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112 SEMELHANÇA E COSMOPOLÍTICA: O FUTURO IMAGINADO DE NOSTALGIA DA LUZ Isabel Stein 1 Resumo: O documentário Nostalgia da Luz (2010), de Patricio Guzman, trabalha a memória da ditadura chilena através de uma narrativa que inclui tanto o deserto do Atacama como o espaço astronômico como agentes, ou atores – para utilizar o termo de Bruno Latour – na construção de um sentido histórico-político. O objetivo deste artigo é sugerir que a estratégia narrativa do filme pode ser inscrita dentro dos termos que Walter Benjamin propõe em seu ensaio A Doutrina das Semelhanças. Ao trabalhar em uma chave analógica e reflexiva entre Terra e espaço cósmico, o documentário produz um campo imagético que se constitui através da semelhança. É através deste movimento que o filme propõe alternativas para o futuro, nas bases de uma cosmopolítica, como trabalhada por Isabelle Stengers. A concepção horizontal das relações do humano com o mundo – orgânico e não orgânico – e a ideia de continuidade atravessam a obra de diversos antropólogos, como, por exemplo, Eduardo Viveiros de Castro. Poderiam as bases antropológicas dessa cosmopolítica ser pensadas através do prisma da semelhança? Nostalgia da Luz produz um recorte em que tal proposição se faz possível. Palavras-chave: Semelhança; cosmopolítica; analogia; mimese; memória. Contato: [email protected] 1. Introdução Um comentário saudoso sobre a infância em que o céu, as estrelas e alguns objetos cotidianos presentificam a inocência, a liberdade. É assim que tem início o filme Nostalgia da Luz (2010). No documentário, Patricio Guzmán, chileno que manteve através da obra cinematográfica um compromisso inabalável com o exercício da cidadania, remonta a memória da ditadura militar que assombrou seu país por intermináveis dezessete anos. Tal reconstituição se dá a partir da narrativa de um dos muitos legados mórbidos de Augusto Pinochet e seus apoiadores: o desaparecimento de presos políticos. O filme apresenta relatos de diversas pessoas que sofreram, e ainda sofrem, de alguma forma, com a perda – de pessoas amadas, de uma vida compartilhada, de um futuro – gerada pelo Estado chileno durante quase duas décadas. 1 Mestranda do Programa de Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com a seguinte pesquisa em desenvolvimento: Foto-ícones: da encarnação do páthos à performance social, sob orientação do Professor Doutor Maurício Lissovsky. Stein, Isabel. 2017. “Semelhança e cosmopolítica: o futuro imaginado de Nostalgia da Luz”. In Atas do VII Encontro Anual da AIM, editado por Ana Balona de Oliveira, Catarina Maia e Madalena Oliveira, 112-121. Lisboa: AIM. ISBN 978-989-98215-8-3

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SEMELHANÇA E COSMOPOLÍTICA: O FUTURO IMAGINADO DE

NOSTALGIA DA LUZ

Isabel Stein1

Resumo: O documentário Nostalgia da Luz (2010), de Patricio Guzman, trabalha a memória da ditadura chilena através de uma narrativa que inclui tanto o deserto do Atacama como o espaço astronômico como agentes, ou atores – para utilizar o termo de Bruno Latour – na construção de um sentido histórico-político. O objetivo deste artigo é sugerir que a estratégia narrativa do filme pode ser inscrita dentro dos termos que Walter Benjamin propõe em seu ensaio A Doutrina das Semelhanças. Ao trabalhar em uma chave analógica e reflexiva entre Terra e espaço cósmico, o documentário produz um campo imagético que se constitui através da semelhança. É através deste movimento que o filme propõe alternativas para o futuro, nas bases de uma cosmopolítica, como trabalhada por Isabelle Stengers. A concepção horizontal das relações do humano com o mundo – orgânico e não orgânico – e a ideia de continuidade atravessam a obra de diversos antropólogos, como, por exemplo, Eduardo Viveiros de Castro. Poderiam as bases antropológicas dessa cosmopolítica ser pensadas através do prisma da semelhança? Nostalgia da Luz produz um recorte em que tal proposição se faz possível. Palavras-chave: Semelhança; cosmopolítica; analogia; mimese; memória. Contato: [email protected]

