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Seminário URBFAVELAS 2016 Rio de Janeiro - RJ - Brasil O DISCURSO TÉCNICO DO RISCO NAS TENTATIVAS RECENTES DE REMOÇÕES FORÇADAS DE FAVELAS NO RIO DE JANEIRO Maurício Campos dos Santos - [email protected] Engenheiro civil e mecânico, formado pela PUC-Rio, membro do Coletivo Técnico de Apoio às Lutas das Comunidades pelo Direito à Moradia

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Seminário URBFAVELAS 2016Rio de Janeiro - RJ - Brasil

O DISCURSO TÉCNICO DO RISCO NAS TENTATIVAS RECENTES DE REMOÇÕESFORÇADAS DE FAVELAS NO RIO DE JANEIRO

Maurício Campos dos Santos - [email protected] civil e mecânico, formado pela PUC-Rio, membro do Coletivo Técnico de Apoio às Lutas das Comunidadespelo Direito à Moradia

O DISCURSO TÉCNICO DO RISCO NAS TENTATIVAS RECENTES DE REMOÇÕES FORÇADAS DE FAVELAS NO RIO DE JANEIRO

Resumo

A partir principalmente de documentação técnica emitida por órgãos públicos, ou por profissionais independentes que fazem trabalho voluntário para comunidades do Rio de Janeiro ameaçadas de remoção forçada, e da própria experiência do autor em anos recentes nesse trabalho voluntário, o texto relata e discute o uso do argumento do risco (geotécnico, ambiental, etc) em tentativas de remoção em massa de moradores de favelas no Rio de Janeiro nos últimos anos.

É demonstrado como, apesar do uso de um discurso supostamente neutro e técnico, baseado em décadas de experiência de engenharia prática e pesquisas, a análise técnica “isenta”, ou de fato apropriada aos casos, é deformada por outros objetivos e por uma determinada visão ideológica quando as áreas em questão são habitadas por populações historicamente empobrecidas e vulneráveis.

Nas conclusões, evidencia-se a importância do apoio técnico adequado às comunidades de favelas em suas lutas de resistência contra remoções forçadas, e pela implementação de políticas de urbanização (incluindo políticas de redução de risco físico/ambiental) que atendam seus direitos históricos. E também mostra-se a importância da construção de um espaço mínimo de consenso, em torno da ética profissional, que oriente a comunidade técnica envolvida nessas questões.

Introdução

Em maio de 2016 a Fundação Geo-Rio (originalmente, Instituto de Geotécnica do Município do Rio de Janeiro) completou 50 anos de criação. Instituída logo após chuvas catastróficas naquele ano, que deixaram dezenas de vítimas devido a deslizamentos em encostas, sua necessidade ficou ainda mais evidente em fevereiro do ano seguinte, quando novas tempestades causaram 127 vítimas fatais (maior número de mortes devido a episódio de chuvas concentradas observado no Rio até hoje, embora em termos pluviométricos tenha sido menos severo – 181 mm de chuva em 24 horas – que as catástrofes de 1966, 1988, 1996 e 2010 – essa última a recordista com 305 mm/24h).

Pressionado pelo trauma da sociedade, em poucos anos o Instituto realizou estudos e experimentou tecnologias em obras, construiu um patrimônio inegável de conhecimento e experiência técnica, e deixou sua marca nas montanhas da cidade projetando, contratando e fiscalizando a execução de grande número de obras de estabilização de encostas e drenagem superficial. É uma história de respeito, ao nível nacional e internacional, e durante muito tempo de estima popular, devotada em especial pela população mais pobre moradora das encostas da cidade.

Poderia parecer uma injustiça muito grande que, neste seu 50o aniversário, a imagem da Geo-Rio esteja tão maculada devido ao acidente na Ciclovia Tim Maia em 21 de abril. Afinal, um erro localizado, que causou duas mortes, por mais grave que tenha sido (e tudo indica que houve erros graves de projeto e fiscalização), não deveria obscurecer décadas de realizações que com certeza salvaram muitas vidas e construíram uma merecida reputação. Mas, será mesmo?

Como engenheiro travei conhecimento direto com a Geo-Rio ao acompanhar (muitas vezes como responsável técnico) muitas obras contratadas junto ao órgão, nos últimos vinte anos aproximadamente. Posso afirmar que aprendi muito com essa convivência e

posso atestar como são indispensáveis para a sociedade a experiência e as realizações da Geo-Rio. Mas também conheci um outro lado, que de maneira nenhuma é exclusividade da Fundação, mas compromete toda a área técnica do serviço público da cidade, do estado e do país: as perigosas e perniciosas relações envolvendo esses funcionários públicos e os interesses empresariais e políticos que dominam a sociedade brasileira.

Esse outro lado de uma história que poderia ser tão bela ficou ainda mais evidente para mim nos últimos seis ou sete anos, quando tenho atuado de forma mais intensa como assessor/consultor técnico voluntário de movimentos sociais e comunidades que lutam por seus direitos de moradia no Rio. Principalmente a partir das chuvas catastróficas de 2010, observei em primeira mão condutas extremamente condenáveis do poder público em geral, e de seus órgãos técnicos em particular. Ironicamente, me deparei, ao lado da Geo-Rio, com outro personagem também envolvido na tragédia da ciclovia, a empresa Concremat Engenharia, em circunstâncias que detalharei no decorrer desse artigo.

Como creio que ficará claro aos leitores, tais personagens (Prefeitura, Geo-Rio, Concremat) estiveram envolvidos em decisões e ações que tiveram consequências mais graves que as da queda do trecho da ciclovia na Niemeyer, mas houve pouca ou quase nenhuma comoção por parte da grande imprensa e de boa parte da sociedade que agora protesta e exige, com razão, esclarecimentos, justiça e reparação. Será porque, naquela outra ocasião, as vítimas, reais e potenciais, foram moradores de favelas e bairros pobres? Se assim é, o problema revela ainda mais questões, relacionadas à história e à estrutura tão perversa de nossa sociedade.

As chuvas de abril de 2010 e a tentativa, pela Pref eitura do Rio, de relançar um programa de remoções forçadas em massa de favelas

Ainda no início de 2010, antes das chuvas e mesmo sem nenhum grande desastre recente devido a fenômenos climáticos na cidade, a Prefeitura do Rio anunciou, através da Secretaria Municipal de Habitação, a remoção, até o final de 2012, de mais de 12 mil famílias em 119 localidades de favelas, por estarem “localizados em área de risco”1. Já àquela altura, portanto, o poder público municipal havia adotado a sumária equação segundo a qual “moradia em área de risco=remoção”.

O anúncio não teve grande repercussão pública na época, mas alarmou moradores e movimentos das comunidades, que começaram a se preparar mais para resistir às remoções anunciadas. Entre outras coisas, foi reforçado o coletivo de técnicos voluntários que assessorava estes movimentos, do qual passei a fazer parte nessa época.

No início de abril as chuvas causaram uma catástrofe no Rio e em outras cidades do estado (no município seriam contabilizadas 68 vítimas fatais). Antes mesmo dos trabalhos de resgate terminarem e ainda com possibilidade de novos deslizamentos, o prefeito Eduardo Paes anunciou que TODOS os moradores do Morro dos Prazeres (Santa Teresa, algo entre 8 e 12 mil pessoas) e do Laboriaux (Rocinha, mais de mil moradores) seriam removidos2. O prefeito alegou supostas estimativas de custo da Geo-Rio que tornariam “inviáveis” obras de contenção que reduzissem o risco e evitassem novos acidentes com as mesmas proporções. Na verdade, nos meses seguintes, moradores das comunidades

1 http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/prefeitura-do-rio-ira-remover-119-favelas-de-areas-de-risco,3d78a21a4572b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html 2 http://oglobo.globo.com/rio/chuva-no-rio-apos-deslizamentos-paes-anuncia-remocao-de-comunidades-em-santa-teresa-na-rocinha-3027921

e órgãos como a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, solicitaram várias vezes tais cálculos ou estimativas, e em nenhum momento elas foram apresentadas.

Poucos dias depois, a Prefeitura ampliou o anúncio, e afirmou que moradores de oito comunidades seriam total ou parcialmente removidos3. Curiosamente, nenhuma das oito favelas listadas para remoção em massa fazia parte da relação das 119 citadas em janeiro. Somente após este anúncio das oito, em 11/04/2010, foi apresentado formalmente um documento técnico, o relatório da Geo-Rio de “Avaliação do Risco Geológico-geotécnico associado a Escorregamentos para as comunidades Estradinha (a montante do cemitério São João Batista), Morro dos Urubus, Morro dos Prazeres e Escondidinho, Morro do Fogueteiro, Complexo do Turano (setor Pedacinho do Céu) e Rocinha (Laboriaux)”, datado de 12/04/2010, oficiado à Defensoria Pública (que o solicitara a pedido das comunidades) em 20/04/2010.

Esse relatório, e outros que se seguiram, foram analisados e criticados exaustivamente por nosso coletivo técnico, como será exemplificado mais adiante. Mas, o importante a ressaltar é que a vontade da Prefeitura em relançar um programa de remoções em massa de favelas já existia, e procurava se basear, em grande parte, numa argumentação supostamente técnica sobre risco4. As chuvas de abril acabaram fornecendo o pretexto ideal para que essa vontade fosse apresentada de forma mais agressiva e começasse a ser posta em prática.

