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Seleção de contos de Hans Christian Andersen Inclui os contos: A Princesa e a Ervilha O Rouxinol do Imperador Os Sapatos Vermelhos

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Seleção de contos

de

Hans Christian Andersen

Inclui os contos:

A Princesa e a Ervilha

O Rouxinol do Imperador

Os Sapatos Vermelhos

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Índice

― A princesa e a ervilha

― O rouxinol do imperador

― Os sapatos vermelhos

― A Polegarzinha

― O fato novo do imperador

― O trigo mourisco

― O patinho feio

― A família feliz

― A pastora e o limpa-chaminés

― O firme soldado de chumbo

― O duende da mercearia

― Uma rosa da campa de Homero

― Dança, dança, bonequinha

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A Princesa e a Ervilha

Recorte em papel feito por Hans Christian Andersen Museus da Cidade de Odense

Era uma vez um príncipe que queria casar com uma princesa — mas tinha de ser uma princesa verdadeira. Por isso, foi viajar pelo mundo fora para encontrar uma, mas havia sempre qualquer coisa que não estava certa. Viu muitas princesas, mas nunca tinha a certeza de serem genuínas havia sempre qualquer coisa, isto ou aquilo, que não parecia estar como devia ser. Por fim, regressou a casa, muito abatido, porque queria uma princesa verdadeira.

Uma noite houve uma terrível tempestade; os trovões ribombavam, os raios rasgavam o céu e a chuva caía em torrentes — era apavorante. No meio disso tudo, alguém bateu à porta e o velho rei foi abrir.

Deparou com uma princesa. Mas, meu Deus!, o estado em que ela estava! A água escorria-lhe pelos cabelos e pela roupa e saía pelas biqueiras e pela parte de trás dos sapatos. No entanto, ela afirmou que era uma princesa de verdade.

— Bem, já vamos ver isso — pensou a velha rainha. Não disse uma palavra, mas foi ao quarto de hóspedes, desmanchou a cama toda e pôs uma pequena ervilha no colchão. Depois empilhou mais vinte colchões e vinte cobertores por cima. A princesa iria dormir nessa cama.

De manhã, perguntaram-lhe se tinha dormido bem.

— Oh, pessimamente! Não preguei olho em toda a noite! Só Deus sabe o que havia na cama, mas senti uma coisa dura que me encheu de nódoas negras. Foi horrível.

Então ficaram com a certeza de terem encontrado uma princesa verdadeira, pois ela tinha sentido a ervilha através de vinte edredões e vinte colchões. Só uma princesa verdadeira podia ser tão sensível.

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Então o príncipe casou com ela; não precisava de procurar mais. A ervilha foi para o museu; podem ir lá vê-la, se é que ninguém a tirou.

Aqui têm uma bela história!

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O Rouxinol do Imperador

Sabem com certeza que na China o imperador é chinês e que todas as outras pessoas

são chinesas também. Esta história aconteceu há muitos anos, mas é precisamente por isso que devem ouvi-la agora, antes que seja esquecida.

O palácio do imperador era o melhor do Mundo, todo ele construído da mais rara

porcelana — não tinha preço, mas era tão frágil e delicado que era preciso tomar todo o

cuidado quando se andava lá dentro. O jardim do palácio estava coberto de flores

maravilhosas, nunca vistas em outro lado; as mais bonitas de todas tinham sininhos de prata,

que tocavam para se saber sempre que passava alguém.

Sim, tudo no jardim do imperador tinha sido muito bem planeado, e ele estendia-se até

tão longe que nem o jardineiro fazia a menor ideia onde acabava. Se se fosse sempre andando

chegava-se a uma bela floresta com árvores muito altas e lagos muito fundos. A floresta ia até

ao mar, que era azul e também muito fundo; grandes navios podiam navegar mesmo por baixo

dos ramos das árvores. Nesses ramos vivia um rouxinol que cantava tão bem que até o pobre

pescador, com todas as suas dificuldades, parava de deitar as redes todas as noites para o

ouvir.

— Ah, que maravilha! — dizia ele.

Mas depois tinha de continuar a trabalhar e esquecia-se da ave. Contudo, na noite

seguinte, assim que o rouxinol tornava a cantar, o pescador erguia os olhos das redes e dizia

mais uma vez:

— Ah, que maravilha!

Vinham viajantes de todos os países do Mundo para admirar a cidade, o palácio e os

jardins do imperador. Mas, assim que ouviam o rouxinol, todos diziam:

— Isto é o melhor de tudo!

E, quando voltavam aos seus países, continuavam a falar da ave. Sábios escreveram

livros sobre a cidade e o palácio, mas o rouxinol era elogiado mais do que todas as outras

maravilhas, e poetas escreveram emocionantes poemas sobre a ave da floresta perto do mar.

Estes livros eram lidos em todo o mundo, e, um dia, alguns deles chegaram às mãos do

imperador. Lá ficou ele, sentado na sua cadeira dourada, a ler sem parar; de vez em quando

acenava com a cabeça. Estava contente com as esplêndidas descrições do seu reino. Então,

chegou à frase: "Mas, apesar de todas estas maravilhas, nada se compara ao rouxinol."

— Que é isto?! — exclamou o imperador. — O rouxinol? Nunca ouvi falar dele.

Imaginem! As coisas que aprendemos nos livros!

Então mandou chamar o camareiro.

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— Vi aqui neste livro que temos uma ave admirável chamada rouxinol — disse o

imperador. — Parece que é a melhor coisa do meu vasto império. Por que é que ninguém me

falou dele?

— Bem — respondeu o camareiro —, nunca ouvi ninguém falar nessa criatura. De

certeza que nunca foi apresentada na corte.

— Quero que venha aqui esta noite cantar para mim — disse o imperador. — É uma

vergonha que toda a gente saiba o que possuo e eu não!

— Nunca ouvi falar nele — repetiu o camareiro —, mas vou procurá-lo e hei-de

encontrá-lo!

Sim, mas onde? O camareiro subiu e desceu todas as escadas, andou por todos os

salões e corredores, mas, de todas as pessoas que encontrou, nenhuma tinha ouvido falar do

rouxinol. Voltou apressado à presença do imperador e disse-lhe que aquilo devia ser uma

história inventada pelos escritores.

— Vossa Majestade Imperial não deve acreditar em tudo o que aparece escrito. As

coisas que os autores inventam! É mesmo magia negra!

— Mas o livro onde eu soube da ave — afirmou o imperador — foi-me enviado pelo

poderoso imperador do Japão, portanto não pode ser mentira! Quero ouvir o rouxinol! Quero

ouvi-lo esta noite.

— Tsing-pe! — respondeu o camareiro.

E lá foi ele outra vez escada abaixo e escada acima, por todos os salões e corredores;

metade da corte andava a correr atrás dele. Por fim, encontraram uma pobre rapariguinha na

cozinha.

— O rouxinol? — perguntou ela. — Meu Deus! Claro que sei! Que bem que ele canta!

A maior parte das noites deixam-me levar para casa alguns restos de comida para a minha

mãe, que está doente. Vivemos perto do lago, do outro lado da floresta. E quando volto para o

palácio, cansada, sento-me um bocadinho e fico a ouvi-lo cantar.

— Rapariguinha! — exclamou o camareiro —, ofereço-te um lugar permanente na

cozinha e dou-te licença para veres o imperador a jantar se nos levares até ao rouxinol. A sua

presença é exigida esta noite na corte.

Então, partiram em direção à floresta onde o rouxinol costumava cantar; mais de

metade da corte foi com eles. Enquanto iam andando, uma vaca mugiu.

— Oh! — exclamou um pajem. — Já estou a ouvi-lo! Para um animalzinho tão

pequeno faz um barulho extraordinário. Mas, sabem, tenho a certeza de já o ter ouvido.

— Não, não, aquilo é uma vaca a mugir! — exclamou a rapariguinha. — Ainda temos

de andar muito.

As rãs começaram a coaxar num charco.

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— Maravilhoso! — exclamou o capelão do imperador. — Já estou a ouvir a canção!

Parecem mesmo sininhos de igreja!

— Não, não, isso são rãs — disse a rapariguinha da cozinha. — Mas devemos estar

quase a ouvi-lo.

Então, o rouxinol começou a cantar.

— Lá está ele! — disse a rapariguinha. — Oiçam! Olhem! Está ali! — e apontou para

um passarinho cinzento por entre os ramos.

— Será possível? — exclamou o camareiro. — Nunca pensei que fosse assim. Parece

tão vulgar! Tão simples! Talvez tenha perdido a cor quando viu todas estas visitas

importantes.

— Rouxinolzinho! — chamou a rapariguinha. — O nosso gracioso imperador gostaria

muito que cantasses para ele.

