida

pelo leitor. Ou seja, mesmo considerando o Manual como um dever fazer que proporciona a

competência do /ser humano/ e não mais do /ser fada/, as figuras não se ajustam, já que há um

embate entre aquelas ações que são controladas e almejadas para que se alcancem as "boas

maneiras", como "dobrar sem dar nó na linha" ou "comer verdura" e aquelas que são fruto de

uma ação independente das vontades humanas como "nunca ficar gripada", "dever ser feliz

pra sempre". Essa subversão que se percebe, tanto no cruzamento de um percurso temático do

"fantasioso" e do "humano", bem como entre o que se pode regular e o que não é passível de

controle, instaura a surpresa e o riso, causando um efeito cômico ao texto, sobretudo pela

ridicularização do gênero manual, sugerindo padrões de etiquetas simplórios, banais e

corriqueiros, que se revela como verossímil pelo enunciador no fim do texto: "boas maneiras,

nem sempre, são tão boas pra mim" (ORTHOF, 1995, [n.p.]).

São inúmeros os exemplos em que se mistura esse universo do maravilhoso e a

atualidade em Orthof. Em Felipe do abagunçado (2009b), a combinação é "um computador

de avental e babados" (ORTHOF, 2009b, p. 15) e em Uxa concretiza-se por um "táxi-

abóbora" e "apaixonar-se por um computador" (ORTHOF, 1985b, [n.p.]). O universo

maravilhoso, por meio desse tipo de combinação das figuras, é parodiado, ridicularizado,

contrapondo, portanto, a fantasia dos conto de fada e a atualidade e modernidade das

narrativas contemporâneas. Cumpre ressaltar que essa mistura entre o mundo dos contos de

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fadas e dos contos maravilhosos não é uma característica exclusiva dos textos de Orthof, mas

que aqui ganha um tom único pela comicidade e irreverência com que se arranjam os temas e

figuras.

O componente argumentativo se constrói a partir do modo como o enunciador cria o

valor de verossimilhança a partir da mistura das figuras. O "estranhamento" da aproximação

entre os percursos capta a atenção do enunciatário e envolve-o, aqui, intensificado também

pelo efeito do riso, que o contagia, fazendo-o crer na verdade construída pelo enunciador, ou

seja, na ridicularização de um padrão de comportamento ou de beleza.

3.1.1.2 Metáfora e metonímia

O uso metafórico da linguagem por meio da relação entre duas figuras a priori

desconexas cria também o efeito cômico no texto. Fiorin (2014, p.34) define a metáfora como

um procedimento de concentração semântica, em que se restringe a extensão sêmica dos

elementos coexistentes, levando em conta apenas alguns traços comuns dos dois significados

que coexistem. Segundo o autor, o papel argumentativo dessa figura de retórica é muito forte,

já que ela atua no aumento da intensidade do sentido, tornando-o mais tônico. Já a metonímia

aponta para uma difusão semântica, em que o sentido é acelerado, uma vez que são

suprimidas algumas etapas enunciativas, dada a correlação entre os traços semânticos

(FIORIN, 2014, p. 37). Opera na transferência de um valor semântico a outro e, ao mesmo

tempo em que aumenta a extensão de sentido pela contiguidade, aumenta também a

velocidade pela omissão de etapas.

Considerando também dentre as figuras de condensação a comparação, é possível

observar como isso se constrói em Orthof. No corpus analisado, é bastante recorrente o uso de

figuras corriqueiras, banais, do cotidiano, na construção de metáforas, explorando,

novamente, o universo conhecido e vivenciado pelo leitor a fim de construir o sentido. Esse se

mostra um recurso argumentativo bem produtivo e eficaz, a medida que parte do conhecido e

do banal para criar um novo saber, a partir da intensificação do sentido.

Em Uxa, ora fada ora bruxa (1985b), a peruca da fada é descrita como "tão loura, que

chega a parecer uma cenoura" (ORTHOF, 1985b, [n.p.]). Considerando um caminho possível

de relação entre as duas figuras, “loura” e “cenoura”, a cor parece ser o traço sêmico comum

aos dois elementos, daí a possibilidade de nexo entre as duas. No entanto, o único traço

possível, a cor, é também discutível, tendo em vista que louro, por definição, relaciona-se à

"cor amarelo-claro, entre o dourado e o castanho-claro" (AURÉLIO, p. 319), enquanto a

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cenoura é uma "planta herbácea [...] de cor alaranjada" (ibid, p. 138). Na verdade, a

aproximação insólita das figuras "loura" e "cenoura" indica uma estratégia do enunciador de

aproximar as figuras incompatíveis, o que é corroborado no próprio texto, em que se nega o

próprio dizer:

Vestido de cetim, varinha de condão peruca escandinava... que é uma peruca muito loura, tão loura que chega a parecer uma cenoura... se cenoura fosse loura. (ORTHOF,

1985b,[n.p.]).

Nesse caso, a própria relação de aproximação construída comparativamente entre

"loura" e "cenoura" é negada ("se cenoura fosse loura"), indicando como,

argumentativamente, as figuras de retórica atuam na (re)construção de um saber, já que o

enunciador simula a aproximação e a desconstrói, orientando para um modo de dizer jocoso.

Em A história enroscada (2011), mais uma vez a aproximação das figuras se dá pelo

emprego de elementos do cotidiano. A figura do actante se constrói por meio de metáforas

que, por sua vez, explicam a outra metáfora, representada no título. A história é enroscada,

uma vez que o "rabo-rabicó" da porca é "um abridor de garrafa", as bochechas parecem "duas

grandes almofadas" e o nariz é "primo de uma tomada" (ORTHOF, 2011, p. 9-12). "Abridor

de garrafa", "almofada", "tomada" retomam o universo do conhecido, do experienciado no

cotidiano pelo leitor e a descrição do actante por meio das metáforas e comparações

intensifica o sentido, concentrando os traços comuns existentes entre as figuras, tomando, nos

casos analisados, elementos eidéticos como o traço sêmico que serve de comparação entre as

figuras.

Em Cavalo transparente (2003), a sereia é também descrita como uma aproximação

entre o universo corriqueiro e o ficcional:

Sou sereia do mar Sou da onda a magia Sou mulher e pescaria Sou robalo e pescadinha (ORTHOF, 2003, p.33).

No trecho "robalo" e "pescadinha", criam uma aproximação mais explícita com a

figura sereia, mas, ainda assim, remetem a um universo do cotidiano, que entra em aparente

conflito com "magia", mas que se explica pela combinação insólita, que cria o riso e o humor.

Em No fundo do fundo-fundo lá vai o tatu Raimundo (2012a), o Tatu, que tem por objeto de

busca a profundidade (cavar buracos cada vez mais fundos), encontra petróleo e sai "todo

esguichado" parecendo "um espaguete".

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Os exemplos acima confirmam que é recorrente nas obras de Orthof a condensação

semântica por meio de metáforas e comparações, que atuam como importante componente

retórico, ao inscrever um efeito de referencialidade, explorando o mundo vivido pelo leitor,

ressignificando-o, fazendo-o crer nesse novo valor da inventividade, efeito do insólito. De

acordo com Fiorin

O enunciador pode combinar figuras do discurso de tal maneira que chame a atenção

do enunciatário para aspectos novos da "realidade". Instaura, dessa forma, uma nova

maneira de analisar a semiótica do mundo natural, uma vez que, para criar esses

efeitos de sentido, trabalha com figuras do discurso, que criam uma ilusão de

referencialidade. Ao estabelecer uma "surpresa", o enunciador pretende levar o

enunciatário a aceitar seu discurso (FIORIN, 1988, p.11).

Um outro efeito causado pelo uso das metáforas no corpus pesquisado diz respeito à

ressignificação de metáforas já gastas pelo uso, as quais se atribui um outro valor semântico,

fazendo com que saiam do quase apagamento semântico e sejam reativadas na interação

novamente, ganhando outros sentidos.

Em Felipe do Abagunçado (2009b), a mãe passeia pelo quarto bagunçado do filho,

percorrendo a "Estação do Tênis", a "Estação da Roupa Amassada" e a "Terra do Sumiço",

figuras que concretizam a desordem. Nesta última, a expressão metafórica "chá de sumiço",

utilizada comumente para referir-se a objetos que se perdem e não mais se encontram, ganha

uma nova significação, levando o enunciatário a debruçar-se sobre o sentido da expressão, já

desgastada semanticamente. Na história, a meia toma o chá de sumiço, receita de uma prima

que inventou o líquido por "estar cansada de seu par" e por "não suportar essa vida de onde

vai um, o outro vai junto" (ORTHOF, 2009b, p. 33). A expressão ganha um sentido mais

literal, a partir da explicação de sua origem, e ressignifica a perda, que se torna uma

libertação.

Na obra Fada Cisco Quase Nada (2006), é a associação repetidamente feita entre a

rosa e sua delicadeza, fragilidade, que ganha um novo sentido. Fada Cisco vive num espaço

onde tudo é "abagunçado" e "amontoado":

Se um dia, assim, assado, você voltar a ser criança, seu tênis ficar jogado com um jeito de infância... seu quarto será a rosa, a rosa é abagunçada... e você, com tanto cisco, será parente da fada (ORTHOF, 2002, [n.p.])

Uma figura que geralmente desperta associações que remetem à tranquilidade,

serenidade (como a expressão mar de rosas), sofre aqui uma ressignificação, aludindo, agora,

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ao "abagunçado", em que tudo "fica jogado", representando, pois, o "jeito de infância". Mais

uma vez o valor posto é relativizado e um novo sentido é criado pela associação metafórica

inusitada.

Já em Rabiscos ou Rabanetes (2004c), o título representa, metonimicamente, o

concreto – os rabiscos – pelo abstrato – a ficção. Na obra, um menino se dedica a fazer

rabiscos, e, com eles, recria diferentes espaços, por meio de sua imaginação, ao passo que

uma senhora preocupa-se com o valor dos rabanetes na feira. Além do título, a metonímia que

marca essa aceleração pela contiguidade semântica inscreve-se também na parte (um

elemento do mundo, os rabanetes) pelo todo (o mundo das coisas, a referência ao mundo

prático). Retomaremos mais adiante à metonímia, já que ela aparece sobreposta a outras

figuras no texto.

O que se percebe pelos usos dessas figuras baseadas em semelhanças de traços

semânticos é uma associação que sempre se relaciona ao inusitado, ao insólito, seja

explicitamente pelo elemento comparativo ou condensada, como no caso da metáfora. O

surpreendente é o componente argumentativo que envolve o enunciatário, chama atenção para

o enunciado, levando-o mais facilmente à assunção de novos valores, recriados pela

aproximação semântica inesperada.

Além disso, as metáforas instauram no texto também a ludicidade, em que a

linguagem conotada, plena de sentidos, atribui ao texto a subjetividade, aproximando os

atores da enunciação pelo envolvimento também sensível. As metáforas e comparações

contribuem para o efeito irreverente nos textos, pela aproximação de figuras tão inesperadas,

mas que se explicam na interação entre o enunciador e enunciatário.

No entanto, não é só a concentração semântica que elucida o papel argumentativo das

figuras em Orthof, mas também o oposto, ou seja, a expansão semântica, como é o caso da

hipérbole, figura que será explorada adiante.

3.1.1.3 Hipérbole

Segundo Fiorin, a hipérbole se caracteriza pelo aumento de intensidade semântica,

uma vez que, "ao dizer de maneira mais forte alguma coisa, chama-se atenção para aquilo que

está sendo exposto" (FIORIN, 2014, p. 75). Na hipérbole, o dizer é mais intenso e tônico que

o dito e a expressão mais intensa engloba a menos intensa. Nos textos literários de Orthof, é

recorrente o emprego de recursos em que a hipérbole se expressa pela combinação de figuras

em que o exagero é o tom. Mais uma vez, o componente retórico está relacionado a um efeito

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de discurso, sobre como se deve ler o enunciado, que deve apontar para a intensidade do

enunciado e a atenuação na enunciação.

Em A velhota cambalhota, uma senhora pouco convencional leva a vida a dar

cambalhotas e, em certo momento, de tantas cambalhotas, toda a cidade se envolve no caos,

como se pode ver em:

O povo ia fugindo, tudo dando cambalhota [...] parece que o povo inteiro [...] dá cambalhotas também (ORTHOF, 1985a,[n.p.]).

O tom intenso é marcado, no enunciado, pelas figuras "o povo inteiro" (que inscreve

também uma metonímia) "tudo dando cambalhota", que recobrem o tema da desordem e do

caos, mas de uma forma exagerada, a medida que não só a velhota, mas todo o povo da cidade

dá cambalhotas, intensificando o caos vivido.

Na obra A história enroscada (2011), os porquinhos, em lugar de mamarem, sopram

as tetas da porca, fazendo com que ela infle, tal qual um balão. Para dizer que a porca

aumenta seu tamanho, escolhe-se a hipérbole como meio de combinar as figuras "inchando",

"estufando", "levantando", "balão", a ponto de "estourar" caso o livro seja fechado sem o

cuidado necessário, como adverte o narrador. As figuras que compõem formas exageradas

também são exploradas em Fada fofa em Paris (1995), em que a fada, de tão gorda, fica presa

no arco do Triunfo e na torre Eiffel, como se viu anteriormente, no subitem 3.1.

Em No fundo do fundo-fundo lá vai o tatu Raimundo (2012a), a figurativização do

objeto de busca se intensifica, à medida que se aumenta o tom, no caso abaixo, reiterado pela

repetição, pelo advérbio de intensidade e pelo aumentativo:

vou cavar tão fundo, fundo, vou fazer tal buracão, que se vocês não se afastarem, vão cair lá no Japão (ORTHOF, 2012a, p. 36).

A distância também sofre uma acentuação de sentido, uma vez que a figura "Japão"

intensifica a profundeza, valor buscado pelo sujeito. Trata-se, portanto, de uma intensificação

semântica, uma vez que o lexema indica a tonicidade do sentido, orientando para o papel

argumentativo da figura, por meio da ampliação do traço sêmico.

Por fim, o tom do exagero é marca também na obra Zoiudo (o monstrinho que bebia

colírio) (2012b). A obra mistura efeito de ficção e de referencialidade, ao unir seres

fantásticos e a simulação de episódios vividos pela autora, Sylvia Orthof, estes ancorados

temporalmente, actorialmente e espacialmente em coisas do mundo atribuindo um efeito de

referencialidade ao texto. Em dois momentos diferentes, há uma intensidade de sentido,

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atribuindo à obra um acento tônico. No primeiro, o cachorro se perde e toda a cidade se põe a

procurá-lo. O acúmulo de figuras dá o tom exagerado, além do procedimento metonímico do

uso de Petrópolis em lugar dos moradores da cidade:

Todo mundo, ali, na rua do Imperador, começou a procurar. Muitas pessoas nem

sabiam o que tinha sumido, mas procuravam. E foi assim que senhoras idosas,

velhotes, freiras, Paulinho Livro Aberto, Elaine, Tato, eu, dois guardas de trânsito,

vinte alunos do colégio Santa Isabel, três professoras do Colégio Werneck, um

garotinho chamado Diego, Ângela e Angelita, um turista paraguaio, duas senhoras

ensacoladas que tinham comprado malhas numa rua que só vende malhas, um

motorista de ônibus que havia comprado um sanduíche, aquele tio que você nem

sabe que você tem, parente daquela sua tia anônima, prima do seu avô, por parte de

sogra, todo mundo procurava. Petrópolis inteira procurava. [...] O trânsito parou

(ORTHOF, 2012, p.43).

A enumeração extensa dos actantes, dada pelo acúmulo numérico de figuras e seu

detalhamento, abrangidos pela metonímia "Petrópolis", são elementos que explicam a

hipérbole, explicitando o exagero. Indicam uma acentuação tônica, criando o efeito de caos e

de confusão na busca pelo cachorro. Em outro momento da obra, o uso hiperbólico se

manifesta por meio de uma metáfora. Após um apartamento incendiar-se, bombeiros apagam

o fogo com água e, "de tão molhado" o apartamento parece a "lagoa de Abaeté" (ORTHOF,

2012, p. 74). A comparação com a "lagoa de Abaeté" amplia e exagera o estado do imóvel

após a ação dos bombeiros, caracterizando o acento tônico e o exagero, próprios da hipérbole.

A seguir, ganham destaque os modos de combinação de figuras, que indicam uma

avaliação do enunciador em relação ao seu dizer e que, ao mesmo tempo, apontam o tipo de

interação entre enunciação e enunciado.

3.1.1.4 Ironia e seus efeitos argumentativos

A ironia é uma figura de destaque na obra de Orthof, uma vez que é bastante

recorrente nos textos e aponta para uma escolha argumentativa do enunciador, tendo em vista

que muitos percursos temático-figurativos só se explicam e ganham sentido por meio da

leitura irônica do texto, o que se pretende comprovar a seguir.

A princípio, cumpre definir o que se entende por ironia, estabelecendo uma diferença

entre esse recurso e o humor. É tênue e, por vezes, confusa a linha que difere esses dois

recursos, mas é possível traçar elementos característicos que os diferem, considerando

também os efeitos produzidos no discurso. Bertrand propõe uma distinção hierárquica e

estratificada entre esses dois componentes, observando que a ironia opera em uma ordem

paradigmática, enquanto o humor atua no eixo sintagmático, já que a primeira é definida

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como uma forma de expressão, em que a interpretação do discurso reside na possibilidade de

fazer surgir o valor contrário (ou contraditório) àquilo que é enunciado. Já o humor rearticula

a ordem dos encadeamentos que perturba a lógica previsível (BERTRAND, 1989, p. 94).

Fiorin compreende a ironia como um alargamento semântico, à medida que um

significado tem seu valor invertido, abarcando o sentido e seu oposto. Ela

apresenta uma atitude do enunciador, pois é utilizada para criar sentidos que vão do

gracejo até o sarcasmo [...]. São duas vozes em conflito, uma expressando o inverso

do que disse a outra; uma voz invalida o que a outra profere (FIORIN, 2014, p. 70).

A ironia atua como um alargamento semântico, uma vez que, de um lado, o

significado tem o seu valor invertido, considerando o sentido, e também seu contrário, e de

outro, intensifica-se o sentido, pois se diz o contrário do que se quer dizer. É um recurso de

alto teor argumentativo, tendo em vista que, na oposição entre o ser – o que se afirma na

enunciação – e o parecer – o que se diz no enunciado, é necessário crer no que é construído

como verdadeiro pelo enunciador, a partir de uma orientação argumentativa sobre como o

enunciado deve ser lido (verdade, mentira, falsidade, segredo).

Como exemplo para ilustrar de que maneira a ironia é contemplada como um recurso

argumentativo em Orthof, voltemos à obra Manual de boas maneiras das fadas (1995). Há

um sujeito destinador – actorializado pela sociedade – que busca manipular o sujeito

destinatário – actorializado pela fada – por um dever-fazer de modo que este entre em

conjunção com o objeto-valor refinamento, comedimento, e, como se viu anteriormente, há

duas configurações temáticas, uma que se relaciona ao mundo da fantasia e outra ao efeito de

referente, próprio do conto maravilhoso, como se vê em:

Um gnomo ensina que toda fada deve mastigar de boca fechada" [...] "Uma fada não palita os dentes nem com varinha de condão! Há o perigo de dar disse-que-disse, estragar a fama de fadice, arrancar alguma obturação (ORTHOF, 1995, p. 2;7).

Além dos dois percursos temáticos indicados, há figuras que instauram uma isotopia

no texto, por meio de figuras como "mastigar de boca fechada", "palita os dentes", "arrancar a

obturação", inscrevendo um percurso temático, relacionado ao humano e às experiências mais

concretas. Essa confluência isotópica, na verdade, indica que essas ações desejáveis são

humanas e, portanto, dizem respeito às "boas maneiras" que se esperam das crianças. Ainda a

partir dessa isotopia construída no texto, é possível destacar o trecho:

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Uma fada boazinha, coitadinha, deve saber dobrar sem dar nó na linha, ser criatura pura, comer muita verdura, nunca ficar gripada. Se possível, não usar dentadura (ORTHOF, 1995, p. 26).

Pelas figuras "nunca ficar gripada" e "não usar dentadura", mesmo considerando o

percurso temático que representa as ações desejáveis ao humano, as figuras não se ajustam já

que, como já demonstramos anteriormente (item 3.1.1), se aproximam aquelas ações que são

controladas e almejadas para que se alcancem as "boas maneiras", como "dobrar sem dar nó

na linha" ou "comer verdura" e aquelas sob as quais não se tem controle e são fruto de uma

ação exterior às vontades humanas como "nunca ficar gripada". Essa impropriedade aparente

que se percebe, tanto no cruzamento de um percurso temático do "fantasioso" e do "humano",

bem como entre o que se pode regular e o que não é passível de controle, instaura a ironia.

A ironia se explica pelo fato de o enunciador, ao misturar as figuras dos contos de

fadas e do maravilhoso, ao ponto de elencar as ações que são, inclusive, impossíveis de

controlar, construir um enunciado em que se deva ler o contrário do que se diz e esse tom

jocoso expressa as duas vozes em conflito, invalidando o que se diz no enunciado, em

detrimento do que se instaura na enunciação, gracejando com as tais boas maneiras que, a

princípio, o manual parecia querer infundir nas fadas e, metaforicamente, nos leitores

crianças.

O embate de vozes se manifesta, nesse sentido, no nível do ser e do parecer, já que o

enunciado parece dizer algo que é negado pela enunciação, caracterizando a ironia no texto, o

que se pode confirmar em um outro trecho da mesma obra:

Se um certo dia de agonia, a fada suspirar assim: - Boas maneiras, nem sempre, certamente, são tão boas pra mim! Se em tal hora o Sol da liberdade se escancarar no céu se uma estrela de fada, libertada, pular fora do chapéu... é hora de ficar contente." (ORTHOF, 1995, p. 28)

Assim, há uma negação, no nível do ser, de um interdiscurso relativo aos contos

maravilhosos, tendo em vista que, pela configuração figurativa e temática, como se pôde ver,

ele guarda semelhanças com o universo do conto de fadas, mas não o é, dado que remete a

outros valores, como a liberdade e a subversão de regras de comportamento tematizadas

nesses textos.

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Outro exemplo pode ser citado, a obra Ovos Nevados (1997). Nela, se discutem as

relações de poder, considerando uma narrativa de base de um sujeito – a princesa – e seu

objeto de busca – o prazer gustativo. A relação polêmica entre os valores do excesso e da

carência já se instaura pela avidez da princesa pela comida (o que faz com que engorde

desmedidamente, a ponto de obrigar a costureira real a adicionar panos ao vestido da

princesa) e a fome por que passa o povo. Há, então, de um lado, figuras que recobrem o tema

da opulência ("gordura", "engordava", "comeu tanto", "vestido esticou"), todos relacionados

ao espaço da realeza e, de outro, figuras que recobrem o tema da escassez, como "magro",

"fome", "ovos nevados... para pouquíssimos", relacionados à plebe.

O conflito entre o ser e o parecer é explorado a todo momento na obra, de maneira que

representa, metaforicamente, as relações de poder, em que a aparência e a essência são as

oposições fundamentais de base. Ao discursar, a rainha aparecia "simples", com uma

"coroinha de esmeralda", já que "diamantes poderiam parecer ostentação" (ORHOF, 1997, p.

12). Todas as figuras indicam uma estratégia argumentativa do enunciador de apontar a

fragilidade das aparências, sobretudo no que diz respeito às relações de poder, em que o

parecer ser se sobrepõe à essência. No entanto, o conflito entre o ser e o parecer não se mostra

apenas como metáfora de uma determinada ideologia, mas também se dá no nível da

enunciação, que produz um efeito cômico ao texto. O dia do discurso do rei, por exemplo, é

definido como "importatérrimo" e o sufixo de grau aumentativo "érrimo", em lugar do

"íssimo", cria o neologismo, cujo efeito é de gozo, deboche, zombaria, fazendo ler o contrário

do dito, ou seja, aponta para a futilidade e banalidade da data, corroborado pelo nome dado ao

evento: "Dia Nacional da Verborreia Real" (ORTHOF, 1997, p. 10).

Além disso, a todo momento na obra, o enunciado que se repete aponta para a

exclusividade dos acontecimentos "Mas aquilo era só naquele reino..." (ORTHOF, 1997, p. 8;

10; 19), quando, na verdade, deve-se ler ironicamente, no sentido de que tais comportamentos

são comuns em todos os lugares em que são postas em confronto as relações de poder.

Por fim, toma o poder a costureira real que, de "magra" e "exausta" passa a "engordar"

em razão da função presidencial que ocupa, uma vez que é eleita por "saber remendar muito

bem" (ORTHOF, 1997, p. 19). Ou seja, quando se lê ironicamente o texto, chega-se aos

valores aos quais o enunciador busca a adesão, que dizem respeito à crítica aos poderes

instituídos, à fragilidade das relações de poder, em que se criticam, inclusive, as próprias

formas de governo, tomadas, aqui, como chiste, chacota.

Em Zoiudo, o monstrinho que bebia colírio (2012b), a ironia se mostra pela discussão

da importância dos documentos oficiais para certificação de algo que existe ou que é tido

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como verdadeiro. Nesses casos, o modo de dizer, marcado no plano da manifestação pela

caixa alta, pelo uso dos sufixos, indicam uma leitura irônica:

Tato ficou indignado e foi buscar um papel, lá no arquivo dele. Voltou, xingando em

polonês, mostrando um amarelecido documento, que trazia a informação,

carimbadíssimo e a dita cuja da certidão era uma assinaturíssima, que tinha sido

feito, PESSOALMENTERRIMAMENTE, pelo então Exmo. Presidente Doutor

Getúlio Vargas (eta papel velho!) dizendo que ele (Tato) era brasileiro naturalizado

(ORTHOF, 2012b, p. 16).

- Acho que Zoiudo é uma espécie oftalmológica-mitológica-brasiliense! - declarou

Dr. Carlos. Zoiudo adorou e pediu uma certidão. E foi assim que Zoiudo ficou classificado e

teve seus papeis em ordem, com carimbo, assinatura esculápia e tudo o mais.

(ORTHOF, 2012b, p. 28)

Ou seja, embora o enunciado indique a necessidade das certidões para classificações

ou comprovações diversas, funções do documento, a enunciação, por meio do modo de dizer,

orienta a leitura oposta, apontando para o questionamento da importância desse tipo de prática

social. No primeiro trecho, por exemplo, o fato de o ator Tato ter de pegar o documento

comprovando que era brasileiro naturalizado "xingando em polonês", ironiza a qualidade de

brasilidade que ele pretende comprovar com o documento.

O que se vê, portanto, é que as figuras de retórica possuem um importante papel

argumentativo em Orthof, seja por meio das combinações insólitas, em que a metáfora e a

hipérbole aproximam figuras aparentemente incompatíveis, mas que se explicam por meio da

concentração dos traços sêmicos ou de um tom intenso, causando o riso, o efeito cômico, seja

por um modo de dizer irônico, instaurando valores novos e questionando uma ideologia posta.

As figuras e temas em Orthof, apontam, portanto, para um recurso argumentativo em que a

análise da semântica discursiva é o lugar dos valores e da ideologia construídos no texto e o

dizer indica um tipo de contrato entre enunciador e enunciatário em que o riso é a estratégia

que proporciona a persuasão. A seguir, são a intertextualidade e a interdiscursividade que se

mostram como recurso relevante na construção da confiança e da crença no discurso.

3.2. A INTERTEXTUALIDADE E INTERDISCURSIVIDADE COMO RECURSO

ARGUMENTATIVO

Todo discurso é, por sua constituição, dialógico. E, para tratar de dialogismo, é

fundamental reportar às ideias de Bakhtin (1992), que investigou as relações que se estabelecem

por intermédio do discurso e como a linguagem se instaura de maneira a atualizar a ideologia, as

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crenças e a cultura de uma sociedade. Assim, se toda linguagem pressupõe um diálogo, é

possível afirmar que, em todo enunciado, há pelo menos duas vozes, demarcadas

explicitamente ou não, discussão que interessa sobremaneira à investigação da

intertextualidade nos textos.

Bakhtin (2003) trata das questões de linguagem, chegando ao enunciado, instância de

sentido na linguagem, unidade real de comunicação. Esses conceitos se mostram relevantes,

pois se deixa de conceber o texto somente como um conglomerado de informações, adotando

também os enunciados que se combinam a fim de constituir o todo de sentido. Para o filósofo

russo, o enunciado se diferencia das demais estruturas linguísticas pelo fato de pressupor uma

resposta. Afirma Bakhtin que

Desde o início, porém, o enunciado se constrói levando em conta as atitudes

responsivas, em prol das quais ele, por essência, é criado. Desde o início o falante

[...] espera uma ativa compreensão responsiva. É como se todo o enunciado se

construísse ao encontro dessa resposta. (BAKHTIN, 2003, p.301)

A análise que se faz, então, é a de que a linguagem baseia-se na percepção de um

diálogo, ainda que não explícito, pois a produção de sentidos dos enunciados é a configuração

de uma concepção dialógica, já que a língua tem uma propriedade inerente de ser dialógica.

Isso não significa dizer que o enunciador não tem uma produção original, ou seja, entender a

linguagem como dialógica é diferente de afirmar que não há espaço para a criatividade do falante.

Certamente, a criatividade é uma possibilidade de nossas produções, mas essa inovação não pode

ser total e completa, até mesmo porque isso poderia comprometer a comunicação, a interação

entre os sujeitos, já que o ineditismo total seria o caos, produzindo uma situação incompreensível

para o destinatário.

Os postulados de Bakhtin auxiliam na compreensão de que todo discurso é, por sua

constituição, dialógico e são fundamentais para compreender a diferença entre a constituição

polifônica inerente a cada texto e a intertextualidade.

No que diz respeito ao tratamento da exterioridade para a semiótica francesa, pode-se

dizer que a questão esbarra no postulado fundamental da teoria sobre a imanência nos textos.

No entanto, o impasse se desfaz quando se parte do princípio de que as relações com o outro

verificam-se através dos elementos do próprio texto, manifestadas pelos recursos nele

utilizados e a enunciação, ao instaurar no enunciado um eu e um tu, já inaugura o dialogismo.

Para Norma Discini

Por conseguinte, fica ratificado que o eu se constitui inevitavelmente pela relação

com o não-eu, com o outro. Fica ratificada essa heterogeneidade constitutiva de todo

discurso, considerando a imanência de próprio texto. Mas fica também proposta a

heterogeneidade mostrada, identificável de várias maneiras (DISCINI, 2005, p. 110).