1. Introdução

Um comentário saudoso sobre a infância em que o céu, as estrelas e alguns

objetos cotidianos presentificam a inocência, a liberdade. É assim que tem início o

filme Nostalgia da Luz (2010). No documentário, Patricio Guzmán, chileno que

manteve através da obra cinematográfica um compromisso inabalável com o exercício

da cidadania, remonta a memória da ditadura militar que assombrou seu país por

intermináveis dezessete anos. Tal reconstituição se dá a partir da narrativa de um dos

muitos legados mórbidos de Augusto Pinochet e seus apoiadores: o desaparecimento

de presos políticos. O filme apresenta relatos de diversas pessoas que sofreram, e

ainda sofrem, de alguma forma, com a perda – de pessoas amadas, de uma vida

compartilhada, de um futuro – gerada pelo Estado chileno durante quase duas

décadas.

1 Mestranda do Programa de Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com a

seguinte pesquisa em desenvolvimento: Foto-ícones: da encarnação do páthos à performance social, sob orientação do Professor Doutor Maurício Lissovsky. Stein, Isabel. 2017. “Semelhança e cosmopolítica: o futuro imaginado de Nostalgia da Luz”. In Atas do

VII Encontro Anual da AIM, editado por Ana Balona de Oliveira, Catarina Maia e Madalena Oliveira, 112-121. Lisboa: AIM. ISBN 978-989-98215-8-3

Atas do VII Encontro Anual da AIM

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A dramática geografia chilena, que esculpe no globo terrestre maravilhas

insulares, vulcões, geleiras, cordilheira e deserto, serviu como ambiente e esconderijo

perfeitos, nas areias deste último, tanto para um campo de concentração (em

isolamento ideal, com a própria natureza inóspita servindo como ameaça), quanto

para os corpos assassinados pelo Estado. Figura pequena de dimensões irregulares e

extremas, o Chile parece potencializar os efeitos da chave argumentativa de Guzmán:

a analogia (que em grego significa “proporção”).

A localização de Chacabuco, o maior campo de concentração da ditadura de

Pinochet, fica próxima aos atuais observatórios celestes que povoam o deserto do

Atacama, onde astrônomos das mais diferentes nacionalidades trabalham. As ruínas

que, hoje, aguardam silenciosamente o tempo em que estarão completamente

misturadas à terra e à areia, foram outrora casas de mineradores – trabalhadores semi-

escravos. À estrutura que carregava os traços conflituosos da história colonial chilena,

o governo militar precisou acrescentar, somente, a cerca de arame farpado e alguns

outros dispositivos de controle.

Logo no começo do documentário, o esqueleto argumentativo do discurso

fílmico é estabelecido. Através dos relatos de um arqueólogo e de um astrônomo, dois

planos de um mesmo corpo são desvelados. O deserto é aberto em infinitas camadas

em direção ao centro da Terra, deixando emergir tecidos heterocrônicos que apontam

tanto para os crimes que envolveram índios e mineradores no século XIX, quanto para

o homicídio institucionalizado da história mais recente. Na direção diametralmente

oposta dessa perpendicular que corta os dois planos do Atacama, a atmosfera terrestre

também é estratificada até tornar-se vácuo. Astronomia de ossos e arqueologia de

estrelas.

2. Ânima e filogênese

Em Nostalgia da Luz, o princípio da co-presença traz horizontalidade às

relações entre objetos, entre os espaços. Nunca figura representativa, o deserto é

analogia, encarnação do próprio solipsismo dos desaparecidos políticos - ou do

solipsismo de seus parentes, que procuram incondicionalmente os restos materiais dos

mortos, ainda hoje. O documentário acompanha algumas pessoas que ainda depositam

alguma esperança na busca dos corpos sem vida daqueles seres que amam, e

entendem esse encontro póstumo como uma passagem necessária do luto para que se

possa imaginar o futuro.