— Com o maior prazer — disse o rouxinol, continuando a cantar tão bem que era um

encanto ouvi-lo.

— Parecem mesmo sinos de vidro — disse o camareiro. — Não percebo como é que

nunca o tínhamos ouvido. Vai ser um êxito na corte!

— Querem que torne a cantar para o imperador? — perguntou o rouxinol, que pensava

que uma das visitas era o imperador.

— Excelentíssimo rouxinol — disse o camareiro —, tenho a honra e o prazer de o

convidar para um concerto no palácio esta noite, onde encantará Sua Majestade Imperial com

as suas lindas cantigas.

— Soam melhor na floresta — afirmou o rouxinol.

Apesar disso, foi com eles de boa vontade quando ouviu dizer que era desejo do

imperador.

Entretanto, que limpezas iam pelo palácio! As paredes e o soalho de porcelana

brilhavam, lustrosos, à luz de milhares de luzes douradas. Mesmo no meio do grande salão,

junto do trono do imperador, estava um poleiro dourado para o rouxinol. Toda a corte estava

presente, e a pequena criadinha da cozinha teve autorização para ficar atrás da porta, porque já

tinha o título oficial de Verdadeira Criada de Cozinha. Todos os olhos estavam postos no

passarinho cinzento quando o imperador lhe fez sinal que começasse.

Então, o rouxinol cantou tão bem que o imperador ficou com os olhos cheios de

lágrimas, que lhe escorreram pelas faces; e o rouxinol continuou a cantar ainda melhor, de

modo que cada nota foi direitinha ao coração do imperador. Este ficou muito satisfeito; o

rouxinol, declarou ele, iria receber o seu sapato dourado para usar ao pescoço. Mas este

agradeceu e recusou, porque já se sentia recompensado.

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— Vi lágrimas nos olhos do imperador. Pode lá haver alguma dádiva maior do que

essa? As lágrimas de um imperador têm um poder estranho. Já fui suficientemente

recompensado.

E cantou mais uma canção com a sua voz maviosa.

— Muito espirituoso, muito divertido; a criatura é namoradeira — diziam as damas da

corte, enchendo as bocas de água para fazerem um ruído de gargarejo.

Por que é que não haviam de ser também rouxinóis? Até os lacaios e as criadas de

quarto acenavam, com ar de aprovação, o que significa muito, porque estes são sempre os

mais difíceis de contentar. Não havia dúvida: o rouxinol era um êxito.

Ficaria na corte e teria uma gaiola só para si, com autorização para ir apanhar ar duas

vezes durante o dia e uma vez à noite. Seria acompanhado, em cada excursão, por doze

criados, cada um a segurar firmemente uma fita de seda atada a uma patinha da ave. Não,

essas saídas não eram muito divertidas.

Um dia, chegou um grande embrulho para o imperador. Trazia uma palavra escrita por

fora: ROUXINOL.

— Olha! Outro livro sobre a nossa famosa ave! — exclamou o imperador.

Mas não era um livro; era um pequeno brinquedo mecânico dentro de una caixa, um

rouxinol de corda. Tinha o feitio de um verdadeiro, mas estava coberto de diamantes, rubis e

safiras. Quando se lhe dava corda, cantava uma das canções que o verdadeiro passarinho

costumava cantar, e a sua cauda andava para baixo e para cima, brilhando em prata e ouro. A

volta do pescoço trazia uma fita, onde estava escrito: "O rouxinol do imperador do Japão nada

vale comparado com o rouxinol do imperador da China."

— Que maravilha! — disseram todos.

E o mensageiro que tinha trazido o presente recebeu o título de Principal Portador

Imperial de Rouxinóis.

— Agora têm de cantar juntos. Que dueto que vai ser!

Então os dois passarinhos tiveram de cantar juntos, mas não foi um êxito. O problema

era que o verdadeiro rouxinol cantava à sua maneira e a canção do outro saía de uma

máquina.

— Isto não é vergonha nenhuma — afirmou o Mestre da Música Imperial. — Está

perfeitamente afinado: na realidade, ele até podia ser um dos meus alunos.

Então, o pássaro de corda foi posto a cantar sozinho. Agradou quase tanto à corte

como o verdadeiro, e evidentemente que era muito mais bonito à vista, todo brilhante, como

uma pulseira ou um alfinete de peito. Cantou a mesma canção trinta e três vezes sem se

cansar. Os cortesãos não se importariam de a ouvir mais umas vezes, mas o imperador achou

que era a vez do verdadeiro.

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Mas onde estava o rouxinol? Tinha voado pela janela, para a sua floresta verdejante,

sem ninguém dar por isso.

— Tch, tch, tch! — fez o imperador, aborrecido. — Que significa isto?

E os cortesãos resmungavam e franziam as testas.

— Mas temos aqui o melhor! — disseram.

E o rouxinol de corda teve de cantar outra vez.

Era a trigésima quarta vez que o ouviam, mas ainda não sabiam bem a canção. Era

difícil de aprender. E o Mestre da Música Imperial teceu à ave os mais altos elogios: era

superior ao rouxinol vivo, não apenas na aparência exterior, mas também no que tinha lá

dentro.

— Sabem, senhores e senhoras e, acima de todos, Vossa Majestade Imperial, com o

verdadeiro rouxinol nunca se sabe o que vai acontecer, mas com a ave de corda tem-se a

certeza; é tudo fácil: podemos abri-la e ver como pensa, como cada nota segue a outra com

precisão!

— Era isso mesmo o que eu estava a pensar — ouviu-se aqui e ali.

E, na segunda-feira seguinte, o Mestre da Música Imperial foi autorizado a mostrar

publicamente o pássaro ao povo. Também ele devia ouvi-lo cantar, tinha declarado o

imperador. E assim foi. E ficaram todos tão entusiasmados como se estivessem tontos de

beberem muito chá, um antigo costume chinês. Disseram todos:

— Ah!

E levantaram os indicadores e acenaram com as cabeças.

Mas o pobre pescador, que tinha ouvido o verdadeiro rouxinol, afirmou:

— Lá bonito é... e até parece o rouxinol... Mas parece que falta qualquer coisa, não sei

bem...

O verdadeiro rouxinol foi banido do reino do imperador.

O pássaro artificial recebeu um lugar especial numa almofada de seda junto da cama

do imperador; empilhados à volta estavam todos os presentes que lhe tinham dado, todo o

ouro e joias. Foi distinguido com o título de Principal Trovador Imperial da Mesa-de-

Cabeceira, Primeira Classe à Esquerda, porque até os imperadores têm o coração do lado

esquerdo. O Mestre da Música Imperial escreveu um solene trabalho em vinte e cinco

volumes sobre o pássaro mecânico. Era muito extenso e erudito, cheio das mais difíceis

palavras chinesas. Mas toda a gente fingiu que o tinha lido e compreendido. Ninguém queria

passar por estúpido!

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Tudo isto continuou durante um ano, até que o imperador, a corte e o resto do povo

chinês sabiam de cor cada notazinha da canção do passarinho de corda; mas, por isso mesmo,

cada vez gostavam mais dela. Podiam cantá-la em coro — e faziam-no.

Os rapazitos da rua andavam por todo o lado a cantar: rrr, trrr, piu, piu, piu, e o

imperador também cantava — um som maravilhoso, não havia dúvida.

Mas, uma noite, precisamente quando o pássaro de corda estava a cantar e o

imperador, deitado na cama, o ouvia, qualquer coisa fez "crac!" dentro do pássaro. Brrrr! O

mecanismo continuou a rodar, e a música parou. O imperador saltou da cama e mandou

chamar o seu médico. Mas de que servia o médico? Então foram buscar o relojoeiro, e este,

depois de muitas resmungadelas e mexidelas no pássaro, conseguiu arranjá-lo mais ou menos.

Mas preveniu toda a gente de que tinha de ser usado muito poucas vezes; as peças estavam

quase gastas por completo e não era possível substituí-las sem estragar o som.

Que golpe horrível! Não se atreviam a pôr o pássaro a cantar mais do que uma vez por

ano, e mesmo isso já era um risco. Contudo, nessas ocasiões anuais, o Mestre da Música

Imperial fazia sempre um discurso cheio de palavras difíceis, dizendo que o pássaro estava tão

bom como sempre — e, claro, uma vez que ele dizia que sim, era porque ele estava tão bom

como sempre...

Passaram cinco anos, e uma grande tristeza abateu-se sobre o país. O povo era muito

amigo do imperador, mas ele estava gravemente doente e não se esperava que sobrevivesse.

Já tinha sido escolhido novo imperador, e a multidão esperava nas ruas que o camareiro lhe

desse notícias. Como estava o imperador? O camareiro abanava a cabeça.