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A concepção dialógica da língua também é preocupação dos estudiosos da Análise do

Discurso. Para a linguista francesa Authier-Revuz (1990), a linguagem é, por sua constituição,

heterogênea. A historicidade, então, aparece integrada na linguagem e nos processos

discursivos, relacionando-se à exterioridade constitutiva de qualquer discurso. Afirma a

autora:

Sempre, sob nossas palavras, “outras palavras” são ditas: é a estrutura material da

língua que permite que, na linearidade de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não

intencional de todo discurso, através da qual a análise pode tentar recuperar os

indícios da “pontuação do inconsciente”. (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.25)

Para a autora, há dois tipos de heterogeneidade no discurso: a heterogeneidade

constitutiva e a mostrada. A heterogeneidade constitutiva compreende os textos em que não se

percebe explicitamente a voz do outro, é a heterogeneidade presente em qualquer discurso. Já

a heterogeneidade mostrada corresponde aos discursos perpassados nitidamente pela

alteridade, manifestada ao longo do discurso e perceptível através de análise. Relacionando

estes conceitos da AD francesa à teoria semiótica, poder-se-ia afirmar que, ao que se chama

de heterogeneidade constitutiva corresponde, na semântica discursiva, aos percursos temáticos

e figurativos de um texto, em que se percebe uma recorrência de traços, perfazendo os

percursos que recobrem as ideologias do texto, o interdiscurso.

De acordo com a AD francesa, a heterogeneidade mostrada pode se subdividir em

marcada e não marcada. A primeira é prevista quando, no âmbito da enunciação, a voz do

outro é linguística e explicitamente marcada, como no caso do uso de itálico, aspas,

referências, dentre outros. Na segunda, em um contexto discursivo, é um certo efeito de

sentido relacionado à voz do outro que indica, de maneira não marcada linguisticamente, a

alteridade. É o caso do discurso indireto livre, a ironia, a alusão, a paródia, a reminiscência,

etc. Para a semiótica, a heterogeneidade mostrada relaciona-se aos vários procedimentos

discursivos utilizados nas relações entre enunciador e enunciatário, seja pela incorporação de

outra voz no fio do discurso do narrador, seja pela projeção em segundo grau, pela delegação

da fala a algum actante no enunciado.

No que diz respeito à interdiscursividade, retomando os conceitos de Bakhtin, as

contribuições da Análise do Discurso trouxeram à tona reflexões sobre a heterogeneidade

constitutiva de todo o discurso, quando acrescenta aos estudos a noção de que mesmo sem

qualquer marca explícita de heterogeneidade, os textos possuem, na sua produção, outro(s)

discurso(s) subjacente(s) a eles, sendo esta heterogeneidade inerente e, inclusive, condição

para o entendimento de novos textos. Para Maingueneau

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Toda enunciação, mesmo produzida sem a presença de um destinatário, é, de fato,

marcada por uma interatividade constitutiva (fala-se também de dialogismo), é uma

troca, explícita ou implícita, com outros enunciadores, virtuais ou reais, e supõe

sempre a presença de uma outra instância de enunciação, à qual se dirige o

enunciador e com relação à qual constrói seu próprio discurso (MAINGUENEAU,

2008, p.54).

Há uma diferença entre interdiscursividade e intertextualidade, importante para

definirmos a base sobre as quais a análise dos textos de Orthof será feita. Para a semiótica, é

importante destacar que, a partir da imanência do texto, no plano do conteúdo e de sua

manifestação – através da junção com o(s) plano(s) da expressão – depreendem-se os sentidos

que se instauram na linguagem. E a chamada heterogeneidade constitutiva pode ser concebida

no âmbito da semântica discursiva, em que os percursos temáticos e figurativos e suas

relações nos textos concretizam a diversidade de crenças, visões de mundo, ideologias

instauradas no enunciado, podendo aparecer de maneira consensual ou polêmica, definido,

portanto, a interdiscursividade. Trata-se de um procedimento que ocorre no âmbito do

discurso, considerando esse nível como o momento da assunção, pelo enunciador, das

categorias narrativas, que são agora actorializadas, temporalizadas e espacializadas, por

intermédio de mecanismos da enunciação, e que são revestidas de temas e figuras e que,

posteriormente, mesmo que de maneira não marcada, são apreensíveis no texto através da

escolha vocabular e outros recursos, formando uma rede de discursos sociais que não se

materializam, necessariamente, em textos em sentido estrito. Barros confirma os caminhos

possíveis de análise da exterioridade nos textos, considerando o princípio da imanência nos

textos

O exame da “exterioridade”, na perspectiva semiótica, assume, portanto, rumos

seguros e diferenciados: uma das direções considera as relações do texto com sua

historicidade, analisando, sobretudo, os temas e figuras do discurso e os laços

intertextuais e interdiscursivos;[...] (BARROS, 2009, p.351).

Para Fiorin, interdiscursividade e intertextualidade se misturam, por vezes, nas leituras

feitas sobre a obra de Bakhtin, já que o termo intertextualidade ganhou uma conotação muito

alargada, sendo, muitas vezes, confundido com a própria noção de dialogismo. Isso se deve à

falta de clareza entre a noção de texto e enunciado, pois, de acordo com o autor, em Bakhtin

já se apontava para ideia de que enunciado é o todo de sentido, marcado pelo acabamento e

passível de réplica, enquanto o texto é a manifestação do enunciado, dotado de materialidade,

concebido como uma realidade imediata (FIORIN, 2008, p. 52).

Há, pois, duas orientações diferentes em relação ao dialogismo na linguagem: uma

entre enunciados, que constitui a interdiscursividade, e uma que se materializa em textos, a

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intertextualidade. O autor distingue intertextualidade de outros tipos de inserção da voz do

outro no texto, denominados como discurso alheio demarcado, caso do discurso direto,

indireto, uso de aspas e negação. Como discurso alheio não demarcado, Fiorin enquadra os

casos de discurso indireto livre, a polêmica, a estilização e a paródia (FIORIN, 2008, p.42).

Ainda segundo Fiorin, a intertextualidade é “o processo de construção, reprodução ou

transformação de sentido” (FIORIN, 2003, p. 29), em que se procede a introdução de um

texto em outro, com o sentido de reproduzir o sentido do texto citado ou de transformá-lo,

criando, portanto, uma relação polêmica, nos casos em que há a transformação de sentido. A

intertextualidade corresponde a um tipo de dialogismo, havendo, no interior do texto, o

encontro de duas materialidades linguísticas, ou seja, de dois textos. Por materialidade

linguística, entendem-se os textos em sentido estrito ou um conjunto de fatos linguísticos,

como o jargão, o estilo, a variação linguística, etc. Ressalta o autor que, para que a

intertextualidade ocorra, é necessário que um texto tenha existência independente do texto

com que ele dialoga.

Para compreender a intertextualidade, é necessário observar que se instauram dois

níveis de leitura no texto, um do texto de base e o outro com o qual ele conversa, podendo ser

esta relação polêmica ou consensual, a partir da utilização de variados recursos de inserção do

outro no texto, como a alusão, citação ou estilização (Fiorin, 2003). Na citação, incorporam-se

trechos do texto original e pode-se confirmar ou alterar o sentido do trecho citado. Em Felipe

do Abagunçado (2009b), há um caso de citação, em que se insere uma conhecida parlenda:

- Este trem é diferente... Aqui, para viajar, é preciso dizer um verso. Lili pensou, pensou... e lembrou e disse: Batatinha quando nasce Se esparrama pelo chão A menina quando dorme Bota a mão no coração (ORTHOF, 2009b, p. 13).

A parlenda é introduzida no texto tal qual o texto original, sem que haja necessidade

de sinalização gráfica para que seja feita a referência. Já a alusão reproduz construções

sintáticas e certas figuras são substituídas por outras, mantendo uma relação hiperonímica ou

figurativizando o mesmo tema. Percebe-se este procedimento em A velhota Cambalhota

(1985a)

O anjo levou um pito De São Pedro, lá no céu. Dirceu fez uma poesia Pra Marília, sua amada. (ORTHOF, 1985a, [n.p.])

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Há uma alusão ao poeta Tomás Antônio Gonzaga, cujo pseudônimo é Dirceu, e sua

obra, Marília de Dirceu, publicada em 1792. Nota-se que não há uma reprodução de um

trecho da obra, mas uma referência à produção do poeta, figurativizado na obra como um

actante da enunciação.

Já a estilização refere-se à reprodução do conjunto de procedimentos de um discurso

alheio, compreendendo estilo como um conjunto de recorrências formais, relacionadas ao

plano do conteúdo ou ao plano da expressão. Em Manual de Boas Maneiras das Fadas

(1995), as escolhas lexicais, o modo verbal no presente do indicativo, o uso de negações

indicando as proibições simulam o modo de dizer de manuais de etiqueta e comportamento,

aos quais se faz referência a um estilo de um gênero discursivo, a fim de ridicularizá-lo:

Uma fada enfadada nunca deve esticar o dedo quando segurar uma xícara [...] Uma fada não palita os dentes Nem com varinha de condão! (ORTHOF, 1995, [n.p.]) .

Discini, ao estudar a intertextualidade no conto maravilhoso, faz referência a tipos de

intertextualidade distintos, que caracterizam os textos como polêmicos ou paródicos (casos de

subversão do texto original), parafrásticos ou estilizados (casos de captação do texto de base)

(DISCINI, 1991, p. 16). A subversão ao texto original é característica dos textos de Orthof,

como se verá a seguir.

A polêmica e a paródia constituem os casos em que o texto original é subvertido e os

esquemas narrativos são retomados, ou por meio de uma nova roupagem discursiva, ou com

alterações no percurso narrativo original. A paródia, por sua vez, diz respeito aos casos de

releitura de todo o texto original, pressupondo-se o outro pelo caráter subvertido,

consolidando um novo éthos

A paródia, para subverter o mostrado, viabiliza meios de reconhecimento dos temas

e figuras encadeadas e tratadas de maneira própria no discurso de referência. Imita a

cena narrada, mas a subverte. Como a todo enunciado está pressuposto o sujeito da

enunciação, a enunciação parodística subverte também a ética que sustenta o

discurso de referência (DISCINI, 2010, p. 166).

Nesse sentido, entende-se a paródia por meio de um conflito entre a enunciação

enunciada e enunciado enunciado, uma vez que o texto intertextual rejeita o texto base no

modo do ser e não do parecer. O humor se constrói, portanto, pela contraposição de isotopias,

considerando o nível discursivo, a partir da desconstrução da enunciação do texto-base

(DISCINI, 1995, p. 59). Assim, no texto intertextual, é importante observar como os valores

do texto-base fundamentam o novo texto, mas sob uma nova perspectiva, da ridicularização,

da criação da polêmica, transformando o sentido a partir de uma mesma história intertextual.

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Na análise, verificaremos a recorrência de um discurso parodístico em relação aos contos de

fadas.

Há os casos em que não se subverte o texto original, mas a intertextualidade ocorre

pela captação do texto base. A paráfrase compreende a citação mútua do texto e do discurso,

observando-se uma complementação do modo de ser e do fazer, a partir de perspectivas

iguais, mas não idênticas. Ocorre em Orthof quando na obra Zoiudo, o monstrinho que bebia

colírio (2012b), o actante do enunciado insere a voz do actante de outra obra de Orthof, Uxa,

ora fada, ora bruxa (1985b), e o dizer do personagem da obra original se faz ouvir pela voz

do actante da obra que o parafraseia:

Tem dias em que ela acorda danada de boazinha, bota uma peruca loura, óculos de

coração e diz: — Sim, sim, sim, lógico, certamente! [...] Mas tem dias em que Uxa acorda danadona [...] e diz: — Não, não, porca miséria, “strogonof” de urubu, pum de avestruz, neca de

pitibiriba!— (ORTHOF, 1985b, [n.p.])

Sem dúvida, é importante ressaltar que a intertextualidade no texto de literatura

infantil tem um importante papel de ampliar o conhecimento de mundo da criança, à medida

que o reconhecimento da bivocalidade do texto depende do conhecimento prévio do texto de

origem. A dupla leitura do texto está intrinsecamente relacionada, portanto, à recuperação do

texto de origem, à sua retomada para uma nova ressignificação. No caso do exame da

intertextualidade como recurso argumentativo, ressalta-se que a intertextualidade atua na

memória e no reconhecimento de outros textos que se presumem já serem da vivência do

enunciatário, de circulação na sociedade, e, ainda que a argumentação opere sempre sobre o

que será assumido como verdadeiro pelo outro, é a partir de uma partilha mínima de saberes

entre os parceiros da comunicação que o conflito e a posterior adesão ao desconhecido/negado

ocorre e a intertextualidade atua como procedimento que favorece a legitimação desse

contrato estabelecido entre enunciador e enunciatário em Orthof.

Nas obras de Orthof, a intertextualidade será observada a partir da análise das

narrativas que contestam os valores conservadores pertencentes ao universo dos contos de

fadas, em que a narrativa de base é parodiada e a intertextualidade garante o diálogo entre os

textos, de modo que a leitura do texto de Orthof ganhe uma significação especial a partir da

polêmica em relação ao texto original. Assim, serão dois os caminhos de análise da

intertextualidade em Orthof, orientados pelo destaque desses procedimentos utilizados nos

textos: (i) um que verifica como os textos de Orthof retomam textos específicos, observando

como os valores são axiologizados no texto original e no intertextual, como se subvertem os

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programas narrativos de base e como se reconfigura o percurso temático-figurativo, são os

casos das obras Uxa, ora fada, ora bruxa (1985b), Ervilina e o Princês (2009a) e Maria vai

com as outras (1982), e (ii) outro que verifica como a isotopia garante a referência aos textos

do conjunto de contos de fadas variados, sem uma referência a um texto específico, mas como

uma totalidade de textos de um mesmo gênero discursivo, observados em Orthof nas obras

Manual de boas maneiras das fadas (1995), A bruxa fofim (1997), Fada fofa em Paris (1995),

Fada Cisco quase nada (1992) e A fada lá de Pasárgada (2004a), construindo a

interdiscursividade nos textos.

Gomes já demonstrou em sua dissertação de mestrado, ao analisar a obra de Orthof,

Uxa, ora fada, ora bruxa, que a intertextualidade tem um importante papel em Orthof, à

medida que

a construção da narrativa moderna e a busca da relativização de valores se torna

possível através da projeção de uma multiplicidade de vozes que a enunciação põe

em jogo no texto, desvelando o diálogo interno que caracteriza qualquer texto, mas

que em alguns (como este) se afirma como uma intertextualidade mostrada, tornada

evidente, sendo a voz do outro a matéria a partir da qual a enunciação trabalha,

construindo o objeto almejado. (GOMES, 1996, p. 59).

Ou seja, a relativização dos valores propostos em Orthof só será possível a partir do

jogo de vozes estabelecido entre as narrativas de base, os contos de fadas originais, e o

intertexto, uma vez que é o embate polêmico entre esses dois universos o que permite essa

relativização.

3.2.1 A intertextualidade

Passemos então à observação deste recurso em Orthof, considerando títulos que

retomam textos já em circulação na sociedade, caso de Ervilina e o Princês (2009a). Na obra,

a relação intertextual é explicitada no próprio texto, em que fica claro o propósito da retomada

do texto original:

Vou contar, cá do meu jeito, Uma história muito antiga (...) História tão recontada Que resolvi aumentar. Quem conta um conto, aumenta, Um ponto mais, outro mais, Transforma, vira e inventa, Quem conta um conto Refaz (ORTHOF, 2009a, [n.p.])

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Fica claro, de acordo com o trecho, que a função da retomada ao outro texto diz

respeito à sua transformação de sentido, à "reivenção" da história original, tendo em vista que

a inserção um texto em outro tem sempre outros objetivos, já que se "refaz" a partir de algo já

exsitente. O texto de Orthof faz referência ao conto A Princesa e a Ervilha (1835), de Hans

Cristian Andersen. No conto europeu do século XIX, há algumas sequências narrativas

concorrentes, mas dois programas narrativos de base, um que diz respeito a um sujeito,

figurativizado pelo príncipe, manipulado por um querer e um dever manter uma posição

social de prestígio por meio de um objeto modal figurativizado no texto pelo matrimônio com

uma princesa. Concorrente a essa narrativa, há um sujeito, figurativizado pela moça, cuja

manipulação ocorre por um dever adquirir a competência para tornar-se uma princesa.

A performance ganha destaque na narrativa, uma vez que a princesa cuja sensibilidade

for mais acentuada sentirá uma ervilha entre vários colchões sob a cama e, portanto, não terá

uma boa noite de sono, sendo a mais bem-sucedida na ultrapassagem do anti-sujeito,

concretizado pela ervilha. O sucesso na realização da performance significa a sanção positiva,

concretizada pelo casamento com o príncipe. Os sujeitos são dotados de um querer, mas não

de um poder ser, que é característica específica de uma única princesa, que consegue

ultrapassar o obstáculo.

No texto de Orthof, as sequências narrativas parecem se coadunar ao conto de Hans

Cristian Andersen, reiterando a voz do texto original, uma vez que também há um sujeito que

pratica a performance, sendo bem-sucedido na ação. No entanto, mesmo dotado de um poder

fazer, tendo adquirido a competência para tornar-se princesa, o sujeito recusa a sanção

positiva, concretizada pelo casamento com o príncipe, como se vê no trecho:

Mas a moça respondeu: - Eu não quero ser casada, Se eu casar, vai ser com o moço de quem sou namorada. E saiu, feliz da vida, Foi cuidar do seu rebanho. A moça era pastora (ORTHOF, 2009a, [n.p.])

O sujeito então rompe com o contrato inicial, recusa o casamento com o príncipe e à

sanção positiva do "ser feliz para sempre”, instaurando uma outra performance, a do exercício

de uma função como pastora. O objeto de valor /felicidade/ em Andersen, buscado pelo

sujeito, concretizado pelas princesas, já é, em Orthof, um objeto com o qual o sujeito já está

em conjunção, mas cuja realização se dá a partir de outra performance: enquanto no conto

europeu as princesas eram felizes por casarem-se, em Orthof é a realização de uma função

profissional, ser pastora, que representa uma vida feliz. No texto original, os valores tomados

como eufóricos e concretizados no texto giravam em torno da manutenção de um prestígio

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social por meio do casamento, a contração do matrimônio como acesso a bens e riquezas e o

casamento como próprio objeto de valor em si, representado comumente como o "final feliz".

Em Orthof, embora as sequências narrativas pareçam acompanhar o texto de origem,

reiterando as performances dos sujeitos, os sujeitos buscam objetos de valor distintos, como a

individualidade, a independência, a autonomia. Importante notar que o ofício da moça como

pastora, no texto analisado, também inscreve os valores de humildade, simplicidade em

contraposição à riqueza, luxo, manifestados no texto original em figuras como “palácio”,

“rei”, “rainha”, “princesa”.

Nota-se, portanto, que o valor da felicidade relacionado à conjunção amorosa são

relativizados, uma vez que a sanção positiva é assegurada, não pela conquista do objeto valor

do texto original, mas sim de sua subversão e a criação de um outro, que, nesse texto, é a

realização de uma atividade profissional, cumprindo o actante o papel temático de pastora.

Outros valores são então postos em cena e se afirmam exatamente pela negação daqueles

construídos nos textos de base a que se faz referência, confirmando a imagem de éthos que se

coaduna com a subversão dos valores postos tradicionalmente nas narrativas de contos

tradicionais.

A subversão ao conteúdo original por meio da inscrição de outros valores também está

presente em Uxa, ora fada, ora bruxa (1985b)9. Na obra, há sequências narrativas complexas,

explicadas por Gomes (1996) como uma narrativa do SIM, em que o sujeito é manipulado por

um dever e querer ser fada a partir da tentativa de "fazer bondades", assumindo que é esse o

papel temático das fadas; uma narrativa do NÃO, em que o sujeito busca "fazer maldades",

crendo ser este o papel das bruxas, e uma narrativa do humano, em que o sujeito em busca da

humanidade demonstra a complexidade e a fluidez da bondade e maldade, o que constitui a

característica humana (GOMES, 1996, p. 41-48).

A esses programas narrativos, acrescentam-se outras sequências narrativas que

perfazem o caminho da bondade e da maldade, das ações realizadas por cada sujeito ao

deverem / quererem operar a transformação entre ser fada e ser bruxa. Na busca pelo dever e

querer ser fada, ou a narrativa do SIM, há um recurso intertextual, já que se retoma o percurso

emblemático narrado em Cinderela, conto de Charles Perrault, publicado em 1697. No conto

europeu, são ações do sujeito ir ao castelo, encontrar o príncipe e perder o sapatinho de cristal

para tornar-se princesa e ser merecedor da sanção positiva de ser feliz para sempre. Enquanto

no texto original o sujeito adquire passivamente a competência para realizar as ações,

9 Conferir resumo da obra no anexo, p. 167

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concretizadas pela transformação da abóbora em carruagem pela fada madrinha, neste livro de

Orthof, o sujeito, que sincretiza o adjuvante e o protagonista da narrativa de base (figurativiza,

ao mesmo tempo, a fada e a princesa), é mais ativo, se apropria do valor modal, concretizado

no texto pelo táxi que se transforma em abóbora. Nota-se que se instaura a polêmica entre os

dois textos, apontando para um traço de um sujeito mais “empoderado” em Orthof.

A inversão dos programas narrativos retomados em Cinderela se confirma pela recusa

da sanção positiva do "feliz para sempre":

Aí, aparece o príncipe, assim, descendo a escada. (...) e Uxa corre, com medo de virar princesa e ter que ser feliz para sempre, credo, E vira bruxa, num de repente (ORTHOF, 1985b, [n.p.]).

Assim como em Ervilina, o sujeito recusa a sanção e inicia uma outra performance,

que diz respeito às suas ações de "fazer maldades". Mais uma vez, a ideia do matrimônio

como sinônimo de felicidade e até mesmo a noção idealizada de felicidade são relativizadas, o

sujeito abandona esses valores que parecia querer buscar e reafirma outros que já se

anunciavam por sua performance, como a independência e a autonomia. O texto de Orthof

recupera o conto europeu por meio da subversão dos programas narrativos, bem como da

negação dos valores, e, pela paródia, atualiza os valores em circulação no conto original para

ridicularizá-lo, marcando, portanto, uma imagem de éthos que se distancia do enunciador do

conto tradicional, uma vez que manipula o enunciatário por meio da crença em outros valores,

como se mostrou anteriormente.

Mais um exemplo de uso de paródias como facilitador da subversão de valores em

Orthof se encontra na obra Maria vai com as outras (1982)10

. Na obra, há duas sequências

narrativas básicas, uma de um sujeito manipulado por um dever fazer que busca a alienação e

a subserviência, concretizado por Maria, ovelha que segue sempre com o restante do grupo de

ovelhas, narrativa que retoma o conhecido ditado popular que dá nome à obra:

Era uma vez uma ovelha chamada Maria Onde as outras ovelhas iam, Maria ia também. As ovelhas iam pra baixo. Maria ia pra baixo. As ovelhas iam pra cima. Maria ia pra cima (ORTHOF, 1982, p. 2-5)

Nota-se que a própria estruturação sintática, marcada no plano da expressão pelos

paralelismos e pela repetição, manifesta as ações relacionadas à narrativa do texto de base,

10

Conferir resumo, p. 167

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reiterando a memória do texto original, bem como reforçam o tema da sujeição, de repetição

das mesmas ações.

Nessa sequência narrativa, à performance realizada pelo sujeito, relacionam-se sanções

negativas, concretizadas pela gripe no Polo Sul, insolação no deserto, até o sujeito /Maria/

questionar essas sanções que implicavam castigos físicos, iniciando outro programa narrativo,

em que o objeto de busca não é mais a anuência, a submissão.

Até que as ovelhas resolveram pular do Alto do Corcovado para dentro da Lagoa. Todas as ovelhas pularam. [..] Chegou a vez de Maria pular. Ela deu uma requebrada, Entrou num restaurante e comeu uma feijoada (ORTHOF, 1982, p. 20;28;30).

O sujeito então recusa os valores que parecia querer buscar e inicia uma nova

performance, em que o sujeito, manipulado agora por um querer, rejeita a submissão e a

alienação e busca, e, como nas outras obras observadas até aqui, a autonomia, a emancipação

e a liberdade. A sanção, que no percurso anterior apontava para um flagelo físico, nesse outro

percurso representa o prazer e o bem-estar, marcado no texto também pelas figuras "comer

jiló", indicando um desprazer gustativo e o "comer feijoada", como um deleite, um

contentamento, respectivamente.

Parodisticamente, subverte-se totalmente o sentido original do ditado popular,

transformando o sentido do texto de base e afirmando outros valores em que a satisfação

pessoal e o gozo particular se sobrepõem à passividade (“Agora, mé, Maria vai pra onde

caminha seu pé”; ORTHOF, 1982, p.32).

Nota-se, portanto, que em todas as obras, a intertextualidade é um importante recurso

argumentativo, pois, ao remeter ao conto europeu de Andersen, à conhecida história da

Cinderela e ao ditado popular, por exemplo, explora-se o elemento conhecido e de vivência

do enunciatário. Ao perscrutar um universo presumido da vivência da criança, tendo em vista

que os contos de fadas, ainda hoje, são frequentes nas bibliotecas das escolas, das

comunidades, nos discursos em circulação na sociedade, o envolvimento do enunciatário é

maior, uma vez que se já se identifica prontamente uma partilha comum de saberes. No

entanto, verifica-se que a referência aos textos, na verdade, justifica-se pelo questionamento

dos valores postos e, por consequência, a veiculação de novos valores, sobre os quais se opera

a persuasão, em que se rejeita os inscritos no texto original, pela ridicularização, a fim de

levar à adesão do novo, valores afirmados no texto da paródia.

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3.2.2 A interdiscursividade

Sob um outro olhar, observam-se agora não as obras que fazem referência a um texto

específico em circulação na sociedade, mas como a isotopia garante a referência ao conjunto

de textos de contos de fadas, considerando, para tanto, especialmente, a figurativização e a

tematização. Para organizar a leitura, a interdiscursividade será observada, primeiramente, a

partir dos elementos figurativos que nas obras retomam o universo do conto de fadas e,

depois, a partir de como as vozes conflituosas desconstroem os valores transmitidos nesse

gênero de textos, produzindo um discurso que ecoa em diferentes textos, que são retomados

de maneira polêmica em Orthof.

Já explicitada no título a referência ao poema de Manuel Bandeira, Vou-me embora

pra Pasárgada, publicado em 1930, A Fada Lá de Pasárgada (2004a)11

é uma obra de Orthof

de sequências narrativas complexas, cuja narrativa de base trata de um sujeito em busca da

diversidade, concretizado no texto pela Fada Poesia e seu encontro com seres imaginários,

como a ninfa Brisa, o tio Vento e um anão-gigante, o mini-Maxi. O tom lúdico encontra lugar

nessa obra não pela retomada da narrativa de base do poema de Bandeira, mas pela

configuração temática12

que o espaço construído pelo poeta representa: o lugar da fantasia, da

utopia e da imaginação, idealizado em Pasárgada.

No texto de Orthof, a retomada ao texto dos contos de fadas se dá pela representação

da fada como aquela que usa a “varinha de condão”, que mora “quase no pertinho da rua que

fica longe do céu do nunca se acaba”, das “histórias encantadas de fadas”. Além disso, a fada

Poesia é caracterizada como aquela que possui poderes e que “pisca estrelinhas”. No entanto,

o que parece ser a voz em conformidade à construção figurativa dos contos de fadas

tradicionais, revela-se como conflitante, tendo em vista, por exemplo, a descrição figurativa

da fada: é “preta, noturna, usa tranças, dança nos sambas, crioula, rebola-bola-carambola”

(ORTHOF, 2004a, p. 18). Aqui, já se torna aparente o afastamento entre os contos de fadas

europeus e o texto de Orthof, a começar pela figurativização da fada, que traz a representação

da fada negra, crioula como "a mais brasileira de todas as fadas" (ORTHOF, 2004a, p.17). O

enunciador explora a configuração figurativa das fadas dos contos tradicionais, que permeia o

imaginário coletivo, questionando essa representação, considerando a recorrência isotópica

11

Conferir resumo na p. 167

12 Por configuração temático e figurativa conferir p. 39

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predominante em livros antigos como fadas “louras de olhos azuis” (ORTHOF, 2004a, p. 19),

ao que a actante fada responde:

Eu sou preta, cor da noite; Meus olhos são de estrelas; Tenho boca de cantigas de ninar, nana que nana, Olha o boi da cara preta! Adoro fazer careta! (ORTHOF, 2004a, p. 20).

A referência à cultura de matiz africana pelos costumes de fada Poesia, que “dança nos

sambas, rebola-bola-carambola” (ORTHOF, 2004, p. 18), revela uma voz que se distancia dos

contos europeus tradicionais, por figuras que retomam o universo dos hábitos de negros

africanos. O embate polêmico entre os contos de fadas europeus e o texto de Orthof se

relaciona a uma configuração temático-figurativa que recobre os temas da uniformidade e da

invariabilidade, contra o qual o enunciador procura contestar, em favor da busca pela

identidade e pela diversidade, que são silenciadas nos contos europeus.

Em Fada Cisco Quase Nada (2006), a referência aos contos de fadas ocorre pela

configuração figurativa construída no espaço de moradia da fada. A casa é no “jardim de

margarida”, que exala a “fragrância que é o cheiro da rosa... encantada” (ORTHOF, 2006,

[n.p.]). No entanto, ao mesmo tempo em que a figurativização parece recobrir o tema da

fragilidade, do encanto e do aconchego, que se coadunaria com a fantasia dos contos de fada,

acrescenta-se também o tema da desordem, já que ganham espaço figuras como

“abagunçado”, onde tudo é “amontoado”, o “sofá tem o pé quebrado”, a “almofada é caída”,

“as revistas espalhadas” e a fada “preguiçosa”. O percurso temático-figurativo da desordem é

axiologizado euforicamente (a fada “gosta de morar assim, bocejando e bagunçando”;

ORTHOF, 2006, [n.p.]) e os valores com os quais o enunciador concorda e em que faz o

enunciatário crer dizem respeito ao desordenamento, à desorganização, portanto, ao livre

arbítrio. A interdiscursividade em Fada Cisco Quase Nada (ORTHOF, 2006) leva, por meio

do processo de figurativização, o enunciatário a considerar uma aparente aproximação com o

discurso da ordem, da organização, mas que é contestado por uma outra isotopia, ao remontar

o espaço do caos e do desordenamento, avaliado euforicamente pelo enunciador.