Isabel Stein

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A história chilena está inscrita indexalmente no deserto. Encarnado, Atacama, o

gigante anímico – como sugere seu nome, derivado do quéchua “tacama”, pato negro

– é Ser, ou Ator, como definiria Bruno Latour. Um ser inseparável de seus predicados,

em que a própria aparência denuncia tal acoplamento.

Essa concepção do deserto remonta uma discussão imensuravelmente extensa

da antropologia: a vida dos corpos, ou dos objetos (ânima). Toda a metafísica

ocidental trabalhou no sentido de construir uma ideia de alma e corpo – ainda que não

dualista, mas unicista, como a própria ideia de ânima. Mas as questões colocadas pela

antropologia indicam outras propostas. Talvez essa separação seja somente mais um

traço da tentativa racional, explicativa, sempre presente na história do pensamento

ocidental. Michael Taussig enuncia o problema ao deparar-se com uma questão a

respeito da alteridade, enquanto estuda figuras de madeira de uma população indígena

panamenha – trabalho a que voltaremos mais à frente:

“Estas questões estão entrelaçadas no fato desconcertante de que existe uma separação fundamental entre a forma externa talhada das figuras de cura e sua substância interna. Como a etnografia afirma enfaticamente, por ser um artigo de fé dos Cuna, é o espírito da madeira, não sua forma exterior, que determina a eficácia das figuras. […] Por que então se importar em talhar qualquer forma, se o poder mágico está investido no próprio espírito da madeira? E ainda, como nossa confusão leva a mais confusão, por que a incorporação é em si necessária?” (Taussig 1993, 8)

Ainda dentro das questões corporais e da aparência, um outro campo

argumentativo pode ser identificado. No documentário, a filogênese terrestre assume

posição central no discurso. Sua origem cósmica aparece como depósito de potências.

O filme inventaria um imaginário que é composto por estrelas-ossos, pedaços de

fêmur orbitais, falanges cintilantes; e pela vastidão infinita do cosmos, que faz sumir

os corpos, os pedaços explodidos nos confins do tempo pelo Big Bang, os pedaços

explodidos pelo DINA (Dirección de Inteligencia Nacional), a policia política chilena

que mais tarde passou a chamar-se CNI (Central Nacional de Informaciones).

Em algum momento do filme, é relembrado um fato científico curioso, que

remonta, novamente, à questão da filogênese: o cálcio presente nos ossos animais já

esteve, um dia, no espaço astronômico, como molécula de substância mineral. Nesse

sentido, uma passagem do documentário materializa visualmente esta afirmação: um

plano esteticamente impressionante mostra a Lua pela metade, formando um semi-

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círculo na tela. Os planos subsequentes mostram o solo lunar em detalhe, de modo

que é possível perceber intensamente a textura da rocha. A seguir, a câmera afasta-se

deste material para mostrá-lo de longe, formando novamente um semi-círculo, em

ângulo idêntico ao anterior, no início do trecho (Imagem 1). Então, ela faz um

travelling para baixo, mostrando o que agora temos a certeza de ser um crânio

humano. O movimento deixa evidente, também, que alguns dos planos de detalhe

eram, na verdade, do osso, e não do solo da Lua (Imagem 2).

Imagem 1 - Nostalgia da Luz (2010)

Imagem 2 - Nostalgia da Luz (2010)

Esta pequena passagem do filme sugere pelo menos duas marcas que confirmam

a defesa de Walter Benjamin (retomando uma questão que já estava presente em

diversos pensamentos, como o de Freud, por exemplo, e assumindo um discurso que

já estava estabelecido desde o século XIX) de que a ontogênese repete a filogênese: 1)

o material dos ossos – que é facilmente confundido com o solo da Lua; 2) o formato

do crânio. Morfologicamente, a figura da cabeça humana segue os mesmos padrões da

figura lunar. A escolha do diretor pela via analógica para trabalhar com as questões da

memória da ditadura no Chile fica explícita durante estes minutos.