Frio e pálido, o imperador jazia no seu leito real. Na verdade, a corte achava que já

tinha morrido e foi a correr saudar o seu sucessor. Os criados de quarto foram a correr

coscuvilhar uns com os outros e as criadas juntaram-se todas para beberem café,. Tinham sido

estendidos panos pretos em todos os salões e corredores para amortecer o som dos passos, de

maneira que o palácio parecia muito, muito sossegado.

Mas o imperador ainda não tinha morrido. Pálido e imóvel, jazia na sua magnífica

cama com longos cortinados de veludo e pesados cordões dourados. Através de uma janela

aberta lá no alto, a Lua brilhava sobre o imperador e o pássaro artificial.

O pobre imperador mal podia respirar; sentia como se tivesse qualquer coisa a pesar-

lhe sobre o coração. Abriu os olhos e viu a Morte sentada sobre ele. A Morte tinha a coroa de

ouro do imperador na cabeça, numa das mãos segurava a espada imperial de ouro e na outra a

esplêndida bandeira imperial. E, por entre os cortinados de veludo, espreitavam estranhos

rostos: alguns horríveis e outros belos e bondosos. Eram as boas e as más ações do imperador,

que olhavam para ele, enquanto a Morte se sentava sobre o seu coração.

— Lembras-te?... Lembras-te?... — diziam os rostos baixinho, um a seguir ao outro.

E contaram e lembraram tantas coisas que a testa do imperador acabou por ficar

coberta de suor.

— Nunca soube... nunca percebi... — gritou ele. — Música, música! Toquem o grande

tambor da China! Salvem-me destas vozes!

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Mas as vozes não se calavam. Continuavam sempre, enquanto a Morte acenava com a

cabeça, como um mandarim, a tudo o que diziam.

— Música! Dêem-me música! — pedia o imperador. — Belo passarinho dourado,

canta, peço-te que cantes! Dei-te ouro e coisas preciosas; pendurei o meu sapato dourado ao

teu pescoço com as minhas próprias mãos. Canta, peço-te, canta!

Mas o pássaro estava silencioso; não havia ninguém para lhe dar corda, e sem corda

não tinha voz. E a Morte continuava a olhar fixamente para o imperador com as grandes

órbitas vazias. Tudo estava calado, terrivelmente calado.

Então de repente, perto da janela, soou a mais bela canção. Era o verdadeiro rouxinol,

que se tinha empoleirado num ramo lá fora. Sabendo do mal do imperador, o passarinho tinha

voltado para o confortar e trazer-lhe esperança.

À medida que cantava, as firmas fantasmagóricas foram desaparecendo, até se

desvanecerem. O sangue começou a correr mais depressa pelo corpo do imperador. A própria

Morte ficou presa à canção.

— Canta mais, canta mais, pequeno rouxinol! — pediu a Morte.

— Canto, se me deres a grande espada de ouro... sim, e a bandeira imperial... e a coroa

do imperador...

E a Morte devolveu cada um dos tesouros em troca de uma canção e o rouxinol

continuou a cantar. Cantou sobre o calmo adro da igreja onde cresciam as rosas brancas, onde

as flores do sabugueiro cheiravam tão bem, onde a erva fresca está sempre verde por causa

das lágrimas dos que ali choram os seus mortos. Então, a Morte encheu-se de saudades do seu

jardim e saiu pela janela, flutuando como um nevoeiro gelado.

— Obrigado, obrigado! — disse o imperador. — Passarinho celestial, sei quem és! Eu

bani-te do meu reino e, no entanto, só tu vieste ajudar-me, e afastaste os horríveis fantasmas

da minha cama e libertaste o meu coração da Morte. Como hei de recompensar-te?

— Já me recompensaste — respondeu o rouxinol. — Quando cantei para ti da

primeira vez caíram-te lágrimas dos olhos e essa dádiva não posso esquecer. Essas são as

joias que não se compram nem se vendem. Mas agora tens de dormir para ficares bom e forte.

Olha, vou cantar para ti.

E cantou e o imperador caiu num sono calmo e reparador.

O Sol brilhava sobre ele através da janela quando acordou, restaurado, desaparecidas a

fraqueza e a doença. Nenhum dos criados tinha lá entrado ainda, porque todos pensavam que

ele estava morto.

— Tens de ficar sempre comigo — disse o imperador. — Mas só cantas quando

quiseres. E, quanto ao pássaro de corda, vou parti-lo em mil bocados.

— Não faças isso — respondeu o rouxinol. — Fez o que pôde por ti. Guarda-o. Eu não

posso morar num palácio, mas deixa-me ir e vir à minha vontade, e à noite empoleiro-me

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neste ramo, junto da tua janela, e canto para ti. Hei de trazer-te felicidade, mas também

pensamentos sérios. Hei de cantar sobre as pessoas felizes do teu reino, mas também sobre os

que se sentem tristes. Cantarei sobre o bem e o mal, que têm estado sempre à nossa volta, mas

que têm sempre escondido de ti. Os passarinhos voam em todas as direções, até ao pescador, à

casinha do trabalhador, até junto de tantos que estão longe de ti e da tua corte magnífica. Amo

o teu coração mais do que a tua coroa, apesar de a coroa ter algo de mágico. Sim, hei de

voltar, mas tens de me prometer uma coisa.

— O que quiseres! — exclamou o imperador.

Tinha-se levantado e vestido as suas roupas imperiais e segurava a espada dourada

junto do coração.

— A única coisa que te peço é isto: não digas a ninguém que tens um amigo

passarinho que te conta tudo. É melhor guardar segredo.

E, com estas palavras, o rouxinol voou para longe. Os criados vieram ver o amo

morto, mas ficaram ali especados!

— Bom dia! — disse o imperador.

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Os Sapatos Vermelhos

Havia uma rapariguinha tão fina e tão graciosa. Como era pobre, andava sempre de pés descalços no Verão e de Inverno com grandes tamancos de pau. Os pequeninos peitos dos pés ficavam todos vermelhos, o que era horroroso.

No meio da aldeia de camponeses morava a idosa mãe do sapateiro. Sentou-se a coser, tão bem quanto sabia, um par de sapatinhos de uns restos velhos de roupa vermelha, bastante toscos, mas feitos de boa vontade. Foram destinados à rapariguinha.

A rapariguinha chamava-se Karen.

Foi precisamente no dia em que a mãe foi a enterrar que ela recebeu os sapatos vermelhos estreando-os nesse dia. Não eram propriamente algo a usar no luto, mas não tinha outros e assim, sem meias, caminhou com eles atrás do pobre caixão feito de palha.

Nesse momento passou uma carruagem grande e antiga. Nela ia sentada uma grande dama, também de idade, que viu a rapariguinha. Teve pena dela e disse ao padre:

– Oiça, dê-me a rapariguinha, que tratarei bem dela!

Karen julgou que foi tudo por causa dos sapatos vermelhos, mas a senhora disse-lhe que eram horrorosos e queimou-os. Porém, vestiu Karen dos pés à cabeça. Teve de aprender a ler e a coser e as gentes comentavam que ela era muito graciosa.

Mas o espelho dizia-lhe:

– És mais que graciosa, és linda!

Uma vez a rainha fez uma viagem através do país e trouxe consigo a sua filha. O povo correu para defronte do palácio e Karen também. A princesinha estava de pé, numa varanda, com um fino vestido branco, para que a admirassem. Não tinha nem cauda nem coroa de ouro, mas calçava belos sapatos de marroquim vermelho. Eram certamente bem mais bonitos do que aqueles que a mãe do sapateiro cosera para a Karenzinha. Nada no mundo se podia comparar verdadeiramente àqueles sapatos vermelhos!

Karen estava agora na idade de receber a sua confirmação de fé. Teve novos vestidos e novos sapatos também. O rico sapateiro da cidade tomou as medidas do seu pezinho. Era confortável a sua loja e aí havia grandes armários de vidro, com lindos sapatos e botas lustrosas lá dentro. Tudo tinha um aspeto encantador, mas a velha senhora, que não via bem, disso não tirou grande proveito. No meio dos sapatos estava um par vermelho, tal e qual o que a princesa calçara. Como eram bonitos! O sapateiro disse que tinham sido feitos para a filha de um conde, mas que não lhe serviam.

– É de bom polimento! – disse a velha senhora.

– Brilham!

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– Sim, brilham! – respondeu Karen. Como lhe ser viam, a velha senhora comprou-lhos. Mas não sabia que eram vermelhos. Se soubesse, nunca teria permitido a Karen ir à confirmação com aqueles sapatos. Mas ela foi.