Nas obras A bruxa Fofim (1997) e Fada Fofa em Paris (1995), também há

figurativização da fada e da bruxa e as figuras insólitas que geram a polêmica entre esses

títulos e o discurso dos textos de contos de fadas. Em ambas, a configuração figurativa de

fada e bruxa dos textos-base é negada, já que esses atores não são descritos como belos,

segundo um ideal de beleza próprio do universo maravilhoso. Mostradas como “gorduchas”,

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subvertem o ideal de beleza que toma a estética da magreza como padrão idealizado na

contemporaneidade (especialmente se considerarmos as releituras modernas dos contos de

fada pela indústria da Walt Disney, por exemplo, com as quais inevitavelmente dialogam),

demonstrando a diversidade como um valor a ser admitido como verdadeiro pelo

enunciatário. Em A bruxa Fofim, figuras como “elástico da calcinha”, o “sapato vermelho” e

o “sutiã” inserem o insólito e o riso, à medida que incluem no discurso elementos estranhos

àqueles do universo de valores inscritos nos contos de fadas, caracterizado comumente pelas

figuras do “palácio”, “príncipe”, “realeza”, “reino”, etc. Já em Fada Fofa em Paris, as figuras

da balança e da farmácia, onde a fada se dirige a fim de verificar o peso remete a um efeito de

referente, característico dos contos maravilhosos e conflitantes com o mundo fantástico e

maravilhoso dos contos de fada, provocando o humor, causando surpresa ao enunciatário,

como se comprovou ao tratar da combinação de figuras e temas.

Outro discurso polemizado em Orthof e que ganha destaque pela subversão da

ideologia inscrita, diz respeito ao conjunto de figuras que tematizam o "final feliz". O

discurso do matrimônio como ideal do "felizes para sempre" ecoa em nossa sociedade, muito

em função da configuração figurativo-temática dos diversos contos de fadas, que são

atualizados para serem negados em vários livros de Orthof:

e Uxa corre, com medo de virar princesa e ter de ser feliz para sempre, credo, (...) (ORTHOF, 1986, [n.p.])

O casal foi feliz enquanto foi feliz. Teve momentos de alegria e outros de chateação. Isso acontece com todos (ORTHOF, 2004a, p.59).

Aprenda: Deve ser feliz para sempre, ou por certo tempo. Na verdade, pode não ser agradável todo o casamento. Se não puder ser feliz para eternamente, A fada pode virar bruxa (ORTHOF, 1995,[n.p.])

Nota-se que em Uxa (1986), o “medo” dá o tom passional em que o querer virar

princesa dá lugar à negação da sanção "ser feliz para sempre", temida e indesejada pelo

sujeito. Em contraposição às narrativas dos contos de fada, em Orthof, o valor da "felicidade

eterna" é axiologizado negativamente, questionado, inclusive, em seu aspecto temporal. A

conjunção amorosa, que é idealizada nos contos de fadas, é, aqui, relativizada no que diz

respeito à sua duração, concretizada pelo verbo no pretérito perfeito, ou por um não poder ser

feliz eternamente, marcando sua telicidade em relação à duração contínua do “para sempre”,

comum às narrativas tradicionais.

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O que se pode verificar em Orthof é, então, um uso argumentativo do recurso

intertextual por meio do reconhecimento e da ativação da memória entre o conhecido, sabido

e o novo, instaurado pelo enunciador com a subversão dos valores inscritos em textos-base

partilhados pelo enunciatário, caracterizando, portanto, a argumentação, essa relação entre

enunciador e enunciatário em que se partilham conhecimentos mínimos na busca da crença

em novos. Não por acaso, também, o interdiscurso se concretiza nos textos do universo do

conto de fadas, uma vez que este gênero é de ampla circulação no meio infantil, seja por

intermédio das escolas, das grandes indústrias cinematográficas, na leitura cotidiana, etc. A

retomada do universo presumidamente familiar ao enunciatário firma esse contrato, criando

um cenário propício à contestação dos valores postos e sua consequente subversão, levando à

crença no discurso.

Além disso, a intertextualidade e a interdiscursividade que servem de base para o

confrontamento dos valores remontados tradicionalmente não pode ser confundido como

sustentação para a ausência de valores. Ao transgredir o modelo conservador, negando a

ideologia, revestindo outros percursos temáticos e figurativos e complexificando a narrativa,

novos valores são partilhados na interação entre enunciador e enunciatário, e sobre estes se

busca a adesão, exatamente a partir da rejeição daqueles trazidos à luz pela referência a outros

textos e discursos.

3.2.3 A referência interna à obra de Orthof

Outro recurso que merece destaque em Orthof, e que atua também como força

argumentativa pela ancoragem no mundo prático e concreto, diz respeito à criação de

realidades dentro da realidade, como uma referência interna à própria obra do ator da

enunciação. É o caso de Zoiudo, o monstrinho que bebia colírio (2012b). Há uma sucessão de

sequências narrativas complexas, sendo a de base concretizada pelo simulacro de um encontro

de Sylvia Orthof com o ser fantástico Zoiudo. O efeito de referencialidade ocorre no texto por

uma simulação de episódios vividos por Sylvia Orthof, autora do livro, e seu marido, bem

como o espaço, situado na cidade de Petrópolis. Mais do que um efeito de referente, a obra

ganha um caráter autobiográfico, uma vez traz para o texto as figuras Orthof e seu marido

Tato,e o enunciado tem ancoragem em um tempo, espaço e atores do discurso que remetem à

enunciação, fazendo ler também a narrativa como "fato verídico":

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Esta história aconteceu e acontece aqui. Aqui é Petrópolis, uma cidade serranamente

linda, onde moro. [...] Aqui, comigo e com Tato, marido da abaixo assinada (eu,

ora!), mora Zoiudo. Quando saímos do tal banquete de chocolate, passamos por uma farmácia que fica

ali, na rua da Imperador, chamada farmácia Brasil. Aí, no dia 22 de agosto de 1987, aconteceu uma tristeza tão triste que, se você não

quiser saber, não leia (ORTHOF, 2012b, p.9; 33; 50).

É importante ressaltar aqui que não se trata de um exame de elementos de "fora" do

texto, alheio às categorias que dizem respeito ao texto propriamente dito, em sua relação do

plano do conteúdo com o plano da expressão, mas de procedimentos que instauram no texto o

efeito de realidade, que fazem ler os textos "como se fossem" uma "cópia do real". Assim, as

informações constantes na biografia da autora, que aparecem geralmente na parte pré ou pós-

textual do livro, apontam para nomes de pessoas e um espaço inscrito também no narrado,

proporcionando, assim essa "ilusão de referente".

A concorrência de efeitos de ficção, próprios dos contos de fadas (a figura da bruxa) e

o conto maravilhoso (espaço reconhecido e familiar) se complexifica na obra quando, no

enunciado, inscreve-se concretamente um actante de outra obra, Uxa, ora fada, ora bruxa

(1986):

Este capítulo foi escrito por Uxa, Sylvia Orthof não tem nada com isso, tá? Eu, Uxa, bruxa e fada, dependendo da hora, resolvi continuar a escrever este livro

com a minha vassoura (ORTHOF, 2012b, p.77).

O que há, então, é uma referência interna à própria obra de Orthof, considerando um

cruzamento entre os actantes de obras diferentes do mesmo ator da enunciação: Uxa, actante

da obra Uxa, ora fada, ora bruxa, de 1986, é actante também em Zoiudo, obra de 1990. A

referência se faz pela retomada de percursos temático-figurativos do texto original, Uxa é a

"bruxa, de peruca loura e óculos de coração" e " bruxentinha, descabeladíssima", pela

performance do sujeito, /fazer maldade/ e /fazer bondade/, concretizada por "acorda danada de

boazinha" e "acorda danadona", bem como pela problematização dos valores bondade /

maldade / humanidade, tal qual o texto original.

As sequências narrativas da fada/bruxa que ora pratica maldades, querendo parecer ser

bruxa, ora bondades, fazendo parecer ser fada, são retomadas aqui na obra Zoiudo, não como

objeto de polêmica ou confrontamento de valores, como se mostrou ser corriqueiro em

Orthof, mas no sentido de reiterar e complementar o texto original. Embora a referência não

seja explícita, trata-se de uma alusão, o recurso da referência interna à própria obra do ator da

enunciação confirma o efeito de criação de um universo maravilhoso, uma vez que, ao trazer

para o texto um actante de obra de própria autoria, atualizam-se no texto os processos de

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produção do livro, tomado como materialidade, objeto, pertencente, portanto, às "coisas do

mundo". O efeito criado é o de fazer parecer ser verdade, corroborado, no enunciado, pela

delegação da voz do actante, por meio de uma debreagem interna.

Este último recurso não só pressupõe um enunciatário que é leitor assíduo de diversas

obras da autora, mas também conhece detalhes de sua biografia, simulando uma familiaridade

que aproxima e torna cúmplices enunciador e enunciatário.

Esse conjunto de “autorreferências”, em certa medida, confere unidade aos textos da

autora, fazendo-nos pensar no conjunto de suas obras como constituindo um corpo que marca

determinado estilo, confirmando também a metalinguagem13

como uma escolha do

enunciador. Esta é mais uma marca a ser interpretada pelo enunciatário na construção do

"dispositivo veridictório" (BARROS, 2008) sobre o qual se firma o contrato entre enunciador

e enunciatário, constatando-se, até aqui, que não só os recursos selecionados, como a

intertextualidade e a interdiscursividade, mas também o modo de fazer, reforçam a imagem do

éthos em que se deva confiar.

3.3. AS PROJEÇÕES ENUNCIATIVAS

Outro recurso escolhido pelo enunciador para captar a adesão do enunciatário são as

projeções enunciativas. A partir da leitura dos textos de Orthof, é impossível tratar da

argumentação sem observar o complexo jogo de vozes construído nos textos e, considerando

os diferentes níveis de projeção enunciativa, é possível distinguir como essas vozes são

ordenadas, seja no fio do discurso do narrador, seja pela projeção do dizer dos actantes no

enunciado, sujeitos instalados pelo narrador do texto. Para entender, portanto, de que maneira

ocorre a projeção destas vozes e a quem se delega a responsabilidade por determinados

dizeres, cumpre analisar que instâncias enunciativas são essas que se diferenciam da voz do

enunciador e que se instauram na enunciação com finalidades específicas.

É impossível tratar das projeções enunciativas sem fazer referência à importante obra

de Fiorin, As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo (1996), em

que o autor faz extenso inventário das categorias enunciativas de pessoa, tempo e espaço e

seus efeitos no discurso. A obra de Fiorin norteará nossa análise das projeções e a ela faremos

menção a todo momento, uma vez que a complexidade dos níveis enunciativos foi

13 Por metalinguagem entende-se uma linguagem de descrição, capaz de falar sobre a linguagem

natural, como também de outras semióticas (pintura, música, etc) (GREIMAS; COURTÈS, 2008)

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exaustivamente explorada na obra do autor. Para esta análise, serão consideradas as categorias

actanciais, que possuem relevante papel argumentativo nas obras.

A instauração das pessoas no texto corresponde, então, aos mecanismos de debreagem

e embreagem actanciais. A debreagem indica a separação da instância da enunciação,

projetando para fora de si elementos ligados a sua estrutura original, no caso estudado, a

pessoa, e divide-se em enunciativa, em que se instalam no enunciado os actantes da

enunciação (eu/tu), e enunciva, em que se inscreve no enunciado o actante ele. Já a

embreagem é a operação oposta, de efeito de retorno à enunciação a partir da neutralização da

categoria de pessoa.

Como já foi tratado anteriormente (p. 17 desta tese), a enunciação pressupõe a

existência de um enunciador que, por sua vez, estabelece um enunciatário, que é a instância a

que se dirige. O primeiro nível compreende os actantes da enunciação, o enunciador e o

enunciatário, o primeiro fazendo as vezes do destinador e o segundo, do destinatário, ambos

implícitos na enunciação.

Cabe salientar sempre que o enunciatário não corresponde a uma instância passiva na

enunciação, mas é sujeito responsável pelo fazer interpretativo do discurso. No momento da

produção do texto, é inevitável que o enunciador crie uma imagem do enunciatário no texto,

para que consiga atingir seu objetivo comunicativo. Ao produzir o texto, o enunciador deve

saber o que pode e deve ser dito para que exista um acordo, um contrato velado que

estabelece como o enunciatário admite os valores transmitidos pelo enunciador, conceito já

tratado anteriormente. No segundo nível da enunciação, estão as instâncias de destinador e

destinatário instalados no enunciado, aos quais se relacionam os actantes da enunciação

enunciada, o narrador e o narratário. O narrador pode, por sua vez, ceder a palavra aos

interlocutores, criando uma debreagem interna, ou uma projeção em segundo grau, por meio

do discurso direto, um “simulacro da situação da estrutura de comunicação criado no interior

do discurso” (FIORIN,1996, p.67). Para ilustrar melhor a cena enunciativa, segue abaixo um

quadro representativo dos níveis de enunciação, adaptado de Barros:

INSTÂNCIAS PRESSUPOSTAS ENUNCIADOR ENUNCIATÁRIO 1º GRAU NARRADOR NARRATÁRIO 2º GRAU INTERLOCUTOR INTERLOCUTÁRIO

(Quadro 2,BARROS, 1988, p.57)

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É fundamental, então, a instauração de um narrador e de um observador (no caso das

projeções actanciais) e como contribuem para a crença no discurso. Importam também as

projeções da enunciação no enunciado para a análise de um efeito de aproximação /

afastamento, criando a imagem desse sujeito da enunciação e instaurando a confiança no

enunciador, não só pelo seu dizer, mas também pelo modo como o faz.

O narrador é o actante da enunciação responsável pela dimensão pragmática do

discurso, considerando que é dele a responsabilidade de organizar as articulações da narração,

ou seja, relatar a história como um todo, assumindo determinadas funções na narrativa, como

a função ideológica, o direcionamento, a atestação da veracidade dos fatos e a comunicação.

Nesse sentido, de acordo com Fiorin, as funções do “falar” e do “relatar” cabem ao narrador,

enquanto o papel de saber sobre os fatos compete ao observador, instância responsável pelo

saber cognitivo (FIORIN, 1996, p.107). É importante, neste momento, contrapor as diferenças

conceituais a respeito da instância do narrador no discurso. Para Barros, explicita-se a figura

do narrador apenas nas narrativas em primeira pessoa, ou seja, quando quem toma a palavra

no discurso diz eu, cabendo à figura do observador os casos de narrativa em terceira pessoa

(BARROS, 1988, p. 81). Já para Fiorin, toda narrativa pressupõe um narrador uma vez que,

como já foi dito anteriormente, a ele cabe a dimensão pragmática na enunciação. Assim,

inclusive nas narrativas de terceira pessoa, há a instância do narrador, tendo em vista que,

nesse contexto, as narrativas em terceira pessoa seriam não aquelas em que o narrador diz ou

não eu, mas aquelas em que o narrador não participa dos fatos narrados, até mesmo pelo fato

de que, segundo o autor, “toda narração é virtualmente feita em primeira pessoa” (FIORIN,

1996, p.53). Ao narrador, então, corresponde todo o direcionamento da narrativa, pois é ele

quem conduz os fatos narrados, relatando o que o observador sabe. Entende-se, então, que as

funções de observador e narrador são distintas, podendo, todavia, haver um sincretismo entre

os dois actantes (FIORIN, 1996, p. 104).

Aqui importam as considerações de Bertrand sob o ponto de vista, já que esse conceito

é extremamente relevante para a caracterização das vozes em Orthof e sua relação com a

argumentação. De acordo com Bertrand (2003, p. 113), “não há enunciado, qualquer que seja

sua dimensão, que não esteja submetido à orientação de um ponto de vista”. Ou seja, em

relação à categoria de pessoa, na instauração de um determinado tipo de projeção, o narrador

subsume o controle das projeções, o direcionamento do discurso, a escolha de personagens e o

desenvolvimento do percurso, no caso das narrativas. Em qualquer enunciado, há a presença

de um ponto de vista, que se manifesta desde a seleção da ordem dos elementos, passando

pela escolha vocabular, a pontuação, o gênero escolhido, etc.

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Fiorin (1996, p. 108), então, classifica o observador por meio de seu foco na narrativa

em dois tipos: observador com focalização total e observador com focalização parcial. No

primeiro caso, o observador é onisciente e conhece as ações e os sentimentos de cada

personagem, sabendo o íntimo de cada um deles. Com relação à focalização parcial, Fiorin

estabelece uma divisão entre focalização interna e externa. Nesta, o observador se coloca “de

fora” e não se conhece o íntimo dos personagens, sabemos de suas ações a partir de uma

observação exterior e, naquela, designa a observação a partir de um actante da narrativa, como

se o ponto de vista estivesse restrito a um personagem.

Nas obras de Orthof analisadas, observa-se que é frequente o jogo enunciativo entre

diferentes vozes que ganham espaço na narrativa e como o enunciador, por meio da escolha

de diferentes recursos, habilmente cria determinados efeitos a partir das estratégias

enunciativas utilizadas. Para tanto, a análise das projeções considerará três elementos de

destaque na construção da argumentação do texto: a transgressão dos níveis enunciativos, o

narrador intruso e o papel do narratário, e as vozes polêmicas como embates de pontos de

vistas, todos considerados como recursos de projeção fundamentais que confirmam o tipo de

contrato de veridicção (FIORIN, 2008) estabelecido em Orthof14

.

3.3.1 Transgressão de níveis enunciativos

Comecemos, então, a observar o papel do narrador e a delegação de vozes em

Guardachuvando doideiras (ORTHOF, 1992) e como se constitui a quebra hierárquica de

níveis enunciativos nele. A narrativa conta a história de Dito, um senhor de 99 anos, e sua

relação com os guarda-chuvas, o que ganhou de sua mãe na infância, os que retirou

indevidamente nos achados e perdidos da estação de trem de Petrópolis e os que faziam parte

da loja onde trabalhava. No entanto, nessa obra de Sylvia Orthof, chama mais atenção o modo

como a narrativa é contada do que a história propriamente dita, uma vez que são tão

complexos os recursos de projeção enunciativa que a história narrada fica delegada a segundo

plano, considerando como fundamentais na obra os modos de dizer.

Nela, há um complexo jogos de vozes, que se inicia pela instauração de um narrador

implícito e que inicia a história:

Ali, naquela pequena cidade serrana, aconteciam gargalhadas. Porque Dito era

assim, ria de tudo, sobretudo dele (ORTHOF, 1992, p.1).

14

O contrato de veridicção será mais bem desenvolvido posteriormente no capítulo 4.

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No entanto, esse narrador primeiro instalado no enunciado delega a voz a um narrador

de segundo grau, figurativizado pelo velhinho Dito, actante do enunciado, que conta a sua

história. A função desse narrador de primeiro grau é, portanto, a de atestar a veracidade dos

fatos, uma vez que apresenta o narrador de segundo grau, afirmando seu gosto por capítulos

curtos, dando-lhe voz:

Hoje, Dito tem noventa e nove anos, mas já teve treze e conta-reconta com a mesma

gargalhada (ORTHOF, 1992, p. 4).

Toma então a palavra o actante do enunciado, portanto, um interlocutor, que se instala

no discurso por meio de uma debreagem enunciativa e que passa a contar a história por meio

de seu ponto de vista, de modo que narrador e observador estão em sincretismo:

Eu tinha treze anos e morava numa estrada, lá pras bandas da fábrica. Naquele

tempo... (ORTHOF, 1992, p.3).

Esse narrador em segundo grau toma a palavra delegada pelo narrador e organiza a

narrativa também de modo a atestar a veracidade no texto. Como ele está também em

sincretismo com o actante do enunciado, Dito, a narrativa fica sujeita a repetições,

interrupções, vazios e esquecimentos característicos de um senhor de 99 anos, reforçando,

portanto, um modo de dizer que ajuda na construção da imagem desse actante do enunciado:

Puxa, já comecei outro capítulo? Eu enjôo de ficar em um capítulo só, sou um

velhote enjoado...

Estou um pouco trêmulo, rasguei o capítulo, mas você me ajuda, né?

Deu outro branco! Isso acontece quando a gente tem 99 anos!

Chovia e chove muito aqui em Petrópolis. Eu já disse isso? Estou um pouco idoso,

repito as coisas (ORTHOF, 1992, p. 5;6;18;33).

Tal procedimento, que diz respeito a um modo de fazer, qualifica esse narrador em

segundo grau, de maneira que ele pareça estar legitimado a dizer, construindo a crença e a

confiança no dito/Dito. O que se percebe em relação à delegação de vozes, até então, diz

respeito a um narrador primeiro que abre espaço para a voz do narrador em segundo grau,

actorializado pelo velhinho no enunciado. No entanto, não é somente por meio da delegação

de um narrador em segundo grau que a projeção de vozes se dá na obra. Ela se torna mais

complexa quando, no meio do dizer desse narrador em segundo grau, a voz do ilustrador se

inclui, voz esta que não corresponde ao nível do narrado e que aparece no texto com o uso de

parênteses, como se vê na figura abaixo:

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(Figura 3, ORTHOF, 1992, p. 32)

A voz do ilustrador aparece interrompendo a fala do narrador, marcada graficamente

pelos parênteses e pela letra manuscrita, como se pode ver na imagem. A voz do ilustrador se

inclui como um coprodutor do texto e, ao mesmo tempo em que reflete sobre o fazer artístico,

também ironiza o trabalho da ilustração. Ao tecer considerações sobre o processo de produção

sincrética do texto literário, em certa medida, o enunciador faz com que o enunciatário

partilhe o saber sobre a prática de produção e circulação do texto literário. Há, pois, dois

pontos de observação no texto, um cuja perspectiva aponta para um saber relacionado à

função de um velhinho que trabalha numa loja de guarda-chuvas, e outro que abrange a

perspectiva do papel do ilustrador.

Na obra, há diferentes actantes do enunciado com quem o actante Dito estabelece

diálogo, havendo, portanto, diferentes interlocutores para os quais se dá a voz no texto, por

meio da debreagem interna, ou seja, do discurso direto, como a mãe, a senhor dos achados e

perdidos da estação de trem, entre outros. O uso dos verbos no pretérito indica um

afastamento entre a enunciação enunciada e enunciado enunciado, considerando que os fatos

narrados são anteriores à narração:

- Vai ligar o rádio, mãe? – indaguei. - Já são sete horas da noite? Se for, acho que é nesta hora que tocam o Hino

Nacional...

A senhora voltou com cinquenta e sete guarda-chuvas pretos com cabos de bambu: - São os mais comuns. O seu está aqui? - É este (ORTHOF, 1992, p 7; 24).

No entanto, além de estabelecer uma interlocução com os actantes do enunciado,

portanto, no nível do enunciado enunciado, por meio da projeção de 2º grau, no meio da

narrativa, Dito estabelece diálogo também com a Editora, suspendendo o relato de sua história

para fazer um pedido. É nesse ponto que se revela profundamente o dinamismo das projeções

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enunciativas no texto, pela inscrição de diálogo com diferentes instâncias dentro do texto,

revelando uma mistura entre os níveis enunciativos:

ÚLTIMO, ou QUASE ÚLTIMO DESEJO: Senhora editora, quero cada capitulozinho numa página, de preferência com, talvez,

uma ilustração em preto e branco. Não quero ilustrações coloridas, pois ficariam

muito infantis. Este livro é para adolescentes e velhos. Obrigadinho por me

atenderem (ORTHOF, 1992, p.15).

Nota-se uma projeção temporal no presente, estabelecendo uma distinção entre o

narrado e a narração, que, ao mesmo tempo, aproxima o enunciador da cena narrada. Trata-se

de um narrador em segundo grau (actante do enunciado, portanto, um interlocutor) que

estabelece um diálogo com um destinatário que não faz parte do enunciado, mas de uma outra

instância, correspondente ao nível da enunciação, subvertendo os níveis enunciativos de

projeção em 2º e 1º graus, interlocutor e narrador, respectivamente. Há que se destacar que o

estatuto deste diálogo de Dito com a editora difere dos demais como o que se dá como os

também actantes do enunciado, como a mãe, senhora dos achados e perdidos na estação, entre

outros, já que há uma suspensão do narrado e uma intervenção dialógica que pertence ao nível

da enunciação enunciada e não do enunciado enunciado.

Além disso, nesse contexto, a Editora figurativiza no texto a instância de produção e

Dito, actante do enunciado, narrador em segundo grau, ao dar instruções sobre detalhes da

confecção do livro, bem como indicações do público alvo a que a obra se destina, concretiza o

papel, também, de enunciador / autor, ao tratar da obra em sua materialidade, seu componente

editorial e sua abrangência no mercado. O que se percebe, então, é uma transgressão de uma

projeção de segundo grau, interlocutor, à instância pressuposta no texto, enunciador,

resultando numa quebra na hierarquia dos níveis enunciativos.

Fiorin chama atenção para esses casos em que o narrador é visto como autor e actantes

de determinado nível são instalados como actantes de outro. O estudioso analisa, por

exemplo, obras de Machado de Assis em que o narrador, em sincretismo com o simulacro de

enunciador, interrompe a narração para tratar de outro livro que escrevera, tornando o autor

elemento do texto. Fiorin denomina esse recurso de ilusões enunciativas, em que “a máscara

narrativa sob a qual o autor se esconde apresenta fendas sob as quais ele se mostra” (FIORIN,

1996, p.69), tornando-se confusas as distinções de níveis enunciativos.

No caso de Guardachuvando doideiras, a transgressão de níveis é ainda mais

profunda, uma vez que se trata de um interlocutor que ocupa o papel de enunciador, trazendo,

ao explicitar a maneira de compor o livro, o autor como elemento do texto, como explicita

Fiorin (1996, p. 69). Tal movimento enunciativo torna o texto muito mais dinâmico, à medida

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que insere várias vozes e pontos de vista narrativos, bem como cria ilusões no texto, tornando

instigante a tarefa de reconhecer e identificar as vozes para que o enunciatário dê sentido à

obra.

Tais “ilusões enunciativas” ficam claras na obra Zoiudo, o monstrinho que bebia

colírio (ORTHOF, 2012b). A obra apresenta um caráter autobiográfico, como se discutiu no

item 3.2, e simula a narração de alguns episódios vividos por Sylvia Orthof, autora do livro,

que se inscreve no texto por meio de um “eu”, instaurando uma debreagem enunciativa

actancial. Em meio à narrativa autobiográfica, misturam-se elementos ficcionais, personagens

fantásticos e seres do universo maravilhoso, como os atores Zoiudo, que dá nome à obra, e

fada Uxa. Uxa assume a narração de um capítulo e, inscrevendo uma projeção em primeira

pessoa, em sincretismo com o narrador, anuncia um capítulo:

Este capítulo foi escrito por uma bruxa Uxa; Sylvia Orthof não tem nada com isso,

tá? (ORTHOF, 2012b, p.77).

A princípio, pode-se observar uma embreagem actancial em que há uma neutralização

da terceira pela primeira pessoa do singular e, ao invés de inscrever-se por meio de um “eu”, o

narrador é projetado no discurso por meio de um “ele”, no caso “Sylvia Orthof”. No capítulo,

o actante fada Uxa diz fantasiar-se de Sylvia Orthof para ir às escolas falar sobre os livros

com as crianças. O que se vê é uma mistura que engendra para a cena enunciativa uma

mistura de debreagens e embreagens que alternam o actante do enunciado, o narrador e o

enunciador / autor, num procedimento que mistura os papéis temáticos do actante do

enunciado, a bruxa Uxa, que se fantasia, e do autor, que vai às escolas palestrar sobre seus

livros, num jogo de criações de efeitos de verossimilhança, que se coaduna com o tom de toda

esta obra.

Não bastasse esse complexo quadro enunciativo, o actante Uxa é personagem de outra

história de Sylvia Orthof, Uxa, ora fada, ora bruxa (1985b), como já se verificou no capítulo

sobre intertextualidade. Ao trazer para a ficção personagem de outra história, cria-se, mais

uma vez, essa mistura de níveis enunciativos, revelando-se o autor na voz do narrador.

Neutralizam-se as vozes narrativas, por meio de uma embreagem, tendo em vista que o

narrador, no momento em que retoma em um texto o actante de outra narrativa já existente do

mesmo autor, inscreve-se como enunciador do texto.

Além das duas obras apresentadas, há outras em que se confunde a distinção entre os

níveis enunciativos, mostrando como esse recurso é produtivo e recorrente em Orthof. Na

obra de Fada de lá Pasárgada (ORTHOF, 2004a), é possível verificar bem como se dá essa

transgressão entre os níveis enunciativos. A obra narra a história da Fada Poesia e sua relação

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com diversos seres fantásticos, como a ninfa Brisa, o tio Vento, Calo Calígulo, um anão

gigante, dentre outros. Há um narrador explícito projetado em primeira pessoa, responsável

por organizar a narrativa e direcionar a história:

Eu adoro fadas. Adoro que adoro fadas. E existem muitas, de todos os jeitos, cores,

raças (ORTHOF, 2004a, p. 15).

Esse narrador abre espaço no texto para vozes diversas, inscritas nos textos pelos

actantes do enunciado, que tomam a palavra, por meio de uma debreagem interna:

Fada poesia estava interessada no piolho tonto e indagou: - Como é o seu nome? - Eu me chamo Pio Olho.

...Calígulo aproveitou e disse: - Dona Fada, ó amiga Poesia, eu... eu tinha um recado para a... a... senhora.

(ORTHOF, 2004a, p.24; 47)

Fica claro, portanto, que há interlocutores inscritos como actantes do enunciado e que

estabelecem diálogos entre si, por meio de uma projeção de segundo grau. Essa inscrição da

voz de vários actantes no discurso cria no texto um efeito de pluralidade de pontos de vistas,

uma vez que é possível conhecer a perspectiva de cada actante e como os fatos são vistos por

eles, a partir da democratização dos saberes.

No entanto, como já pudemos perceber até aqui, as escolhas do enunciador em Orthof

são complexas e, mais uma vez, há uma mistura de níveis enunciativos, que fogem às

posições hierárquicas lógicas. Nessa obra, além do diálogo entre actantes do mesmo nível, por

meio de uma projeção de segundo grau, instalados como interlocutores, estes, em certo

momento do texto, dirigirem-se não só a actantes do enunciado, mas também ao narratário,

mesmo que de maneira indireta, como se pode ver em:

Enquanto eu estiver folheando aquele dicionário enorme, você, para se distrair, vá

inventando o que pode ser CONGÊNITO. Diga uma porção de coisas loucas, quem sabe você acerta? Se você acertar, a fada poesia manda um recado: - Se você acertar, vou dar uma nota de DEZ sílabas pra você, que, em verso, tem o

nome de VERSO SÁFICO, ou HERÓICO! (ORTHOF, 2004a, p. 45).

Nota-se, no trecho, que o actante do enunciado, por meio do narrador, estabelece um

diálogo com o narratário, desafiando-o a descobrir o significado da palavra. Aqui, a

transgressão entre níveis ocorre quando o actante do enunciado, que faz parte da história

narrada, portanto, de fatos já acontecidos, dirige-se ao narrador, instância da enunciação, que

não faz parte do narrado, no momento da enunciação. Em "a fada poesia manda um recado", o

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verbo no presente marca o tempo da narração, que difere do tempo do narrado, de que faz

parte o actante do enunciado.