O executivo municipal repetiu, assim, uma mesma “estratégia de choque” observada em outras ocasiões recentes em todo o mundo, que consiste em se aproveitar do estado de trauma social diante de desastres para impor medidas e políticas que em outras circunstâncias gerariam muita polêmica, resistência, e dificilmente poderiam ser implementadas com a mesma amplitude. Uma manifestação exemplar do “capitalismo de desastres” analisado por Naomi Klein em seu livro “A Doutrina do Choque”5.

As primeiras justificativas “técnicas” da Geo-Rio p ara a remoção de moradores após as chuvas de abril de 2010

A Geo-Rio tem um respeitável acervo de estudos geológicos/geotécnicos sobre as encostas habitadas do Rio de Janeiro, inclusive em várias das comunidades relacionadas no documento de abril de 2010. Também mantém um cadastro das intervenções (obras preventivas e corretivas) realizadas sob sua direção nos seus 50 anos de existência. A primeira coisa que nos chamou atenção, na “Avaliação do Risco” datada de 12/04/2010, foi precisamente a ausência de referências detalhadas sobre o estudos anteriores, bem como sobre presença de obras de estabilização e drenagem realizadas, e seu comportamento durante os acidentes. A “Avaliação”, pelo contrário, faz considerações extremamente superficiais e avança conclusões generalizantes, o que nunca foi a metodologia, bastante comprovada pela prática, dos estudos, diagnósticos e projetos do órgão. E, conforme colocamos em nosso segundo relatório sobre o Morro dos Prazeres,

3 http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,eduardo-paes-anuncia-remocao-de-oito-favelas-no-rio-de-janeiro,536954 4 Outro argumento utilizado pela Prefeitura foi a necessidade, que seria do interesse de toda a cidade, de implantar grandes projetos urbanísticos, como os BRTs, Porto Maravilha, e os equipamentos propostos para a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Esse aspecto não será abordado nesse artigo, mas cabe ressaltar que, uma vez que a vitória da candidatura do Rio para as Olimpíadas desse ano aconteceu no final de 2009, essas duas alegações para remoções em massa de favelas adquiriram força mais ou menos simultaneamente. 5 Naomi Klein, “A Doutrina do Choque : a ascensão do capitalismo de desastres”, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008. Abordei esse aspecto em detalhes numa das várias entrevistas que concedi na época sobre as chuvas, a questão do risco e a ação da prefeitura, no caso ao Conselho Regional de Psicologia (CRP/RJ), que pode ser lida aqui: http://www.crprj.org.br/publicacoes/jornal/jornal29-mauricio-campos.pdf .

“surpreende-nos que uma conclusão de tão graves conseqüências (recomendação de remoção de um número tão grande de moradias, delimitados de forma tão pouco criteriosa) seja baseada em considerações tão sumárias”6.

Mesmo antes de tomar conhecimento de qualquer documentação técnica da prefeitura, em nosso primeiro relatório sobre o Morro dos Prazeres, emitido após vistoria presencial e por solicitação da associação de moradores, já procurávamos realizar esse aspecto básico negligenciado então pela Geo-Rio: um inventário das obras nas encostas existentes, e uma avaliação de como elas se comportaram frente às chuvas extraordinárias daquele mês7.

Com o resistência das comunidades, e por solicitação da Defensoria e outros órgãos, a Geo-Rio passou a disponibilizar estudos anteriores sobre as comunidades listadas para remoção total ou parcial. Pudemos então comparar a evidente mudança de metodologia entre estes estudos de risco e os relatórios feito às pressas após as chuvas de abril, bem como as contradições de informações entre eles.

Um dos casos que mais nos chamaram a atenção foi o do Laboriaux, ao compararmos as afirmações da “Avaliação de risco” de abril, e de outro relatório da Geo-Rio, específico sobre o Laboriaux, datado de maio de 2010, e os diagnósticos da localidade incluídos num volumoso estudo de 1992, “Definição e Hierarquização do Risco de Ocorrência de Acidentes por Deslizamentos na Favela da Rocinha”. Além da óbvia diferença em detalhes e profundidade, o estudo de 1992 admitia corretamente a redução do risco em virtude de intervenções realizadas pela prefeitura nas encostas, fato omitido ou secundarizado nos relatórios de 2010. O nível de detalhamento e precisão de diagnóstico do estudo de 1992 era tal que, no nosso relatório sobre o Laboriaux (emitido em 23/05/2010), “notamos que o “Inventário de Taludes potencialmente instáveis no interior da Favela da Rocinha” (seção IV.3 do Estudo de 1992) indica pelo menos dois taludes no Laboriaux (página 15), onde ocorreram acidentes em abril de 2010: o trecho entre a “Escolinha do Lelé” (atual Escola Municipal Abelardo Barbosa Chacrinha) e a quadra ao final da Rua Maria do Carmo, a montante desta e a jusante da Rua José Inácio; e o trecho entre os números 12 e 54 da Rua José Inácio, a montante desta (ver seção 3 a seguir). Caso obras de contenção fossem executadas nestes trechos já identificados, perdas e danos (inclusive as duas vítimas fatais) poderiam ter sido evitados nas chuvas recentes”8.

De um modo geral, as obras contratadas e fiscalizadas pela Geo-Rio antes de 2010 funcionaram muito bem ao prevenir acidentes localizados, e suas previsões e diagnósticos também foram bem acertados. Então, porque omitir esses aspectos nos relatórios apresentados após as chuvas de abril? Se acidentes aconteceram em locais e taludes onde o órgão previu necessidade de intervenções de engenharia, isso não depõe contra os técnicos da Geo-Rio. Prever a necessidade de obras é responsabilidade da

6 “RelatóriocomplementarsobreavisitatécnicarealizadanascomunidadesdosPrazereseEscondidinhoeVilaElza,

em25deAbrilde2010”, pág. 4. Todos os relatórios citados neste artigo são documentos oficiais e públicos, foram entregues, devidamente assinados por mim e por outros colegas que foram co-autores de alguns deles, aos moradores, à Geo-Rio/prefeitura, a órgãos como a Defensoria Pública e Ministério Público, e vários deles constam como peça de instrução em processos que foram ajuizados desde então em diferentes momentos. Tenho cópia digital de todos, e posso disponibilizá-los a quem quiser. 7 “RelatóriosobreavisitatécnicarealizadanascomunidadesdosPrazereseEscondidinho(SantaTeresa)em13de

Abrilde2010”. Fotos das obras existentes foram posteriormente incluídas no “RelatórioFotográficocomplementarsobreavisitatécnicarealizadanascomunidadesdosPrazereseEscondidinho(SantaTeresa)em13

deAbrilde2010”, bem como no Relatório complementar citado na nota 6. 8 “RelatóriosobreavisitatécnicarealizadanacomunidadedoLaboriaux(Rocinha)em29deAbrilde2010,e

ParecerTécnicosobreosmotivosalegadospelaPrefeituradoRiodeJaneiroparaaremoçãocompletada

comunidade”, p. 8.

Fundação, mas executar as intervenções previstas não, pois depende de alocação de recursos públicos, ou seja, de uma decisão político-administrativa do executivo municipal (e também estadual e federal, pois várias obras em encostas podem ser realizadas por órgãos do estado, como a EMOP, em programas compartilhados pela União e estado, como o PAC, e o governo federal também pode – já tendo feito isso diversas vezes, inclusive recentemente – repassar recursos ao município com esse objetivo).

Em pelo menos um caso, desse conjunto de oito comunidades marcadas para remoção em abril de 2010 (na verdade, a Geo-Rio só se envolveu em justificativas técnicas para sete delas – a oitava, Parque Columbia, foi apontada por risco de inundações, não está situada em área de encostas, falarei dela mais adiante), os supostos riscos de graves acidentes geológicos foram exagerados de forma muito grosseira, e isso justificou uma ação imediata por parte da prefeitura extremamente irregular e prejudicial aos moradores. Trata-se da comunidade Estradinha 1014, na verdade a extensão da Favela Ladeira dos Tabajaras para a vertente norte (voltada para Botafogo) do Morro São João.

Não houve nenhum acidente grave na comunidade nas chuvas de abril, os deslizamentos que aconteceram foram encosta abaixo, atingindo sepulturas do cemitério São João Batista. Os taludes que desmoronaram eram provenientes de cortes executados durante a expansão do cemitério, e sua instabilidade pouco tinha a ver com a ocupação da encosta a montante. As condições dos taludes a montante, por sua vez, não eram críticos, existindo numerosas intervenções de contenção já executadas, como poderia ser verificado por qualquer vistoria qualitativa e visual, respaldada em informações geológicas anteriores, como foi a que fizemos.

Não obstante, os relatórios da Geo-Rio (foi emitido um outro ainda em 2010, após a “Avaliação de risco”) omitem a presença das obras realizadas, e exageram e generalizam o suposto risco devido à presença de escarpas rochosas e depósitos de tálus (blocos e lascas depositados sobre o solo, provenientes de movimentações anteriores), e através de um argumento capcioso e tecnicamente falho condenaram a comunidade inteira à remoção em dois breves parágrafos:

“Para a favela a montante do Cemitério São João Baptista, as casas situadas nos limites da comunidade, junto ao trecho de escarpa ou construídas sobre o depósito de tálus, estão mais vulneráveis a acidentes associados à movimentação de blocos rochosos e ou escorregamento nos taludes de corte.