Isabel Stein

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A inscrição calcificada do céu nos corpos revelada pelo documentário denuncia

o terceiro termo da linguagem, o irredutível, que seria anterior ao binário sausseuriano

significante-significado; aquele que Michel Foucault chamou de similitude. Homem é

estrela, meteoro, e a matéria extraterrestre é carne humana, composto vivo. O tempo

das estrelas é o tempo dos seres viventes na Terra.

3. Faculdade mimética

Semelhança e mimese são os dois conceitos que forram o fundo do filme de

Guzmán. São os dois sustentáculos que devolvem ao povo chileno um futuro que lhes

foi tomado. Mas para que se entenda em que sentido isso acontece na proposta do

documentário, é preciso que se faça um breve comentário a respeito do tema.

No ensaio “A Doutrina das Semelhanças” (1933), Benjamin expõe como o

princípio da semelhança – que já foi, na história da humanidade, a forma

determinadora das relações causais e a base de um regime analógico de entendimento

do mundo – sofreu gradativamente um processo de recalcamento dentro do que mais

tarde Foucault descreverá, no livro As Palavras e as Coisas (1966), como a episteme

clássica, norteada sempre pela ideia de representação. Foucault deixa explícito o

caráter convencional deste regime de experiência: “A partir da idade clássica, o signo

é a representatividade da representação enquanto ela é representável.” (Foucault

2000, 88).

Mas Benjamin estabelece logo no início de seu pequeno ensaio que não se trata

de um sumiço progressivo da faculdade mimética, não se trata de um desaparecimento

da semelhança que tenha começado na idade clássica e chegado ao seu auge no ano de

1933, quando foi publicado o texto. Segundo ele,

“Deve-se refletir ainda que nem as forças miméticas nem as coisas miméticas, seu objeto, permaneceram as mesmas no curso do tempo; que com a passagem dos séculos a energia mimética, e com ela o dom da apreensão mimética, abandonou certos espaços, talvez ocupando outros. […] À primeira vista, tal direção estaria na crescente fragilidade deste dom. Pois o universo do homem moderno parece conter aquelas correspondências mágicas em muito menor quantidade que o dos povos antigos ou primitivos. A questão é se se trata de uma extinção da faculdade mimética ou de sua tranformação.” (Benjamin 1987, 110)

Exatos 60 anos depois, Michael Taussig publica Mimesis and Alterity (1993),

trabalho em que o antropólogo australiano desenvolve o argumento de que a

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faculdade mimética é constituinte da noção de alteridade. No livro, Taussig tem como

objeto os Cuna, uma população indígena panamenha. Através de relatos, também, de

outros pesquisadores que trabalharam com a população, ele enuncia o problema:

curiosamente, figuras de madeira envolvidas em processos xamãnicos de cura não são

nada semelhantes aos indígenas – elas têm uma aparência notadamente europeia.

Apresentam um fenótipo que não apresenta nenhuma característica da América

Central ou das proximidades. Além disso, as roupas e adereços talhados também não

encontram referência local; e ainda – frequentemente as figuras são vistas montados

em cavalos, prática nada típica entre os Cuna. Estas imagens despertam inquietação

pois levantam a seguinte constatação: o próprio processo mimético produz alteridade.

Diferença.

A ideia de semelhança presente em Nostalgia da Luz recupera um futuro

perdido não por sugerir uma prescrição, como a posição dos astros na hora do

nascimento um dia prescreveu as características humanas – como Benjamin insiste tão

veementemente em lembrar ao citar a astrologia diversas vezes. A reflexividade

apresentada pelo filme é, antes, geradora de uma temporalidade outra. Os Cuna

produziram um outro não igual, e aqui é produzido um tempo não igual. O deserto é

espaço de enunciação do tempo do cosmos, do universo.

4. Alteridade e cosmopolítica

A partir disso, é possível sugerir que diante de um passado lacunar, um passado

que demanda atividade no presente (como a busca arqueológica de ossos humanos no

deserto pelas famílias dos desaparecidos), o documentário sugere algo diverso do que

se observou na sociedade chilena no período após a ditadura.