Ou seja, há um narrador explícito que convoca o narratário à medida que estabelece

uma interlocução com ele, mas o actante fada, interlocutor, também cria um diálogo com o

narratário, dirigindo-se a ele por meio do pronome você, provocando uma confusão entre os

níveis, uma vez que um actante projetado em segundo grau (nível do narrado), dirige-se ao

narratário, uma projeção em 1º grau (nível da enunciação enunciada).

A voz da fada e a do narrador que se projeta no discurso são, na verdade, escolhas do

enunciador que busca manipular o enunciatário por meio de um saber que não se restringe aos

episódios do livro, mas a querer saber (curiosidade), em relação a um conhecimento mais

amplo, como o significado de determinadas palavras ou sobre a metrificação dos poemas.

Interessante observar que a transgressão de níveis enunciativos cria efeitos de identidade de

pontos de vista, entre o narrador e o actante do enunciado, que levam a uma mesma

orientação argumentativa, por uma reiteração de valores, que dizem respeito à instauração do

lúdico e da imaginação para fazer aceitar os valores do saber pelo querer, incentivando a

curiosidade.

Ainda na mesma obra, outro actante do enunciado, tio Vento, por meio de uma

operação de debreagens e embreagens, estabelece também um diálogo com o narratário,

criando o efeito da mistura de níveis enunciativos:

Eta que esse tal de tio Vento não respeita bons modos! Não respeita modos sociais,

nem modos de verbo... (Aqui, se este livro for somente seu, você poderá escrever, desenhar, pintar, fazer

poesia à vontade. Mas, se o livro for da biblioteca, o tio Vento pede, soltando beijos,

que você arranje uma folha de bloco, e desenhe, ou escreva, aquilo que você

inventou. Porque, se você rabiscar aqui, pode atrapalhar o vento da invenção de

outro amigo que quiser ventar e inventar, ventou? Abraços soprados, Seu criado, obrigado, Tio Vento, ventado.) (ORTHOF, 2004a, p.31-32).

Mais uma vez, aqui, por meio do narrador, o actante dirige-se ao narratário,

solicitando sua intervenção na história. Simulando o uso do discurso indireto ("tio Vento

pede.. que você arranje uma folha de bloco"; grifo nosso), em que a voz do vento aparece

analisada na do narrador, gradativamente o modo de dizer do actante do enunciado invade a

fala do narrador, constituindo uma espécie de discurso indireto livre, como se evidencia nas

três últimas linhas, em que surgem o pronome “seu” com valor enunciativo, assim como o

emprego da embreagem enunciva, em que se neutraliza a primeira pessoa pela terceira, e o

“eu” inscreve-se no enunciado como um “ele”, tio Vento, que “assina” a demanda. Esse

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procedimento tem como resultado o acionamento da participação desse narratário, criando um

simulacro da enunciação no âmbito do enunciado.

Em A Bruxa Fofim (2002) a transgressão ocorre de uma maneira peculiar, uma vez

que há actantes do enunciado que comentam sobre a narração, e sua função na narrativa é

exatamente essa, já que não participam da ação e não interagem com quaisquer outros

actantes do enunciado. A obra narra a história de uma bruxa que não consegue dizer a palavra

mágica “Abracadabra” e, a partir de então, cria muitas confusões, como ter sua vestimenta

toda arrancada a ponto de ficar praticamente nua. Em relação às projeções, há um narrador

implícito que delega a voz a um único actante que faz parte do narrado, a bruxa Fofim, que

tem a voz projetada por meio de uma debreagem interna:

O sapato vermelho pulou e colou em Fofim, no joelho. - Sapato chato, não judia de mim! Respeita a Fofim! – falou a gorducha da

Bruxa. (ORTHOF, 2002, [n.p.])

No entanto, não são só as vozes do narrador e do actante bruxa que se pronunciam no

enunciado. Há actantes que se inscrevem no texto e que têm voz, mas que não fazem parte do

enredo, nem o narrador ou qualquer interlocutor dirigem-se a eles no desenvolver da história.

São actantes que aparecem em uma distribuição topológica periférica variável em cada página

e que são figurativizados visualmente no texto por uma aranha, uma borboleta e uma formiga,

que ora aparecem no canto superior, inferior, ou na lateral das páginas.

Esses outros actantes, embora estejam fora dos espaços delimitados ao narrado, são

importantes para o sentido do texto. Como foi dito, a narrativa traz a história de uma bruxa

que, envolta a tanta desordem, vê cada peça de roupa “saltar” de seu corpo por não saber a

palavra mágica que ponha ordem a todo o caos. Nesse sentido, as vozes inscritas desses

actantes figurativizam a voz social que julga o comportamento considerado inadequado da

fada. Assim, mesmo que não interajam com outros actantes, sua participação é

importantíssima na obra, possuem um papel cognitivo e judicativo, pois interpretam os

fazeres e os comentam, como se pode ver na figura abaixo:

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(Figura 4, ORHOF, 2002, [n.p.])

Já na contracapa aparece a figura da aranha e a ela atribuído um dizer “Não leia! É

horrível!”, instaurando o insólito de, ao abrir o livro, deparar-se com uma orientação contrária

à leitura, marcando a ironia e o ponto de vista desse actante sobre a cena narrada. Ao longo da

narrativa, são várias as intervenções do actante aranha:

Fiquei corada, que escândalo! Que história indecente, eu sou uma velha aranha, ó gente! Creia: esta história é muito feia! Chega, não leia! Ai, como é que saio desta teia? (ORTHOF, 2002, [n.p.])

No início e no fim da narrativa, há também no enunciado a inscrição dos dizeres

“Socorro!” e “Que bobeira!”, fala atribuída ao actante borboleta, e “Que horror”, dizer

conferido à formiga. As falas desses actantes inscritas no enunciado referem-se, portanto,

não só a um julgamento sobre o narrado, mas também sobre a narração e, embora não sejam

actantes em interlocução com outros no enunciado, fazem parte do sentido da obra, uma vez

que apresentam outra perspectiva a partir de vozes que produzem a polêmica, o embate. A

transgressão ocorre, portanto, actantes projetados em segundo grau (a aranha, a borboleta, a

formiga), que fazem parte do narrado, nível do enunciado, comentam a narração, falando

sobre o fazer do narrador, projeção de primeiro grau, nível da enunciação enunciada, como se

vê neste outro exemplo abaixo:

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(Figura 5, ORTHOF, 2002, [n.p.])

O efeito criado pelo uso desse recurso é de uma dinamicidade de projeções que

representam, já que se explora o conflito de vozes não só no enunciado, mas também na

relação enunciado-enunciação, demonstrando que o saber não é uno. O fazer crer, nesse

sentido, opera-se segundo a ampliação do saber a partir de diferentes perspectivas sobre o

fato, embora a leitura irônica, como já se comprovou bastante recorrente no corpus (conferir

subitem 3.1), oriente a adesão à irreverência, marcado aqui pelo actante que critica a própria

narrativa.

Além de observar como mistura de níveis enunciativos é um procedimento bastante

produtivo em Orthof, é impossível não atentar para esse simulacro da situação da enunciação,

comum nas obras da autora, aspecto que será abordado adiante.

3.3.2 O narrador intruso e a projeção do narratário no enunciado

A presença do narrador é importante, pois é através das pistas deixadas por ele na

organização da narrativa que se consegue identificar as marcas que conduzam ao enunciador.

Nesse sentido, a habilidade e a competência que levam à credibilidade e a veridicção são

construídos em Orthof, como podemos ver até aqui, especialmente no modo de fazer do

narrador, que quebra com linearidade das narrativas convencionais infantis. Inscreve-se,

assim, um enunciador por meio de um caráter inventivo, original e inovador, o que reforça a

crença no discurso e a criação de uma verdade, como veremos a seguir, ao tratar dos modos

de presença do narrador e da projeção do narratário no enunciado.

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Como já tratamos, o narrador é responsável pelo saber pragmático e ocupa alguns

papéis no texto, como o de falar, relatar, organizar a narrativa, atestar a veracidade dos fatos

relatados, etc. Ele pode tanto estar inscrito de maneira explícita ou implícita no texto. No

entanto, algo que ganha destaque nos textos de Orthof é a presença do “narrador intruso”,

termo alcunhado por Fiorin (1996, p. 116) para identificar esses casos em que o narrador é

projetado, mesmo sem dizer “eu”, para comentar alguns acontecimentos, sublinhar a sua

importância. Para ilustrar esses casos, Fiorin aponta, como exemplo, o clássico papel do

narrador em Machado que, muitas vezes, embora não participe da ação, inscreve-se no

enunciado para solicitar a paciência do narratário ou julgá-lo como ledor de romances

comuns, como em Quincas Borba e Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Argumentativamente, esse "narrador intruso" desestabiliza o ponto de vista, uma vez

que o estatuto de observação é alterado, criando determinados efeitos de aproximação ou de

afastamento. Nas narrativas em terceira pessoa ou nas de primeira, em que esse "eu" não

participa dos fatos narrados, a inscrição de um narrador que diz "eu" instaura uma

subjetividade que pode estar relacionada a um comentário do narrador sobre a obra ou mostrar

uma compaixão ou desprezo em relação a algum actante.

Para identificar esse tipo de narrador que pode, por vezes, estar em sincretismo com

um actante do enunciado, é necessário diferenciar o narrador dito “neutro” de narrador

“intruso”, a partir da distinção desses dois “eu”: narrante e narrado. Para tanto, observemos

outro trecho de Orthof da obra No fundo do fundo-fundo lá vai o tatu Raimundo (2012a):

E quanta gente diferente que vem ver o Tatu Raimundo! Vem gente de todo o mundo... Vem um padre e um sacristão, brigando por um

sermão. Vem tudo o que você desenhar e que esqueci de contar. O papel aqui está branco, comece a rabiscar. (ORTHOF, 2012a, p. 29)

A obra é narrada, majoritariamente, por meio da projeção actancial enunciva, em que

se apagam as marcas da enunciação, criando o efeito de que os fatos narram-se a si mesmos.

Na história, há um tatu que busca sempre cavar buracos mais fundos, e a despeito do que

muitos pensam, ele não busca riqueza ou poder, mas sim, apenas cavar buracos cada vez mais

fundos15

. No trecho, o narratário é convidado a completar a história e, a esse convite, segue,

de fato, o papel em branco, observando-se, assim, um narrador que se inscreve no texto para

comentar a própria narração. Fiorin nomeia esse fenômeno da inscrição de um narrador

intruso de debreagem enunciativa da enunciação, casos em que os actantes da enunciação

15

conferir resumo da obra nos anexos, p. 167

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estão projetados no enunciado, seja por meio do "narrador considerado de terceira pessoa,

mas que diz eu”, diferenciando-se a enunciação enunciada do enunciado enunciado, seja nos

casos em que o narrador se instala por meio da primeira pessoa (FIORIN, 1996, p. 117). Nota-

se que, até então, esse narrador não participa da ação, não está em sincretismo com nenhum

personagem, mas nesse momento se instala no enunciado, ou seja, o narrador não faz parte do

narrado, mas se enuncia no enunciado e, a partir do momento que o faz, instala também um

narratário ("comece a rabiscar").

Ao declarar que “esqueceu de contar”, o narrador, responsável exatamente pelo falar e

por organizar a narrativa, inscreve-se no enunciado, simulando a enunciação e, com isso,

convoca a participação do narratário. O sentido se estabelece por meio do embate do ser e do

parecer, já que, ao simular um esquecimento, esse narrador revela, na verdade, um enunciador

astuto, que convoca essas complexas estratégias no texto.

Apesar de parecer dar ao leitor a possibilidade é de criar e de ser coadjuvante na

produção do enunciado, as intervenções para as quais o narratário é solicitado

pragmaticamente no texto são controladas, pois devem ser coerentes ao que já foi narrado.

Esse também é o caso da obra A Fada de Lá Pasárgada (2004a). Nesse caso, a narração é em

primeira pessoa, mas distingue-se o eu narrante do eu narrado, uma vez que o narrador não

participa da ação, mas sua inscrição permite convocar a participação do leitor, a fim de que

este interfira na história:

(Este espaço é para você colocar sobrenomes de poetas que você conhece, se

lembrar e se quiser, é claro!) (ORTHOF, 2004a, p. 18)

Nessa passagem, a inscrição desse narrador intruso convoca a participação do

narratário em um espaço destinado para que outras ideias sejam acrescidas ao texto. Ao

sugerir a inclusão dos nomes de vários poetas que poderiam constituir o sobrenome da fada,

suspende-se o narrado para que, por meio dos parênteses, o narrador convoque a participação

do narratário, a partir das instruções dadas pelo narrador intruso. No entanto, não é só para

convocar o narratário que o narrador intruso se inscreve. Ele se coloca no texto também para

comentar o narrado, julgando os acontecimentos, o que acontece ainda em A Fada de Lá

Pasárgada (2004a)

Pois é, eu estava contando a história de Pio Olho e da fada Poesia, daí surgiu uma

brisa (ORTHOF, 2004a, p. 27).

Pois eu estava explicando direitinho o significado das palavras pra você, quando

surgiu o tio vento (ORTHOF, 2004a, p. 46).

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117

O narrador intruso comenta sobre os eventos narrados por meio de um tempo anterior

à enunciação, tratando sobre a própria organização da narrativa, partilhando com o narratário

a ordenação dos fatos. Inscreve explicitamente no texto um diálogo com o narratário por meio

do uso de você, criando uma cumplicidade ao fazer o narratário sabedor das etapas de

organização dos episódios.

Em Felipe do Abagunçado16

(2009b), a suspensão do narrado se dá, inclusive, por

meio de um outro gênero, um bilhete, que é inserido no meio da história, a fim de que o

narrador se "desculpe" com o revisor pelos erros cometidos:

Resolvi, pois, inserir nesta história um recadinho para o revisor: Senhor revisor.. Sei que sua tarefa é muito árdua. O senhor é responsável pelo belo

português deste livro, coisa dificílima, pois teimo em errar demais. O senhor

conserta o que achar justo, mas deixe, por favor, a repetição [da palavra] sementes

(ORTHOF, 2009b, p. 50).

Em Felipe..., a opção é pela projeção majoritária da 3ª pessoa, mas o narrador se

coloca no enunciado por meio de um "eu" exatamente para falar sobre as escolhas lexicais na

obra. Certamente, o efeito criado, longe de realmente ser um recado sobre os "erros" do autor,

simula uma aproximação com o enunciatário, a medida que partilha com ele o processo de

produção e revisão. Inserindo, portanto, o ponto de vista dos diferentes atores envolvidos na

produção, cria a diversidade de saberes que não se limita à história narrada.

Muitas inscrições do narrador intruso em Orthof, como se pôde ver, relacionam-se ou

com uma convocação de participação do narratário, suspendendo o narrado e interagindo de

maneira que ele preencha espaços, recrie a história, ou são inserções que visam ampliar o

saber, à medida que tratam não só dos acontecimentos da narrativa, bem como são exteriores

à narração, tecendo considerações sobre a produção material das obras.

A imagem do narratário inscrita por meio desses recursos é, pois, a de um sujeito que

busca o saber que não se restringe aos episódios da obra, a quem interessa saber quais são os

papéis dos responsáveis pela produção e circulação das obras, bem como se dá essa relação. É

a inscrição de um narratário curioso, que busca um querer saber. Além disso, ao provocar o

narratário à participação, criam-se no texto pistas de uma inventividade, criatividade, com as

quais o narratário se identifique a fim de que a estratégia do enunciador seja eficaz e a

manipulação bem-sucedida.

O que se observa, portanto, na análise das projeções em Orthof são recursos altamente

complexos de projeções de pessoas, em que se procedem mistura de níveis enunciativos, um

16

conferir resumo nos anexos, p. 167

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118

narrador que comenta os fatos narrados, mas não no tempo do enunciado, e sim no tempo da

enunciação, caracterizando um tipo de narrador intruso, papéis diferentes mobilizados pelo

narratário, bem como vozes que fogem ao espaço da narrativa, mas que compõem o sentido

do texto.

Verifica-se, assim, que o texto de literatura infantil de Orthof mobiliza recursos tão ou

mais complexos do que muitas narrativas voltadas para adultos, afastando de vez a ideia de

que obras voltadas para crianças são menores, no sentido do nível de riqueza de

procedimentos, ou que o enunciatário previsto nos textos infantis não seja perspicaz a ponto

de não reconhecer, identificar e estabelecer o sentido dos jogos enunciativos e diferentes tipos

de projeção no enunciado, confirmando, pois, um tipo de contrato em que essas estratégias do

modo de dizer importam tanto (ou mais) do que o próprio dito, criando a imagem de um

enunciatário hábil e uma interação harmônica.

3.4 A MODALIZAÇÃO

Partindo do esquema narrativo e suas etapas canônicas, e especialmente os enunciados

de fazer, o estudo das modalizações ocupa-se, inicialmente, de uma investigação a respeito da

competência modal do sujeito que realiza a ação, sugerindo que há condições prévias para o

fazer, entendidas como o querer / dever / saber / poder fazer. A modalização é, pois, “a

produção de um enunciado dito modal que sobredetermina um enunciado descritivo”

(GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 314).

Além dos enunciados de fazer, um sujeito pode ser modalizado por um querer / dever/

saber / poder ser, tratando da relação entre sujeito e o valor investido no objeto: o objeto

desejável torna o sujeito desejoso; o impossível, sujeito impotente, etc. (FIORIN, 2008, p.

117). Outro tipo de modalização do ser recai sobre a relação de disjunção ou conjunção entre

o sujeito e o objeto, definida como modalidades veridictórias, que são sobredeterminadas por

modalidades epistêmicas. Às modalidades veridictórias, relacionam-se os estatutos do ser e do

parecer, em uma relação criada no próprio texto, enquanto às modalidades epistêmicas,

associam-se os estatutos do crer. Já tratamos aqui da relação gradual entre saber e o crer,

indicando como as provas, a demonstração, a comprovação atuam na argumentação e

consideraremos, neste momento, como se combinam, produzindo efeitos diversos.

Consideremos, por exemplo, as modalidades do fazer que atuam na obra de Orthof.

Em Manual de Boas Maneiras das Fadas (1995), há um sujeito que busca manipular o outro

por um dever fazer, no caso, dever seguir as regras de etiqueta:

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119

Se alguma romântica fada Encontrar um sapo de coroa, Não deve beijá-lo à toa! [...] No dia do seu casamento, A fada deve fazer uma festa imensa (ORTHOF, 1992, [n.p.]).

Há uma clara manipulação por um dever fazer e é necessário que o sujeito cumpra a

performance indicada (não beijar o sapo à toa, dever fazer a festa imensa) a fim de que atinja

esses valores indicados no Manual. Existe, portanto, uma prescrição, característica do gênero

em questão, indicada por um dever fazer e um não poder não fazer, uma vez que não é

facultada a ação, ela é necessária para que se alcance o objeto-valor.

As modalidades também podem ser consideradas nos sincretismos actoriais dos

sujeitos do enunciado modal e descritivo. Divididas entre exotáxicas e endotáxicas, conferem

ao enunciado um caráter de maior ou menor subjetividade, dado o sincretismo ou não do

sujeito modalizador com o modalizado. Nesse sentido, o quadro das modalidades é

incorporado, então, com as modalidades da crença, conforme ilustrado no esquema abaixo:

potencializada virtualizada atualizada realizada

Modalidades exógenas ASSUMIR DEVER PODER FAZER

Modalidades endógenas ADERIR QUERER SABER SER

(crenças) (motivações) (aptidões) (efetuações)

Quadro 3: modalizações (Fontanille; Zilberberg, 2001, p. 256)

Observando o quadro acima, nota-se que o crer sobredetermina as outras modalidades,

pois, para que o sujeito deva, queira, possa ou saiba fazer, ele deve ser anteriormente dotado

de um crer. Fontanille e Zilberberg (2011, p. 250) destacam o fato de que mesmo que não haja

necessariamente uma crença pura no sujeito que o leve a fazer / ser e que este esteja tomado

por ações ritualizadas, repetidas, as ações dessemantizadas de rito e hábito cumprem o papel

de potencialização.

O exame das modalizações considera ainda um arranjo de compatibilidades e

incompatibilidades das modalidades, que será concebido no estudo sobre as paixões,

entendidas como “efeitos de sentidos de qualificação modais que alteram o sujeito de estado,

o que significa que é vista como um arranjo das modalidades do ser, sejam elas compatíveis

ou incompatíveis” (FIORIN, 2008, p. 118). É a combinação, por exemplo, de um saber não

poder ser e um querer ser que condiciona um sujeito infeliz. Greimas e Fontanille, ao

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120

tratarem da obstinação, indicam que um simples querer fazer não explica o sujeito obstinado,

pois

o sujeito abandona seu programa e renuncia diante do obstáculo. É, pois, o

“excedente modal” regente que garante a perseguição da performance, apesar do

obstáculo, e caracteriza especificamente a obstinação; e é também a presença desse

excedente que obriga a formular o dispositivo passional em termos de “organização

modal do ser” e não em termos de “competência em vista do fazer” (GREIMAS;

FONTANILLE, 1993, p. 63).

Como o termo “paixões” ativa conceitos sócio-culturalmente definidos, é necessário

entendê-lo sob a perspectiva semiótica. A partir de uma análise imanente do texto, identifica-

se um estado afetivo no discurso, sendo os “estados de alma” objetos de investigação. Ao

descrever o ciúme e a avareza, Greimas e Fontanille (1993, p.22) inscrevem o lugar adequado

para o tratamento das paixões dentro da teoria, concebendo-as em seu viés inteligível, pois

tem um princípio próprio de racionalidade, bem como sensível, reduzindo “esse hiato entre o

conhecer e o sentir”, sem desconsiderar, para tanto, o aspecto cultural que avalia e vivencia as

paixões, determinando seus efeitos.

As paixões podem ser definidas, também, como simples ou complexas. Barros (1990,

p. 4) define a ambição por um querer e poder ser e, retomando Greimas, considera as paixões

mais complexas que envolvem, por exemplo, a espera, pois se define por um arranjo entre o

querer ser e o crer ser, que desencadeia mais percursos e outros arranjos modais (BARROS,

1990, p. 6). Além disso, as paixões também podem ser analisadas a partir de uma perspectiva

aspectual, que instaura um ponto de vista sobre o qual se percebe a cena enunciativa.

A inscrição de um observador que instaura um ponto de vista pelo qual se percebe a

cena enunciativa e a visualização de um processo em marcha é fundamental para o

entendimento dos arranjos e combinações modais. O exame da apectualização, que

comumente relacionado somente ao tempo, especialmente por meio dos processos verbais,

pode ser observada no que diz respeito ao espaço, tendo em vista sua trajetória; em relação ao

ator, compreendendo o sujeito em seu processo gradual de transformação, observando-se a

qualidade da performance e, também, no que concerne ao tempo, tomando o julgamento da

duração das ações. A ira, por exemplo, é pontual, enquanto o ódio é durativo; o sujeito pode

ser caracterizado pelo excesso ou pela falta, a partir de um julgamento social.

Pode-se ainda definir uma paixão por sua modulação tensiva, considerando o contínuo

e a gradação, observando as categorias não por meio de uma oposição absoluta, mas por meio

dos intervalos (ZILBERBERG, 2006b, p. 169). Alguns efeitos passionais possuem os mesmos

arranjos de combinação, diferenciando-se pela intensidade das paixões: o medo, por exemplo,

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tem uma intensidade menor do que o pavor; o contentamento, por sua vez, é menos intenso

que a exultação.

Barros caracteriza também as paixões pelo tipo de valor desejado: pragmático

descritivo na cobiça, em que se desejam bens materiais; descritivo e modal na ambição, em

que se quer ser tanto quanto poder; indiferentemente pragmático ou modal, na inveja e

cognitivo, que se define pelo querer saber, como na curiosidade (BARROS, 1990, p. 04).

É possível diferenciar ainda “discurso apaixonado” de “discurso da paixão”,

apontando que é possível avaliar as paixões na enunciação e no enunciado, respectivamente.

No primeiro, são as marcas deixadas pelo processo de dizer no dito que criam um tom

passional, como, por exemplo, as exclamações e as interrogações, as pausas e suspensões, as

reticências, as interjeições, o uso de vocativos, que imprimem no enunciado o sentimento do

éthos do enunciador; no segundo, a paixão é representada no enunciado por actantes do

enunciado e chega-se a elas pela representação figurativa e temática, sem que,

necessariamente, estejam manifestadas por itens lexicais ou pela definição do lexema,

investigado muitas vezes pelo uso do dicionário por este guardar conteúdos conceituais que se

inscrevem em uma dada cultura.

Considerando o discurso da paixão, por exemplo, o arranjo das modalidades do ser

permite discursivizar a subjetividade, uma vez que não se trata de um estudo do

temperamento, mas dos efeitos afetivos ou passionais decorrentes da modalização do sujeito

de estado (FIORIN, 2007, p. 10). Na obra de Orthof, Trem de pai...uai! (1989), por exemplo,

um sujeito atarefado trabalha em um escritório e não consegue dar conta de todos os afazeres.

Depois do dia de trabalho, encontra descanso em casa, brincando com o filho. É um sujeito

definido por estado inicial de insatisfação, uma vez que ele não pode ser (toma o café e

derrama sobre o papel, tentava telefonar, mas não tinha linha, fazia conta, errava na tabuada),

deve ser (tem de trabalhar, chegar às seis no trabalho). Mas, ao mesmo tempo, deseja ser livre

e esse querer, aliado ao saber e poder (brincava sorridente com o filho) leva à satisfação e à

alegria, quando estava em casa. O efeito passional criado se instaura pelo arranjo entre não

poder ser, dever ser e querer ser, mas que também se explica pelo estado de tensão e

relaxamento – é intenso no trabalho e relaxado no encontro com o filho, uma vez que o pai

supre a falta, que motiva o querer.

Para análise do arranjo das modalizações em Orthof, bem como as paixões dele

decorrentes, serão primeiramente observadas as combinações de modalidades do fazer e do

ser, esta última que corresponde às paixões, considerando os arranjos passionais do

enunciado, que dizem respeito à ação dos sujeitos e sua existência modal observadas nos

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actantes. Consideraremos também o fazer pragmático do narratário inscrito nos textos e,

posteriormente, os arranjos de modalidades que explicam as paixões na enunciação,

explicitando como o envolvimento afetivo e o contágio se instauram como recurso

argumentativo nos textos, a partir de um “dizer apaixonado”. Todos esses componentes

indicarão a argumentatividade nos textos tanto pela sensibilização do outro, por uma força de

estabelecer a comunhão com o leitor, quanto pela reiteração de um mesmo efeito passional

entre os actantes, indicando o valor de verdade em cujas bases se dá a persuasão.

3.4.1 A modalização e as paixões do enunciado como orientação argumentativa

Ao observarmos os percursos narrativos construídos nas obras de Orthof que constam

no nosso corpus, verificamos que é recorrente nos textos uma tentativa de manipulação de um

antissujeito pelo dever, que é malsucedida, pois os sujeitos destinatários, mesmo que

aparentemente aceitem esses valores transmitidos, posteriormente os rejeitam, e assumem

novos valores, geralmente opostos àqueles, manipulados pelo querer, em uma sequência

narrativa sucessiva, com um novo percurso de busca de outros valores. Por se tratarem de

narrativas complexas, é necessário verificar as combinações de competência modal do sujeito

que explicam sua transformação e sua relação com o objeto.

Do ponto de vista da narrativa, há, de maneira frequente, uma anti-narrativa em que

um sujeito é manipulado por um dever fazer, e os valores a serem aceitos dizem respeito a

uma coerção social, seja em relação a uma forma de vida, ou seja, um modo como deve se

comportar, seja por um poder instaurado que impele a um modo de fazer, e o sujeito

destinador impõe determinados valores a serem buscados pelo sujeito destinatário. O sujeito

destinatário, por sua vez, rejeita esses valores de ordem, riquezas, valores de padrões

instituídos socialmente a fim de buscar novos valores, como autonomia, liberdade, desordem,

etc.

Tomaremos como exemplo desse tipo de construção modal as obras Maria vai com as

outras (1982), A velhota Cambalhota (1985a), No fundo do fundo fundo lá vai o Tatu

Raimundo (2012a), Felipe do Abagunçado (2009b) e Enferrujado, lá vai o soldado (1984).

Em todas, constrói-se uma estratégia narrativa em que há sequências narrativas em sucessão:

uma anti-narrativa, em que o sujeito é manipulado pelo anti-destinador por um dever, como se

pode ver nos trechos:

Um dia todas as ovelhas resolveram comer salada de jiló. Maria detestava jiló. Mas, como todas as ovelhas comiam jiló,

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Maria comia também. (ORTHOF, 1982, p. 16)

- Ó comadre cambalhota, tenha modos de velhinha, acabei de ver a renda da perna de uma calcinha! (ORTHOF, 1985a, [n.p.])

A mãe tinha ficado zangada e começou a esbravejar: - Felipe, você é muito bagunceiro, não tem consideração pelos outros, o seu quarto está um

lixo, você está grande demais para brincar de trem e eu estou exausta de lutar sozinha pra

que você tome jeito. (ORTHOF, 2009b, p.10)

E tudo o que você desenhou, bicho, traço, borrão ou gente sabendo que o tatu ficou rico oferecia um presente (ORTHOF, 2012a, p.36)

Soldado, ó meu soldado, se tu não fores para guerra, vais ficar desempregado! (ORTHOF, 1984, [n.p.])

Em todas, o sujeito-destinatário age manipulando o sujeito a aceitar como verdadeiros

os valores indicados. No entanto, como os sujeitos não creem nesse valor do sujeito-

destinador, iniciam uma nova performance mobilizados por um querer intenso, já que, a

despeito da pressão social, iniciam a busca pelos valores nos quais verdadeiramente creem,

como se vê abaixo:

Chegou a vez de Maria pular. Ela deu uma requebrada, entrou num restaurante e comeu uma feijoada. Agora, mé, Maria vai pra onde caminha o seu pé.(ORTHOF, 1982,28; 30;32) Quem vem do alto do morro, lá do alto da ladeira?... Vem plantando bananeira?! Mas é a tal da velhota volta a dar cambalhota. (ORTHOF, 1985a, [s.n])

Felipe correu, tropeçando, por cima da bagunça e foi escrever no seu diário [...]

Abriu o diário e reparou que não podia escrever porque não achava a caneta.