Toda a gente olhava para os seus pés e quando subiu da nave da igreja para a entrada do coro, parecia-lhe que até mesmo as velhas figuras nas sepulturas, aqueles retratos de pastores e mulheres de pastores com rígidas golas e longas vestes negras, fixavam os olhos nos sapatos vermelhos. Só pensava neles quando o pastor lhe pôs a mão sobre a cabeça e falou do santo batismo, do pacto com Deus e que ela iria ser agora um ser cristão crescido. O órgão tocava solenemente, as belas vozes das crianças cantavam e o velho chantre cantava, mas Karen pensava só nos seus sapatos vermelhos.

À tarde, a velha senhora soube por toda a gente que os sapatos eram vermelhos. Para ela, isso era feio. Não eram próprios. E Karen daí por diante, quando fosse à igreja, deveria ir sempre com sapatos pretos, mesmo que fossem velhos.

No domingo seguinte foi a comunhão, e Karen olhou para os sapatos pretos, olhou para os vermelhos… e voltou a olhar para os vermelhos. E calçou os vermelhos.

Estava um belo tempo de Sol. Karen e a velha senhora foram por um atalho poeirento, através de um campo de trigo.

À porta da igreja encontrava-se um velho soldado com uma muleta e com uma estranha barba comprida que era mais ruiva que branca. Fora antes completamente ruiva. Ele curvou-se até ao chão e perguntou à velha dama se podia limpar-lhe os sapatos. Karen estendeu também o seu pezinho.

– Olha! Que lindos sapatos de baile! – disse o soldado. – Agarre-os bem quando dançar! – E bateu com as mãos nas solas.

A velha senhora deu ao soldado um moedazinha e entrou com Karen na igreja.

Toda a gente olhou para os sapatos vermelhos de Karen. Todas as imagens olharam para eles. Quando Karen se ajoelhou em frente do altar e pôs o cálice de oiro diante da boca, só pensou nos sapatos vermelhos. Era como se os sapatos flutuassem dentro do cálice. Esqueceu-se de cantar o seu salmo e de recitar o padre-nosso.

Toda a gente saiu da igreja e a senhora subiu para a sua carruagem. Karen levantou o pé para subir atrás dela, quando o velho soldado que estava por perto lhe disse:

– Olha que lindos sapatos de baile!

E Karen não pôde resistir, teve de fazer alguns passos de dança e, quando começou, puseram-se as pernas a dançar. Era como se os sapatos tivessem tomado o poder sobre elas. Dançou à volta da igreja. Não podia deixar de fazê-lo. O cocheiro teve de correr atrás dela e agarrá-la, levando-a para dentro da carruagem, mas os pés, esses, continuavam a dançar, dando cruelmente pontapés na boa velha senhora. Por fim os sapatos saltaram dos pés e as pernas repousaram.

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Em casa, colocaram os sapatos num armário, mas Karen não resistiu e teve de vê-los.

A velha senhora caiu doente. Diziam que não viveria muito. Tinha de ser tratada e vigiada e para isso nenhuma pessoa havia mais próxima dela do que Karen. Lá na cidade ia realizar-se um grande baile e Karen foi convidada. Olhou para a velha senhora, que certamente não iria viver muito. Olhou para os sapatos vermelhos e pareceu-lhe que não havia qualquer pecado nisso. Calçou-os, bem podia fazê-lo. Foi ao baile e começou a dançar.

Mas, quando queria ir para a direita, os sapatos dançaram para a esquerda, dançaram chão acima, chão abaixo, escadas abaixo, pela rua e para as portas da cidade. Os sapatos fizeram-na dançar e teve de dançar até ao bosque sombrio.

Então brilhou algo por cima das árvores e ela julgou que era a Lua, pois parecia-lhe ter visto um rosto, mas era o velho soldado com a barba ruiva. Estava sentado, acenou e disse-lhe:

– Olha! Que lindos sapatos de baile!

Ficou assustada e quis lançar fora os sapatos. Puxou com força até rasgar as meias. Mas os sapatos agora eram parte dos seus pezinhos. E dançou e teve de dançar por campos e prados, à chuva e ao Sol, de noite e de dia, mas de noite era mais terrível.

Dançou dentro do cemitério aberto, mas os mortos não dançaram, era bem melhor para eles repousar do que dançar. Queria sentar-se sobre a campa do pobre, onde a atanásia amarga crescia. Mas para ela não havia descanso nem repouso. Quando dançava em direção à porta aberta da igreja, viu um anjo com longas vestes brancas e asas que lhe chegavam dos ombros ao chão. O rosto era severo e grave e nas mãos segurava uma espada, larga e brilhante.

– Dançarás! – disse ele. – Dançarás com os teus sapatos vermelhos até ficares pálida e fria! Até que a pele se enrugue como uma múmia! Dançarás de porta em porta e onde vivam crianças orgulhosas e vaidosas, baterás à porta, para que te oiçam e tenham medo de ti! Dançarás, dançarás…!

– Misericórdia! – gritou Karen. Mas não ouviu o que o anjo lhe respondeu, pois os sapatos levaram-na para o campo, pelo portão, por caminhos e atalhos e teve sempre de dançar.

Uma manhã, passou a dançar por uma porta que conhecia bem. Lá de dentro vinha um som de salmos. Traziam um caixão para fora, coberto de flores. Soube que a velha senhora morrera e pareceu-lhe que estava agora abandonada por todos e amaldiçoada pelo anjo de Deus.

Dançou e teve de dançar, dançar na noite escura. Os sapatos levaram-na por sobre espinhos e silvas, rasgando-a até sangrar. Continuou a dançar na charneca até uma casinha isolada. Era aí – sabia ela – que morava o carrasco. Bateu com as pontas dos dedos na vidraça, dizendo:

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– Venha cá fora! Venha cá fora! Não posso entrar porque estou a dançar!

E o carrasco respondeu-lhe:

– Sabes bem quem eu sou? Corto a cabeça aos homens maus e afirmo-te que o meu machado está bem afiado.

– Não me cortes a cabeça! – disse Karen. – Senão, não posso arrepender-me do meu pecado! Corta-me antes os meus pés com os sapatos vermelhos!

Confessou-lhe o seu pecado e o carrasco cortou-lhe os pés com os sapatos vermelhos, mas os sapatos continuaram a dançar com os pezinhos lá dentro sobre os campos, para a floresta profunda.

O carrasco fez-lhe pés de pau e muleta. Ensinou-lhe o salmo que os pecadores cantam sempre, e ela beijou-lhe a mão que guiara o machado. Dali foi pela charneca fora.

– Sofri bastante por causa dos sapatos vermelhos! – disse. – Vou à igreja para que possam ver-me! – E foi tão depressa quanto pôde, mas quando lá chegou, dançavam os sapatos vermelhos diante dela. Ficou assustada e fugiu.

Toda a semana esteve pesarosa e chorou muitas lágrimas pesadas, e quando veio o domingo, disse:

– Ora bem! Sofri e lutei bastante! Acredito que sou tão boa como muitos daqueles que se sentam de cabeça levantada, lá dentro da igreja!

E assim se encorajou.

Mas não passou da rua que dava para a igreja. Quando viu os sapatos vermelhos a dançarem diante dela, teve medo e fugiu, arrependendo-se verdadeiramente no coração do seu pecado.

E dirigiu-se ao presbitério pedindo para aí prestar serviço. Prometeu ser diligente e fazer tudo o que pudesse, Não queria salário. Só queria ter um teto para se abrigar e estar com gente boa. E a mulher do presbítero teve pena dela e deu-lhe trabalho. Foi diligente e cheia de pensamentos. Sentava-se sossegada a ouvir, quando, à noite, o pastor lia em voz alta a Bíblia. Todos os pequenos da casa gostavam dela, mas quando as meninas falavam de vestidos e de luxo e em ser bonitas como uma rainha, abanava a cabeça.

No domingo seguinte foram todos à igreja e perguntaram-lhe se não queria ir também. Mas ela olhou triste, com lágrimas nos olhos, para as muletas. Todos foram ouvir a palavra de Deus.

Ela ficou sozinha no seu quartinho. Não cabia nele mais do que a cama e uma cadeira e aí se sentou com o seu livro de salmos. E quando, com devoção, o lia, o vento trouxe-lhe os sons de órgão da igreja. Ergueu o rosto banhado em lágrimas e disse:

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– Oh! Meu Deus, ajuda-me!

Então brilhou o Sol luminoso e, mesmo diante dela, apareceu o anjo de Deus em vestes brancas, que naquela noite vira à porta da igreja. Mas, em vez da espada aguçada, trazia um belo ramo verde cheio de rosas. Tocou com ele o teto, e este ergueu-se muito alto. Onde tinha tocado brilhou uma estrela de ouro. E tocou nas paredes e estas alargaram-se, e ela ouviu o órgão que soava. Viu as velhas figuras dos pastores e das mulheres dos pastores. A congregação estava sentada em cadeiras, cantando salmos do livro de salmos. A própria igreja veio até à pobre rapariga no quarto pequenino e estreito. Ou seria que tinha sido ela que veio à Igreja? Estava sentada nas cadeiras das pessoas da família do pastor e quando estas terminaram o salmo e olharam para cima, acenaram-lhe e disseram:

– Fizeste bem em vir, Karen!