Ainda que tenha passado, na década de 1990, por uma transição democrática

insatisfatória do ponto de vista judicial, o Chile, assim como a Argentina, aderiu a

uma forte política da memória, que veio sendo construída desde os primeiros anos da

ditadura. Esse movimento preocupou-se em não permitir o silêncio dos fantasmas

produzidos pela violência estatal do governo militar. Mas Nostalgia da Luz propõe

que tais fantasmas olhem e sejam olhados através de sua própria condição ambígua de

ser e não ser. Restos, resíduos, são mortos-vivos que sublinham incessantemente sua

não existência – pois disso emerge o discurso político, a enunciação do

desaparecimento –, mas que também, concomitantemente (e certamente são mais

propositivos nesse sentido) insistem em apresentar vitalidade, uma vivência outra.

Isabel Stein

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Sobrevivência, em termos Warburguianos. Assim, mostra-se, na tela, uma política das

matérias e das substâncias. Cosmopolítica.

Se as teorias animistas na antropologia remontam a um passado que se encontra

nos seus primeiros passos como ciência - e os estudos de Edward Tylor comprovam

isso –, e se estas teorias encontraram seu caminho em abordagens abissalmente

diferentes, de Durkheim e Levi-Strauss a Viveiros de Castro, pode-se facilmente

perceber, atualmente, uma tendência filosófico-antropológica para o inorgânico, para

o inanimado, que é herança de tal linhagem. Um risco comumente sublinhado pelos

críticos de tal tendência é o de que ela pode tornar-se demasiado relativista, e,

portanto, perder parte de seu potencial político-discursivo. Ao trabalhar com uma

noção de equivalência entre os seres, não se estaria, ainda que involuntariamente,

amenizando as forças que vetorizam as relações entre eles, de forma a turvar seu

caráter hierárquico? Em que sentido esse caminho pode colaborar com uma

construção ao mesmo tempo positiva e porosa da alteridade?

A horizontalidade presencial entre viventes, ou entre os compostos do cosmos,

para utilizar o termo de Donna Haraway, não é, em nenhuma hipótese, um princípio

de homogeneização em que forças são neutralizadas. A imagem do composto sustenta

a ideia de uma alteridade continua – em que os limites do indivíduo são borrados –, e

estão em constante movimento: “A ideia é que a natureza humana é um devir,

baseado na capacidade de compreender e interagir com um certo esquema cultural:

um devir, e não um sempre e já dado ser”. (Sahlins 2008, 108, tradução nossa). Mas

que fique sublinhado o caráter não homogêneo dessa continuidade, talvez explicitado

de forma ideal por Jacques Derrida:

“Imaginar que eu poderia, que alguém, aliás, poderia ignorar essa ruptura, até mesmo esse abismo, seria sobretudo cegar-se sobre tantas evidências contrárias […] seria esquecer todos os sinais que pude dar, incansavelmente, de minha atenção à diferença, às diferenças, às heterogeneidades e às rupturas abissais […] Nunca acreditei, pois, em uma continuidade homogênea qualquer entre o que se chama o homem e o que ele chama de animal.” (Derrida 2002, 58)

Precisamente o oposto do princípio de homogeneização, o cosmos, como insiste

Isabelle Stengers em sua proposta cosmopolítica, é um operador de equalizações, e

não uma máquina de equivalências: “porque a equivalência implica uma medida

comum, e, portanto, posições intercambiáveis. A igualdade em questão aqui não

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produz nenhum ‘e então…’; ao contrário, causa uma suspensão nisso” (Stengers

2005, 3, tradução nossa).