(ORTHOF, 2009b, p. 52)

Não preciso de presentes, passem bem, muito obrigado. Vou fazer meu buracão agora. (ORTHOF, 2012a, p. 36)

De dentro da armadura saiu um rapaz mocinho[...] jogou fora a armadura, transformou-se em jardineiro. (ORTHOF, 1984)

Nos trechos destacados, é possível observar que o querer intenso marca as narrativas

dos sujeitos e, a despeito de um dever seguir as pressões sociais, os valores indicados pelo

antissujeito, o sujeito destinatário vai em busca dos valores nos quais crê serem verdadeiros e,

em consequência disso, as sanções atribuídas às ações são sempre positivas.

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As estruturas narrativas apontadas anteriormente, organizadas a partir do esquema

modal dever fazer e querer fazer, respectivamente, são assumidas pelo sujeito da enunciação e

convertem-se em estruturas discursivas. As escolhas feitas pelo sujeito da enunciação

transformam em discurso a narrativa, elencando tipos de projeções de pessoa, tempo, espaço,

bem como os percursos temático-figurativos, como veremos a seguir.

Nas duas primeiras obras, tanto em Maria vai com as outras (1982), como em A

velhota Cambalhota (1985a), há uma imposição de um dever seguir as regras e os padrões

sociais julgados como adequados. Em ambas há uma tentativa dos actantes de se enquadrarem

ao padrão estabelecido, mas ações resultantes dessa tentativa são sempre fracassadas. Maria

deve seguir os passos de outras ovelhas, assim como orienta o ditado popular, como se viu

anteriormente.17

Deve considerar como verdadeiros, portanto, os valores de submissão,

alienação, subserviência ao acompanhar o grupo de ovelhas, mas, ao tentar fazê-lo, tem como

resultado de busca um mal estar físico, concretizado no texto por figuras como insolação,

gripe, bem como um desprazer gustativo ao comer forçosamente o jiló, o que faz para

conseguir enquadrar-se nesse padrão. Maria quer não seguir os passos de outras ("detestava

jiló), mas busca ainda assim segui-los ("continuo fazendo o que as outras faziam").

Em A Velhota Cambalhota (1982), fala-se de uma velhota que vive "dando

cambalhotas", enquanto todos da cidade condenam seu jeito. Assim como em Maria, a

velhota de fato procura seguir as normas de conduta ditadas socialmente para alcançar valores

como comedimento, uma vez que a coerção social a impele para este valor:

Muito séria, de coquinho, vestido esticadinho, subindo pela ladeira (ORTHOF, 1985a, [n.p.])

Para Fiorin (1989, p. 350), é possível que haja o julgamento dos comportamentos dos

sujeitos por um observador social, tomado a partir de uma perspectiva que considera a justa

medida como o valor a ser buscado, sendo avaliados negativamente, dessa forma, tanto o

excesso quanto a insuficiência. No caso da obra analisada, o dever fazer diz respeito a

reproduzir determinadas ações que indicam a sobriedade de uma senhora, assumindo os

valores de seriedade, gravidade e circunspecção, e os atores sociais que julgam esse

comportamento são a vizinha, que orienta a velhota a "ter modos de velhinha" e o padre, que

afirma estar preocupado com a reputação da senhora.

17

Conferir subitem 3.2

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125

O que se percebe é que, no nível do parecer, a velhota parece seguir os padrões de

comportamento, o que não se confirma no nível do ser. Trata-se de uma mentira, já que o

sujeito parece ser moderado, mas não o é:

Mineira, bem educada, reza o terço, vai à missa, usa coque é quase freira, mas adora a brincadeira de ser doidinha e velhota... Anda dando cambalhota (ORTHOF, 1985a, [s.n])

A tentativa de corresponder aos valores de uma coerção social também acontece com

Enferrujado, lá vai o soldado (1984). Aqui, narra-se a história de um soldado que, mesmo

tendo que exercer essa função, decide virar jardineiro, já que não é eficiente na sua função de

defender o reinado. O soldado, ameaçado pela perda do cargo pelo rei ("se tu não fores pra

guerra, vais ficar desempregado"; ORTHOF, 1984, [n.p.]), busca enquadrar-se na função, mas

suas ações também não são bem-sucedidas. Como o soldado não crê ser um sujeito bravo,

valente e o arranjo de modalidades define um sujeito inseguro, ele não pode, não quer e não

sabe exercer essa função social, já que "marchava contra perigos que nem existiam", é

"desajeitado, o capacete é mal feito", "acerta" com a espada "o traseiro da vaca", tropeça na

lataria "arrebentando a ferrugem".

Nos três exemplos de obras citados acima, quando os actantes empreendem a busca

pelos valores em que realmente creem, há sempre como resultado um valor tomado como

positivo pelo enunciador, como a autonomia em Maria ("Agora, mé, Maria vai pra onde

caminha seu pé!", ORTHOF, 1982, p. 32), o valor do excesso e da liberdade na Velhota

("Planto a vida do meu jeito, quem quiser, plante também”, ORTHOF, 1985a, [n.p.]) e a

realização pessoal, profissional no soldado ("O rapaz... transformou-se em jardineiro").

Já em No fundo do fundo-fundo, lá vai o Tatu Raimundo (2012a) e em Felipe do

Abagunçado (2009b), não há nenhuma tentativa por parte dos actantes de buscar os valores

orientados socialmente, já que a manipulação por um dever buscar riquezas, no primeiro caso,

ou dever ser ordeiro, no segundo, não é suficiente para que ao menos empreendam qualquer

tentativa nesse sentido. O tatu tem como objetivo de sua busca cavar buracos cada vez mais

fundos e, mesmo encontrando, despretensiosamente, petróleo e diamantes, objetos que

figurativizam a riqueza, ignora-os ("cospe terra no diamante", "estou aflito, pois virei um tatu

rico"), já que seus valores são outros. O enunciador, então, sugere que o interesse move outros

actantes a uma aproximação com o tatu rico ("Achando o tal petróleo, o tatu foi procurado por

todo mundo", ORTHOF, 2012a, p. 33), mas como o prestígio social não é o valor de busca do

tatu, ele segue sua busca por buracos mais fundos ("vou cavar tão fundo-fundo, vou fazer tal

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buracão", ORTHOF, 2012a, p. 36). Por fim, o Tatu compra uma escavadeira para cavar mais

buracos, indicando a duratividade do valor e orientando a própria busca como o valor,

apontando para a continuidade do processo e a iteratividade, pela repetição da ação.

Felipe do Abagunçado (2009b) deve seguir os valores da ordem, padrões sociais

impostos por sua mãe, Lili, devendo manter seu quarto arrumado. Nesse caso, a manipulação

não é bem-sucedida, uma vez que é frágil a própria crença do actante, figurativizado pela

mãe, nos valores da ordem.

Aí, Lipe, eufórico, subiu no monte de roupa abagunçada e gritou: - Mamãe, eis a sua carteira de identidade... para a senhora aprender a não perder seus

documentos e cuidar mais das suas coisas! - Minha carteira de identidade? Nem reparei que tinha perdido!

(ORTHOF, 2009b, p. 52)

O segredo consiste no fato de Lili, mãe de Felipe, também não poder ser ordeira, assim

como seu filho. O secreto leva a um outro olhar sobre o dever, provocando no leitor uma

reflexão sobre a complexidade e a reversibilidade dos valores buscados, sobre o que na obra

seria interpretado como ordem ou desordem. Felipe não sabe, não pode e não quer ser ordeiro

e, a despeito de dever agir de maneira oposta, continua seu estado inicial de ser desordeiro.

O que se observa pela análise das obras é que, reiteradamente, o enunciador, ao

assumir as estruturas narrativas no nível discursivo, encadeia-as de forma a fazer prevalecer

os valores desejados, rejeitando os valores obrigatórios. Ao dever fazer sempre se articulam

valores tomados como disfóricos pelo enunciador (alienação, a justa medida nos

comportamentos, a riqueza, a ordem), ao passo que, ao querer ser, relacionam-se valores

eufóricos (liberdade, autonomia, excesso, livre-arbítrio) indicando, pela reiteração desta

estrutura modal, os valores aos quais o enunciador busca adesão. Assim, constrói-se uma

orientação argumentativa sobre quais valores o enunciatário deve aderir, que dizem respeito

ao querer e não a um dever, imposto socialmente.

Observam-se, também, algumas paixões, resultantes do arranjo de combinações

modais, das ações dos sujeitos e a existência modal dos actantes. A aflição, por exemplo,

caracterizada pelo saber incerto, evitável, inseguro o valor a ser buscado, é recorrente em

alguns actantes nas obras analisadas, o que se explica quando se reconhece que são

manipulados por um dever enquanto desejam outros valores. Maria "pensa, suspira", mas

continua seguindo os passos das ovelhas; o tatu fica "aflito" quando descobre que,

ocasionalmente, ficou rico e o soldado "sua, mal-humorado", marchando contra perigos que

não existem. Os sujeitos são, também, por consequência, inseguros, já que creem não ser

ordeiros, valentes ou alienados. Considera-se aqui também o componente tensivo da paixão

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da aflição, já que, como bem aponta Barros (1990, p. 7), ela vai de um estado inicial de tensão

a um relaxamento, uma vez que é liquidada a falta. Cumpre um percurso de variação de

tensividade que vai da aflição, em que o dever fazer impõe valores, estes rejeitados pelo

sujeito, passando pelo alívio, até a felicidade, esta também uma paixão recorrente, definida

pelo saber poder ser e querer ser (Maria segue seu próprio caminho, o soldado realiza-se

profissionalmente e o tatu busca cavar buracos cada vez mais fundos), indicando o

relaxamento, dada a consciência da conjunção desejada.

Nas narrativas dos contos maravilhosos, a felicidade é o resultado positivo frente às

ações bem-sucedidas dos sujeitos; nos textos aqui analisados, esse estado de alma é uma

operação de transformação a partir da conjunção com os valores desejados, de liberdade,

autonomia, etc. É importante destacar que as ações dos actantes em Orthof não

necessariamente são as mesmas dos sujeitos nas narrativas dos contos de fada ou das

narrativas moralizantes do início do século passado. Enquanto, em muitas narrativas para

crianças, o herói enfrenta os perigos e resgata a mocinha para estar em conjunção com a

felicidade, aqui ele se despe da armadura e torna-se jardineiro. Ou até mesmo toma como

valores a desordem e não a ordem, como esperado socialmente.

Além da aflição como existência modal dos actantes, também ocorre, de maneira

reiterada, a paixão da perseverança. Definida como "a qualidade de perseverar", que por sua

vez, assim se define: “perserverar v. 1. continuar esforçando-se para alcançar algo; 2.

continuar a fazer; 3. continuar a existir, acontecer” (AULETE, 2011, p. 1058).

Nota-se que, nas três definições, continuar aparece, indicando o aspecto durativo da

ação. A perseverança é uma das paixões que explica o fazer do sujeito, pois, mesmo que haja

obstáculo para a realização da ação, o sujeito continua em busca do valor. Nas obras

analisadas, o querer ser desordeiro, desprendido, independente, livre, ou seja, os valores

volitivos, superavam em intensidade os obrigatórios, que eram rejeitados, bem como os

obstáculos impostos ao alcance desses valores eram ultrapassados.

As paixões da aflição, da insegurança, determinadas pelo dever que indica uma

obrigatoriedade, a felicidade na consciência do alcance do objeto do querer, e a perseverança

dos actantes, que ultrapassam obstáculos movidos pelo querer, são procedimentos reiterados

nos textos pesquisados e apontam os efeitos passionais como um eficiente dispositivo

argumentativo, uma vez que vinculam-se fortemente a um universo de valores e ideologias

que movem os sujeitos, a fim de que considerem verdadeiros, por exemplo, os valores

euforicamente apontados pelo querer e disfóricos os valores do dever.

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Assim, os "estados de alma" se instauram como importantes recursos argumentativos

em Orthof, à medida que inscrevem sujeitos que, a partir da ordenação discursiva dos

esquemas narrativos pelo sujeito da enunciação, recusam determinados valores e assumem

outros, levando a crença de que são os valores do querer os verdadeiramente buscados. Mais

adiante, o modo de dizer apaixonado também corroborará como se dá a assunção de valores

pelo enunciatário.

3.4.2 O dizer apaixonado

Além de verificar como o arranjo modal se combina a fim de instituir paixões

euforizadas no enunciado, o estudo das modalidades também contempla a função de indicar a

posição do enunciador em relação ao seu discurso, em relação ao enunciatário ou ainda

configurar as paixões no nível da enunciação, por meio de um dizer apaixonado. As

combinações modais, no nível da enunciação, também são observadas na superfície textual

por meio dos itens lexicais que marcam a posição do enunciador em relação ao seu próprio

discurso, pelo uso de uma determinada pontuação, por um tom excessivo, entusiástico, etc.

Por indicar uma perspectiva do enunciador em relação ao discurso ou em relação à interação

com o enunciatário, as modalidades também se inscrevem como um recurso argumentativo no

texto.

Dessa forma, o modo como a narrativa é organizada indica uma orientação

argumentativa e os valores aos quais o enunciador busca a adesão do enunciatário, como se

pôde ver anteriormente. Há sempre o dever e, para este, ações negativas, e o sujeito rejeita

esses valores, assumindo o querer intenso, como se pôde ver nas obras analisadas. É claro,

portanto, que os valores de liberdade, desordem (como representação de uma independência

de escolhas), bem-estar não são assumidos somente pelos actantes, mas também o são pelo

enunciador, que não só crê neles, como manipula para que o enunciatário também identifique

esses objetos de busca como verdadeiros, em detrimento dos valores rejeitados.

Isso também se comprova, por exemplo, em A velhota cambalhota (1985a), por meio

do recurso das projeções enunciativas. Majoritariamente, a narrativa se organiza por meio da

projeção enunciva de pessoa (“Era uma velha, velhota, chamada Dona Cambalhota”,

ORTHOF, 1985a, [n.p]), ou seja, o narrador não se identifica com nenhum actante do

enunciado, constituindo uma narrativa em terceira pessoa. No desfecho da narrativa, no

entanto, essa projeção actancial é alterada e o que se percebe é justamente o sincretismo entre

o actante velhota e o narrador (“Eu sou aquela velhota que mora na casa-trem”, ORTHOF,

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1985a, [n.p]). Ou seja, o narrador não parecia estar em sincretismo com nenhum actante, mas

revela esse procedimento, ao final, por meio da inscrição da projeção enunciativa. Esse

“segredo” traz o inusitado, o surpreendente ao texto e aponta para o direcionamento

argumentativo – o enunciador assume como seus os valores da brincadeira, do riso, do

movimento e da irreverência, ao sincretizar, no final da narrativa, a voz do narrador (que

primeiramente aparece distanciado, em projeção enunciva, o que permitiria a alternância de

observadores), e a voz da protagonista, actante do enunciado.

Por meio da revelação do segredo do sincretismo entre o narrador e actante na obra, a

paixão da alegria é um efeito no discurso, que se observa concretamente em “E eu... rolei e

brinquei nesta história inventada” (ORTHOF, 1985a, [n.p.]). A alegria se define por um saber

ser possível a conjunção desejada e, como se viu anteriormente, é resultado de um estado de

relaxamento, que sucede a tensão. É lexicalizada por um “sentimento de grande

contentamento, satisfação, de prazer” e também por “acontecimento feliz” (AULETE, 2012,

p.77), que é aspectualmente uma paixão pontual, corroborada pelo pretérito perfeito dos

verbos “rolei” e “brinquei”, resultado de um querer e um saber ser possível a conjunção

desejada.

Em Maria vai com as outras (1982), a onomatopeia que representa o som da ovelha

inscreve um modo alegre também de apresentar o bem-estar e a liberdade experimentada pela

ovelha ("Agora, mé, Maria vai pra onde caminha o seu pé, ORTHOF, 1982, p. 32). O

enunciador assume, portanto, o efeito passional da alegria, contagiando o enunciatário pelas

mesmas paixões.

O modo de dizer alegre, bem-humorado, que inscreve no enunciado a paixão da

alegria, também se observa pelo modo de combinação de figuras e temas, pela reunião de

figuras inesperadas (conferir subitem 3.1.2) ou pelas quebras enunciativas, que marcam a

irreverência e a inventividade na escolha do procedimento.

Outro elemento que confirma as paixões na enunciação como um recurso

argumentativo é a instauração da compaixão, que indica a partilha de um mesmo sofrimento,

um sentir junto, com o outro (LIMA, 2014, p. 185). Por meio de uma base lexemática, marca-

se a inscrição de um ponto de vista em que o enunciador se compadece do sofrimento

experienciado pelo sujeito insatisfeito pela manipulação de um dever:

Mas como todas as ovelhas comiam jiló, Maria comia também. Que horror!

(ORTHOF, 1982, p.16).

...dizia o rei pro coitado do seu inútil soldado. (ORTHOF, 1984, [n.p.])

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Tudo isso é num esguicho, sai do buraco, pingando, Raimundo, que pobre bicho

(ORTHOF, 2012a, p.27).

A interjeição de indignação que modaliza o fato de Maria ter comido jiló, as

expressões coitado e pobre, caracterizando o soldado e o Tatu, respectivamente, indicam o

efeito passional da compaixão no discurso, considerando que o sentido na partilha dos

sentimentos ocorre quando o sujeito crê saber do sofrimento do outro porque partilha dos

mesmos valores (LIMA, 2014, p.186). Ou seja, o enunciador partilha dos mesmos valores dos

actantes e a base lexemática, que atribui uma perspectiva de observação no texto, leva o

enunciatário a também participar dessa partilha e crer serem verdadeiros a dor e o sofrimento,

sanções negativas da narrativa do dever.

O querer saber, que define os sujeitos curiosos, também é recorrente como

característica de um modo de dizer. Em muitos momentos, o enunciador provoca a

curiosidade do enunciatário, seja pelo querer saber o significado de uma palavra ou descobrir

qualquer peculiaridade de algum actante do enunciado. O querer saber se amplia, por

exemplo, a um tipo de conhecimento que não se restringe aos eventos narrativos, mas dizem

respeito aos comentários sobre o papel do ilustrador, do revisor, como se viu, por exemplo, no

item 3.3. A curiosidade ocorre pela doação de um querer, por exemplo, em A Fada de lá

Pasárgada (2004a), em que o querer saber que indica o tipo de competência modal que

manipula o sujeito. O enunciatário é convocado a desvendar o segredo da narrativa e a

expectativa e o suspense marcam a interação:

(Figura 6, ORTHOF, 2004a, p. 39)

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Aqui, importa como se mobiliza o fazer interpretativo, uma vez que o enunciatário é

manipulado por um querer saber, mas, caso não seja possuidor dessa competência, é

persuadido a continuar a leitura, com o ato de virar a página, fazer pragmático que será

observado no próximo item. Sem dúvida, o passar de páginas é uma ação esperada e

necessária na prática de leitura do livro como objeto físico, mas a manipulação do leitor por

tentação, provocando-o para obtenção de um objeto cognitivo desejado, institui um sujeito

curioso, ávido pelo novo, pela descoberta.

Na obra A bruxa fofim (1997), cria-se um suspense para descobrir qual é a palavra

mágica, utilizando-se, para tanto, algumas estratégias que alongam a descoberta, como se vê

nas imagens abaixo:

(Figuras 7 e 8, ORTHOF, 2002, [n.p.])

Na figura 7 é uma sequência de palavras que vai alongando a espera pelo saber da

palavra e na 8, por meio de um conhecido e divertido jogo de adivinhação, a curiosidade por

descobrir a palavra se intensifica, até que, no fim, revela-se ser "Abracadabra" a palavra a se

descobrir.

Nesse sentido, tanto a alegria, que cria a imagem de um éthos de enunciador

irreverente, bem-humorado, a curiosidade, que marca a busca pelo saber, quanto a compaixão

são “estados de alma” assumidos pelo enunciador que envolvem o enunciatário, seja pelo que

se diz ou pelo modo de dizer, como se mostrou. Como se sabe, para que a manipulação se dê,

é necessário que haja também um envolvimento, uma sensibilização, como aponta Fontanille:

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para ler, o leitor deve elaborar a significação; para elaborar a significação, ele deve

tomar posição em relação ao campo de discurso, adotar um ponto de vista,

desenvolver uma atitude perceptiva etc. Desse modo, ele já partilha, ao menos

parcialmente, da identidade modal e passional dos actantes do discurso.

(FONTANILLE, 2007, p. 185).

A captura do leitor a fim de que creia na verdade construída pelo enunciador mobiliza

recursos não só pela paixão no enunciado, em que actantes se transformam em virtude dos

efeitos passionais decorrentes das combinações modais, bem como pelo modo de dizer,

ativando o sujeito curioso, por exemplo. O sensível e o inteligível são, portanto, componentes

explorados a fim de que o enunciatário se sensibilize, seja contagiado pelas paixões

vivenciadas pelos actantes, bem como pelo modo de dizer apaixonado que, ao selecionar

recursos que criam uma disponibilidade sensível, possibilita uma experiência dos efeitos

passionais construídos no texto e, portanto, mobilizando o enunciatário a aceitar determinados

valores.

3.4.2.1 O fazer fazer na enunciação

De acordo com a própria definição de sujeito da enunciação, já se parte do princípio de

que o enunciatário é coprodutor na criação de sentidos do texto, uma vez que a sua imagem

orienta o que pode e deve ser dito, a fim de que o contrato fiduciário se estabeleça. Além

disso, o enunciatário possui um papel ativo e cognitivo, de modo que atua nessa interação a

função interpretativa do enunciado.

No entanto, em Orthof, o papel do enunciatário como colaborador na produção vai

além da função cognitiva, sendo recorrente o acionamento de um apelo do enunciador a um

fazer também pragmático do enunciatário, construindo um tipo de interação diferenciada,

tendo em vista a dinâmica estabelecida por um dever / poder / saber / querer fazer. Ou seja, é

recorrente nos textos a convocação do enunciatário a uma participação mais ativa, de modo

que se crie uma simulação de que ele é coprodutor do texto, o que se verá a seguir.

Vê-se, por exemplo, a provocação a uma participação efetiva do leitor, no que diz

respeito ao próprio aspecto sensorial, por meio de movimentos previstos do próprio corpo. É o

que acontece em Guardachuvando Doideiras (1992). Em vários momentos da narrativa, o

leitor é orientado a movimentar o corpo (ou o livro) para que seja possível a leitura do

enunciado, conforme se vê nas figuras 9 e 10 abaixo:

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(Figuras 9 e 10, ORTHOF, 1992, p. 8; 21)

O dever movimentar o livro (ou o corpo) é condição para a produção de sentido, já que

o próprio texto enunciado acompanha a dinâmica do movimento, estando topologicamente à

esquerda da página, verticalmente, ou de cabeça pra baixo. O enunciador busca partilhar com

o enunciatário um sentimento de sofrimento, uma vez que é a voz do próprio narrador que

confirma a leitura sofrida como uma qualidade literária (ORTHOF, 1992, p. 21). A exigência

do movimento do livro ou o movimento do corpo faz com que o leitor também vivencie esse

“sofrimento” na leitura por uma experiência também somática.

Em outra obra da mesma autora, No fundo do fundo-fundo lá vai o tatu Raimundo

(2012a), há também uma distribuição gráfica do texto verbal na página, no canto superior

direito ou esquerdo, no canto inferior, ou na horizontal. Em um certo momento, quando se

intensifica a busca do Tatu por buracos cada vez mais fundos, o texto aparece graficamente

em espiral, acompanhando as voltas do Tatu pelos caminhos tortuosos, obrigando o

movimento do corpo para que se complete a leitura. Há um dever que manipula o

enunciatário, à medida que o fazer interpretativo só se realiza caso o fazer pragmático se

complete. Ou seja, a rejeição da manipulação, a recusa dos valores da dinamicidade, da

atividade, anula o contrato estabelecido, comprometendo a interação entre enunciador e

enunciatário. É parte do contrato o fazer somático por parte do sujeito destinatário, criando

um tipo de interação em que o enunciatário necessariamente deve possuir um tipo de

participação mais ativa, em comparação às narrativas em que não existe esse tipo de

procedimento. O efeito também é partilhar com o leitor a vertigem por que passa o actante do

enunciado de certa maneira, fazendo-o sentir com, como se o leitor também pudesse vivenciar

os sentimentos experimentados na narrativa.

Em História enroscada (2011), o dever fazer também atua na interação do sujeito com

o próprio objeto livro, indicando um modo de fazer que, de maneira irreverente, se coaduna à

própria narrativa. Na obra, a porca vai aos poucos inflando porque os filhotinhos, ao invés de

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mamarem, decidiram soprar, fazendo da porca, um balão. Ao final, a orientação é que se

"feche o livro com cuidado, se não ela pode estourar" (ORTHOF, 2011, p. 20), acompanhado

da ilustração em que a porca aparece imensa sob um livro prestes a fechar, como se vê na

figura abaixo:

(Figura 11, ORTHOF, 2011, p. 20)

O fazer somático que poderia indicar o ato do fechamento do livro como uma atitude

corriqueira, dessemantizada, é ressignificado pela própria orientação do modo de fazer pelo

enunciador, de forma que o leitor atente para a própria ação de fechar o livro ao encerrar a

leitura.

Em A Fada de lá Pasárgada (2004a), convoca-se o fazer pragmático do enunciatário,

havendo, inclusive, a negação de um dever em favor de um querer:

Este espaço é pra você colocar sobrenomes de poetas que você conhece, se lembrar e

se quiser, é claro! ATENÇÃO: ISSO NÃO É DEVER DE CASA, É DIVERSÃO,

ENTENDEU? (ORTHOF, 2004a, p. 18).

A facultatividade é marcada no texto pelo não dever fazer, discursivizada pelo "se

lembrar e se quiser". No entanto, a reprodução gráfica do enunciado em caixa alta, seguido do

vocábulo "Atenção", e a necessidade de explicitação do caráter divertido e não pedagógico do

texto, de certa maneira, estabelece um tipo de interação em que a liberdade e o divertimento

devam ser os valores buscados, em detrimento da indiferença, da apatia. Além disso, prevê-se

como competências um poder e um saber completar os espaços com sobrenomes de poetas,

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uma vez que ele o leitor os "conhece", e as marcas no texto sugerem, portanto, um sujeito

dotado do saber necessário para a realização da ação. Nesse caso, a busca pelo querer saber

intensifica a motivação pelo fazer:

(Pois é, desculpe qualquer coisa, mas você vai ter que passar para a próxima

página[...]. A culpa é sua. Porque eu dei a pista tim-tim-por-tim-tim e você não

descobriu. Ei, não vale olhar na outra página. [...]) (ORTHOF, 2004a, p. 41).

Nesse trecho, é claro que o enunciador é dotado do saber, competência que falta ao

enunciatário, não por uma estratégia malsucedida de organização da narrativa, mas por uma

performance fracassada do enunciatário. Interessante observar que, ao acionar o fazer

pragmático do sujeito, seja por meio do preenchimento de lacunas, pelo modo de interagir

com o objeto físico, aciona-se um tipo de enunciatário mais participativo e que se predispõe a

preencher as marcas deixadas pelo ator da enunciação.

O que se observa, portanto, é que, na verdade, há uma simulação do efeito de

protagonismo na produção, atenuando-se o imprevisto, como o caso já citado do

preenchimento das lacunas, em que as possibilidades são definidas previamente (citar

sobrenomes de poetas), movimentar para o lado em que há a inscrição do texto, etc. Em No

fundo do fundo-fundo (2012a), isso também ocorre, pois há uma aparente liberdade de criação

quando se solicita a continuação da história pelo leitor, mas que é, na verdade, restrita pela

enumeração de possíveis exemplos, circunscrevendo o universo em que se daria a

intervenção:

vem tudo o que você desenhar e que esqueci de contar o papel aqui está branco, comece a rabiscar [...] e tudo o que você desenhou, bicho, traço, borrão ou gente, sabendo que Raimundo era rico, oferecia um presente (ORTHOF, 2012a, p. 30-36).

A intervenção do leitor, ainda que importante, considerando o tipo de contrato entre o

enunciador e enunciatário, que privilegia a efetiva participação do leitor, é prevista

anteriormente. Em outros momentos, a originalidade é o valor na interação e o papel de

produção do texto parece ser mais autônomo, como em A fada de lá Pasárgada (2004a) e

Rabiscos ou Rabanetes (2004c):

Esta página fica em branco, pra você pensar o que vai inventar. Por favor, cuidado:

você pode pensar em coisas que outras pessoas já contaram… aí não é um inventado

seu! (ORTHOF, 2004a, p. 32).

E para não repetir a história, você vai rabiscar a sua! Conte o que aconteceu daqui

para diante, desenhando o que você quiser! (ORTHOF, 2004c, [n.p.]).

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A manipulação se dá pelo dever contar a história, convocando o fazer pragmático do

leitor, mas, especialmente, também, pelo dever ser original. Ou seja, ainda que, nesses casos,

não se delimite o fazer, a inventivididade e originalidade devem ser o valor de busca, este que

é previsto pelo enunciador. A performance pode variar, mas o objeto de valor buscado ainda é

o presumido pelo sujeito destinador, na interação entre enunciador e enunciatário.

Por fim, ressalta-se o importante dispositivo argumentativo das estratégias que

mobilizam a participação do enunciatário, pois, ao inscrever no texto as competências

necessárias para a interação, inscreve-se também uma imagem de um enunciatário perspicaz,

que sabe e pode responder aos acionamentos do enunciador, estabelecendo um tipo de

contrato em que a interação dinâmica é a marca. Ainda assim, mesmo abrindo espaço para a

interatividade e para a participação ativa do enunciatário, os valores aos quais se busca adesão

são previstos pelo enunciador, que envolve o enunciatário não só pelo papel cognitivo,

previsto na própria interação, mas por um papel pragmático, fazendo-o experimentar

diferentes sensações, contagiando-o e firmando o contrato estabelecido no tipo de interação

proposta.

3.5 O PLANO DA EXPRESSÃO VERBAL

De acordo com Fiorin, geralmente, no ato da leitura de um texto, não nos chama

atenção o plano sonoro, já que este, muitas vezes, serve de veículo para o significado

(FIORIN, 2014, p. 110). Se observarmos os textos utilitários, por exemplo, abstraímos os sons

para chegar ao sentido, tendo em vista que o que nos interessa é o conteúdo. Já nos textos

literários e poéticos, casos do corpus aqui analisado, a expressão verbal contribui para a

construção do sentido do texto e a elaboração do significante recria o significado. Retomando

os conceitos de Paul Valéry, Fiorin destaca que “quando se resume o texto utilitário, apanha-

se o essencial; quando se resume o texto poético, perde-se o essencial” (FIORIN, 2014,

p.110). Finaliza o autor afirmando que quando o conteúdo se mostra de maneira sensível, ele

é intensificado.