Contudo, caso haja remoção das moradias mais vulneráveis, a situação de risco é transferida para a linha de casas imediatamente a jusante e assim sucessivamente, resultando que a somente a completa remoção das moradias eliminará o risco local.”9

A isso nosso relatório assim respondeu:

“O primeiro erro dessa conclusão é não levantar a possibilidade evidente de obra de contenção, como a já citada, para proteger as casas em risco. Coloca-se imediatamente a hipótese de remoção de residências como única existente para redução do risco, o que não se justifica. Em segundo lugar, mesmo se fosse realmente necessário o reassentamento de algumas casas, não é verdade que o risco fosse transferido para as cas as a jusante , desde que, no, local das casas removidas, fosse executada obra de prevenção, como uma linha de muros de gabiões preenchidos por material proveniente de desmonte de blocos do tálus. Em terceiro lugar, o objetivo das propostas visando estabilização de encostas é a redução dos riscos de

9 “AVALIAÇÃODORISCOGEOLÓGICO-GEOTÉCNICOASSOCIADOAESCORREGAMENTOSPARAASCOMUNIDADESESTRADINHA(AMONTANTEDOCEMITÉRIOSÃOJOÃOBATISTA),MORRODOSURUBUS,MORRODOSPRAZERESEESCONDIDINHO,MORRODOFOGUETEIRO,COMPLEXODOTURANO(SETORPEDACINHODOCÉU)EROCINHA(LABORIAUX)”, Geo-Rio, abril de 2010, p. 17.

escorregamento envolvidos (ou seja, probabilidade de acidentes geotécnicos) a valores baixos e aceitáveis, não a “eliminação do risco local” em encostas habitadas. Qualquer encosta ocupada terá algum risco associado, ainda que pequeno, e a adoção de um objetivo absoluto de “eliminar riscos” levaria a uma proposta final de desabitar todas as encostas da cidade, o que é social, ética e politicamente inaceitável, e tecnicamente desnecessário.”10

E, mais adiante, nas Conclusões, acrescenta:

“Não nos parece haver quaisquer dúvidas de que os riscos associados a escorregamentos na comunidade Tabajaras (Estradinha 1014) são de baixos a moderados, que a redução dos riscos nos dois setores que merecem maior atenção são tecnicamente viáveis, e os custos associados às obras de contenção e drenagem necessárias são nitidamente inferiores aos custos do processos de remoção e “recuperação” posterior propostos pela Prefeitura. Portanto, não há qualquer fundamento técnico ou econômico nesta prop osta de remoção .

Não obstante, a Prefeitura já vem realizando aquisições diretas de residências na comunidade, muitas vezes a custo elevado, e realizando a demolição de residências que não apresentam nenhum risco iminente de acidente, seja devido às condições estruturais das edificações, seja devido às condições das encostas [...]. Tais demolições, desnecessárias, vem por outro lado ameaçando abalar as estruturas das casas vizinhas (o entulho não tem sido retirado e muitas vezes permanece sobre lajes) e levando ao acúmulo de escombros e lixo.”11

De fato, de maneira ao que tudo indica irregular, sem o devido processo de desapropriação, e com recursos de proveniência não esclarecida, a prefeitura passou a “comprar” residências na comunidade, pressionando os moradores dizendo-lhes que “a favela ia ser toda removida mesmo”, e que eles estariam sujeitos a acidentes fatais a qualquer momento, e a demolir, sem os devidos cuidados e preparativos, as casas assim adquiridas. Essas demolições, elas sim, causaram um sério problema de risco na comunidade, devido ao acúmulo de entulhos, que o que foi pormenorizado em um relatório de um colega engenheiro e sanitarista12. Com base nisso, a Defensoria Pública ajuizou ação contra a Prefeitura que finalmente conseguiu deter mais demolições e obrigar a retirada dos entulhos, o que só foi cumprido alguns ANOS depois. Voltaremos e esse caso emblemático da comunidade Estradinha, mas cabe frisar que os constrangimentos aos moradores e as irregularidades repetiram-se, em maior ou menor grau, e também de outras formas, em todas as comunidades ameaçadas.

De um ponto de vista estritamente técnico e metodológico, praticamente todos os relatórios preparados pela Geo-Rio em 2010 buscando justificar remoções de moradias em larga escala sob argumento de alto risco geológico-geotécnico, significaram uma ruptura com a metodologia de seus melhores estudos anteriores às chuvas daquele ano, bem como uma não-conformidade com o que é prescrito pelas normas técnicas brasileiras sobre o assunto, em especial pela Norma Brasileira ABNT NBR 11682, cuja atual versão entrou em vigor em 21/09/2009, e para cuja elaboração a própria Fundação Geo-Rio colaborou significativamente. Como observei em outro relatório meu (o terceiro relatório referente ao complexo de favelas em torno do Morro dos Prazeres):

“A Norma define diversos termos e prescreve procedimentos e critérios de caráter obrigatório , desde os estudos mais preliminares até a fase de projeto e execução de obras. Toda a documentação aqui considerada, ou seja, nossos relatórios e os da Geo-Rio, correspondem aos

10 “Relatório sobre a visita técnica realizada na comunidade da Ladeira dos Tabajaras (Estradinha 1014, Botafogo)

em 10 de Maio de 2010, e Parecer Técnico sobre os motivos alegados pela Prefeitura do Rio de Janeiro para a

remoção completa da comunidade”, 04/06/2010, p. 13. 11 Idem, p. 14 12 “Vistoria Técnica Realizada na Comunidade Estradinha 1014 – Ladeira dos Tabajaras”, Engenheiro Civil Sanitarista Alexandre Pessoa Dias, 03/07/2010.

Procedimentos preliminares definidos na Norma, nas seções 4 (mais especificamente item 4.1) e 5.

Na introdução da seção 4 (“Condições gerais”) a Norma estabelece que “prescreve condições específicas, para estudos e para obras em taludes individuais ” e acrescenta “tendo em vista que a área de estudo pode ser influenciada por fatores externos e mais abrangentes e/ou legais, tais condicionantes devem ser considerados e analisados, antes do estudo específico para o local ”. O item 4.1 estabelece que “os procedimentos preliminares indicados ... são de caráter obrigatório e visam ao conhecimento das características do local, à consulta a mapas e levantamentos disponíveis, à verificação de restrições legais e ambientais, à elaboração de laudo de vistoria (Anexo C), à avaliação da necessi dade de implantação de medidas emergenciais e à programação de investigações geológicas e geotécnicas” (ABNT NBR 11682:2009, página 4, todos destaques são meus). Essas prescrições são reforçadas e detalhadas em toda a seção 5 da Norma.

Ficam evidentes os seguintes pontos:

1) Estudos de áreas abrangentes, mesmo que necessários, devem ser desdobrados e detalhados até ao nível de “taludes individuais” , ou seja, setores de encostas delimitados nos quais possam ser feitas vistorias com conseqüente emissão de laudos, acompanhando no mínimo os itens que constam do modelo recomendado (anexo C da Norma);

2) As conclusões preliminares, que indiquem o caráter da investigação quantitativa posterior (investigações geológico-geotécnicas) ou a necessidade de medidas emergenciais (por exemplo, interdição provisória de habitações), devem se referir, portanto a setores de encostas o mais próximo o possível de taludes individuais , e não a áreas extensas não homogêneas;

3) Também somente ao nível de taludes individuais é possível avançar para a etapa de elaboração de projetos de estabilização/reestabilização de encostas, e somente com tais projetos (ainda que não totalmente detalhados) é possível fazer estimativa de custos e comparação entre as possíveis soluções e/ou medidas cabíveis, inclusive uma comparação de custos entre as obras necessárias, e o possível reassentamento de famílias, obedecendo ao que a lei determina no tocante a valores de indenizações, local de reassentamento, etc.”13

Os relatórios da Geo-Rio em questão, enquanto enquadrados nos Procedimentos preliminares da Norma, não seguiram suas prescrições de caráter obrigatório, embora o órgão esteja mais que aparelhado para isso, e o faça isso regularmente, inclusive possuindo para esse propósito um formulário de vistoria ainda mais detalhado que o modelo do Anexo C da Norma. Mesmo assim, com base neles, e sem proceder ao detalhamento quantitativo que seria o passo posterior esperado, adiantou propostas definitivas (remoção de moradias) com graves implicações para as comunidades. Esse abandono de metodologias, provadas na experiência técnica e inscritas em normas, contraditoriamente continuaria nos meses seguintes em escala ampliada, envolvendo muitas outras comunidades, quando foi concluída uma nova etapa do mapeamento de risco geológico-geotécnico para o Rio de Janeiro, em particular para o Maciço da Tijuca e seu entorno.