– Era a misericórdia! – respondeu ela.

E o órgão soou e as vozes das crianças, em coro, soavam suaves e belas! A clara luz do Sol jorrava muito quente através da janela sobre a cadeira da igreja em que Karen estava sentada. O coração ficou tão cheio de luz de Sol, de paz e de alegria, que rebentou.

A alma voou na luz do Sol para Deus e ninguém houve aí que lhe perguntasse pelos sapatos vermelhos.

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A Polegarzinha

Recorte em papel feito por Hans Christian Andersen Museus da Cidade de Odense

Era uma vez uma mulher que queria ter um filho muito pequenino, mas não sabia como havia de fazer para encontrar um. Então, foi ter com uma velha bruxa e disse-lhe:

— Gostava tanto de ter um filho pequenino! Não sabes dizer-me onde posso arranjar um?

— Oh, isso não é difícil — disse a bruxa. — Aqui tens um grão de cevada, e olha que não é da que cresce nos campos dos lavradores nem daquela que as galinhas comem. Planta este grão num vaso e verás o que acontece!

— Oh, obrigada! — disse a mulher, dando uma moeda de prata à bruxa.

Depois foi para casa e semeou o grão. Não foi preciso esperar muito tempo para que nascesse uma bela flor; parecia uma túlipa, mas as pétalas estavam muito fechadas como se fosse ainda um botão.

— Que linda flor! — disse a mulher, dando um beijo nas pétalas vermelhas e amarelas.

Nesse preciso momento, a flor abriu-se com um forte estalido. Era realmente uma túlipa — agora via-se bem —, mas mesmo no centro da flor, no centro verde, estava sentada uma menina minúscula, graciosa e delicada como uma fada. Não era maior que metade de um polegar, e por isso ficou a chamar-se Polegarzinha.

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A cama em que dormia era uma casca de noz muito bem polida; tinha um colchão de pétalas de violeta azuis-escuras e o seu cobertor era uma pétala de rosa. Dormia ali à noite, mas durante o dia brincava em cima da mesa, onde a mulher tinha posto um prato de sopa cheio de água com um círculo de flores à volta, com os caules virados para o meio. Dentro do prato, a flutuar, estava uma grande pétala de túlipa em que a Polegarzinha se podia sentar e remar de um lado para o outro usando dois pelos brancos de cavalo como remos. Era lindo de se ver! Ela também sabia cantar, e tinha a vozinha mais frágil e mais doce que jamais se ouviu.

Uma noite, quando estava deitada na sua linda cama, um sapo entrou no quarto através de um vidro partido da janela. O sapo parecia muito grande e estava molhado quando saltou para cima da mesa onde a Polegarzinha dormia profundamente debaixo da sua pétala de rosa.

— Ora aqui está uma bela esposa para o meu filho! — disse o sapo.

E pegou na cama de casca de noz em que a Polegarzinha estava a dormir e saltou com ela através da janela para o jardim. No fim do jardim corria um largo regato, de margens pantanosas e lamacentas; era aí que o sapo vivia com o seu filho.

Este não era nada bonito; na realidade, era igualzinho ao pai.

— Croc! Croc! Brec-rec-rec! — foi tudo quanto disse quando viu a linda menina na casca de noz.

— Não fales tão alto, se não ela acorda — disse-lhe o pai. — Olha que pode fugir, porque é leve como uma pena de cisne. Já sei, vamos pô-la no meio do rio, em cima de uma daquelas grandes folhas de nenúfar! Assim, ela vai pensar que está numa ilha, porque é uma criaturinha minúscula. Entretanto, nós podemos começar a preparar o melhor quarto debaixo da lama, para vocês os dois lá viverem.

No regato, havia muitos nenúfares com grandes folhas verdes que pareciam flutuar soltas na água. A folha que estava mais longe era também a maior de todas, e foi nela que o velho sapo poisou a casca de noz com a Polegarzinha. A pobre menina acordou muito cedo e, quando viu onde estava, começou a chorar amargamente, porque havia água a toda a volta da grande folha e era impossível voltar para terra.

Entretanto, o velho sapo andava metido na lama, decorando atarefadamente o quarto com juncos e flores aquáticas amarelas, para ficar bonito e alegre para a sua futura nora. Depois, acompanhado pelo filho, nadou até à folha onde estava a Polegarzinha. Iam buscar a linda cama de casca de noz para a colocarem no quarto antes de a noivazinha ir para lá. O velho sapo, ainda dentro de água, fez uma profunda vénia e disse à Polegarzinha:

— Este é o meu filho. Vai ser o teu marido, e vocês os dois vão viver muito felizes numa bela casa debaixo da lama.

— Croc! Croc! Brec-rec-rec! — foi tudo o que o filho disse.

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Então, pegaram na bonita caminha e lá foram a nadar com ela, enquanto a Polegarzinha ficava sozinha na folha verde, a chorar, porque não lhe apetecia nada viver com o velho sapo nem casar com o filho dele. Ora os peixinhos que nadavam ali por baixo tinham visto o sapo e ouvido o que ele dissera, de maneira que deitaram as cabeças de fora para verem a menina. Mas, assim que o fizeram, viram como era bonita e ficaram cheios de pena por ela ter de ir viver na lama com o sapo. Não, isso não podia acontecer! Juntaram-se em redor do pé verde da folha em que ela estava e puseram-se a roê-lo sem parar.

Lá foi a folha, flutuando pelo regato, levando a Polegarzinha para longe, cada vez para mais longe, para onde o sapo não podia ir.

Quando ela passava, os passarinhos nas árvores cantavam "Que linda criaturinha!" assim que a viam. E a folha lá ia a deslizar, cada vez para mais longe - e foi assim que a Polegarzinha chegou a outro país.

Uma linda borboleta branca esvoaçava por cima dela e acabou por poisar na folha, porque tinha começado a gostar da menina. Como ela estava feliz agora! O sapo já não podia apanhá-la e era tudo maravilhoso à sua volta, para onde quer que olhasse. A água, onde o sol brilhava, parecia ouro a cintilar. A Polegarzinha tirou o seu cinto e deu uma ponta à borboleta amiga e atou a outra à folha. Agora é que ia mesmo depressa!

Nesse momento, um grande escaravelho apareceu a voar por cima dela. Assim que viu a menininha, agarrou-a num ápice pela cintura e voou com ela para o cimo de uma árvore. A folha verde continuou a flutuar rio abaixo com a borboleta.

Meu Deus!, como a Polegarzinha ficou assustada quando o escaravelho a levou para cima da árvore! E como teve pena da sua amiga, a borboleta branca! Mas o escaravelho não queria saber disso. Poisou na maior folha verde da árvore e largou-a aí. Deu-lhe pólen para comer e disse-lhe que ela era muito bonita, embora não tanto como um escaravelho.

Em breve, todos os outros escaravelhos que viviam na árvore foram visitá-la. Olhavam para ela, e as jovens escaravelhas encolhiam as antenas, dizendo: "Mas só tem duas pernas, este inseto miserável! Não tem antenas! Tem uma cintura tão fina! Parece mesmo humana! Que feia que é!", e por aí fora, apesar de a Polegarzinha ser realmente uma criatura linda.

O escaravelho que a tinha levado também era desta opinião, mas quando todas as escaravelhas disseram que ela era horrível, ele começou a pensar o mesmo e acabou por não querer saber dela; podia ir para onde quisesse. Várias escaravelhas pegaram nela e voaram até ao solo, deixando-a em cima de uma margarida. Lá ficou ela a chorar, por ser tão feia que os escaravelhos não a queriam — e, no entanto, era a criaturinha mais bonita que se podia imaginar, mais bela que a mais perfeita pétala de rosa.

Durante todo o Verão, a pobre Polegarzinha viveu completamente sozinha na grande floresta. Teceu uma cama com ervas e pendurou-a como se fosse uma rede por baixo de uma grande folha de azeda, para ficar abrigada da chuva. Para comer apanhava mel e pólen das flores e bebia as gotas de orvalho que encontrava todas as manhãs nas folhas. E assim passou o Verão e o Outono, mas depois chegou o Inverno, o longo e frio Inverno. Os

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passarinhos, que tão docemente tinham cantado, voavam agora para longe, as árvores perdiam as folhas, as flores murchavam. Depois, a grande folha de azeda que lhe fazia de telhado começou a enrolar-se e murchou, até que ficou apenas uma haste seca e amarela. A Polegarzinha tinha imenso frio, porque o seu vestido estava todo roto e ela era muito frágil e pequenina. Em breve morreria de frio. A neve começou a cair, e cada floco que caía sobre ela era tão pesado como uma pazada atirada a um de nós. Afinal, ela só tinha dois centímetros e meio de altura. Embrulhou-se numa folha murcha, mas não conseguiu aquecer-se, e tremia cada vez mais.