É o que ocorre nos textos de Orthof, especialmente quando se observam alguns

recursos do plano da expressão, como, por exemplo, o empregado no título de algumas obras.

Em Enferrujado, lá vai o soldado (1984), A velhota Cambalhota (1985), Trem de Pai, Uai!

(1989), Uxa, ora fada, ora bruxa (1985), A Fada Lá de Pasárgada e Cabidelim, o doce

monstrinho (2004a), obras pertencentes ao corpus, ou no título de outras não analisadas aqui,

como A gema do ovo da Ema (1988), Fraca, fracola, galinha d’Angola (1993), Bagunça total

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na Cidade imperial (1998), por exemplo, pode-se perceber como recorrente o uso de palavras

que reiteram sons iguais ou similaresm de uma mesma maneira, ou seja, que apresentam rima.

Entre os diversos recursos que ressaltam a expressão verbal, empregados nos textos

analisados, ressaltando a dimensão estética da linguagem, observa-se o homeoteleuto,

fenômeno que representa a igualdade sonora da parte final de diversos lexemas, o que não

ocorre apenas nos títulos, como se pode ver nos exemplos abaixo:

As fadas celestes, azuis, bem clarinhas, São fadas-madrinhas. As fadas lilases, Um pouco terrestres, Adoram rapazes. (ORTHOF, 2004a, p16)

Lá vai o jovem soldado, Andando, desajeitado, O capacete é mal feito, Vai desabando de um lado, Não dá pra enxergar direito. (ORTHOF, 1984, [n.p])

A fada Danusa, Atratente musa, Ensina que, ao ir ao banheiro. Uma fada deve abrir as torneiras Da pia e do chuveiro, Pra ninguém escutar algum som... Que não tenha um refinado tom! (ORTHOF, 1995, [n.p])

Destaca Fiorin que a repetição rimada intensifica o sentido ao aproximar

semanticamente as palavras que terminam de um mesmo modo.

Outra repetição característica de Orthof e explorada também como recurso

argumentativo, é o paralelismo frasal, de que se destacam, especialmente, duas obras: Maria

vai com as outras (1986) e Uxa, ora fada, ora bruxa (1985).

Em Maria vai com as outras (1986), como já se demonstrou no item 3.3, a ideia de

alienação e de ausência de uma subjetividade que marcaria a individualidade é reiterada pela

ausência de inscrição enunciativa actancial de pessoa. O emprego das estruturas sintáticas

reiteradas marcam a configuração temática do comportamento das ovelhas e de Maria, o que

se pode perceber, por exemplo em "Um dia, todas as ovelhas foram para o Polo Sul. Maria

foi também [...], Depois todas as ovelhas foram para o deserto. Maria foi também" (p.

8,10,12). O modo como o enunciado é organizado, de maneira a estabelecer a configuração

temática das ovelhas que seguem o mesmo caminho, é construído sempre por meio da

colocação em destaque, primeiro plano, da coletividade ("As ovelhas iam pra baixo"; p. 4) pra

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depois instaurar um traço de individualidade, de particularização de um actante ("Maria ia pra

baixo", p. 4), como se o enunciado organizado dessa maneira reforçasse a ideia de

subserviência, do coletivo em sobreposição ao particular, enfatizando a perda de uma

singularidade. Esse efeito é construído, sobretudo, pelo paralelismo sintático que marca,

primeiro, as ações realizadas pelas ovelhas e, posteriormente, as reproduzidas pelo actante

Maria, a fim de reiterar esse efeito de continuidade e de repetição.

Já em Uxa, ora fada, ora bruxa (1985), o paralelismo frasal é usado para indicar a

mecanização do comportamento e das ações de uma personagem. A princípio, na tentativa de ser boa

como uma fada, diz, reiteradamente, “sim” para tudo. Posteriormente, a repetição dessa estrutura

revela o caráter irreverente e contestador de Uxa, contrastando o bom e o mau comportamento do dia

do sim e do dia do não.

Uxa muda muito de opinião: tem dia, em que ela só diz: Sim, claro, lógico, É verdade, naturalmente, Concordo plenamente. Mas tem dias, em que Uxa acorda dizendo: Não, escuro, ilógico, é mentira, negativamente, não concordo plenamente. (ORTHOF, 1985, p.02)

Em Ervilina e o Princês (2009), é a repetição do termo “história” na apresentação do

conto que faz com que se reitere o lugar do lúdico, da fantasia e da imaginação, além de

reafirmar o diálogo entre o texto de Orthof e o original, de Hans Christian Andersen:

Vou contar, cá do meu jeito, uma história muito antiga, muito feita de princesa, história de rei, de rainha, história toda encantada, melada de bruxa e fada, história tão recontada que resolvi aumentar (ORTHOF, 2009, [n. p])

Esse efeito é corroborado ao longo da narrativa pela repetição do verbo ser no pretérito

imperfeito ao longo da história (“era uma vez um princês”, “o castelo... era só de passarinhos,

era ouro, era prata”, “a rede era de estrelas”, “a coroa era de prata”, “as mãos eram aneladas”).

De acordo com Fiorin, Fiorin, o pretérito imperfeito apresenta os fatos como simultâneos,

formando um quadro contínuo, ou melhor, vinculado ao mesmo momento de referência

pretérito (FIORIN, 2002, p. 158). Assim, as repetições reiteram a atualização do conto,

marcando a ancoragem em um tempo indefinido, indicando o espaço da fantasia, condizente

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aos contos de fadas. Essa ideia é reforçada pelas figuras e temas que indicam o lugar da

história, caracterizada no texto como antiga, encantada, melada e recontada.

As anáforas, casos como o visto acima, são compreendidos como a repetição de

palavras ou sintagmas no início de orações ou de versos, e estão, também, presentes, por

exemplo, em Uxa, ora fada, ora bruxa (1985), no trecho que narra as ações de Uxa no dia do

"Sim", por meio da repetição do advérbio de intensidade “muito”, que aponta de maneira

irônica os efeitos de seu dia de fada, após fazer mil "bondades" ("muito loura, muito fada,

muito meio princesal, dizendo: - ó.. ui, ui... será que eu fiz mal?"). Essa figura revela também

o tom debochado e irônico da personagem, que, sabedora do resultado de suas ações, revela

atitudes não próprias de uma fada. A intensidade demarcada pelo advérbio, sobretudo sua

repetição, indica as características atribuídas à fada em demasia, inscrevendo o excesso das

ações bondosas, que, como se pôde ver, não alcançam o sucesso esperado.

Ainda na mesma obra, no último trecho da história, a mesma figura aponta para essa

complexificação dos lugares do bem e do mal, por meio da reiteração da conjunção alternativa

“ora” e do verbo “mudar” que destacam que Uxa ora é boa, "ora ruim, ora antiga, ora

moderna... afinal, Uxa muda, muda muito, constantemente...". A alternância, que marca o

afastamento às posições rígidas e fixas, ajuda a criar a identificação com o enunciatário,

apontando para o componente humano, cujos comportamentos e conceitos sobre o mundo

mudam constantemente.

Esse mesmo recurso é presente também em No fundo do fundo-fundo lá vai o tatu

Raimundo (2012a), em que não só a repetição, mas também a assonância, pela repetição de

um mesmo traço fônico vocálico, no caso, a nasalização, reiteram a ideia de profundidade dos

buracos cavados pelo tatu (“Lá vai cavando o Raimundo, cavando, cavando fundo, encontra

um diamante que implica com o tatu, dizendo..”, p. 17).

A nasalização também é presente em Ervilina e o Princês (2009), atribuindo

musicalidade e, mais uma vez, reiterando o lugar do lúdico e da fantasia, já que se trata de

uma paródia dos contos de fadas (como se mostrou no item 3.2). No trecho "Quem conta um

conto, aumenta, um ponto mais, outro mais, transforma, vira e inventa, quem conta um conto,

refaz" (ORTHOF, 2009, [n.p]), a repetição das vogais nasais, de certa maneira, convida o

enunciatário a não só rememorar o conto de Andersen, mas a acompanhar sua releitura pela

anunciação, por meio da exploração dos recursos sonoros, da expressividade que marca o

literário no plano da expressão.

Em Manual de boas maneiras das fadas (1995), a assonância se constitui pela

repetição das vogais abertas "a", "e" e "o":

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Uma fada deve estar sempre penteada, perfumada, linda delicada, pronta a ajudar, varrer, limpar, dobrar a roupa, cantar afinadinho, mesmo no verão não amarrotar sua blusa de linho, escrever literatura infantil para as crianças que moram debaixo do céu de anil (ORTHOF,1995, p.22)

Além das rimas que reforçam o caráter cômico, a reiteração das vogais abertas

atribuem um tom alegre ao texto, anunciando a brincadeira proposta pela obra, que parece

anunciar as boas maneiras a serem seguidas pelas fadas, quando na verdade propõe o oposto,

como já se comprovou no item 3.1, a partir do exame da ironia nos textos de Orthof.

As aliterações, repetições de fonemas consonânticos ou de traços fônicos consonantes,

também são recorrentes no corpus. Em A velhota cambalhota (1985), a repetição da oclusiva

("depois de dar uma pirueta / plantou um vaso repleto", [n.p]) sugere um aparente retorno à

seriedade, em oposição à assonância, especialmente pela repetição das vogais abertas, que

indicam a alegria, vitalidade e inventividade ("mas adora brincadeira de ser doidinha e

velhota" [n.p]). Em A fada lá de Pasárgada (2004a), a reiteração do "v" reforça a ideia do

som do vento, especialmente porque aparece na apresentação do Tio Vento, actante que

inscreve inventividade ao texto, já que estabelece interlocução com o narratário, como se pôde

perceber no item 3.3. No trecho ("Aproveite o vento, invente, inventa", p. 31), o uso da

aliteração aponta para o componente argumentativo de não só reproduzir o som do vento,

como reforçar a inventividade e a ousadia, temas recobertos pelo uso do recurso sonoro.

Onomatopeias, que são as reproduções de sons na escrita, também são exploradas pela

autora. O som do sopro de ninfa Brisa ("Era a ninfa Brisa, que soprava de leve, fazendo

biquinho: pss...pss...psss"), em A fada lá de Pasárgada (2004); o esforço da subida da ladeira

("numa estrada de ladeira, que subia, uf, puf"), em A velhota cambalhota (1985); o esguicho

do petróleo ("O líquido é oleoso, esguicha num pscht ardente"), em No fundo do fundo-fundo

lá vai o Tatu Raimundo (2012a); o som da vaca ("Mu!Mu!Mu! Ai, ui, quem me espeta...sou

uma vaca endiabrada"), em Enferrujado, lá vai o soldado (1984) ou o som do espirro da

ovelha Maria ("Maria pegou gripe também. Atchim!"), em Maria vai com as outras (1982),

apontam para uma dinamicidade e uma aproximação com o enunciatário por meio da

sensibilização pelo recurso sonoro. O cômico também é reforçado pelo uso desse recurso,

além de reiterar a ludicidade, que transforma a leitura em uma brincadeira.

Os recursos do plano da expressão aqui apontados indicam a inscrição dos textos de

Orthof no âmbito do sensível, à medida que estabelecem uma interação afetiva por meio dos

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sons, que, também, confirmar o caráter lúdico e inventivo dos textos de Orthof. A seguir,

observaremos como esse e os outros recursos apontados até aqui constituem o éthos, o páthos,

estabelecem a crença e criam um tipo de contrato veridictório entre os atores da enunciação.

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4 INTERAÇÃO ENUNCIATIVA E ARGUMENTAÇÃO

No capítulo anterior, procuramos comprovar como os recursos argumentativos

recorrentes em Orthof atuam tanto na construção de uma imagem em que se deva confiar,

tanto no enunciado em que se deva crer. Apontamos, primeiramente, para um modo inusitado

de combinação de figuras e temas que, a partir de figuras de retórica, subvertem valores

socialmente construídos, levando o enunciatário a crer em novos valores; no tratamento da

interdiscursividade e intertextualidade, apontou-se como a referência a textos e discursos

reconhecidos socialmente é também um importante dispositivo argumentativo que atua na

partilha comum de saberes, e na inscrição de novos, assim como o tratamento das projeções,

que, pelo uso de recursos altamente complexos, estabelecem a imagem de um enunciador

perspicaz e de um enunciatário que se reconheça neles. Por fim, o exame das modalizações

mostrou que uma estrutura modal recorrente faz ver uma orientação argumentativa indicada

pelo enunciador, ao mesmo tempo em que as paixões operam sensibilizando o enunciatário,

fazendo-o adotar a crença na verdade construída no texto.

A partir, então, da análise dos recursos argumentativos mais recorrentes e

significativos no nosso corpus em Orthof, é possível, agora, discorrer sobre a imagem do

enunciador e a do enunciatário construída nos textos, bem como avaliar o tipo de contrato

estabelecido entre os atores da enunciação. É exatamente a partir dos recursos que se

mostraram altamente eficazes na persuasão que consideraremos como se constrói a crença e a

confiança, de maneira que se instale a fidúcia e, finalmente, a adesão aos valores. Todos os

recursos vistos no capítulo anterior são extremamente importantes para a constituição da

imagem do enunciador e esta, por sua vez, qualifica-o a dizer, sendo uma forma bastante

eficaz de convencer o enunciatário a aceitar os valores contratados e de envolvê-lo

afetivamente, sensibilizando-o, fazendo com que ele, ao mesmo tempo, confie no enunciador

e creia no dito.

4.1 O ÉTHOS DO ENUNCIADOR

É fundamental tratar da inscrição da imagem do éthos construído por meio dos

recursos, já que é necessário que a imagem criada inspire confiança, de modo que este sujeito

esteja legitimado a dizer o que diz e o contrato entre os atores se firme. E, por meio da análise

de um corpus representativo de Orthof, é possível definir a imagem do éthos do enunciador,

tomando o conjunto de obras como escopo da construção do ator da enunciação. Fiorin

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discute quais as pistas deixadas no texto, em que se podem encontrar, na materialidade

discursiva, as marcas do éthos do enunciador. Conclui o autor que, a fim de compor essa

imagem, “procuram-se recorrências em qualquer elemento composicional do discurso ou do

texto” (FIORIN, 2008, p. 143), seja na “escolha do assunto, na construção das personagens,

nos gêneros escolhidos, no nível de linguagem usado, no ritmo, na figurativização, na escolha

dos temas, nas isotopias etc” (idem).

Para Barthes os ethé são “os atributos do orador” definidos pelos “traços de caráter

que deve mostrar ao auditório (não importando a sinceridade) para dar uma boa impressão”

(BARTHES, 1970, p.212). O éthos é, portanto, uma conotação, uma vez que “enuncia uma

informação e, ao mesmo tempo, diz: eu sou isto aqui, não aquilo lá” (idem). Maingueneau fala

em concepção “encarnada” do éthos, sendo este composto de um caráter, que seriam os traços

psicológicos, a corporalidade, relacionada ao tipo físico ou a um modo de se vestir, e o tom,

indicado pela dimensão vocal (MAINGUENEAU, 1995, p. 140).

Discini aponta que a imagem do éthos do enunciador se constrói por um modo

sistematizado de dizer (DISCINI, 2015, p.23), o que nos permite, neste momento, estabelecer

a imagem do éthos de Orthof considerando também a recorrência das estratégias utilizadas.

Tomando o conjunto representativo de obras analisadas, podemos compor o estilo de Orthof a

partir não só da totalidade das obras, mas, especialmente, do próprio dizer em processo, que

indica um intervalo entre um enunciado e outro, a partir do que se conhece, bem como do que

se esperar dos próximos enunciados a produzir. Isso nos ajudará também a entender que tipo

de contrato se constrói na interação, considerando a espera fiduciária na relação entre

enunciador e enunciatário.

De todas as maneiras, cumpre destacar que é pacífica a ideia de que se chega ao éthos

por meio da enunciação enunciada, por meio das marcas deixadas pelo enunciador no texto.

Ao observar, pois, as marcas do éthos do enunciador em Orthof, é impossível deixar de

apontar o humor como sendo uma das características do ator da enunciação construído nos

textos. Muitos trabalhos sobre a obra de Orthof (RAMPAZZO, 2003; BRANDÃO, 1994;

MORAES, 1993) indicam essa como uma propriedade da imagem do enunciador, apontando

para seu valor como recurso literário, seu papel no questionamento de ideologias tomadas

como rígidas e fixas, a importância desse recurso como elemento de reflexão do papel

pedagógico da leitura, especialmente no espaço escolar, ou o espaço do cômico na literatura.

O papel do humor em Orthof é também destacado por Zilberman

Na peça de Sylvia Orthof, o humor associa-se ao absurdo e, sobretudo, às

metamorfoses experimentadas pelos figurantes, produzidas muitas vezes pelo

processo de associação de ideias. Por isso, a mencionada tromba-d’água pode se

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transformar no Elefante, e o Chuveiro dar ordens ao Pingo, subalterno e herói da

trama. O nonsense, por sua vez, não rompe com o universo infantil, pois, partindo

dos elementos do cotidiano, recorre ao imaginário na forma como atua a criança,

capaz de conferir vida a seres inanimados, quando deseja brincar e se divertir

(ZILBERMAN, 2005, p. 154).

O que Zilberman descreve como "associação de ideias", aqui entendemos como

combinações de figuras e temas, recurso analisado no item 3.1, em que se mostrou a união de

figuras insólitas como um efeito de uma escolha do enunciador, que contribui para o cômico

nos textos. Além disso, a configuração temático-figurativa, a referência intertextual, o modo

inusitado de projetar vozes e as modalizações, recursos analisados anteriormente, contribuem

para a construção da imagem irreverente, que produz o humor, pelo qual o ator da enunciação

é reconhecido.

O humor nos textos se caracteriza, de acordo com Landowski (1995, p. 73), como uma

“oscilação possível entre duas ou várias interpretações mutuamente exclusivas”,

diferenciando-se da ironia por ser esta uma verdade assumida pelo enunciador, enquanto

aquele atua no aspecto mais velado, abrindo possibilidades maiores de interpretação.

Já se tratou aqui da ironia, indicando-a como um conflito entre o ser e o parecer e o

posicionamento do enunciador que é revelado a partir da leitura irônica no enunciado. Assim,

a ironia é definida por Landowski como menos perturbadora, uma vez que faz ler a verdade

construída pelo enunciador no texto, ao passo que o humor é mais inquietante, ao não indicar

no enunciado uma interpretação mais "certa". Este depende, então, da perspicácia do leitor, no

sentido de captar os implícitos e reconhecer como se constrói a significação pelos meandros

da enunciação. Bertrand indica que o humor, diferentemente da ironia, não opera

necessariamente com a negação, mas no aprofundamento e desenvolvimento das

consequências, tomado, portanto, como uma “disposição do espírito” (BERTRAND, 1989, p.

91).

O efeito humorístico em Orthof, que caracteriza o éthos do enunciador, encontra-se,

pois, em todos os recursos que, de maneira inusitada, apontam para a constituição de um tom

irreverente. A mistura do efeito de referencialidade e de ficção (como a que ocorre quando

uma fada vai a uma farmácia verificar o peso, na obra Fada fofa em Paris (1995), as

estratégias incomuns de transgressão de níveis enunciativos, em que um actante do enunciado

se dirige ao enunciatário, ou a complexificação dos valores maldade x bondade, são exemplos

de como o humor se instaura e permite apontar como um dos traços marcantes do éthos do

ator da enunciação a irreverência.

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Landowski, em sua reflexão sobre o humor na charge, conclui que o humor também

possui um importante papel de ridicularizar um dado, um fato, fazendo “vacilar as melhores

reputações” (LANDOWSKI, 1995, p. 66). De acordo com o estudioso, o humor destrói

simulacros, operando, de um lado, na desfiguração de marcas e, de outro, na sua

reconfiguração às avessas. Pensando nos recursos analisados, vemos que a ridicularização é

um procedimento recorrente em Orthof, utilizado tanto para contestar os valores, como para

evidenciar o valor “às avessas”, este tomado como o verdadeiro valor pelo enunciador.

Na análise da intertextualidade e interdiscursividade, por exemplo, observamos que o

lugar comum (topói para Aristóteles) do “felizes para sempre” é sempre satirizado e o próprio

ideal de felicidade eterna é questionado tanto em relação à duratividade (“O casal foi feliz

enquanto foi feliz”, ORTHOF, 2004a, p.59) ou despertando paixões inesperadas, como o

medo (“e Uxa corre, com medo de virar princesa e ter de ser feliz para sempre, credo”).

Ridiculariza, deste modo, as narrativas em que a felicidade pelo matrimônio é o valor buscado

e, por consequência, os valores da liberdade, da autonomia e do livre arbítrio são considerados

eufóricos, os que devem ser buscados pelo enunciatário.

Observando a ironia como meio de combinação de figuras e temas em que se percebe

o posicionamento do enunciador, fica claro que, ao expor, por exemplo, a fragilidade de um

modelo de governo, ridiculariza-se as relações de poder em que o parecer se sobrepõe ao ser,

resultando disso o efeito de crítica em relação às diferentes instituições e esferas de poder, no

sentido de que, ao afirmar no enunciado e negar na enunciação, o enunciador orienta um

ponto de vista, fazendo considerar valores tomados por eles como eufóricos e rejeitar outros.

Há recursos que apontam também para um modo de dizer. A ironia, como se pôde ver,

faz com que se evidenciem as marcas enunciativas que revelam o ponto de vista do

enunciador e, portanto, os valores assumidos por este e aos quais busca a adesão do

enunciatário, sendo também uma estratégia enunciativa que cria o efeito de humor.

Além disso, o riso se mostra tão característico do texto de Orthof, que, ao refletir sobre

as circunstâncias de produção, circulação e recepção da obra, o enunciador "ri de si mesmo",

provando que a brincadeira, o gozo e o divertimento são, definitivamente, as marcas do tipo

de interação construída:

Este versinho é super-hipermágico! Se você repetir para alguém que esteja lendo

esta história, a pessoa pode adormecer por dois motivos: 1º motivo: esta história não funciona 2º motivo: este livro é chato, não funciona, faz dormir (ORTHOF, 2012b, p. 79).

(Este livro está ficando intragável, metido a ensinar bestagens inúteis, um horror!)

(ORTHOF, 2004a, p. 45).

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Por meio do riso, obriga-se, a todo o momento, a ler-se o contrário do que se enuncia,

o que só é possível quando se cria essa imagem irreverente do éthos. Em outro momento, o

leitor é convocado por um actante do enunciado a “não ler a história” (ORTHOF, 2002),

despertando, na verdade, a curiosidade, já que altera o contrato primordial entre autor e leitor

(a produção de uma obra de ficção tem exatamente o objetivo de ser lida). Ou seja, o

componente retórico do humor fundamenta o tipo de contrato estabelecido, orientando,

inclusive, no modo de ler o enunciado, além da curiosidade.

A busca por um saber que não se restringe necessariamente aos episódios narrados

também caracteriza a imagem de um enunciador curioso, como se viu no item 3.4. Em A Fada

de Lá Pasárgada (2004a), o narrador cria uma tensão e expectativa em relação ao significado

da palavra "congênito", provocando o enunciatário a descobrir o sentido do termo,

estimulando-o, inclusive, a buscar um dicionário. Outro aspecto importante que identifica a

imagem da curiosidade no éthos relaciona-se à partilha de saberes sobre as condições de

produção e circulação do livro, o papel do revisor, do ilustrador, apontando para um sujeito da

enunciação que busca ampliar os saberes. Em muitas obras (Guardachuvando Doideiras,

1982; Felipe do Abagunçado, 2009b; Zoiudo, o monstrinho que bebia colírio, 2012b),

suspende-se o narrado para que se comente sobre a narração, refletindo sobre o seu próprio

modo de fazer.

Ainda considerando o modo de dizer que inscreve a imagem do éthos do enunciador,

podem-se citar estruturas sintáticas surpreendentes características na obra de Orthof, bem

como o registro predominantemente coloquial, que também dão um efeito cômico ao texto,

aproximando a linguagem utilizada ao universo do enunciatário:

Como fomos obrigados a lavar a mão, por motivo de rã, lavamos as mãos de Santa

Aurora, por motivo de ela ter pulado no decote de Dona Margarida e poder estar

achando nojento o contato com a gente (ORTHOF, 2004b, p. 15).

Bobby cuidava dos gatinhos de Clementina. Só não dava de mamar, por motivo de

Bobby ser macho (ORTHOF, 2004b, p. 61).

Sua Avó era muito inteligente, por motivo de ser cachorro. Cachorro é mais

inteligente do que adulto ou criança (ORTHOF, 2004b, p. 36).

Igor tem dois meses e meio e veio morar conosco por motivo de medo. (ORTHOF,

2012b, p. 19).

O que se percebe, por meio da análise das obras, é uma continuidade e uma

duratividade de um modo de dizer irreverente, que reitera determinadas estruturas no seu

fazer, criando o efeito de identidade do éthos. Em todos os excertos, repete-se a estrutura

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sintática "por motivo de" que, geralmente, aparece acompanhada de uma expressão abstrata

(acidente, doença), e aqui ganha novos sentidos por ligar-se a substantivos concretos (rã,

Bobby, cachorro), integrando ou não orações reduzidas. Há, novamente, o insólito, já bastante

explorado aqui, bem como uma inventividade nas combinações sintáticas, que também

acentuam a criatividade no uso da linguagem, mostrando-se característico do ator da

enunciação, criando um efeito de aproximação entre enunciador e enunciatário, fundamental

para a adesão ao discurso.

O modo de dizer é também um importante dispositivo argumentativo, à medida que

este também é um componente que leva à adesão a determinados valores. Barros (1991, p.

152), ao pesquisar a desqualificação dos sujeitos pelo discurso, afirma que é possível

qualificar ou desqualificar o sujeito pelo seu modo de dizer, valorizando-o positivamente ou

depreciando-o, a despeito do que diz. É possível dizer que, no corpus, o modo de dizer

inscreve a imagem da irreverência, sendo esta a característica pela qual se reconhece o estilo

da autora, tendo em vista, por exemplo, os trabalhos citados acima sobre a obra da autora, que

exploram o efeito desse recurso nos textos.

Além disso, a desqualificação é utilizada pelo enunciador como estratégia

argumentativa ao ridicularizar, de maneira irreverente, os textos de contos de fadas, como se

viu no item 3.2. Ao desqualificá-los pelo ridículo, desqualifica também os valores por eles

veiculados, instaurando novos valores. O discurso do "felizes para sempre", por exemplo, é

ridicularizado tendo em vista sua duração e o próprio conceito estabelecido de felicidade.

Dessa forma, faz veicular que outras possibilidades, que não necessariamente o casamento,

existem na busca pela felicidade.

Esse, aliás, também parecer ser uma outra especificidade da imagem do éthos do

enunciador, o caráter contestador e voluntarioso. Comprovou-se a contestação do enunciador

de valores construídos socialmente como efeito de muitos recursos, como pelas modalizações.

A recorrência da estrutura modal de um querer intenso mostrou a autonomia, liberdade como

valores eufóricos, em detrimento da alienação, subserviência, como na obra Maria vai com as

outras (1982). A despeito das coerções sociais de buscar a submissão, Maria empreende o

querer recusando os valores e buscando os prazeres que giravam em torno de um bem-estar,

indicando esse ser também o valor de verdade construído pelo enunciador, a de um sujeito

voluntarioso.

Podemos chegar ao ponto de afirmar que a inscrição da imagem do éthos do

enunciador em Orthof se dá tanto pelo seu modo de dizer quanto pelo que diz. Sem dúvida, a

subversão de valores é recorrente nas obras verificadas, especialmente pela oposição entre o

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conhecido e o novo, o moderno e o tradicional, e a complexificação de valores postos e de

valores ideológicos reiterados no texto de literatura infantil dito tradicional. No entanto, não

são novidade na literatura infantil contemporânea os recursos acima citados, mas sim o grau

de complexidade apresentado.

Em algumas obras, não é necessariamente na história narrada que está toda a eficiência

discursiva da obra, mas sim no modo como é construído o texto. Guardachuvando doideiras

(1992) traz a história de um senhor que perde seus guarda-chuvas, narrando sua relação com o

objeto. A transgressão dos níveis enunciativos, em que o interlocutor se dirige ao

enunciatário, o narrador que reflete sobre o processo de produção literária de maneira irônica

ou solicita uma participação somática do leitor são estratégias que representam a qualidade e

riqueza de recursos também no modo de dizer. Em A Bruxa Fofim (1997), por exemplo, não

há tramas complexas, conflitos a se resolverem, mas ganha destaque um actante que não

participa da narrativa e que tem o papel de julgar as ações de outro actante, demonstrando

uma transgressão de níveis enunciativos (um actante pertencente ao enunciado enunciado

comenta o fazer do narrador, instância da enunciação enunciada) de forma que, mesmo que

não interaja com actantes do enunciado, o actante tem o importante papel temático de

comentar a obra.

O que se percebe, pois é que a curiosidade, a inventividade e a contestação são

características desse ator da enunciação, sendo aspectos que o qualificam a dizer, no sentido

de que constroem essa imagem em que se possa depositar a confiança. Os valores, por sua

vez, transmitidos por esse enunciador inspiram a crença, tendo em vista o fortalecimento

dessa imagem de quem diz.

No entanto, para que o contrato de fato se estabeleça, é necessário também que o

enunciatário se identifique com esse corpo irreverente, zombeteiro, curioso, contestador que

já se comprovou ser a do ator da enunciação em Orthof. Cabe, agora, explorar a imagem do

enunciatário nos textos, a fim de verificar o tipo de contrato que se estabelece nos textos aqui

pesquisados.

4.2 O PÁTHOS DO ENUNCIATÁRIO

Para Aristóteles, o páthos constituiria um dos elementos no esquema argumentativo,

sendo ele considerado o efeito emotivo causado nos ouvintes. Em um discurso retórico, o

raciocínio entimemático, os meios artísticos de persuasão poderiam ser derivados do caráter

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do orador, do uso de argumentos verdadeiros e prováveis ou derivados da emoção despertada

nos ouvintes – o páthos (ARISTÓTELES, 2012, p.83).

Na concepção do filósofo, as emoções seriam sentimentos que alteram os homens, a

ponto de afetar-lhes o juízo, já que se caracterizam pela dor, prazer, ira, compaixão, medo,

etc. Ainda assim, Aristóteles reconhecia a importância do páthos, considerando os fatores

capazes de tocar o auditório, a natureza das paixões, tendo em vista que o auditório exerce o

importante papel de juiz ou de espectador. O orador aristotélico controla as paixões pelo

modo como conduz, como persuade seus ouvintes, ou seja, quanto maior o conhecimento do

orador sobre o auditório, maiores as chances de produzir e emoção, capaz de persuadir e

convencer o público (ARISTÓTELES, 2012, p. 86).