O Mapeamento de Risco da Concremat Engenharia e a a mpliação das ameaças de remoção sob argumento do risco

O mapeamento do risco (suscetibilidade a escorregamentos e outros movimentos de massa) começou a ser realizado pela Geo-Rio na década de 1980, quando se percebeu o valor dessa informação organizada para orientar monitoramentos e investimentos públicos prioritários em áreas ocupadas de encostas. Já no final da década havia sido elaborado o

13 “RelatórioeParecerTécnicocomplementarsobreascondiçõesdasencostasnascomunidadesdosPrazeres,Escondidinho,VilaElzaeTorreBranca”, 07/11/2010, p.2.

primeiro mapa de suscetibilidade, numa escala 1:25.000 para todo o município, que classificava as áreas qualitativamente como de baixo, médio ou alto risco. Na década seguinte já se dispunha de um mapeamento geral na escala 1:10.000, bem como uma metodologia para mapeamento qualitativo de risco em escala 1:2.000, realizada para algumas áreas da cidade. O estudo passou a evoluir então no sentido de um mapeamento quantitativo do risco, que eliminasse a subjetividade da metodologia anterior, e esse aprimoramento foi impulsionado pelo convênio da prefeitura do Rio com o Ministério das Cidades, dentro do programa desse último de elaboração de Planos Municipais de Redução de Riscos. O resultado foi a definição de um Índice Quantitativo de Risco (IQR), atribuído a “setores” de encostas habitadas para os quais há informações georeferenciadas, desenvolvendo-se inclusive um software (GEO RISQ) com esse objetivo14. Embora já em 2005 se dispusesse de tudo isso, foi aplicado somente a um relativamente pequeno número de localidades (45), aparentemente por insuficiência de recursos.

Após as chuvas de abril de 2010, através de um contrato “emergencial”, a Concremat Engenharia foi encarregada de produzir um novo mapeamento de risco, na escala 1:10.000 em todo o município e 1:2.000 para o Maciço da Tijuca e entorno (ou seja, o mesmo nível de detalhamento cartográfico já alcançado desde a década de 1990), e utilizando novamente a metodologia qualitativa de classificação em áreas de alto, médio e baixo risco. O mapeamento foi completado no início de 2011, assim também como o Inventário de Risco que listava mais de 20 mil residências em áreas de alto risco (áreas vermelhas nos mapeamentos) em 117 comunidades, ou um número estimado em mais de 95 mil moradores.

O mapa de suscetibilidade a escorregamentos foi elaborado a partir do acervo de dados, da metodologia (ainda que defasada) e do sistema de entrada e saída de dados (software) da Geo-Rio já existentes. Nesse caso, a Concremat limitou-se a lançar os dados e agregá-los segundo critérios estabelecidos. Segundo a empresa, os dados do acervo da Geo-Rio foram complementados por vistorias locais nas comunidades, inclusive para atualizar informações porventura ultrapassadas (foram feitos Relatórios de Campo para as comunidades vistoriadas, que incluíam o mapa com o inventário de risco para cada uma). Foram considerados 4 fatores, cada um com sua própria tabela de classes associada à classificação qualitativa (baixa, média e alta suscetibilidade): Geológico-geotécnico; Declividades; Geomorfologia; Cobertura vegetal e uso do solo. É interessante reproduzir aqui a tabela para o último fator15:

14 Ver “Cartografia de Risco Quantitativo a Escorregamentos em Setores de Assentamentos Precários na Cidade do

Rio de Janeiro - Plano Municipal de Redução de Riscos - Relatório Síntese”, Geo-Rio, 2005. E também “Experiência

do Município do Rio de Janeiro na Gestão de Risco de Deslizamentos de Encostas através da Fundação GEO RIO”,

disponível em http://www-antigo.mpmg.mp.br/portal/public/interno/arquivo/id/12845. 15 Relatório 458120-50-CD-599-RL-001 (RELATÓRIO DE GEOPROCESSAMENTO) do Programa APOIO TÉCNICO PARA MAPEAMENTO GEOLÓGICO EM ENCOSTAS, p.58.

Note-se que a “favela” é o único tipo de “uso do solo” associada a uma alta suscetibilidade a escorregamento. Isso poderia ser verdade se TODAS as áreas de todas as favelas SITUADAS EM ENCOSTAS se caracterizassem por presença de cortes mal executados e aterros não compactados, acúmulo de lixo sobre o solo, escoamento superficial permanente de águas servidas, etc. Tais situações encontram-se com frequência nas favelas, mas não se pode generalizar. Por outro lado, graças em grande parte ao trabalho da própria Geo-Rio nos seus 50 anos de existência, em várias localidades em favelas existem obras de contenção e drenagem que reduzem significativamente a suscetibilidade a movimentos de massa nas encostas. A atribuição generalizada de alta suscetibilidade a toda e qualquer área de favela conduz necessariamente, portanto, a um viés no mapeamento assim obtido que o torna pouco útil a um levantamento mais realista do risco em encostas habitadas. Isso fica bastante evidente se colocarmos lado a lado, para algumas comunidades (escolhi aquelas nas quais eu mesmo realizei vistorias e contribuí na elaboração de relatórios), o detalhamento local do mapa de suscetibilidade e o mapa representativo do Inventário de Risco (ambos incluídos como anexos nos Relatórios de Campo):

Inventário de Risco Suscetibilidade a Escorregamentos

Inventário de Risco Suscetibilidade a Escorregamentos

Como os resultados para os mapas de inventário e de suscetibilidade são bastante diferentes, podemos supor que os primeiros foram baseados quase exclusivamente nas vistorias realizadas pela Concremat. Independentemente da qualidade dessas vistorias, isso já configura mais um retrocesso em metodologia, já que as classificações de risco perdem uma base mais objetiva e menos controversa. Bem, tive a oportunidade de abordar uma das equipes de vistoria da empresa, no Tabajaras, e verifiquei que era um trabalho bastante superficial e executado em poucas horas, várias comunidades por dia para a mesma equipe. Também analisei vários Relatórios de Campo e os comparei com minhas próprias observações, e verifiquei falhas e omissões consideráveis. No Relatório para o Santa Marta, por exemplo, todas as obras de contenção e drenagem, pelo menos uma de grande porte, realizadas na parte mais alta da comunidade (o “Pico”), foram simplesmente omitidas, o que permitiu a classificação de toda área como de “alto risco”. Esse exemplo mostra, também, a desvantagem em se abandonar a metodologia quantitativa antes desenvolvida pela Geo-Rio: no cálculo do IQR, a presença de obras no setor de encosta considerado é levada em conta explicitamente16.

16 “Cartografia de Risco Quantitativo a Escorregamentos em Setores de Assentamentos Precários na Cidade do Rio

de Janeiro - Plano Municipal de Redução de Riscos - Relatório Síntese”, citado, p.10, onde é apresentada a relação IQR= PxCxFi, onde: IQR – índice quantitativo de risco; P – probabilidade de ocorrência de um escorregamento com vítimas; C – consequência, referente às perdas causadas pelo escorregamento; Fi – Fator de correção para intervenções realizadas.

Apesar de todos esses problemas, o mapeamento da Concremat, ao não classificar nenhuma comunidade inteiramente como de “alto risco” (como o fizeram os relatórios da Geo-Rio de 2010, já descritos), poderiam ser úteis, se as indicações (qualitativas) de risco alto servissem apenas como delimitação de onde deveriam ser feitas investigações mais detalhadas, para posterior elaboração de projetos e obras para atenuação do risco a limites toleráveis. Isso acabou sendo feito, de certa maneira, mas num primeiro momento os Inventários de Risco foram utilizados indiscriminadamente por funcionários da Prefeitura (a começar pelos subprefeitos) para propor remoções generalizadas em todas as localidades “vermelhas” dos mapas, procedendo inclusive a demolições sumárias e arbitrárias, como aconteceu, entre outros, no Pavão-Pavãozinho17.

Os moradores das comunidades ameaçadas por remoções logo organizaram-se para resistir, tal como outras já haviam feito em 2010, inclusive buscando apoio técnico independente, como o do nosso Coletivo. A luta foi de certa forma bem sucedida, embora um certo número de remoções injustificadas tenha acontecido até 2013 aproximadamente. A Geo-Rio reavaliou o mapeamento da Concremat e realizou estimativas de projetos e obras necessários, mas ainda previa um número substancial de remoções, como se pode ver neste levantamento, sem data, mas que parece ser de 201318:

Alguns detalhes específicos sobre certas comunidades chamam a atenção nesse levantamento. O complexo Prazeres/Escondidinho, que em 2010 havia sido condenado à remoção total pelo suposto “estudo” da Geo-Rio, não tem agora NENHUMA previsão de remoção, por exemplo. Mas, em termos gerais, o mais importante a considerar são as estimativas de custo envolvidas.

A questão dos recursos e dos custos

Os supostos “custos proibitivos” das obras de estabilização de encostas eram outro argumento apresentado pela Geo-Rio em seus relatórios de 2010, para justificar

17 “Relatório sobre a visitas técnicas realizadas nas comunidades do Cantagalo (Ipanema) e Pavão-Pavãozinho

(Copacabana) em 11 de Maio e 16 de Junho de 2011, e Parecer Técnico sobre situações de risco associadas a

encostas em diversos locais das mesmas”, p. 10, em especial fotos 13 a 15. 18 O quadro consta da apresentação, não datada, “PLANO DE GESTÃO DE RISCO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO”, do ex-presidente da Geo-Rio, Marcio Machado, disponível em http://docplayer.com.br/11728590-Plano-de-gestao-de-risco-da-cidade-do-rio-de-janeiro-fundacao-georio-marcio-machado-presidente.html

remoções em massa como a alternativa mais viável diante do risco. Não obstante, quase nunca eram apresentadas estimativas desses custos, mesmo quando solicitados por órgãos como a Defensoria e o Ministério Público. Mas em dois casos em que elaboramos nossos próprios relatórios esse argumento revelou-se totalmente sem fundamento, a partir de valores apresentados pela própria Fundação.