Por essa altura, já tinha alcançado a orla da floresta. Mesmo ao lado havia um grande campo de trigo, mas este tinha sido ceifado há muito tempo e só se via o restolho seco na terra gelada. Para ela, aquilo era o mesmo que uma floresta para atravessar e oh!, como ela tremia de frio! Finalmente, chegou à porta de um rato do campo, que vivia numa casinha por baixo do restolho. Era aconchegada e confortável, com um armazém cheio de trigo, uma cozinha quente e uma sala de jantar. A pobre Polegarzinha parou à porta da casa do rato como se fosse uma mendiga e pediu se ele lhe dava um bocadinho de um grão, porque já há dois dias que não comia nada.

— Pobrezinha! — disse o rato do campo, que tinha muito bom coração. — Vem para a cozinha, que está quente, e comes comigo.

Gostou tanto da companhia da Polegarzinha que acabou por lhe dizer:

— Podes ficar comigo durante o Inverno, mas tens de limpar e arrumar a casa e contar-me histórias. Gosto muito de histórias.

A Polegarzinha fez o que o velho rato do campo lhe disse; e o tempo foi passando agradavelmente.

— Em breve teremos uma visita — disse o rato do campo. — O meu vizinho vem visitar-me todas as semanas. A casa dele ainda é melhor do que a minha, com grandes e belos quartos, e ele usa um lindo casaco de veludo preto! Se conseguisses que ele casasse contigo, nunca mais te faltaria nada. Mas ele é quase cego, de maneira que tens de te preparar para lhe contar as melhores histórias que souberes.

A Polegarzinha não gostou muito da ideia. Não lhe apetecia nada casar com o vizinho rico; era um toupeiro, e veio fazer a sua visita com o casaco de veludo preto. O rato do campo lembrou à Polegarzinha como ele era rico e culto; disse-lhe que a casa dele era vinte vezes maior do que a sua.

Que ele sabia muitas, muitas coisas, embora não gostasse do sol e das lindas flores, porque nunca os tinha visto. A Polegarzinha teve de cantar para ele, e cantou Tive uma nogueirazinha e Joaninha voa, voa. O toupeiro apaixonou-se pela sua linda voz, mas não disse nada, porque era muito cauteloso.

Ele tinha escavado recentemente uma passagem muito longa, que ia da sua casa à do vizinho, e disse ao rato do campo e à Polegarzinha que podiam ir visitá-lo quando quisessem. Mas pediu-lhes que não tivessem medo da ave morta que estava na passagem. Contou-lhes

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que a ave não tinha qualquer marca nem ferida, não lhe faltavam penas, e o bico estava intacto; devia ter morrido há muito pouco tempo, com a chegada do Inverno, e, de alguma maneira, tinha caído na sua passagem subterrânea.

Então, o toupeiro agarrou num pedaço de madeira podre com a boca (porque a madeira podre brilha como fogo no escuro) e foi à frente para iluminar a longa passagem para os seus convidados. Depressa chegaram ao sítio onde estava a ave, e o toupeiro empurrou o teto com o focinho largo, levantando a terra para fazer um buraco que deixou entrar a luz do dia. E lá estava uma andorinha, com as lindas asas encostadas ao corpo, as pernitas e a cabeça escondidas nas penas; a pobre ave de certeza que tinha morrido de frio. A Polegarzinha teve muita pena dela, porque amava todas as avezinhas, que tinham cantado e chilreado para ela de uma maneira tão encantadora durante todo o Verão. Mas o toupeiro empurrou a andorinha para o lado com as suas pernitas curtas e disse:

— Esta já não assobia mais! Que pouca sorte nascer ave! Felizmente que nenhum dos meus filhos será como elas. Uma ave não sabe fazer nada a não ser dizer tuit-tuit e depois morrer de fome no Inverno!

— Sim, lá nisso tens razão — disse o rato do campo. — Com todo o seu tuit-tuit, que é que elas fazem quando chega o Inverno? Morrem de fome e de frio. E, no entanto, toda a gente as acha muito importantes.

A Polegarzinha não disse uma palavra, mas, quando os outros recomeçaram a andar, baixou-se, afastou meigamente as penas da cabeça da andorinha e beijou-lhe os olhos fechados.

— Talvez esta seja a que cantou tão suavemente para mim durante o Verão — pensou. — Que felicidade me deu esta pobre avezinha da floresta!

Então, o toupeiro tapou o buraco que tinha feito para deixar entrar a luz do dia e acompanhou as visitas a casa. Mas nessa noite a Polegarzinha não conseguia dormir, de maneira que levantou-se e teceu uma cobertazinha de feno. Quando acabou, foi pô-la em cima da ave. Ao lado, deixou um pouco de lanugem de cardo que tinha encontrado na sala de estar do rato do campo, para que a ave pudesse repousar quentinha sobre a terra fria.

— Adeus, linda andorinha! — disse ela. — Adeus e obrigada pelas tuas belas canções no Verão, quando as árvores estavam verdes e o Sol brilhava tão alegremente sobre nós todos!

Depois encostou a cabeça ao coração da andorinha — mas ficou logo muito espantada, porque parecia que alguma coisa batia lá dentro. Era o coração da andorinha a bater. Não estava morta, apenas entorpecida pelo frio, e, como tinha sido aquecida, começava a voltar a si.

No Outono, as andorinhas voam todas para terras mais quentes, mas, se uma delas se atrasa, o frio pode fazê-la gelar; então cai no chão e depressa fica coberta de neve.

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A Polegarzinha tremia, assustada; a ave era muito maior do que ela, que só tinha dois centímetros e meio de altura. Mas encheu-se de coragem e aconchegou a lanugem de cardo ao corpo da pobre andorinha. Depois, foi a correr buscar a sua coberta, uma folha de hortelã, para lhe tapar a cabeça.

Na noite seguinte, esgueirou-se outra vez para visitar a andorinha — ela estava realmente viva, mas tão fraca que mal pôde abrir os olhos para olhar para a Polegarzinha. Ali estava ela, com um pedacinho de madeira podre na mão, porque não tinha outra lanterna.

— Obrigada, obrigada, linda menina — disse a andorinha doente. — Aqueceste-me tão bem que depressa estarei suficientemente forte para voar ao sol brilhante.

— Oh! — exclamou a Polegarzinha —, ainda está muito frio lá fora! Há neve e gelo por todo o lado. Fica aí na tua caminha quente que eu trato de ti.

Depois levou-lhe água numa folha, e a andorinha bebeu e contou-lhe como tinha magoado uma asa numas silvas e, por isso, não tinha conseguido voar tão depressa como as outras andorinhas quando partiram para terras mais quentes. Por fim, acabara por cair, e não se lembrava de mais nada. Não fazia a menor ideia de como tinha ido parar ali.

Durante todo o Inverno, a andorinha ficou na passagem subterrânea. A Polegarzinha tratou dela e tornou-se muito sua amiga. Mas não disse nada ao toupeiro nem ao rato do campo, porque eles não gostavam de avezinhas. Por fim, chegou a Primavera e os raios de Sol começaram a atravessar a terra. A andorinha disse adeus à Polegarzinha e reabriu o buraco que o toupeiro tinha feito no teto da passagem. A luz do Sol encheu ambas de alegria, e a andorinha pediu à Polegarzinha que fosse com ela; podia subir para as suas costas e voariam para a floresta cheia de verdura. Mas a Polegarzinha sabia que o velho rato do campo ficaria triste se ela se fosse embora assim sem mais nem menos.

— Não, não posso ir — disse ela.

— Então adeus, adeus, linda menina bondosa! — respondeu a andorinha, voando em direção ao Sol.

A Polegarzinha viu-a subir no céu, e os seus olhos encheram-se de lágrimas, porque se tinha tornado muito amiga da pobre andorinha.

— Tuit, tuit! — cantou a avezinha, voando em direção à floresta verde.

A Polegarzinha estava agora muito triste. Não a deixavam sair para a claridade do Sol, e, nos campos onde vivia, o trigo era tão alto que, para ela, era como uma floresta que se erguia muito acima da sua cabeça.

— Tens de ter o teu enxoval pronto este Verão — disse o rato do campo, porque, entretanto, o vizinho toupeiro do casaco de veludo tinha proposto casamento à Polegarzinha. — Precisas de roupas de linho e lã e de muitos cobertores e lençóis quando fores casada com o toupeiro.