O conceito de páthos se atualiza, então, na imagem que é feita desse enunciatário a

quem o enunciador se dirige, o que move o auditório e sua disposição para ser isto ou aquilo.

Entrariam então em cena, no jogo comunicativo, tanto os argumentos lógicos que buscam o

convencimento e a persuasão, bem como os elementos possíveis de despertar a crença pelo

viés do sensível, que visam sensibilizar o outro e levá-lo a adesão do discurso (FIORIN, 2008,

p.157).

Já se discutiu anteriormente sobre a imagem do enunciatário criada nos textos

literários aqui analisados, no sentido de que é necessário um sujeito perspicaz, que saiba ler o

enunciado de maneira irônica em muitos momentos, a fim de cumprir o contrato fiduciário, e

competente para encontrar as marcas que orientam a interpretação, por exemplo, do contrário

que se diz.

É preciso, por exemplo, que o enunciatário considere as modalidades volitivas do

querer mais intensas do que as de um dever, para se compreender quais são os verdadeiros

valores buscados, como se comprovou no item 3.4. A volição, que inscreve actantes

voluntariosos, autônomos, imagem esta também do enunciador, como se comprovou acima,

deve ser compreendida pelo enunciatário como mais intensa que um dever que impõe valores

de coerção social, estes rejeitados pelo enunciador.

Além disso, é necessário que o enunciatário também seja sabedor de um conhecimento

prévio, como no caso das referências aos contos de fada, a fim de que o próprio contrato se

estabeleça e a argumentação se dê, uma vez que o componente argumentativo reside

exatamente na exploração da partilha deste tipo de saber para sua posterior subversão.

Mais ainda inscreve-se também a imagem de um sujeito que quer saber, que identifica

a expectativa, o suspense e a curiosidade sobre amplos saberes. As marcas deixadas na

enunciação pelo enunciador remetem à inscrição de um enunciatário curioso, considerando,

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por exemplo, os recursos que promovem o suspense, que fazem alongar a expectativa, que

desafiam a inteligência. Em A Fada de Lá Pasárgada (2004a), o narrador consome três

páginas somente para revelar uma característica pertencente a um actante do enunciado,

tornando durativa a espera, avivando a busca por esse saber.

Um outro papel esperado do enunciatário diz respeito ao seu caráter participativo,

considerando não só um papel cognitivo, que ativa saberes variados para a interpretação do

texto, bem como um sujeito que se movimenta somaticamente, capaz de empreender

movimentos ao texto (virar o livro, preencher os espaços, etc.; cf item 3.3), de acordo com as

provocações do enunciador, instaurando, portanto, um tipo de leitor mais dinâmico, mais

atuante no que diz respeito à relação com o livro, próprio objeto físico.

Considera-se ainda, tomando como base esse corpo de enunciador irreverente, um

enunciatário que reconheça esses valores do gozo e da brincadeira, e que se envolva também

por meio do modo de dizer do enunciador, acatando os valores e tornando-se, assim, mais

disponível a aceitá-los como verdadeiros. O humor, nesse caso, efeito de diferentes recursos

escolhidos pelo enunciador, é também o componente de sensibilização, que afeta o outro pelo

riso, atuando na eficácia do discurso, a partir do momento em que o outro também se

identifica e vê-se representado.

Para Fiorin, o discurso é eficaz quando o enunciatário incorpora o éthos do

enunciador, seja harmonicamente, quando estes se ajustam com perfeição, seja

complementarmente, quando o éthos supre uma falta do páthos. E essa eficácia está

diretamente ligada à adesão do enunciatário ao discurso, à medida que

O enunciatário não adere ao discurso porque ele é apresentado como um conjunto de

ideias que expressa seus possíveis interesses, mas sim, porque se identifica com um

dado sujeito da enunciação, com um caráter, com um corpo, com um tom. Assim, o

discurso não é apenas um conteúdo, mas também um modo de dizer, que constrói os

sujeitos da enunciação. O discurso, ao construir um enunciador, constrói também

seu correlato, o enunciatário (FIORIN, 2008, p. 157).

A partir da imagem do éthos do enunciador, os recursos argumentativos permitem

observar as pistas criadas na prospecção da imagem desse enunciatário. O enunciatário

previsto é co-enunciador desse discurso e, nas obras de literatura infantil, presume-se que esse

enunciatário seja figurativizado não só pelas crianças, mas também por seus pais, tendo em

vista a configuração temática e discursiva dos textos. Em Guardachuvando Doideiras (1987),

por exemplo, há espaço para a voz do ilustrador, que comenta sobre a distribuição do texto

escrito na página, mas o faz de maneira irônica, já que afirma que anos de estudo na PUC

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foram fundamentais para adquirir esse tipo de habilidade.18

O enunciatário é figurativizado

pelos pais, a quem se aplica o discurso da crítica em relação ao tipo de conhecimento formal

adquirido nas universidades, a sua aplicabilidade, o que é concretizado pelo próprio narrador

do texto, ao afirmar não querer ilustrações coloridas, pois ficariam "muito infantis",

considerando que o livro se dirige a "adolescentes e velhos" (ORTHOF, 1987, p.16).

Considerando, então, a imagem do enunciatário primeiro, figurativizado pela criança,

é interessante discutir, pensando a partir da eficácia no discurso, como ocorre essa

incorporação do éthos irreverente do ator da enunciação no corpus, se por meio de uma

relação de complementaridade ou por uma harmonia, considerando um mesmo estatuto de

saberes comuns partilhados.

Certamente, é necessário que haja uma identificação do enunciatário a esse tom

irreverente do enunciador, já comprovado como característica fundamental do ator da

enunciação, figurativizado por Sylvia Orthof, e, sem esse dado, o contrato não se cumpre e a

argumentação não ocorre. É necessário, então, discutir sobre a relação hierárquica na

interação entre enunciador e enunciatário, considerando o lugar desses atores na interação.

O humor cria o engajamento do enunciatário pelo contágio19

, uma vez que ele provoca

o riso, a empatia e mobiliza o outro a crer no discurso. No entanto, nos textos analisados,

percebe-se que há uma aparente relação de igualdade, e há uma simulação de um riso

conjunto, ou seja, um simulacro de complementaridade de saberes, em que o riso seria o

resultado da construção conjunta dos valores. Parece que a criança ocupa o mesmo estatuto do

autor, quando, na verdade, a relação se dá entre um enunciador que doa um saber e um

enunciatário responsável pela assunção de valores.

Nas obras estudadas, avaliou-se que os recursos utilizados sempre consideravam

valores prévios, assumidos anteriormente como verdadeiros pelo enunciador, que é sempre

possuidor de um saber a ser doado, cabendo ao enunciatário a assunção destes valores. Como

se mostrou na análise dos recursos, estão sempre presentes os valores da identidade, da

liberdade, da autonomia, da criatividade, entre outros, instaurando paixões como a alegria, a

felicidade, a generosidade, a curiosidade e a compaixão, à medida que se inscreve um ponto

de vista que orienta quais os valores devem ser buscados nos textos e não necessariamente

construídos conjuntamente pelo sujeito da enunciação, conforme prevê o regime de interação

por ajustamento, proposto por Landowski (1995).

18

Conferir item 3.3.1 19

Para Landowski (1995, p.50), o contágio determina um tipo de sentido em que o sentir fundamenta a

interação. No contágio, opera-se por um fazer sentir e não mais sobre um fazer crer, característico da persuasão.

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Considerando ainda os regimes de interação de Landowski, no que diz respeito à

noção de risco (LANDOWSKI,1995, p. 48), é possível afirmar que, ainda quando se convoca,

por exemplo, a participação do leitor para completar ou continuar a história, podendo-se

considerar uma abertura para o risco de os valores não serem reconhecidos, há, ainda assim,

um certo controle, uma vez que há um valor tomado pelo enunciador como eufórico, que faz

parte da estratégia de apresentar a inventividade, a originalidade como marcas no texto. Ou

seja, mesmo quando abre para uma participação mais atuante do leitor (“esta página fica em

branco para você pensar o que vai inventar”; ORTHOF, 2004a, p. 32; “conte o que aconteceu

daqui por diante”; ORTHOF, 2004c, [n.p.]), possibilitando a criação conjunta da história, há

sempre uma restrição ou uma orientação para a ação (“cuidado, você pode pensar em outras

coisas que outras pessoas já contaram... aí não é um inventado seu”; ORTHOF, 2004a, p. 32;

“e para não repetir a história, você vai rabiscar a sua”; ORTHOF, 2004c, [n.p.]), a fim de que

os valores recusados sejam considerados disfóricos pelo enunciatário.

Ou seja, observadas as características do éthos e do páthos, construídos a partir das

marcas no enunciado, observa-se a importância de sua imagem do enunciador para a

argumentação. De um lado, a imagem do enunciador qualifica-o como um sujeito que deve

merecer a confiança do enunciatário, fazendo o enunciatário crer que ele é autorizado a

compartilhar os valores transmitidos. Os valores da irreverência, da curiosidade, do tom

questionador são fundamentais para estabelecer a imagem de que está, definitivamente,

legitimada a dizer. Por outro lado, seu caráter envolve o enunciatário por meio das pistas

deixadas no texto, mostrando a imagem positiva de um sujeito competente, envolvido pelos

valores descritos como eufóricos pelo enunciador para, por fim, poder manipulá-lo pela

sedução. Não se pode negar, no entanto, que, diante da riqueza de recursos expressivos e

lúdicos que caracterizam os textos criativos analisados, o risco de um desconcerto e de

surgimento de novos valores pelo leitor não pode ser descartado.

Tanto a imagem do éthos do enunciador quanto a do páthos do enunciatário

estabelecem um tipo de contrato que caracteriza a interação dos sujeitos, particularizando uma

imagem de sujeito da enunciação em Orthof. Essa imagem é primordial para estabelecer o

tipo de contrato firmado entre os atores da enunciação e como esse contrato também se firma

pela fidúcia, pela confiança e pela crença, a fim de que a persuasão seja bem-sucedida. Assim,

cabe agora investigar o contrato de veridicção empreendido nos textos aqui analisados.

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153

4.3 CONTRATO FIDUCIÁRIO

Fiorin, ao falar sobre a crise de representação e o contrato de veridicção no romance,

considera tipos de contratos diversos que explicam a relação entre enunciador e enunciatários

nas diferentes fases da literatura nacional. Chama de contrato objetivante um tipo de relação

entre enunciador e enunciatário em que se busca o efeito de realidade, por meio do

apagamento das marcas de enunciação no enunciado. Nesse tipo de contrato, as personagens

figurativizam temas, por isso são representados como feios, grotescos, o determinismo social

atua no enredo dos personagens, considerando os modelos científicos (ganha voz, por

exemplo, o discurso de que o homem é fruto do meio), o tempo predominante é o presente e o

espaço, bem como outros elementos, ganham descrições precisas e abundantes, uma vez que

esse tipo de contrato se fundamenta na ancoragem da realidade. Como exemplo desse tipo de

contrato, Fiorin cita o realismo e o naturalismo (Fiorin, 2008b, p.202).

O autor aponta, ainda, para um outro tipo de contrato veridictório, em que o mundo se

faz conhecer pela subjetividade humana e o texto representa o mundo, no sentido que essa

representação só se dá pela subjetividade. As ações dos personagens não são determinadas por

leis e os temas são subjetivados e, por isso, personagens, espaço e tempo são idealizados. A

descrição é, por sua vez, também subjetivada e o real se dá a saber por meio do "eu".

(FIORIN, 2008b, p. 204). É o que o autor denomina como contrato subjetivante, cujo maior

representante é o romantismo.

Fiorin fala ainda de um terceiro tipo de contrato, em que a busca não é uma

representação direta da realidade, mas a criação de diferentes realidades. Nesse sentido,

“narrador e personagem não são pessoas do mundo, mas criações da linguagem” (FIORIN,

2008b, p. 207). Os conceitos não são preexistentes, mas são gerados por uma forma de

conteúdo. Postula-se ainda que os comentários do narrador, muitas vezes, ganham mais

importância do que os fatos narrados. Nesse tipo de contrato, é possível subverter o discurso

do senso comum, mostrando sua fragilidade, ao mesmo tempo em que a ironia é característica

fundamental nesse tipo de interação. Esse contrato é denominado de semiótico e Fiorin aponta

como expoentes máximos algumas obras de Machado de Assis (“Dom Casmurro”, “Quincas

Borba”, “Esaú e Jacó”), bem como a linguagem de Diderot, Cervantes e, em certa medida, o

modernismo.

Esse tipo de contrato interessa-nos sobremaneira, à medida que a linguagem não é uma

representação transparente da realidade, mas uma inscrição de diferentes pontos de vista. A

verdade é relativizada e as coisas não são dadas como fixas, rígidas ou verdadeiras, mas

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passíveis de questionamento, considerando que o verossímil é construído no discurso. Nesse

contrato, são comuns as intervenções do narrador, que tem também a função de comentar a

narrativa, e jogos enunciativos são possíveis: "actantes da narrativa entram na narrativa

segunda e vice-e-versa" (FIORIN, 2008b, p. 208). Por tudo isso, as descrições empreendidas

no contrato semiótico definem bem o tipo de interação verificada em Orthof.

No item 3, tratamos das projeções enunciativas, considerando a transgressão entre

níveis enunciativos como um recurso recorrente. Observamos, por exemplo, um actante do

enunciado, que é projetado também como um narrador em segundo grau, e que se dirige à

Editora, que figurativiza os elementos que dizem respeito às condições de produção e

circulação da obra, dando instruções de como a ilustração deve ser feita, ou como o capítulo

deve ser organizado. Há uma complexidade nas projeções, à medida que, quando o actante do

enunciado, narrador em segundo grau, dá orientações sobre a confecção do livro, ou a que

público a obra se destina, subvertem-se os papéis de interlocutor e narrador, já que se

misturam os níveis da enunciação enunciada e do enunciado enunciado, como se vê abaixo:

ÚLTIMO, ou QUASE ÚLTIMO DESEJO: Senhora editora, quero cada capitulozinho numa página, de preferência com, talvez,

uma ilustração em preto e branco. Não quero ilustrações coloridas, pois ficariam

muito infantis. (ORTHOF, 1992, p.15)

Operam debreagens e embreagens com a finalidade de tornar dinâmicas as projeções e

os pontos de vistas variados. Em outra obra, verificamos que um actante do enunciado,

figurativizado por uma aranha, que só aparece no enunciado visual e não é um actante

introduzido ou citado pelo enunciado verbal, só interfere na narrativa como observador e

avaliador dos comportamentos e ações dos actantes da enunciação e do enunciado, como se vê

na figura 3, já reproduzida anteriormente:

(Figura 3, ORTHOF, 2002, [n.p.])

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A ousadia do recurso diz respeito a um actante, como se pode ver, que não interage

com outros actantes, possui o papel temático de julgar e criticar não só o comportamento de

outros actantes do enunciado, bem como a própria enunciação, ao orientar para que a história

não seja lida ou condená-la como “indecente”, “feia” (ORTHOF, 2002, [n.p.]), transgredindo,

mais uma vez, os níveis enunciativos.

Ou seja, as projeções enunciativas indicam um tipo de contrato de veridicção em que

se ampliam as possibilidades de projeções de vozes, apontando para um universo de jogos

enunciativos diversos, criando o insólito e provocando o humor. É, portanto, o próprio

movimento e a dinâmica das projeções que caracteriza o contrato, exatamente pela ousadia e

pela inventividade.

Fiorin, no mesmo artigo anteriormente citado, aponta ainda como uma característica

do contrato semiótico a lógica imperante do discurso concessivo, em detrimento da

causalidade. Esse tipo de construção também é observada no corpus, especialmente quando se

analisa como se operam as modalidades do dever e do querer nos textos. Há o sujeito que

deve seguir uma norma social, buscar o dinheiro, a ordem ou a alienação, mas não o faz, uma

vez que não crê nesses valores, buscando outros. Ou seja, apesar de uma lógica social

previamente construída, em que valores são dados como fixos e únicos, obrigatórios, os

sujeitos agem a partir de suas vontades e desejos, seguindo outras demandas, que não aquelas

pré-determinadas como eufóricas socialmente.

Operando mais uma vez com os elementos apontados por Fiorin (2008b) para definir o

tipo de contrato, observa-se a ironia também como recurso da negação do dito por meio do

dizer. É o que podemos ver nos textos analisados quando se nota esse tipo de narrador que

ironiza, provoca o narratário e que, ao invés de simular que os fatos narram a si mesmos,

marca no enunciado a consciência da narração, e as intervenções do narrador chegam a ter

uma maior importância do que os fatos narrados, como já defendemos anteriormente.

Para confirmar o contrato semiótico como tipo de contrato de veridicção construído

em Orthof, observa-se ainda o estilo “brincalhão, irônico e reflexivo” (FIORIN, 2008b, p.

214), em que se questiona a realidade do senso comum e os dogmas estabelecidos pela

religião, ciência ou cânones artísticos. Aos valores tidos como desejáveis socialmente são

aqui relativizados, e bondade e maldade, ordem e desordem, por exemplo, são

complexificados, caracterizando-se mais como um peculiaridade do humano do que como

virtude ou defeito.

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Fiorin aponta ainda um quarto tipo de contrato, chamado de metalinguístico, em que a

identidade é fundamentada na alteridade, e a representação é uma construção de sentido, em

que se faz ver a identidade do enunciador real, como na literatura feminina ou na literatura

gay (FIORIN, 2008b, p.216). Misturam-se os gêneros e opera-se uma imitação de textos e

estilos, sendo o jogo intertextual explícito a marca desse tipo de contrato, construindo

paródias, por exemplo. Fiorin afirma que, como é um tipo de contrato de veridicção em

construção, ainda não são claras as suas características (FIORIN, 2008b, p.217).

Relacionando os contratos descritos por Fiorin e o corpus analisado, verifica-se que,

como já se pôde comprovar aqui em diversos momentos, a riqueza de recursos extrapola as

classificações estratificadas a que se possa atribuir a Orthof, sendo possível pensar também na

pertinência desse último tipo de contrato de veridicção apresentado no artigo de Fiorin, o

metalinguístico, uma vez que a paródia é um recurso expressivo nas obras estudadas, em que

se observa não só uma referência a textos outros já existentes, como uma referência interna à

obra da própria autora. Em Zoiudo, o monstrinho que bebia colírio (2012b), observou-se que

um actante de uma obra da mesma autora (Uxa, de Uxa, ora fada, ora bruxa, 1985b) é

retomado, transformando-se também em actante do enunciado da segunda obra, como se viu

no item 3.2, construindo um jogo intertextual explícito. Além disso, a colagem de gêneros e a

imitação de estilos, apontados como característicos do contrato metalinguístico, é também

recurso profícuo nos textos de Orthof. Manual de Boas Maneiras das Fadas (1995) traz uma

imitação do estilo de um manual, observando o tipo de registro, os modos verbais, a

modalização predominante por um dever fazer, no sentido de ridicularizar o gênero retomado.

Em Felipe do Abagunçado (2009b), interrompe-se o narrado para incluir um bilhete, gênero

comum nas práticas de interação cotidianas, a fim de simular um diálogo entre narrador e o

revisor, em que aquele se desculpa pelos erros e pela repetição de palavras.

A despeito de qualquer classificação, sem dúvida a reiteração do humor como efeito

de diferentes recursos utilizados cria a fidúcia na interação entre enunciador e enunciatário e,

à medida que se inscreve esse caráter da irreverência do ator da enunciação, o contrato se

fundamenta na espera entre o enunciado produzido e o próximo. Ou seja, tomam-se não só os

enunciados isoladamente, bem como a totalidade da obra, o intervalo entre um texto e outro,

chamado de “quase-presença” por Discini (2015, p. 25), para definir o corpo formado no

conjunto. É, portanto, a duratividade e a reiteração dos recursos que fazem com que a espera

pelo próximo texto confirme o estilo que caracteriza o enunciador, construindo, pois, uma

“espera pelo inesperado”, pelo uso inovador de um determinado recurso, pela combinação

insólita de figuras, etc.

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Certamente, a espera, tomada como elemento passional na interação dos sujeitos, é

resultado, por um lado, de um desejo de encontrar nos textos de Orthof seu estilo, a

irreverência, o humor, e, por outro, da confiança de que, a partir da imagem construída, o

contrato se cumpra, o que se verificará por meio de como se constrói a crença e a confiança

entre os atores da enunciação.

4.4 A CONFIANÇA E A CRENÇA

Para Aristóteles (2012), o caráter do orador também é um elemento de persuasão

quando este planeja seu discurso de maneira a causar a impressão de ser digno de fé e,

portanto, serem legítimas suas colocações, despertando a confiança no que diz. De acordo

com o filósofo

...acreditamos bem mais e depressa em pessoas honestas [...]. Porém, é necessário

que esta confiança seja resultado do discurso e não de uma opinião prévia sobre o

caráter do orador; pois não se deve considerar sem importância para a persuasão a

probidade do que fala [...], mas quase se poderia dizer que o caráter é o principal

meio de persuasão (ARISTÓTELES, 2012, p. 13).

Afirma-se, em Aristóteles, a importância do discurso como motivador da confiança,

mas é destaque na persuasão o caráter do orador, uma vez que, a fim de que desperte a crença,

esse caráter deve ser composto do bom senso, da virtude e da benevolência, características

independentes das demonstrações (ARISTÓTELES, 2012, p. 10). A disposição para a crença

dá-se, portanto, a partir das qualidades do caráter do orador, de acordo com o filósofo.

Fiorin (2008) reitera esse mesmo conceito, atualizando o pensamento de Aristóteles,

ao afirmar que o caráter resultante da força do discurso corresponderia a uma confiança no

éthos que não se explicita no enunciado, mas na enunciação. Exemplifica o autor que a

competência de um sujeito não se verifica quando ele diz “Eu sou competente”, mas quando

prova, em suas ações diárias, comportamentos que são coerentes a um sujeito competente,

construindo um éthos da competência.

Já para Landowski, argumentação e persuasão estariam em polos distintos, uma vez

que, para o autor “nem sempre é necessário justificar-se racionalmente para ser acreditado”

(LANDOWSKI, 1992, p. 153), como o contrário também é possível: pode-se provar o que se

diz e nem assim conseguir fazer crer. Isso se explica tendo em vista o lugar da crença, que

pode estar apartada da argumentação, considerando que esta não passa necessariamente pelo

fazer crer, já que outros elementos podem atuar no efeito persuasivo. Ou seja, pode-se confiar

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inteiramente no sujeito, a despeito do que diz, bem como é possível atribuir total razão ao

sujeito e, mesmo assim, não confiar nele e desconfiar do que diz.

Explica o autor que a crença pode ocorrer em dois níveis: uma que considera a crença

no sujeito que diz e outra que manifesta a crença no que diz o sujeito. No último caso, a

crença no discurso, esta seria resultado de um discurso organizado de modo a fazer parecer

verdadeiro, considerando somente o enunciado, independentemente das qualidades próprias

do sujeito que diz. Bastariam, então, somente bons argumentos para que a crença se firmasse

e a análise do crer resumir-se-ia a uma “análise do enunciado”. Se dessa maneira o fosse, seria

impossível crer além do que o discurso nos permitisse (LANDOWSKI, 1995, p. 154).

Considerando, então, o contrato fiduciário estabelecido a partir da crença entre os

parceiros da comunicação, Landowski conclui que a confiança se constrói

intersubjetivamente, na enunciação, ao passo que o crer se instaura no objeto, a partir de um

“problema de verossimilhança” (LANDOWSKI, 1995, p. 157). Em outros termos, o discurso

seria o lugar da crença, enquanto a confiança se depositaria no sujeito.

Relacionando ao projeto argumentativo de Orthof, podemos observar como se

instauram tanto a crença no enunciado, como a confiança no dizer. Como já se pôde observar,

os recursos argumentativos utilizados direcionam-se à construção da crença no discurso,

tendo em vista não só a variedade de estratégias argumentativas, bem como sua eficiência,

considerando o objetivo de fazer com que o enunciatário creia nos valores.

Verificaram-se como recursos argumentativos o modo de combinação entre figuras e

temas, o emprego da intertextualidade e a forma como se constrói a interdiscursividade, as

projeções enunciativas e as modalizações que, por sua vez, indicam o tom passional nos

textos. Em todos foi possível destacar, de maneira clara, estratégias do enunciador a fim de

buscar adesão a alguns valores, em detrimento de outros, partindo, muitas vezes do

questionamento e complexificação dos saberes já construídos.

Tomando, como exemplo, os estados de alma, notou-se que estes são recursos

profícuos na orientação de um ponto de vista e que não só apontam a construção da verdade,

uma vez que fundamentam os valores tomados como eufóricos e disfóricos pelo enunciador,

considerando o universo de valores e ideologias que movem os sujeitos, bem como

sensibilizam o enunciatário, provocando sua disposição para a crença.

Além disso, também no modo de dizer os recursos se mostram eficazes. A compaixão,

por exemplo, caracterizada como um sentir com o outro, sentir conjuntamente, verificada a

partir dos lexemas utilizados no texto, inscrevem um ponto de vista de um actante do

enunciado, como se o enunciador sofresse junto com o outro. O estado de alma só se explica

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porque o enunciador crê saber do sofrimento do outro, uma vez que partilha dos mesmos

valores, sensibilizando o enunciatário para que ele também compartilhe do sentimento, já que

orienta a leitura a partir da perspectiva dos actantes que sofrem por uma imposição social de

natureza diversa. A argumentação é bem-sucedida no sentido de que o recurso utilizado é uma

estratégia do enunciador para que o enunciatário também ressalte os valores apontados como

positivos e rejeite outros construídos no texto como negativos.

Mais ainda, o tipo de registro utilizado (a linguagem predominantemente coloquial ou

próxima do universo infantil), o uso dos contos de fadas como uma exploração do universo

vivenciado pelo leitor, as combinações inusitadas, marcando um tempo distante e um tempo

da atualidade ("computador de avental"; ORTHOF, 2009b, p.15), ou as metáforas com figuras

corriqueiras ("nariz primo da tomada; ORTHOF, 2011, p. 12) aproximam o enunciador do

enunciatário, contribuindo para a fidúcia e para a construção da confiança, reconhecendo a

fala do enunciador como legítima, como se estivesse, de fato, autorizado a dizer e, portanto,

sendo merecedor da confiabilidade.

O enunciatário, por sua vez, é cúmplice nessa interação, uma vez que necessita

compreender as marcas deixadas pelo enunciador, considerando seu papel cognitivo e

interpretativo, inerente à sua função, mas também, por exemplo, de maneira mais dinâmica,

atendendo às convocações pragmáticas de escrever a história, movimentar o livro, etc.

Nesse caso, o tipo de interação fundamentada na complementação entre os actantes da

enunciação, de um sujeito que doa o saber e o outro que assume os valores, caracteriza

também a confiança no dizer do enunciador, uma vez que os valores são previstos por ele e

não construídos conjuntamente pela interação. O enunciador, nesse caso, supre uma falta do

enunciatário, o que contribui para firmar o contrato fiduciário.

Assim, o que se vê é, de um lado, a construção da crença no discurso por meio da

eficiência dos recursos utilizados e, de outro, um modo de dizer também eficiente, que cria

uma confiança nesse ator da enunciação, figurativizado por Sylvia Orthof. Isso também

reforça o contrato entre enunciador e enunciatário, uma vez que, já que se crê no discurso,

considerando os enunciados pretéritos, espera-se, protensivamente, a inventividade nos

próximos, uma vez que se confia na imagem construída do éthos.

Mesmo já tendo clareza sobre os procedimentos argumentativos verificados em todos

os textos, inclusive nos literários, como se pôde ver até o momento, é necessário discutir

sobre o lugar da persuasão nos textos literários e em que medida o acento sensível e a

gradualidade auxiliam na busca por uma identificação dos componentes inteligível e sensível

nos textos.

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4.5 O LUGAR DO SENSÍVEL E DO INTELIGÍVEL NA ARGUMENTAÇÃO

A gramática tensiva permite, por meio de uma escala gradual, considerar uma

gradação entre o sensível e o inteligível, à medida que correlaciona a extensidade com a

intensidade: àquela é o lugar dos estados de coisa e esta acolhe os afetos. Em Síntese da

Gramática Tensiva, Zilberberg apresenta a relevância do sensível para a produção do sentido,

considerando-a como uma tensividade que se bifurca entre uma intensidade e uma

extensidade. Para a primeira, reservam-se os estados de alma, o sensível e, para a última,

estão os estados de coisa, o inteligível. Intensidade e extensidade se unem, definindo um

espaço tensivo em que as grandezas têm acesso ao campo de presença em um cenário

desigual, uma vez que “os estados de coisas estão na dependência dos estados de alma”

(ZILBERBERG, 2006b, p. 169).

Além de apontar a importância do sensível no sentido, Zilberberg dá luz ao contínuo,

tomando as categorias em gradualidade, pensando uma teoria a partir dos intervalos, ou seja,

do contínuo, em detrimento de uma semiótica das oposições, cara aos estudos estruturalistas

(ZILBERBERG, 2006b, p. 166). Tal postulado ganha relevância quando se pensa no discurso

como um campo de presença sob a perspectiva de uma modulação de percepção, em que os

conteúdos ora se aproximam do núcleo, ora se afastam para os pontos mais periféricos,

resultando em níveis diferentes de apreensão do objeto.

No cruzamento entre uma valência intensiva e uma valência extensiva, surge a noção

de valor, em que, ao primeiro relacionam-se as subdimensões de andamento e tonicidade e, à

última, as subdimensões de temporalidade e espacialidade. Tomando as categorias tensivas

que consideram o acento de sentido nos textos, cumpre falar sobre o papel do sensível e do

inteligível no corpus.

Já se comprovou aqui que as estratégias utilizadas são extremamente eficazes na

persuasão, dada a sua variedade e complexidade. É também claro que esses recursos

mobilizam o enunciatário para que este aceite como verdadeiros os valores ideológicos

veiculados como eufóricos pelo enunciador. Certamente, o corpus representa um conjunto de

textos que se qualificam como textos literários e que apresentam, também, natureza

argumentativa.

Mesmo que não se reproduzam no corpus os valores morais e pedagógicos de que a

literatura infantil foi veículo no início do século XX, tendo em vista especialmente o caso

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brasileiro20

, também não se pode ignorar os fortes valores construídos nos textos analisados,

tomados como eufóricos e aos quais se pretende a adesão. Sem dúvida, giram em torno, na

maioria das vezes, da inversão dos valores postos socialmente, do questionamento ou da

complexificação do que é considerado cânone ou tradicional, seja pela eficácia ou pela

riqueza de recursos.