Para a Estradinha 2014/Tabajaras, o segundo relatório da Geo-Rio de 2010 que tratava da comunidade trouxe uma estimativa de custos de obras (fundamentalmente retaludamento das encostas) que seriam necessárias após a remoção completa da favela. Sobre isso respondemos em nosso próprio relatório:

“Ainda quanto a custos envolvidos, o Relatório da Geo-Rio de 01/2010, acrescenta uma estimativa de “recuperação da área” a ser realizada “após a remoção”, consistindo em “retaludamento [...] associado a um sistema de drenagem superficial e reflorestamento”, cujo custo seria de R$ 1.950.000,00, sem incluir a demolição e retirada de entulhos (páginas 3, 4 e 5). A partir daí, avaliamos que custo total das remoções, incluindo demolição e retirada de entulhos, bem como a indenização das residências a serem eliminadas (há informações de residências já negociadas pela Prefeitura a custos superiores a R$ 100.000,00) seria consideravelmente superior ao custo das obras de estabilização necessárias indicadas nos dois setores de risco moderado, ainda mais levando em conta que as obras de maior custo (na encosta a jusante da rua de acesso) poderiam ser realizadas sem ônus para o poder público, pelas razões já assinaladas.”19

Na verdade, posteriormente foram divulgadas informações de que, somente com indenizações, a Prefeitura teria desembolsado cerca de R$ 10,7 milhões na remoção das casas na comunidade20. Mesmo que tenha sido somente metade ou mesmo um terço desse valor, é uma soma muito superior à correspondente às poucas obras de estabilização necessárias no local, e que, aliás, não foram realizadas até hoje, apesar das promessas e compromissos do Município assumidos desde 2013.

Em outro caso, na Rua Carlos Duque no Vidigal, onde 42 casas foram marcadas para remoção em 2012, a estimativa do valor de obras que pudessem reduzir o risco a tal ponto que nenhuma residência precisasse ser removida, só foi apresentada informalmente por um engenheiro da Geo-Rio após muita pressão por parte dos moradores. Também para esse caso elaborei um relatório e nele observei:

“Segundo os moradores, técnicos da prefeitura teriam argumentado que as obras necessárias seriam “muito caras”, e que portanto a solução mais viável seria o reassentamento de todas as famílias do local. Pressionados pelos moradores, teriam ainda afirmado que o montante de recursos necessários para as obras alcançaria R$ 900 mil, o que é uma estimativa razoável

19 “Relatório sobre a visita técnica realizada na comunidade da Ladeira dos Tabajaras (Estradinha 1014, Botafogo)

em 10 de Maio de 2010, e Parecer Técnico sobre os motivos alegados pela Prefeitura do Rio de Janeiro para a

remoção completa da comunidade”, 04/06/2010, p. 14. As “razões já assinaladas” encontram-se neste outro trecho: “Em relação ao segundo setor, a jusante da rua de acesso, como já observamos os taludes de alta declividade decorrentes de cortes realizados no passado não apresentam riscos iminentes para as casas a montante. A redução do risco de novos deslizamentos para jusante, ou seja, para cima do cemitério, certamente envolverá obras de maior porte e custo, provavelmente cortinas ancoradas em combinação com retaludamento, canalização da drenagem e revestimentos em concreto projetado, bem como a organização da comunidade para um correto descarte de lixo e resíduos sólidos. Entretanto, se for confirmada a informação que os cortes neste setor foram realizados no passado pela administradora do cemitério, provavelmente sem as devidas licenças para a obra, então grande parte ou mesmo todo o custo da contenção necessária seria arcada por esta administradora, sem necessidade de recorrer a recursos públicos.” Com efeito, parece que um termo foi acertado entre a Prefeitura e a RioPax (concessionária que sucedeu a Santa Casa da Misericórdia na administração do cemitério São João Batista. 20 http://www.jb.com.br/rio/noticias/2011/08/04/prefeitura-gasta-r-107-milhoes-para-remover-moradores-de-area-segura/

levando em conta as características e as dimensões do talude em questão, embora previsão precisa só possa ser feita após realização de sondagens, topografia e detalhamento do projeto.

Indaguei aos moradores qual o valor que eles esperariam de indenização por suas casas, na hipótese de reassentamento, e todos foram unânimes em afirmar que esse não poderia ser inferior a R$ 25 mil, limite talvez aplicável para o caso das residências mais modestas, o que me pareceu bastante razoável, tendo em vista a boa construção das casas e a localização privilegiada do Vidigal. Ora, mesmo se todas as indenizações fossem feitas por esse valor mínimo, isso acarretaria um custo para a Prefeitura igual a R$ 25.000 x 42 = R$ 1.050.000, valor superior ao estimado para as obras.”21

Não tenho certeza se as estimativas apresentadas no quadro resumo do Programa de Gestão do Risco, reproduzido acima, são totalmente apropriadas e abrangem todas as necessidades de obras em todas as comunidades. Me chamou a atenção, por exemplo, a ausência, no setor 3 (Rio Comprido) de qualquer previsão de obras para o Morro do Fogueteiro, comunidade que visitei em 2010 e onde verifiquei algumas condições bastante críticas em diversos taludes22 . Entretanto, tomando-as como uma avaliação razoável, é evidente que refutam qualquer argumento de “custo proibitivo” levantado anteriormente pela Geo-Rio. O total estimado, R$ 450,4 milhões, é praticamente igual ao custo de somente uma, dentre as várias grandes obras realizada nos últimos anos pela Prefeitura na cidade, no caso o novo elevado do Joá (Contrato no 06/2014: “Obra de implantação de via paralela ao elevado das Bandeiras e aos Túneis de São Conrado e Joá e de Ciclovia seguindo a geometria do atual elevado e Túneis, interligando os bairros de São Conrado e Barra da Tijuca”, valor total contratado R$ 457.947.597,74). Elevados e túneis, recém inaugurados, cuja construção, por sinal, coube à Geo-Rio contratar e fiscalizar (a execução coube à Construtora Norberto Odebrecht).

Parece-me claro que, por quaisquer critérios que possamos utilizar, um conjunto de obras que pode dar segurança a milhares de famílias e evitar perdas humanas e materiais, é bem mais importante que a duplicação de uma via urbana utilizada preferencialmente por uma população de alta renda que se desloca em automóveis particulares. Ou seja, se fosse alegada pela Prefeitura insuficiência de recursos para realizar as obras previstas no Programa de Gestão do Risco, sempre haveria a opção de priorizá-las frente a outras (o contrato do “Novo Joá” foi assinado em 2014, após portanto o levantamento das obras necessárias nas comunidades).

Mas, enquanto o novo elevado e seus túneis foi concluído quase dentro do prazo previsto, as obras previstas no Programa de Gestão do Risco, aparentemente, nem foram iniciadas, em sua maioria. Pelo menos é o que posso concluir a partir das informações que consegui coletar, seja em minha atividade profissional de engenheiro, seja junto a comunidades que acompanhei entre 2010 e 2016. Na Estradinha 1014/Tabajaras, por exemplo, após um processo muito longo de resistência da comunidade e reuniões com a Prefeitura, envolvendo inclusive técnicos da Geo-Rio e o nosso Coletivo técnico, chegou-se, no final de 2013, a uma definição bastante detalhada das intervenções necessárias, bem como ao compromisso da Prefeitura de passar imediatamente à fase de licitação e contratação das mesmas. Passados mais de dois anos, entretanto, nada foi feito, o que levou a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, através do seu Núcleo de Terras e

21 “Relatório sobre a visita técnica realizada na Rua Carlos Duque na comunidade do Vidigal em 1° de Novembro de

2012, e Parecer Técnico sobre situações de risco associadas a encostas no local”, 26/11/2012, p.4 22 Os taludes no Fogueteiro, assim como outros em outras 9 comunidades, foram identificadas na relação fotográfica anexa ao meu “Parecer Técnico sobre a necessidade de vistoria urgente nos locais indicados nas

comunidades dos Prazeres, Escondidinho, Fogueteiro, Laboriaux, Júlio Otoni, Tabajaras (Estradinha 1014), Vila Elza,

Cotia Vacaria e Guararapes”, 02/06/2010, que foi encaminhado formalmente à Geo-Rio pela Defensoria Pública.

Habitação (NUTH), a ajuizar no início de 2016 uma Ação Civil Pública contra a Prefeitura, para obrigá-la a cumprir o prometido e realizar as obras no prazo mais breve possível.