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A Polegarzinha teve de trabalhar arduamente com a roca, e o toupeiro contratou quatro aranhas para tecerem para ela de dia e de noite. Todas as tardes lhe fazia uma vista e dizia sempre que, quando o Verão acabasse e o Sol não estivesse tão terrivelmente quente e deixasse de queimar a terra até a deixar dura com uma pedra, então casariam. Mas a Polegarzinha não estava nada satisfeita, porque não gostava daquele velho toupeiro tão pomposo. Todas as manhãs, quando o Sol se erguia, e todas as noites, quando se punha, ela esgueirava-se lá para fora; quando o vento fazia ondular as espigas de trigo, conseguia ver o céu azul e pensava sempre como era bom e belo viver ao ar livre. Desejava imenso ver de novo a sua amiga andorinha, mas ela não voltou a aparecer; tinha voado para o bosque verde coberto de folhas.

Quando o Outono chegou, o enxoval da Polegarzinha estava pronto.

— Casas daqui a quatro semanas — disse o rato do campo.

Mas a Polegarzinha começou a chorar e disse que não queria casar com o toupeiro.

— Que disparate! — respondeu o rato do campo. — Não te ponhas com problemas. Arranjaste um marido esplêndido, pois nem a rainha tem um casaco de veludo preto tão bom como o dele! E pensa naquela cozinha e cave tão bem fornecidas! Deves agradecer a tua boa sorte.

E, assim, chegou o dia do casamento. O toupeiro já tinha ido buscar a Polegarzinha, pois ela ia viver com ele bem debaixo do solo; nunca mais poderia apanhar a luz radiante do Sol, porque o toupeiro não a suportava. Cheia de tristeza, foi dizer o último adeus ao Sol brilhante; enquanto vivera com o rato do campo, sempre a tinham deixado ir pelo menos até à porta.

— Adeus, Sol brilhante! — disse ela, erguendo os braços em direção a ele e dando alguns passos no campo imenso, pois o trigo tinha sido ceifado e só ficara o restolho. — Adeus, adeus — disse ela outra vez, abraçando uma florzinha vermelha que crescia por entre os caules. — Se alguma vez tornares a ver a andorinha, diz-lhe que lhe mando saudades!

Nesse preciso momento ouviu um som — tuit, tuit — mesmo por cima de si. Era a andorinha.

Como estava, contente por ver a sua amiga Polegarzinha! Então esta contou-lhe que tinha de casar nesse mesmo dia com o toupeiro e ir viver com ele debaixo da terra, onde o Sol nunca brilhava. E as lágrimas saltaram-lhe dos olhos só de pensar nisso.

— Vem aí o frio Inverno — disse a andorinha. — Vou voar para longe, para os países quentes. Por que não vens comigo? Podes subir para as minhas costas e atares-te a mim com o teu cinto. Deixamos o toupeiro e a sua casa escura e voamos para muito, muito longe, por cima das montanhas, para um país onde o Sol brilha ainda mais do que aqui, onde é sempre Verão e onde as matas e as florestas estão cobertas das mais belas flores. Ah, vem

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comigo, querida Polegarzinha, tu que me salvaste a vida quando eu estava gelada na escura passagem debaixo da terra!

— Sim, vou contigo — acabou por dizer a Polegarzinha.

Sentou-se nas costas da ave e atou o cinto a uma das suas penas mais fortes. Então, a andorinha ergueu-se muito alto no céu e voou por cima de florestas, lagos e montanhas onde há sempre neve. O ar gelado fazia a Polegarzinha tremer, mas ela enfiava-se debaixo das penas quentes da ave e só espreitava para olhar, assombrada, para as belas coisas lá em baixo.

Por fim, chegaram aos países quentes. Aí, o Sol brilhava com muito mais intensidade do que a Polegarzinha supunha ser possível; o céu parecia duas vezes mais alto. Ao longo das estradas, havia deliciosas uvas brancas e roxas; limões e laranjas pendiam das árvores; o ar estava perfumado de mirto e de muitas outras plantas aromáticas; e, pelos caminhos, corriam muitas crianças lindas, a brincar por entre coloridas borboletas. Mas a andorinha voou ainda para mais longe, para onde a paisagem era também ainda mais bonita. E então, à sombra de enormes árvores verdes, na margem de um lago azul-safira, viram um palácio muito antigo construído em mármore branco, com videiras enroladas nas suas altas colunas. Mesmo no cimo das colunas havia muitos ninhos de andorinhas, e num deles vivia a amiga da Polegarzinha.

— A minha casa é esta — disse ela. — Mas, se quiseres escolher uma daquelas lindas flores ali em baixo, eu ponho-te lá, e podes viver feliz à tua vontade.

— Ah, como vou gostar! — gritou a Polegarzinha, batendo as mãozinhas.

Uma grande coluna branca estava caída por terra, partida em três bocados, e entre eles cresciam altas e belas flores brancas. A andorinha voou até lá abaixo com a Polegarzinha e poisou-a numa pétala. Então, a Polegarzinha teve uma grande surpresa. Ali, no centro da flor, estava um principezinho, tão belo e delicado que parecia feito de vidro. Tinha na cabeça a coroa de ouro mais bonita que pode imaginar-se e nos ombros um par de asas coloridas e brilhantes, e não era maior do que a própria Polegarzinha. Era o espírito que guardava a flor. Em cada flor havia uma criaturinha igual, mas ele era o rei de todas.

— Que bonito que ele é! — sussurrou a Polegarzinha à andorinha.

O principezinho ao princípio ficou muito assustado com a ave, que lhe parecia gigantesca, mas quando viu a Polegarzinha ficou cheio de alegria. Achou que ela era a mais bela de todas as criaturas que jamais tinha visto, mesmo entre as fadas das flores. Tirou a coroa de ouro da sua cabeça e colocou-a na dela e perguntou-lhe como se chamava e se queria ser sua mulher e rainha de todas as flores.

Bem, este marido podia ela amar de verdade — era muito diferente do filho do sapo ou do velho toupeiro com o seu casaco de veludo. E por isso disse que sim ao belo príncipe. Então, ergueu-se de cada flor uma criaturinha, rapaz ou rapariga, homem ou mulher, tão pequeninas e tão bonitas que era emocionante vê-las. Todas deram uma prenda à Polegarzinha, mas a melhor de todas foi um lindo par de asas. Prenderam-nas aos ombros da

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Polegarzinha, e agora também ela podia voar de flor em flor. Toda a gente estava cheia de alegria: era como uma maravilhosa festa de Verão. A andorinha, lá em cima no seu ninho, cantou-lhes a canção mais bonita que sabia, mas no fundo estava triste, porque gostava tanto da Polegarzinha que não queria separar-se dela.

— Nunca mais te chamarás Polegarzinha — declarou o príncipe das flores. — Não é um nome suficientemente bonito para uma criatura tão bela como tu. A partir de agora, vamos chamar-te Maia!

— Adeus, adeus — disse a andorinha, quando chegou a altura de voar de novo dos países quentes para a Dinamarca.

Aí, ela tinha um pequeno ninho ao lado da janela do homem que escreve contos de fadas.

— Ouve, ouve — trinou a andorinha para o escritor de contos de fadas...

E foi assim que soubemos esta história.

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O Fato Novo do Imperador

Recorte em papel feito por Hans Christian Andersen

Museus da Cidade de Odense

Era uma vez um imperador que viveu há muitos anos. Gostava tanto de roupas novas e bonitas que gastava todo o seu tempo e dinheiro a vestir-se. Não ligava importância ao exército, não ia ao teatro, não andava de carruagem por entre o povo a não ser quando queria exibir uma fatiota nova. Tinha um casaco diferente para cada hora do dia; e, tal como se ouve dizer de outros soberanos: "Está em Conselho!", no seu caso a resposta seria: "O imperador está no quarto de vestir!"

A vida era bastante alegre na cidade em que ele vivia. Estavam sempre a chegar forasteiros, e um dia apareceram dois indivíduos com um ar suspeito que diziam ser tecelões. Mas, segundo eles, o tecido que fabricavam não só era extraordinariamente belo como tinha ainda propriedades mágicas: mesmo quando transformado em peças de vestuário, era invisível para todas as pessoas que não desempenhassem bem as suas tarefas ou que fossem particularmente estúpidas. — Excelente! — pensou o imperador. "Que bela oportunidade para descobrir quais os homens do meu reino que não devem estar nos lugares que ocupam e quais são os espertos e os estúpidos! Pois é, aquele material tem de ser tecido e transformado em roupa imediatamente!"