O que se pôde perceber é que, a partir da simulação de uma igualdade, no sentido de

que a criança é mais dinâmica e participativa, há valores previamente inscritos e orientados

argumentativamente, a fim de que a manipulação seja eficaz. Ou seja, pela análise dos

recursos, verifica-se que há uma clara orientação para se aceitar determinados valores tidos

como eufóricos pelo enunciador, ainda que sejam transgressores dos valores hegemônicos e

conservadores.

No entanto, ainda que fortemente marcado pela persuasão e veiculador de valores, o

caráter formativo construído nos textos analisados parte de outras bases, que o diferenciam,

inclusive, de um estilo e de um corpo que caracterizam a literatura do início do século XX. No

capítulo 1, ao traçar um panorama da literatura brasileira a fim de determinar os lugares que

marcam a literatura infantil mais conservadora e a mais contemporânea, foi possível observar

que o estilo que marca o início da literatura infantil no Brasil caracteriza-se pela mediação,

pelo meio termo, considerando a justa medida como o valor eufórico no que diz respeito ao

comportamento dos sujeitos (“a alma pura e o coração sem sustos”; Bilac, 1904, p. 85), a

virtude se dá pelo exemplo e a mediocridade dá o tom do éthos do enunciador na literatura

infantil do século XX.

Por outro lado, em Orthof o exagero é o valor, reiteradamente recorre-se aos

aumentativos na descrição das figuras e a hipérbole dá o tom intenso a esse ator da

enunciação. O tatu cava tão fundo que chega ao Japão, a fada é tão gorda que não passa no

arco do triunfo ou a velhota vive tão do avesso que faz toda a cidade virar de ponta a cabeça,

levando ao extremo do exagero a figurativização e a tematização. Para Fiorin (2008, p. 147),

“todas as modificações importantes na literatura são acompanhadas de uma transformação do

éthos”, como se pode comprovar aqui, comparando-se o éthos do enunciador na literatura

tradicional e no corpus analisado.

Certamente essa mudança não se explica só pelo tom, mas considera também a

organização lógica do discurso. Já se tratou anteriormente que a retórica dá-se,

majoritariamente, pelo viés da concessão: ainda que Maria tenha que comer jiló, ela entra em

20

conferir capítulo 1, em que se discutiu os parâmetros de uma literatura tradicional e contemporânea.

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um restaurante e come uma feijoada (ORTHOF, 1982); mesmo que o Tatu deva valorizar a

riqueza, ele busca buracos mais fundos (ORTHOF, 2012a); embora o soldado necessite ir para

a guerra, vira jardineiro (ORTHOF, 1984). No entanto, cabe delimitar melhor como se dá esse

tipo de organização tendo em vista a cifra tensiva.

Para Zilberberg, a concessão está ligada à noção de limite, tendo em vista que, ao

mesmo tempo, marca o limite, mas deve, a si mesma, limitar-se, do contrário suporia uma

regularidade indesejada à própria definição. Marca uma “causalidade inoperante”, uma vez

que é ordenada pelo “embora e o entretanto”, ao passo que a implicação gira em torno da

causalidade operante “se a, então b” (ZILBERBERG, 2007, p.23).

O que explica, pois, a logicidade do discurso concessivo é a ordem do acontecimento,

a grandeza que arrebata o sujeito, dada a afetividade destacada e uma tonicidade intensa que

deixa o sujeito estupefato, uma vez que “o sujeito apreende e é ele mesmo apreendido por

aquilo que o apreende, pois apreender um acontecimento, um sobrevir, é, antes de tudo, e

talvez principalmente, ser apreendido pelo sobrevir” (ZILBERBERG, 2007, p. 22).

Também em Orthof o sujeito é tomado pelo sobrevir e é apreendido pelo impacto,

além de identificar como concessiva a organização retórica do discurso. O percurso temático-

figurativo, o uso extremamente inovador das projeções enunciativas ou as paixões oriundas do

querer intenso, por exemplo, reforçam um “discurso do acontecimento” (ZILBERBERG,

2007, p.26), em que se verifica a tonicidade intensa. Ou seja, o leitor é arrebatado pela força

para, posteriormente, desacelerar o andamento, enfraquecer a tonicidade e, aí sim, retornar à

temporalidade do estado de coisas, o inteligível, saindo do acontecimento para o exercício, em

que os fatos são extensos e ordinários, operando o discurso da causalidade operante.

Partindo também das considerações de Discini de que todo estilo possui um viés

sensível e que, por sua vez, todo éthos é conotado, podemos também fundamentar a

ocorrência tanto da dimensão sensível, quanto da inteligível nos textos analisados. As

diferenças estilísticas residem, portanto, na gradualidade de intensificação das grandezas do

conotado, considerando desde uma atonia a uma tonicidade. Ao estético, correspondem as

valências plenas do conotado, enquanto o estésico é o lugar das valências nulas, considerando,

para tanto, a impossibilidade tanto de um denotado puro, quanto da ausência plena do sentir

(DISCINI, 2015, p. 23).

Nesse sentido, é perfeitamente possível a existência de uma inteligibilidade em textos

poéticos e não poéticos, bem como de papéis patêmicos em textos midiáticos, por exemplo, e

não midiáticos. A avaliação ética e o sensível não se excluem, mais do que isso, convocam

um determinado estilo em que o acento se dê mais a um ponto do que a outro. Atualizando

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Zilberberg, Discini confirma a possibilidade da configuração de paixões tanto para um

observador social, quanto para um observador sensível, a considerar que as paixões do éthos

possuem uma inclinação moralizante, enquanto as do páthos, uma orientação sensibilizante

(DISCINI, 2015, p. 315).

Na análise dos recursos, foi possível perceber que algumas estratégias apontavam para

uma valência mais plena do sensível, como o uso de metáforas, os recursos do plano da

expressão, como as aliterações, assonâncias, onomatopeias, rimas e paralelismos sintáticos.

Neles, pôde-se observar que há um apelo ao afeto, de maneira a estabelecer a interação por

meio do contágio, uma vez que os recursos sensibilizam o enunciatário de maneira a reforçar

o plano do conteúdo, ou mesmo instaurar o cômico, o lúdico e a inventividade, como já se

comprovou serem características de Orthof. As repetições de vogais abertas, por exemplo, que

reiteram a paixão da alegria, as oclusivas que reforçam a inscrição da sobriedade do actante,

ou as onomatopeias, que reforçam o lugar da brincadeira e da fantasia, indicam valências

plenas do éthos conotado, corroborando o lugar do literário no corpus analisado.

Ao mesmo tempo, alguns recursos como a transgressão entre níveis sintáticos ou o uso

da interdiscursividade como meio de contestação de valores, embora resguardem a surpresa,

tendo em vista a inventividade das estratégias e de seus efeitos, aponta para valências mais

próximas do judicativo, já que operam no âmbito do inteligível, persuadindo o enunciatário

pelo uso inovador e eficaz dos recursos como legitimador de um éthos capaz de dizer o que

diz. Ao propor uma interação entre o intelocutor e o a instância de produção dos textos, por

exemplo, inscreve a imagem de um enunciatário perspicaz a acompanhar essas transgressões e

tomar como verdadeiras as estratégias e os efeitos criados. Por outro lado, o emprego desses

recursos servem sempre ao humor, que faz com que não possam ser consideradas como

valências plenas do judicativo, apresentando um grau de estesia.

O que se pode concluir, portanto, a partir das considerações de Discini, é o fato de ser

totalmente concebível a existência tanto de um papel temático assumido pelo ator da

enunciação nos textos aqui pesquisados, bem como de um papel patêmico, permitindo a

inscrição de uma inteligibilidade juntamente à dimensão estética no texto literário infantil.

Comprovou-se, portanto, que, ao lado de uma imagem do éthos irreverente, excessivo, há um

páthos que busca suprir uma falta, aderindo, portanto, aos valores tomados como positivos

por esse enunciador. Dá-se, portanto, a persuasão também por meio de estratégias que

sensibilizam e envolvem o enunciatário, coocorrendo com as valências conotadas intensas que

correspondem ao estético, vigorosas na literatura infantil de Orthof.

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É dessa forma que, a partir de um discurso do acontecimento, do excesso e,

consequentemente, do sensível, as estratégias se encaixam e operam perfeitamente a partir das

estratégias do enunciador. Realiza-se o fazer crer, por meio do uso brilhante dos recursos,

provando, definitivamente, a argumentatividade nos textos infantis, de inegável valor estético,

de Sylvia Orthof.

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CONCLUSÃO

A partir da análise dos textos de Sylvia Orthof, podemos perceber que estamos diante

de uma autora cuja riqueza de recursos faz com que se posicione entre os grandes nomes da

literatura infantil no Brasil, mesmo diante da curta carreira. Se, de alguma maneira, certa

literatura infantil é considerada um tipo de literatura menor, Sylvia Orthof afasta de vez esse

mito, comprovando como algumas estratégias mobilizadas no texto podem ser tão ou mais

instigantes do que as utilizadas em uma literatura dita para adultos. Aliás, por esse mesmo

motivo, seria possível afirmar que a abrangência dos recursos não se resume só aos

enunciatários figurativizados pelas crianças, mas também a diversos tipos de público. A

análise da argumentação, dada a essa riqueza dos recursos, mostrou-se profícua nos textos

observados.

Fiorin (2014), ao discutir sobre os estudos de argumentação ao longo da história e na

atualidade, indica que, durante muito tempo, as pesquisas de texto e discurso restringiram o

campo de análise aos fatores linguísticos que explicavam a argumentação, desconsiderando

ou dando menor importância ao discurso e sua composição a partir da retórica, que se filia ao

que hoje se entende por argumentação. Nessa pesquisa procuramos, portanto, destacar a

importância do estudo da argumentação no discurso, pensando a partir da abrangência do que

se diz e do modo como se diz; dos recursos inteligíveis escolhidos pelo enunciador para fazer

crer e a própria interação afetiva entre enunciador e enunciatário, estabelecendo a confiança e

o envolvimento emotivo. Ou seja, observou-se que, mesmo os textos inventivos, abertos e

surpreendentes da literatura infantil de Sylvia Orthof também apresentam uma orientação

argumentativa, reiterada não só no dito, mas também no modo de dizer. Os valores da

originalidade, da curiosidade, etc, não só são buscados pelos actantes do enunciado, mas

também se fazem ver no caráter inventivo e dinâmico do próprio modo de dizer do

enunciador.

A confiança construída no enunciador, a partir da interação entre enunciador e

enunciatário, e a crença no dito foram o ponto de partida do estudo da persuasão no corpus

analisado e, dessa maneira, organizou-se a pesquisa, de maneira a comprovar como os

recursos utilizados tinham uma eficácia argumentativa que levava à adesão ao discurso, ao

mesmo tempo em que reforçavam a confiança no éthos do enunciador, construíam a sua

imagem e o qualificavam.

Para tanto, a partir de alguns recursos argumentativos utilizados reiteradamente pelo

enunciador, buscou-se investigar, primeiramente, como os modos de combinação entre figuras

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e temas instauravam o insólito a partir dos percursos temático-figurativos inusitados que, ao

mesmo tempo em que tornavam peculiares as escolhas do enunciador, criavam o efeito da

irreverência nos textos, começando a despontar as características que comporiam o corpo e o

tom do ator da enunciação. As figuras de retórica utilizadas nos textos, como a metáfora, a

ironia e a hipérbole indicaram, ao mesmo tempo, a ideologia constituída a partir das figuras e

temas, construíram-se como recursos empregados para orientar a interpretação do

enunciatário, tomando alguns valores como eufóricos e outros como disfóricos, indicando,

portanto, quais valores seriam construídos como verdadeiros.

Outro recurso bastante recorrente nos textos analisados e importante também para a

subversão de valores tidos como conservadores foram a intertextualidade e a

interdiscursividade. Considerando que a argumentação parte sempre do conhecido e da

partilha comum de saberes, para a adesão ao novo, ou pelo menos àquilo em que não se

acreditava anteriormente, a referência a outros textos já existentes, bem como a um discurso

em circulação na sociedade, permite explorar o universo conhecido do enunciatário a fim de

provocar uma crítica, por exemplo, ao simplismo da oposição entre o bem e o mal, o belo e o

feio, o obediente e o transgressor e reafirmar a complexidade desses valores na experiência

humana, confirmando a transgressão dos valores hegemônicos uma propriedade dos textos de

Orthof.

Já a análise das projeções enunciativas evidenciou a diversidade de recursos

argumentativos não só no enunciado, como também no modo de dizer. A transgressão

extremamente complexa entre níveis enunciativos indicou um enunciador hábil ao organizar

as estratégias, bem como uma ampliação das possibilidades de projeções enunciativas,

especialmente em relação às formas mais lógicas de organização nos níveis enunciativos.

Lajolo e Zilberman (2007) apontam que os rumos da literatura infantil contemporânea

não são muito nítidos, mas reconhecem que o espessamento do texto de literatura infantil

como texto literário, considerando, especialmente, a recorrência de procedimentos

intertextuais e metalinguísticos, em que se tematiza o próprio processo de produção e criação

na escrita, são características que indicam o caminho do gênero atualmente. Ao observarmos

os dois últimos recursos expostos aqui como análise, podemos perceber o brilhantismo da

autora pesquisada, que, ainda em meados da década de 80, início de 90, período em que as

obras aqui analisadas foram publicadas, trazia as particularidades apontadas como recursos

produtivos na literatura infantil contemporânea.

As modalidades do fazer e do ser também foram observadas nos textos de Orthof e

ganhou destaque a reiteração da tensão entre a modalização do dever, que aponta para a

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obrigatoriedade da assunção de valores conservadores, e a posterior assunção do querer,

indicando actantes do enunciado voluntariosos que privilegiam seus desejos e vontades. Por

consequência, verificou-se que os estados de alma atuam como forte componente

argumentativo, uma vez que sensibilizam o enunciatário que é contagiado pelas paixões

vivenciadas pelos actantes do enunciado, bem como o dizer apaixonado, à medida que criam

uma disponibilidade sensível, mobilizando o outro a aceitar determinados valores.

Por fim, tratou-se da relação entre enunciador e enunciatário a fim de se verificar

como as estratégias inscreviam contrato veridictório semiótico e até metalinguístico, nos

termos de Fiorin (2008b), nos textos de Orthof. Com o conjunto de obras representativas,

pode-se construir o éthos do enunciador como curioso, contestador e irreverente, em que o

humor é o efeito constante de todos os recursos observados. O riso, aliás, é o componente

basilar da interação, que está não só no dito, mas também no dizer, à medida que esse

enunciador ri de si mesmo, demonstrando que a alegria é o tom da interação. Nesse ponto,

pode-se afirmar que a interação firmada entre enunciador e enunciatário nos textos

observados baseia-se a partir da tensão entre um saber e um crer, pois, retomando os conceitos

de Beividas e Lopes, a diminuição gradativa do saber se dá, ao mesmo tempo, pelo aumento

do crer (BEIVIDAS; LOPES, 2009, p. 445-446).

A argumentação é, pois, o meio termo, operado entre um saber e um crer, uma vez

que, a partir dos textos analisados, foi possível perceber que o sujeito é responsável pela

doação de um saber, ao passo que ao enunciatário cabe a gradativa admissão desse tipo de

saber, até a adesão aos valores pelo crer. De fato, o modo como a doação de saber é

organizado, por meio da provocação, da inscrição de um sujeito que busca querer saber,

alongando a espera e ressaltando a curiosidade, bem como as estratégias eficazes de fazer crer

no discurso aventam para a pertinência e eficiência da argumentação nos textos aqui

analisados.

No entanto, a fim de que o contrato proposto pelo enunciador se cumpra, é necessário

que o enunciatário se veja reconhecido e aceite os valores da irreverência e do humor,

tornando-se cúmplice desse discurso do insólito. Aí também está o componente

argumentativo importante nos textos, uma vez que faz o enunciatário aceitar os valores, que já

são previstos pelo enunciador. Sempre há um valor manifestado previamente e, ao

enunciatário, cabe a recusa ou a adesão, mas não uma construção conjunta. Sob uma

simulação de parceria, a partir da continuação de uma história já previamente delimitada, ou

de intervenção restrita à coerência já estabelecida no texto, há, na verdade, uma relação

hierárquica desigual, no sentido de que há um sujeito responsável pela doação dos saberes.

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Finalmente, tratou-se do lugar da argumentação no texto literário. Sem dúvida, o

corpus confirma um grau de inteligibilidade no texto literário, tendo em vista, especialmente,

a possibilidade de um tratamento de gradualidades entre as valências do conotado, como

vimos no capítulo 4, a partir das contribuições de DISCINI (2015), considerando que todo

estilo possui um viés sensível, comprovando que o éstético e o estésico não se excluem, assim

como o perfil judicativo do ator da enunciação. Ao lado do componente afetivo, verificou-se

uma persuasão eficiente, uma vez que há sempre valores aos quais se busca a adesão. Mesmo

que se afaste a literatura contemporânea do tipo de literatura infantil empreendida no início do

século, em que o tom moral e pedagógico atrelava os conteúdos temáticos à escola, à família,

à nação, não se pode desconsiderar que haja, ainda assim, valores em jogo, como comprovam

Zilberman e Lajolo:

Assim, se aparentemente desapareceu desses livros infantis o compromisso com a

história oficial, com os heróis pátrios e com os conteúdos escolares mais ortodoxos,

um exame mais atento da produção infantil contemporânea revela a permanência da

preocupação educativa, comprometida agora com outros valores, menos tradicionais

e acredita-se — libertadores (LAJOLO; ZILBERMAN, 2007, p. 161).

Qual a inovação, então, dos textos de Sylvia Orthof, já que é característica da literatura

contemporânea a subversão dos valores? A partir da análise das obras, é possível afirmar que

o modo de dizer, a seleção e a riqueza dos recursos dão o tom das obras, que definitivamente

diferenciam a autora dos demais escritores de literatura infantil.

Como se comprovou, o tom excessivo forma o corpo do ator da enunciação, a lógica

discursiva baseada na concessão arrebata o sujeito pelo sobrevir, construindo o discurso do

acontecimento nos textos, indicando o acento do sensível nos textos de Orthof. Ao mesmo

tempo, os recursos argumentativos são ricos e eficazes nas estratégias de persuasão, indicando

que se trata de um corpus extremamente complexo. O enunciatário, por sua vez, deve ser

perspicaz a ponto de identificar esses recursos e firmar o contrato de veridicção, a partir da

orientação de um ponto de vista do enunciador.

A contribuição que se espera desta pesquisa em relação aos estudos de texto e discurso

é que a análise dos recursos argumentativos aqui empreendida seja uma contribuição para a

compreensão do tratamento da argumentação nos textos que, ainda que muito debatida, é

pouco sistematizada, considerando-a especialmente como um fator de discurso. Além disso, a

motivação desta pesquisa é mostrar que os textos literários, mesmo insólitos, não deixam de

apresentar argumentatividade, ainda que o modo de convencer seja mais relativizador e dê

espaço para a criatividade, a inventividade, a afetividade e ao humor. Conforme apontaram

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Lajolo e Zilberman na citação anteriormente destacada, a "formação educativa" é presente nos

textos de literatura infantil contemporânea e, como se comprovou na pesquisa, ainda que com

valores novos, a dimensão ética e formativa permanecem, mesmo em meio ao surpreendente

texto de Sylvia Orthof.

Por fim, o trabalho aqui empreendido, longe de esgotar os estudos sobre argumentação

nos textos, busca ser mais um instrumento tanto na análise de textos considerados

argumentativos, bem como de outros tipos de texto, uma vez que se comprova que a

argumentatividade é parte da própria linguagem, independentemente de seu gênero e

tipologia. A linguagem, entendida como a própria atividade humana, longe de ser um lugar

pacífico e consensual, é, por si, o espaço da polêmica, do confronto e, por esse motivo, a

argumentação sempre permeará o homem e sua relação com o mundo.

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______. Ovos Nevados. Belo Horizonte: Formato Editorial, 1997.

______. A bruxa Fofim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

______. O cavalo transparente. São Paulo: Quinteto Editorial, 2003.

______. A fada Lá de Pasárgada e Cabidelin, o doce monstrinho. São Paulo: Edições SM,

2004a.

______. Os bichos que tive: (memórias zoológicas). 2ª ed. São Paulo: Moderna, 2004b.

______. Rabiscos ou Rabanetes. 6ª ed. São Paulo: Global, 2004c.

______. Fada Cisco Quase nada. 7ª ed. São Paulo: Ática, 2006.

______. Ervilina e o Princês ou Deu a louca em Ervilina. Porto Alegre: Projeto, 2009a.

______. Felipe do Abagunçado. São Paulo: FTD, 2009b.

______. História Enroscada. São Paulo: Moderna, 2011.

______. No fundo do fundo-fundo lá vai o tatu Raimundo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2012a.

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ANEXOS

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A bruxa Fofim Uma história ilustrada pela própria Sylvia Orthof, conta as situações vividas por uma bruxa

que, ao trocar a palavra mágica "Abracadabra" por "Abracadim", vê suas peças de roupa

saltarem de seu corpo, ficando praticamente nua, somente de sapato e chapéu. Tudo volta a

normalidade quando ela descobre a palavra mágica. Ganha destaque na história uma aranha,

uma formiga e uma borboleta que, ao tempo todo, criticam os modos da bruxa.

ORTHOF, Sylvia. A bruxa Fofim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

A Fada Lá de Pasárgada e Cabidelin, o doce monstrinho

A história narra o encontro de fada Poesia com vários seres fantásticos, como a ninfa Brisa, o

tio Vento e um anão gigante chamado Mini-Máxi, que tem um calo de estimação falante em

um dos dedos do pé. A narrativa fala da divertida relação entre esses seres, incluindo um

casamento entre fada Poesia e o anão. Cabidelim é um monstrinho s que vive dentro de um

armário de roupa. Ele tem olhos pestanudos, cara redonda, nariz de batata e, no lugar das

orelhas, braços-ouvintes. É por isso que ele gosta de abraçar as pessoas - para dar-lhes carinho

e ouvi-las melhor. E quem está precisando de consolo e atenção é a dona do armário em que

Cabidelim vive. Tudo de errado parece estar acontecendo com ela - falta de dinheiro, vizinha

chata e, para piorar, uma unha encravada no pé, mas Cabidelim mostra que não porque se

preocupar com coisas tão banais.

ORTHOF, Sylvia. A fada Lá de Pasárgada e Cabidelin, o doce monstrinho. São Paulo:

Edições SM, 2004a.

A velhota cambalhota Uma senhora mineira leva a vida dando cambalhotas e coloca Ouro Preto do avesso. Como

todos da cidade, a vizinha, o padre, ficam escandalizados com seu comportamento e

preocupados com sua reputação, ela tenta enquadrar-se nos padrões da tradicional cidade

mineira, mas não consegue e volta, feliz, a dar suas cambalhotas. Ganham destaque na obra

personagens que experimentam a bagunça causada pela velhota, como o poeta Tomaz

Antônio Gonzaga, são Pedro e o anjo Gabriel. ORTHOF, Sylvia. A velhota cambalhota. Belo Horizonte: Lê, 1985.

Enferrujado, lá vai o soldado O soldado deveria defender o rei e seu reinado, mas não é bem sucedido em sua função, já

que marcha contra perigos que não existem, atinge o traseiro de uma vaca ao empenhar a

espada, escorrega por dentro da armadura, etc. Por fim, transforma-se em jardineiro.

ORTHOF, Sylvia. Enferrujado, lá vai o soldado. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984.

Maria vai com as outras A ovelha Maria segue os passos das outras ovelhas, até que, depois de pegar insolação, gripe e

comer jiló, resolve seguir seus próprios passos, entrar em um restaurante e comer uma

feijoada, em vez de pular do Corcovado, tal qual as outras ovelhas. ORTHOF, Sylvia. Maria vai com as outras. São Paulo: Ática, 1982.

Ervilina e o Princês (ou deu a louca em Ervilina) Baseado no conto A princesa e a ervilha, de Hans Christian Andersen, a história de Orthof

fala de um rei que procura a princesa mais sensível para casar-se com seu filho, o príncipe.

Para testar a sensibilidade das candidatas, a rainha coloca uma ervilha sob vários colchões em

que as princesas devem dormir e, aquela cuja sensibilidade for extrema, sentirá a ervilha e não

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terá uma boa noite de sono. A única capaz do feito rejeita o casamento, preferindo exercer a

função de pastora. ORTHOF, Sylvia. Ervilina e o Princês ou Deu a louca em Ervilina. Porto Alegre: Projeto,

2009a.

Fada Cisco quase nada Fada Cisco é uma pequena fada que mora em uma rosa, em que a bagunça é a característica

fundamental do espaço. Quando Fada Cisco sai de sua morada e visita o quarto das crianças,

deixa também todo o lugar bagunçado.

ORTHOF, Sylvia. Fada Cisco Quase nada. 7ª ed. São Paulo: Ática, 2006.

Fada fofa em Paris Fada Fofa decide pesar-se e, mordida por uma pulga, acaba parando em Paris. Lá, deixa torta

a torre Eiffel, ao subir no monumento, e fica presa no Arco do Triunfo, ao tentar passar pela

famosa construção. Com outra mordida, volta para o Brasil A história também é ilustrada por

Sylvia Orthof. ORTHOF, Sylvia. Fada Fofa em Paris. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995.

Felipe do Abagunçado Felipe é um adolescente que vive pressionado por sua mãe a manter seu quarto arrumado. É

então que um bruxo-astronauta aparece, transformando Felipe, Lili, sua mãe, e Bidu, o

cachorro, em seres fantásticos, em uma viagem de trem pelo quarto de Felipe, percorrendo

cada estação de bagunça (Estação do Tênis, Estação da Roupa Amassada, Terra do Sumiço).

Durante a viagem, Lili volta a ser criança e compartilha, por um momento, o universo do

filho. Ao final, a própria mãe do menino revela não ser tão organizada assim.

ORTHOF, Sylvia. Felipe do Abagunçado. São Paulo: FTD, 2009b.

Guardachuvando Doideiras Na véspera de completar cem anos de idade, Dito relembra suas aventuras de garoto pobre

para conseguir um guarda-chuva novo. Naquela época, ele morava na chuvosa cidade de

Petrópolis e vivia molhado, pois o único guarda-chuva que tinha - um bem deixado por seu

pai ao morrer e, por isso, considerado uma verdadeira relíquia familiar - não podia ser usado.

Mas esta história não trata apenas de lembranças de infância, já que Dito também reflete sobre

a vida, a passagem do tempo e seu novo ofício de escritor. ORTHOF,Sylvia. Guardachuvando Doideiras. São Paulo: Atual, 1992.

Manual de boas maneiras das fadas Esta é mais uma obra ilustrada por Sylvia Orthof. Neste manual, ensina-se que, para ser fada,

é necessário ter boas maneiras, como não poder comer de boca aberta, não poder lamber a

cobertura da torta nem levantar o mindinho quando estiver bebendo o chá da tarde e não

palitar os dentes, por ser considerado falta de educação. No fim, a fada fica sabendo que, se

um dia ela cansar de ser diva e quiser mostrar que é totalmente gente, não há problema, é

possível ser feliz mesmo não tendo boas maneiras, mostrando que, na verdade, boas maneiras

nem sempre são ideais. ORTHOF, Sylvia. Manual de boas maneiras das fadas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995b.

O cavalo transparente

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Uma cigana perde o frasco contendo toda a tristeza do mundo. Um cavaleiro com seu cavalo

transparente,Rocinante, a ajuda a procurá-lo. Andam sobre as ondas do mar, passam pela

Gruta dos Ecos, falam com a ilha deserta e vivem inúmeros mistérios até descobrirem que

quem havia roubado o vidrinho jogou o conteúdo no mar, espalhando toda a tristeza pelo

mundo afora e deixando a água com gosto de lágrima, o que explica o fato de o mar ser

salgado. ORTHOF, Sylvia. O cavalo transparente. São Paulo: Quinteto Editorial, 2003.

Os bichos que tive (memórias zoológicas) Sylvia Orthof fala dos bichos de estimação que teve, dentre eles uma rã, chamada Santa

Aurora, um cachorro, de nome Sua Avó, o coelho Oz, um bicho papão, um bicho de pé dentre

outros. Sua convivência diária com os bichos na infância é a inspiração para histórias do livro.

ORTHOF, Sylvia. Os bichos que tive: (memórias zoológicas). 2ª ed. São Paulo: Moderna,

2004.

Ovos Nevados Narra-se a história de uma princesa que dormia em uma cama feita de ovos nevados, que ela

comia todos os dias quando acordava. Por conta disso, a princesa era gordíssima, ao contrário

do povo do reino, que era muito magro. A costureira real também era magra já que era

encarregada de alargar constantemente os vestidos da princesa.Numa importante data

comemorativa do reino, o rei foi para os festejos preocupado com a gordura da filha e com a

recente pichação, nos muros do palácio, da palavra FOME. Durante a festa, a princesa comeu

tanto que seu vestido estourou. Na confusão, desapareceram o rei, a rainha e a princesa. O

reino virou república, e a costureira real foi eleita presidente. Não demorou para que o povo

começasse a notar que a costureira-presidente também estava engordando muito.

ORTHOF, Sylvia. Ovos Nevados. Belo Horizonte: Formato Editorial, 1997.

Rabiscos ou rabanetes Um menino faz um rabisco e, a partir daí, uma gaivota, com a qual viaja por cenários

distintos. Ao mesmo tempo, uma senhora questiona ao menino sobre os rabiscos, mostrando

sua verdadeira preocupação: o preço dos rabanetes. Preocupada com a inflação, a senhora

compra todos os rabanetes da feira, enquanto o menino viaja por diferentes lugares, até chegar

a sua própria casa. ORTHOF, Sylvia. Rabiscos ou Rabanetes. 6ª ed. São Paulo: Global, 2004c.

Trem de pai... Uai! Um homem atarefado com o trabalho incomoda-se com a dura rotina profissional, em que o

telefone que não dá linha, o café derrama sobre os papéis, a reunião com o chefe, o trânsito.

Até chegar em casa, relaxar e divertir-se com seu filho, brincado com um trem.

ORTHOF, Sylvia. Trem de pai... Uai!. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

Uxa, ora fada, ora bruxa Uxa é uma fada / bruxa que, em alguns dias resolve fazer bondades, como dar bala-puxa a um

velho, transformar o taxi em abóbora, mas o efeito é contrário, já que a bala agarra na

dentadura e o táxi é multado. Em outros dias, decide fazer maldades, como fazer cinco velhas

saírem do jejum ou dar balas para crianças. Mais uma vez o resultado é o contrário, já que

todos ficam felizes com as maldades. Na verdade, Uxa mostra que seres humanos são todos

compostos de maldades e bondades, de um certo modo. ORTHOF, Sylvia. Uxa, ora fada, ora bruxa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.