Alegar “custos proibitivos” ou “insuficiência de recursos” para a não realização de intervenções de engenharia que podem reduzir de maneira eficaz o risco presente em encostas (ou áreas inundáveis, ou outras situações de risco) equivale a uma produção ativa e deliberada do risco por parte do poder público. As chuvas de abril 2010 na região metropolitana do Rio de Janeiro foram excepcionalmente intensas, mas não foram as únicas causas dos desastres que aconteceram. O investimento público em obras e intervenções de manutenção, que poderiam ter limitado a magnitude da tragédia, vinha sendo muito limitado nos anos anteriores. No caso dos recursos destinados à Geo-Rio, isso está bem documentado. As imagens a seguir mostram a evolução da dotação orçamentária para obras da Geo-Rio (em milhões de reais) e o número de obras em andamento por ano, entre 1995 e 2008. Ambas são reproduções de gráficos incluídos em relatório do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro23.

23 “Monitoramento do Programa de Proteção de Encostas e Áreas de Risco Geotécnico”, inspeçao realizada entre 03

e 28 de março de 2008, TCMRJ, SCE/2a Inspetoria Geral de Controle Externo.

Após um crescimento (modesto em termos de valores totais) por volta de 1996, outro ano em que ocorreram chuvas torrenciais e tragédias na cidade, os valores e o número de obras reduziram-se drasticamente e assim permaneceram por mais de uma década. É evidente que isso impactou muito negativamente a resiliência das comunidades pobres situadas em encostas, diante de um novo evento climático extremo. Mesmo assim, como já observei, as obras (na maioria das vezes bem antigas) de contenção e drenagem existentes nas favelas funcionaram muito bem nas tempestades de 2010. O que faltou, com certeza, foram mais obras, que poderiam ter sido realizadas nos anos anteriores.

Não consegui dados detalhados do mesmo tipo e fonte para o período desde 2009, mas na mesma apresentação (não datada) do “PLANO DE GESTÃO DE RISCO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO”24, são citados investimentos de R$ 207 milhões em obras no período 2009-2011, e uma previsão de R$ 112 milhões para 2012, o que significaria um aumento significativo em relação aos anos anteriores. Entretanto, não posso afirmar se tais valores incluem ou não obras da Geo-Rio contratadas nos últimos anos, que não são intervenções para mitigação do risco em encostas habitadas, como o já referido novo elevado do Joá, a Ciclovia Tim Maia, a estabilização do solo na Vila dos Atletas25 ou as obras de infra-estrutura na Vila do Pan26.

O que posso afirmar, a partir de levantamento que fiz dos contratos de obras da Geo-Rio entre abril e outubro de 2010 (após as chuvas, portanto, quando a Prefeitura do Rio recebeu consideráveis repasses de verbas federais para tratamento do risco), é que os contratos referentes a obras nas comunidades representaram menos da metade do valor total contratado27:

Quase metade do valor total contratado refere-se a obras de estabilização e drenagem em vias públicas de grande tráfego (como a Estrada Grajaú-Jacarepaguá ou a Estrada da Grota Funda), ou em vias no interior do Parque Nacional da Tijuca (inclusive contenções para permitir a reabertura do Trem do Corcovado). Sem proceder a esta distinção, não se pode ter certeza de quantos recursos são de fato alocados nas obras que deveriam ser prioritárias, ou seja, aquelas executadas no interior das favelas, onde qualquer acidente geotécnico tem um alto potencial de causar vítimas e perdas para as famílias. 24 Ver nota 18 25 Contrato no 06/2015: “ObrasdeEstabilizaçãodesolomole,aterroeimplantaçãodainfraestruturaparaáreasdeapoionaViladosAtletas–BarradaTijuca–XXIVAR–AP-4.2", valor contratado R$ 24.133.879,31, pouco menos que os R$ 29 milhões de obras de mitigação de situações de alto risco que a mesma apresentação do ex-presidente da Geo-Rio afirma terem sido realizadas, àquela altura, em 5 comunidades: Rocinha, Vidigal, Chacara do Ceu, Pedra Lisa e Guararapes. 26 Contrato no 04/2015, “Obrasdeconstruçãodeinfraestruturadaruaprojetada4dopal4632ereconstruçãodeinfraestruturadaRuaClaudioBessermanVianna,incluindoaexecuçãodenovalajedeconcretoarmada

estaqueada,sistemadedrenagempavimentação,sinalizaçãohorizontaleurbanizaçãonasproximidadesdaáreade

abrangênciadoparqueolímpico–BarraDaTijuca–XXIVAR–AP-4.2.”, valor contratado R$ 61.907.901,93. 27 A tabela foi elaborada a partir de pesquisa minha nas publicações do Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro no period considerado.

Sem dúvida, desde 2010, importantes investimentos e medidas visando a segurança das comunidades localizadas em encostas foram realizados. Por exemplo, a atualização e aperfeiçoamento do Sistema Alerta Rio (criado após as chuvas catastróficas de 1996), com instalação de novos radares, pluviômetros e sirenes, bem como o treinamento de agentes comunitários e da comunidade em geral. Mas, a alocação prioritária de recursos para intervenções de engenharia, naquelas obras com maior potencial de reduzir riscos e com isso proteger e salvar vidas, ainda não parece que estamos nesse caminho, muito pelo contrário.

O uso ilegítimo dos argumentos de risco e o descaso com o verdadeiro tratamento de risco em outras situações

As irregularidades e problemas no exagero sobre situações de risco, por um lado, e no descaso com o tratamento de verdadeiras condições de risco, por outro, infelizmente não são exclusivos de técnicos e administradores responsáveis pela área de encostas habitadas. E certamente não estamos tratando de uma questão restrita à Geo-Rio.

No âmbito do município do Rio, tive também a experiência de lidar com outros casos, onde a situação de risco dizia respeito a áreas inundáveis ou às características e ao estado das edificações nas favelas.

Entre as comunidades listadas para remoção completa pela Prefeitura em abril de 2010, uma delas, como já disse, o Parque Columbia, encontra-se em área inundável, às margens do Rio Acari, na Zona Norte da cidade. A Prefeitura, inicialmente, não apresentou quaisquer estudo ou documentação que justificasse a remoção generalizada de todas as casas da área (que incluía também outra favela, o Parque Unidos de Acari, também situada à margem direita do Rio Acari). Somente em setembro de 2010, quando um certo número de casas já havia sido demolido, e as demolições tiveram que cessar graças a uma Ação Civil Pública movida pela Defensoria contra a Prefeitura (que obteve decisão favorável em junho), foram apresentados os primeiros relatórios, embora estes fossem datados de abril ou data anterior28. Em apenas duas páginas , o relatório principal apresentado generalizava diagnósticos que deveriam ser mais detalhados, mas não propunha uma remoção generalizada, apenas apontava para a necessidade de intervenções corretivas e um zoneamento que impedisse “construções onde as enchentes não podem ser eliminadas”.

O relatório da SUB-RIO ÁGUAS citava a existência de um estudo da COPPETEC sobre a bacia do Rio Acari, mas não o anexou na documentação apresentada. Em nosso primeiro relatório para o caso29 detalhamos uma vistoria por trechos, onde indicamos inclusive quais casas estavam de fato em situação crítica e deveriam ser interditadas e demolidas de forma controlada, até que uma solução para toda a área fosse elaborada. Note-se que esse deveria ter sido o procedimento padrão dos técnicos da Prefeitura, ou seja, elaborar boletins de ocorrência individualizados para cada imóvel e interditá-los também caso a caso. Porém isso não foi feito, e pelo menos alguns meses após a emissão de nosso relatório, algumas casas em situação crítica ainda estavam habitadas, enquanto outras haviam sido demolidas sem razão.

28 Principalmente o “Relatório Técnico 5-3-D-0300”, da Subsecretaria de Gestão de Bacias Hidrográficas da Rio-Águas, datado de 12/04/2010. 29 “Relatório da vistoria técnica realizada no Parque Colúmbia (Pavuna) e Parecer Técnico sobre a documentação

apresentada pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro”, 11/10/2010. As vistorias que permitiram a emissão desse relatório foram feitas em junho e julho.

Também apontamos quais poderiam ser essas possíveis soluções, mostrando inclusive a existência, em áreas bem próximas, de terrenos vazios que em princípio poderiam ser utilizados para reassentamento das famílias (a alternativa que a Prefeitura propunha eram conjuntos do Programa Minha Casa Minha Vida em locais bem distantes, na Zona Oeste da cidade). Pouco depois de terminarmos nosso primeiro relatório, tivemos acesso ao estudo da COPPETEC30, um volumoso relatório com o resultado de estudos de avaliação de um projeto de obras de canalização do Rio Acari, desde a travessia da Estrada do Camboatá, em Deodoro, até sua foz no Rio Pavuna. Este projeto foi apresentado em 1991 (ou seja, há vinte e cinco anos atrás) pela empresa Sondotécnica à Prefeitura do Rio, mas nunca foi realizado. A COPPETEC concluiu que, com algumas modificações, o projeto continuava válido e resolveria em boa parte o problema de inundações na área. Mas a Prefeitura continuou sem implementá-lo. Ou seja, estamos, aqui, diante novamente de uma situação onde o risco foi mantido/produzido ativamente pela omissão do poder público em encaminhar soluções tecnicamente definidas. E, outra vez, se forem (como foram) apresentados argumentos de escassez de recursos, lembramos que obra com o mesmo objetivo e valor muito mais elevado (mais de R$ 350 milhões) já foi realizada em boa parte: as intervenções contra inundações em torno da Praça da Bandeira e Maracanã (primeira fase inaugurada no início de 2014).