Este caráter não sintético e não convergente das relações é central também para

Bruno Latour, que ecoando Stengers, defende a impossibilidade de um mundo em que

a consciência, ou qualquer outra nobre noção, desenhe um mundo mais agradável,

ameno para todos – a utopia cosmopolita, ou de algumas correntes sociológicas e

ecológicas. Ele atenta para os perigos dessa tão tentadora pax. Concepções similares

podem ser apontadas na ideia de multinaturalismo, trabalhada por Eduardo Viveiros

de Castro, como uma inversão do desgastado e demasiadamente antropocêntrico

conceito de multiculturalismo, ou no do livro de Haraway, Staying With the Trouble

(2016), (cuja tradução para o português seria algo como “retendo o problema”, ou

“ficando com o problema”). O título já produz estranhamento: por que deveríamos

nos segurar a um problema? E ainda – que problema seria esse? Antes mesmo de

qualquer argumentação por parte da autora, fica explícita importância de se assumir as

diferenças, os conflitos, e não de resolvê-los.

Este pequeno panorama pelo pensamento de alguns autores serve para formular

a seguinte pergunta: se todos denunciam uma irredutível diferença, uma pluralidade

de intenções, onde estaria a semelhança, sugerida como chave interpretativa para

estas questões? Nostalgia da Luz formula uma cosmopolítica baseada nestes termos.

A própria frase de Stengers anuncia a impossibilidade, dentro do cosmos, de

posições intercambiáveis. Como já foi comentado neste texto, a base do pensamento

analógico é precisamente não contratual. Nenhum termo se refere a outro por

convenção. Nunca. A associação é sempre, necessariamente, por semelhança. A

similitude é o vértice que permite a aproximação de dois termos: ossos e estrelas,

espaço celeste e deserto, arqueologia e astronomia, vastidão e solidão, lua e crânio

humano. Através das alianças cosmológicas e cosmogênicas criadas pelas operações

da semelhança no filme, torna-se possível imaginar um futuro – povoado por duplos

anacrônicos, que surgem sincronicamente, trazendo consigo vozes inauditas,

existências desaparecidas.

Ainda segundo a autora, “não há representatividade do cosmos enquanto tal”

(Stengers 2005, 3). Assim como também não há representação possível no

documentário de Patrício Guzmán, uma vez que os duplos criados – as imagens

criadas – não foram descoladas do próprio mundo. É como se o filme criasse um

depósito onde as operações da analogia e da semelhança estão a salvo tanto da

Isabel Stein

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repetição do uso, que mata a vida entre palavra e coisa (Ricoeur 2000) – ou neste caso

entre dois termos, duas imagens – quanto do discurso filosófico (Derrida 1991), que

também domestica esta relação, suprimindo dela qualquer possibilidade selvagem ou

mágica (Benjamin). Em Nostalgia da Luz, todas as metáforas são não somente vivas

(Ricoeur 2000), como imortais.

Uma outra proposta pode, ainda, ser feita: o arqueólogo entrevistado no

documentário descreve aquela parte do planeta como “um portal para o passado”.

Uma transparência celeste descomunal, e um clima que se encontra dentre os mais

secos da Terra fazem com que naquela mesma intercessão de latitude e longitude se

tenha tanto as condições perfeitas para a observação espacial, quanto a conservação

quase inacreditável dos materiais arqueológicos.

O aspecto extremamente seco do deserto funciona perfeitamente como um

desacelerador (slowing down), condição que Stengers apresenta como necessária para

que se possa ter escuta e criar a partir das demandas do cosmos. A autora comenta, ao

identificar os problemas de compreensão a respeito de sua proposta:

“É aqui que a proposta se abre para o mal entendido, respaldado na tentação Kantiana de inferir que a política deveria ter como objetivo permitir a existência de um ‘cosmos’, de um ‘bom mundo comum’ – enquanto a ideia é precisamente desacelerar a construção desse mundo comum, criar um espaço para hesitação a respeito do que significa dizer ‘bom’.” (Stengers 2005, 2, tradução nossa)

O filme parece responder a pergunta dela: “como, através de quais artefatos,

quais procedimentos, nós podemos fazer desacelerar”? (Stengers 2005, 11, tradução

nossa). Ali, os corpos mortos permanecem, resistem, enfrentando uma lentidão nos

processos de decomposição e erosão. E cada processo tem seus agentes. O potencial

cosmopolítico está dado, em princípio, na própria materialidade do ar.

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FILMOGRAFIA

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