É importante reproduzir o seguinte trecho de nosso relatório complementar onde analisamos o estudo da COPPETEC:

“O Relatório da Coppetec reconhece a situação mais crítica do Parque Colúmbia propriamente dito (assentamentos ao longo da Rua Idelfonso Falcão), nos seguintes termos: “A região do Parque Colúmbia ... está implantada em uma área de várzea, em cotas muito baixas, sujeitas a fortes alagamentos, em uma região de influência da maré ... Essa é uma área que, tipicamente, deveria ter sido preservada como planície de inundação do rio” (página 42).

Entretanto, em suas conclusões, o relatório é cauteloso mesmo em relação à proposta genérica de “remoção” do projeto original de 1991, introduzindo alternativas:

“Algumas áreas, especialmente nas partes mais baixas da bacia, em áreas marginais, apresentam cotas de implantação da urbanização muito baixas. Este é o caso, por exemplo, da região de Parque Colúmbia. Nesses casos, talvez seja mais interessante e efetivo planejar a realocação destas famílias, talvez na própria área, verticalizando a ocupação l ocal e ganhando com novas áreas marginais para aumentar a capacidade de armazenagem em calha” (página 107, destaque nosso).

É preciso destacar também que o estudo não reduz todo o problema a somente controle de cheias, chamando a atenção para “soluções integradas de engenharia civil, hidráulica, arquitetura e planejamento urbano”, ressaltando a necessidade do “detalhamento das concepções sugeridas em âmbito multidisciplinar, congregando os vários aspectos do planejamento urbano”(página 108). É exatamente essa visão cautelosa, multidisciplinar e abrangente, levando em conta os interesses e expectativas das populações afetadas, que não temos visto nas ações da Prefeitura do Rio conduzidas supostamente para tratar das “áreas de risco” da cidade, não só no Parque Unidos de Acari e Parque Colúmbia, mas em várias outras comunidades do Rio de Janeiro.”31

Neste caso das comunidades de Acari também foram utilizado, como justificativa para necessidade de remoções em massa, um suposto argumento técnico que estava se disseminando para outras favelas também, acerca das características construtivas das

30 “Relatório Final Consolidado” dos “Estudos Integrados para Avaliação de Projeto de Intervenção na Calha do Rio

Acari – RJ”, maio de 2007, de autoria da Fundação Coppetec da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenados pelo Prof. Marcelo Gomes Miguez. 31 “Parecer complementar sobre a documentação apresentada pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, relativa

à região do Parque Columbia (Pavuna)”, 15/12/2010, p. 2-3.

residências. Um exemplo é o seguinte boletim de ocorrência “genérico” emitido também em 2010 para a favela Metrô-Mangueira, que acabou por ser em grande medida removida e demolida (esse boletim foi emitido por técnico da Subsecretaria de Defesa Civil, mas houve outros, com praticamente a mesma redação na parte que se refere às construções, emitidos por outros órgãos como a Secretaria Municipal de Habitação):

Um dos documentos apresentados pela Prefeitura para o Parque Unidos de Acari (mais especificamente um trecho da localidade conhecida como Terra Nostra) foi o Boletim de Ocorrência no 4358/10 de 08/04/2010, que, quase com as mesmas palavras do boletim reproduzido acima, afirmava não se poder garantir a estabilidade de edificações que tenham sido “construídas sem o embasamento técnico de profissional habilitado ... fora das normas técnicas vigentes, embasadas apenas em métodos empíricos construtivos, sem dados técnicos dos elementos estruturais implementados, das fundações, entre outros”. Reproduzo a seguir as considerações de nosso relatório sobre tal afirmação, que se aplicam aos demais “diagnósticos” semelhantes:

“Tratam-se, é claro, de observações que valeriam para quaisquer comunidades de baixa renda no Brasil. Ora, a histórica situação social de nosso país, que mantém em estado de profunda pobreza uma enorme parcela de nossos concidadãos, obriga a maioria da população a construir suas habitações sem poder recorrer aos serviços profissionais de técnicos particulares, e não contam com nenhum programa ou apoio técnico gratuito e acessível que deveria ser proporcionado pelo Poder Público. Não obstante, a freqüência de acidentes graves devido às construções executadas dessa maneira é notadamente baixa, e isso se deve principalmente à transmissão de conhecimentos e técnicas construtivas dentro das comunidades. Normalmente, nas populações de baixa renda, casas são construídas tomando-se como “modelo” e padrão de dimensionamento

dos elementos estruturais (fundações, colunas, vigas, lajes), o que já foi observado e experimentado com sucesso em construções reconhecidamente sólidas e de maiores proporções. Resulta daí, com certeza, desperdício de materiais e trabalho devido ao super-dimensionamento, mas raramente edificações frágeis.

Técnicos chamados ou convidados a averiguar condições de risco em edificações em comunidades pobres devem ter isso em mente antes de tudo, estejam ou não no exercício de função pública. Se fosse legítimo condenar por “risco latente de desabamento” ou “risco potencial”, construções realizadas sem projeto e acompanhamento técnico, seria igualmente justo considerar seguras, sem necessidade de procedimento pericial, quaisquer estruturas que tenham seguido teoricamente as normas de projeto e construção, o que obviamente não é o caso, hajam vistos acidentes graves registrados em edificações assim construídas (caso Palace II, entre vários outros). Numa averiguação pericial, são obrigatórios procedimentos mínimos que implicam, desde as fases mais preliminares (visuais e predominantemente qualitativas), uma consideração em detalhe de cada estrutura, tenha ela sido construída de maneira formal ou não.”

Não obstante a falha e mesmo o abuso evidente nesse tipo de vistoria e laudo técnico genéricos, eles serviram para a emissão de um enorme número de autos de interdição, também genéricos, pela Defesa Civil, nos quais sequer eram indicados os motivos da interdição das casas (ver exemplo abaixo). Tais documentos de interdição eram o ponto de partida para um processo, na maioria das vezes bastante desrespeitoso, de “convencimento” dos moradores, que eram pressionados a aceitar a “oferta” da Prefeitura para serem reassentados em conjuntos do Minha Casa Minha Vida, em geral muito distantes de onde moravam, o que significava grandes dificuldades para as famílias, desde a manutenção dos empregos (formais ou informais) até conseguir novas vagas para os filhos em escolas, sem contar terem que abandonar, na maior parte das vezes sem necessidade, casas em que haviam investido anos de trabalho em melhorias. Essa pressão era exercida principalmente por assistentes sociais, e no Parque Columbia descobrimos que elas eram contratadas e pagas... pela Concremat Engenharia.

Por outro lado, ao mesmo tempo que assim procedia, a Prefeitura negligenciava aglomerados de construções, essas sim, realmente precárias, barracos de madeira ou material aproveitável, combinadas com instalações elétricas improvisadas e disposição não apropriada de botijões de gás, que configuram um risco potencial de incêndios devastadores. Esse era o caso, por exemplo, da localidade da Rocinha conhecida como Macega, que vistoriei no final de 2010 a pedido dos moradores, já que suas casas estavam oficialmente interditadas pela Prefeitura desde as chuvas de abril, mas nenhuma alternativa havia sido apresentada às famílias (cerca de 200), a maioria das quais queria deixar o local, enquanto o município esforçava-se para tentar remover, sem razão, todas as casas do Laboriaux, na mesma Rocinha32.

Conclusões: interesses, ideologia, rigor e visão pú blica na questão do gerenciamento do risco

No final de maio, o CREA/RJ divulgou o relatório final da Comissão Especial criada para averiguar possíveis causas e irregularidades que levaram ao desabamento parcial da Ciclovia Tim Maia. Os resultados foram amplamente divulgados pela imprensa e apontam falhas graves, desde a licitação aos projetos e à execução da obra, concluindo pela responsabilidade, ainda não que única, da Geo-Rio. Num trecho o relatório afirma: “A Geo-Rio é uma empresa bastante considerada em nosso meio técnico, com inúmeros trabalhos de engenharia geotécnica. É possível afirmar que muitas vidas foram salvas por conta de seus trabalhos de contenção de encostas (...). Apesar disso, ela não possui expertise em projeto e construção de obras de arte (jargão da engenharia para construções que exigem maior especialização) de forma geral e, em especial, em região marinha”33.

De fato, nos últimos anos a Prefeitura do Rio tem indicado a Geo-Rio para contratação e fiscalização de obras, em geral de grande porte e valor, que fogem de seu perfil tradicional especializado em intervenções geotécnicas em encostas, principalmente em encostas habitadas (algumas foram citadas mais acima). E, não coincidentemente, isso acontece ao mesmo tempo em que a própria Geo-Rio, como acredito que demonstrei suficientemente no presente artigo, parece menosprezar seu próprio patrimônio técnico e em obras realizadas, ao subestimar o bom funcionamento das intervenções já realizadas, principalmente em favelas, e superestimar os riscos existentes em encostas habitadas, conduzindo a uma conclusão forçada e ilegítima de que a remoção em massa seria a solução mais correta e viável.

Será coincidência que isso aconteça exatamente numa época de amplas mudanças urbanísticas na cidade, em que grandes projetos, alavancados em grande parte pela realização dos mega-eventos esportivos no Rio, aprofundaram a segregação sócio-espacial da metrópole, “revitalizando” áreas com deslocamentos massivos de moradores pobres para áreas mais afastadas dos centros “nobres”?34 Como mostrei, a utilização do

32 No relatório que preparei para a Macega, “Relatório sobre a visita técnica realizada para verificar as condições

das encostas e das residências situadas na localidade da Macega (Rocinha) em 3 de Dezembro de 2010”, apresentei como conclusões que, embora “a estabilização local dos taludes não parece ser muito problemática, a não em ser em alguns trechos [...] e pode ser executada com pequenas intervenções de drenagem ou impermeabilização local, desmonte de blocos com possível construção de novos muros de impacto em gabiões, retirada de lixo e canalização dos esgotos, etc. [...] a precariedade e características das construções, que gera situações de risco e vulnerabilidade independentes da situação dos taludes, torna mais recomendável o reassentamento das famílias (cerca de 200) de toda a área constituída predominantemente por barracos de madeira, plástico e material reaproveitado” (p.7). 33 http://extra.globo.com/noticias/rio/crea-rj-geo-rio-nao-tinha-experiencia-para-obra-de-ciclovia-19394210.html#ixzz4ApQOW7KZ 34 https://issuu.com/morula/docs/smh2016_issuu

discurso (enviesado) do risco como uma das justificativas mais comuns para essa remoção em massa não foi algo exclusivo dos relatórios da Geo-Rio...

O site oficial da Prefeitura do Rio traz, na breve página dedicada à Geo-Rio, um link para um documento que traça uma também breve história do órgão, e nele podemos ler:

“Tornava-se realidade, pela primeira vez na história da Cidade do Rio de Janeiro, a implantação de uma política racional de ocupação das encostas a qual, capitaneada pelo Instituto de Geotécnica, estabelecia os critérios técnicos na definição das áreas sujeitas a risco de deslizamento.

A inquestionável necessidade desta nova política de ocupação foi ratificada cerca de nove meses após a criação do Instituto de Geotécnica. Em fevereiro de 1967, quando a Cidade já começava a notar os primeiros frutos do novíssimo órgão, ou seja, a execução de 39 obras de contenção, com o desenvolvimento de metodologias pioneiras para a execução das mesmas em locais de difícil acesso e grande altitude, novas chuvas torrenciais caíram sobre a Cidade. Naquela tragédia de 1967, cerca de 100 pessoas perderam a vida em decorrência de acidentes geológicos nas encostas, casas e ruas foram destruídas e nova situação de calamidade se instalou em diversos bairros. Não obstante as novas dificuldades imputadas por aquele trágico evento chuvoso do mês de fevereiro, ao final do ano de 1967, o Instituto de Geotécnica já havia concluído mais 50 obras de contenção, aumentado significativamente o nível de segurança das encostas cariocas.”35

Racionalizar, fiscalizar e viabilizar a ocupação das encostas, trabalhando permanentemente para redução dos riscos a isso associados, essa missão esteve bem clara desde a criação do órgão. A ocupação humana das encostas no Rio era um dado, assim como era um dado que a população que as ocupava era majoritariamente pobre, cabendo portanto principalmente ao poder público prover as condições de infraestrutura e orientação técnica para a segurança das pessoas que moravam nesses locais.

Mas parece que as perspectivas e convicções de muitos técnicos da Geo-Rio mudaram ao longo do tempo. Lembro-me bem da primeira reunião de que participei com técnicos da Fundação logo após as chuvas de abril de 2010, da qual participei a pedido dos moradores do Morro dos Prazeres que estavam presentes, juntamente com a Defensoria Pública. Em determinada altura, ante minha insistência em lembrar o óbvio, que obras de engenharia poderiam ser realizadas para reduzir o risco a níveis toleráveis e assim permitir a permanência da grande maioria dos moradores da comunidade, o ex-presidente da Geo-Rio, Márcio Machado, apoiado em suas afirmações pelos demais técnicos presentes, respondeu-me mais ou menos assim: “Maurício, nós como engenheiros sabemos muito bem que isso é possível; mas tem um custo, e deveria morar nas encostas quem tem condições de arcar com tais custos. Só no Brasil acontece isso de pobres morarem nas encostas, na maior parte do mundo quem mora nesses locais é a população de maior renda”36.

Embora essa possa ser a opinião (ou melhor, a posição ideológica) de um técnico, um funcionário público com a responsabilidade e a atribuição que têm os responsáveis pela Geo-Rio (ou qualquer outro órgão técnico do Estado), jamais deveria deixar que ela orientasse sua atuação como especialista investido numa função pública. Além do que ela desconsidera a verdadeira história da ocupação das áreas “de risco” pelas populações pobres nas cidades.

Aos pobres do Rio de Janeiro, quase sempre descendentes das etnias expropriadas e espoliadas na sociedade colonial e imperial (indígenas e africanos), tendo o acesso à

35 http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/141481/DLFE-3404.doc/HistoriadaGeoRio.doc 36 A reunião não foi gravada e é claro que não tenho como provar quais foram as palavras literalmente, mas estavam presentes várias testemunhas que podem comprovar qual foi seu teor.

terra (rural ou urbana) impedido de diversas formas, restou buscar moradia em áreas de difícil acesso e, na época, desvalorizadas (pântanos, morros, grotas, etc), porém próximas às oportunidades de trabalho. A situação perdurou por décadas na República devido à inexistência de qualquer política habitacional voltadas para os setores proletarizados e marginalizados. Contudo, uma vez estabelecidas nesses locais, as comunidades construíram não só casas e vias de acesso, mas relações sólidas de vizinhança, convivência, cultura coletiva, etc. E, é importante frisar, muitas vezes os assentamentos informais (ou “aglomerados subnormais”, na odiosa terminologia adotada oficialmente pelo IBGE) são anteriores, numa determinada área, aos bairros formais (assim acontece, sem exceção, na Zona Sul do Rio, por exemplo).

A sociedade tem uma dívida histórica com essas populações, cuja mão de obra (barata e superexplorada) foi fundamental para a construção da cidade. Cabe, sim, ao poder público, respeitando sempre a vontade das comunidades em permanecer (ou não) em seus locais de origem, prover as condições de infra-estrutura e serviços públicos que lhes permitam uma vida segura e digna. Mas, para alguns, hoje, quando a engenharia já tornou possível a ocupação permanente em encostas e outras áreas antes “perigosas”, a presença de pobres em tais locais hoje valorizados, soa como um absurdo, ou um contra-senso às onipotentes “leis do mercado”. Mas se pensarmos bem, seria a coroação perversa de uma longa história de injustiças, se essas comunidades fossem removidas para dar lugar a uma população mais “nobre”.

Não acredito em neutralidade ideológica dos especialistas técnicos, e penso que todos devem, nos espaços apropriados, batalhar por suas crenças e pontos de vista. Eu mesmo faço isso cotidiana e continuamente em minha vida. Entretanto, também creio que deve haver um mínimo espaço de consenso em torno do que poderíamos chamar “ética profissional”.

Por um lado, há direitos coletivos, que foram inscritos no ordenamento jurídico-político através de uma longa luta dos movimentos sociais no decorrer da história, que devem ser respeitados por todos, em primeiro lugar por pessoas com funções públicas. E, por outro lado, a engenharia e a ciência também tem seus métodos, suas regras e seus critérios de previsão, plausibilidade, rigor e comprovação, também construídos arduamente através da história por gerações de tecnólogos e pesquisadores, que devem ser respeitados e seguidos por qualquer um que faça parte dessa comunidade de “especialistas”, que, hoje em dia, muitas vezes têm um poder desmedido sobre os destino das pessoas.

Desde 2010, o Rio de Janeiro não voltou a viver um evento climático extremo como o que causou as tragédias daquele ano. Mas é só uma questão de tempo. E as comprovadas mudanças climáticas do planeta têm abreviado cada vez mais esse “tempo”, ou, em linguagem técnica, reduzido substancialmente o tempo de recorrência de eventos extremos. Não sabemos quanto tempo exatamente teremos para nos preparar, mas nos prepararemos melhor quanto mais rapidamente identifiquemos os erros, os vícios e os objetivos ilegítimos na experiência mais recente sobre essa questão do risco. E, em vista do que foi analisado nesse artigo sobre essa experiência recente, nossa preocupação não deve ser somente evitar tragédias, mas também evitar que, quaisquer tragédias que porventura ocorram, sejam mais uma vez utilizadas para por em funcionamento a cruel maquinaria das remoções forçadas.

Bibliografia

Klein, Naomi; “A Doutrina do Choque : a ascensão do capitalismo de desastres”, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008.

Associação Brasileira de Normas Técnicas; Norma Técnica ABNT NBR 11682:2009, “Estabilidade de encostas”, ABNT, 2009.

Fundação Instituto de Geotécnica – Geo-Rio; “Cartografia de Risco Quantitativo a Escorregamentos em Setores de Assentamentos Precários na Cidade do Rio de Janeiro - Plano Municipal de Redução de Riscos - Relatório Síntese”, Prefeitura do Rio de Janeiro, 2005.

Faulhaber, Lucas; Azevedo, Lena; “SMH 2016: REMOÇÕES NO RJ OLÍMPICO”, Mórula Editorial, Rio de Janeiro, 2015.