E deu aos dois malandros uma grande quantia de dinheiro para começarem a trabalhar.

Assim, os dois patifes montaram dois teares e agiram como se estivessem a trabalhar afanosamente, mas a verdade é que não havia nada nos teares. Pouco depois, estavam a pedir o melhor fio de seda e de ouro, que meteram nos seus próprios bolsos, continuando a mover os braços diante dos teares vazios pela noite dentro.

Ao fim de algum tempo, o imperador pensou: "Gostava realmente de saber como vai aquilo!"

Mas, quando se lembrou de que o tecido não podia ser visto pelas pessoas estúpidas ou incompetentes no seu trabalho, sentiu-se um tanto embaraçado em ir ele próprio. Não que tivesse quaisquer dúvidas quanto às suas capacidades, é claro, mas achou que talvez fosse melhor mandar alguém primeiro, Afinal de contas, toda a gente na cidade sabia dos

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poderes especiais do tecido; toda a gente estava ansiosa por descobrir até que ponto o vizinho era estúpido ou incompetente.

— Já sei! Vou lá mandar o meu velho e honesto ministro! — decidiu. — É o homem indicado, o mais sensato possível, e ninguém pode queixar-se da maneira como desempenha as suas funções.

Então, o bom velho ministro foi à sala onde os dois malandros estavam a fingir que trabalhavam nos teares.

— "Que Deus me ajude!" pensou ele, abrindo os olhos cada vez mais. "Não consigo ver nada."

Mas guardou o pensamento só para si.

Os dois vigaristas pediram-lhe que se aproximasse; não achava ele que os padrões eram lindos e as cores deliciosas? E gesticulavam diante dos teares vazios. Mas, embora o pobre velho ministro espreitasse e olhasse fixamente, continuava a não ver nada, pela simples razão de que não havia lá nada para ver.

"Céus!", pensou. "Serei mesmo estúpido? Nunca pensei que fosse, e o melhor é que ninguém o pense! Serei mesmo incompetente a desempenhar as minhas funções? Não, não posso dizer que não vejo o tecido."

— Então, não o acha admirável? — perguntou um dos falsos tecelões, continuando a mexer as mãos. — Ainda não disse nada!

— Oh, é encantador, perfeitamente maravilhoso — disse o pobre velho ministro, olhando atentamente através dos óculos. — O padrão, as cores... sim, tenho de dizer ao imperador que os acho notáveis.

— Bem, isso é muito animador — disseram os dois tecelões, apontando-lhe os pormenores do padrão e as diferentes cores utilizadas.

O velho ministro ouviu atentamente, de modo a poder repetir tudo ao imperador. E foi o que fez.

Os dois impostores então pediram mais dinheiro e mais fio de sede e de ouro; disseram que precisavam disso para acabarem o tecido. Mas tudo que lhes deram foi direitinho para os seus bolsos e nem um ponto apareceu nos teares. Apesar disso, continuaram a agitar afanosamente os braços diante das máquinas vazias.

Mais tarde, o imperador mandou outro honesto funcionário para ver o andamento do trabalho e saber se o tecido estaria pronto em breve. Aconteceu-lhe a mesma coisa que ao ministro; olhou e tornou a olhar, mas, como não havia nada para ver senão os teares vazios, nada foi tudo o que ele viu.

— Não é um belo tecido? — perguntaram os aldrabões.

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E ergueram o tecido imaginário diante dele, apontando para o padrão que não existia.

"Eu acho que não sou estúpido", pensou o funcionário. "Se calhar não sou a pessoa indicada para o cargo que desempenho. Bem, nunca pensaria tal coisa! E o melhor é que ninguém o pense!"

Por isso, emitiu ruídos de apreciação sobre o tecido que não conseguia ver e disse aos homens que gostava muito das cores e do desenho.

— Sim — afirmou ao imperador —, é magnífico.

As notícias sobre aquele tecido fantástico depressa se espalharam pela cidade. E então o imperador decidiu ir vê-lo ainda nos teares. Assim, com alguns servidores cuidadosamente escolhidos — entre os quais os dois honestos funcionários que já lá tinham estado —, foi à sala de tecelagem, onde os malandros faziam as suas palhaçadas, tão ativos como sempre.

— Que tecido esplêndido! — exclamou o velho ministro.

— Veja o padrão, majestade! Observe as cores! — disse o outro funcionário.

E apontavam para os teares vazios, porque estavam certos de que as outras pessoas viam o tecido.

"Isto é terrível!", pensou o imperador. "Não vejo nada! Serei estúpido? Serei incompetente como imperador? É assustador pensar uma coisa dessas." Então, disse em voz alta:

— Oh, é encantador, encantador! Tem toda a nossa aprovação!

Acenou com ar satisfeito para os teares vazios; nunca iria admitir que não via lá absolutamente nada.

E os cortesãos que o acompanhavam também olhavam fixamente, todos eles secretamente alarmados por não serem capazes de ver um único fio. Mas, em voz alta, fizeram eco com o imperador:

— Encantador, encantador!

E aconselharam-no a utilizar o esplêndido tecido para o novo fato real que teria de vestir num grande cortejo a realizar dentro em pouco.

— É magnífico e tão fora do vulgar... — era o que se ouvia de todos os lados.

E o imperador condecorou os dois impostores com uma roseta para porem nas botoeiras dos casacos e o título de Funcionário Imperial do Tear.

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Durante toda a noite anterior ao dia do cortejo, os dois aldrabões fingiram trabalhar, com dezasseis velas à sua volta. Toda a gente podia ver como eles estavam atarefados, tentando acabar a tempo o fato novo do imperador. Fingiam tirar o tecido dos teares, cortavam o ar com grandes tesouras de alfaiate, cosiam e tornavam a coser com agulhas sem linha. Por fim, anunciaram:

— A roupa está pronta!

O imperador foi vê-la com os seus cortesãos mais nobres, e os dois aldrabões ergueram os braços como se estivessem a levantar alguma coisa.

— Aqui estão as calças — disseram eles. — Aqui está o casaco e aqui está a cauda... — e por aí fora. — São leves como espuma; pelo toque, dir-se-ia que não se tem nada vestido, mas a beleza está precisamente aí.

— Sim, claro... — disseram os acompanhantes do imperador, embora continuassem sem ver nada, porque não havia nada para ver.

— Se Vossa Majestade Imperial quiser fazer o favor de tirar a roupa que tem vestida, teremos a honra de o ajudar a vestir esta diante do espelho grande.

O imperador despiu-se e os dois aldrabões fingiram entregar-lhe as roupas novas, uma peça de cada vez. Depois, com os braços à volta da sua cintura, fingiram ajustar a cauda, num toque final.

O imperador virou-se e deu uma volta em frente do espelho.

— Que elegante! Que bem que assenta! — murmuravam os cortesãos. — Que tecido tão rico! Que cores magníficas! Já alguma vez tinham visto uma coisa tão magnífica?

— Majestade — disse o mestre-de-cerimónias —, o dossel já está lá fora.

O dossel cobriria o imperador durante o cortejo.

— Bem — exclamou o imperador —, estou pronto. Assenta realmente muito bem, não acham?

E tornou a dar umas voltas em frente do espelho, como quem se admira pela última vez. Os cortesãos que tinham de pegar na ponta da cauda baixaram-se, como se erguessem alguma coisa do chão, e levantaram as mãos diante de si. Não iam deixar o povo pensar que eles não viam nada.

E assim o imperador foi caminhando no imponente cortejo, sob o esplêndido dossel, e toda a gente nas ruas ou nas janelas exclamava:

— Que ar magnífico tem o imperador! E as roupas novas... não são maravilhosas? Olhem só para a cauda! Que elegante!

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O facto é que ninguém queria admitir que não via roupas nenhumas, porque isso significaria que eram estúpidos ou então incompetentes no seu trabalho. Nenhum dos belos fatos do imperador tinha sido tão admirado até então.

Foi quando se ouviu claramente uma voz espantada de criança:

— O imperador não leva nada vestido!

— Estes inocentes! As coisas ridículas que dizem! — exclamou o pai da criança.

Mas um murmúrio começou a crescer no meio da multidão:

— Aquela criança diz que o imperador não leva nada vestido... o imperador não leva nada vestido! E daí a pouco toda a gente repetia: — O imperador não leva nada vestido!

Por fim, até o próprio imperador achou que eles deviam ter razão, mas pensou para si próprio:

"Não posso parar, senão estrago o cortejo."

E lá foi andando com um ar cada vez mais orgulhoso, enquanto os cortesãos continuavam a segurar uma cauda que não existia.

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O Trigo Mourisco

Recorte em papel feito por Hans Christian Andersen Museus da Cidade de Odense

Muitas vezes, após uma trovoada, ao passar-se por um campo de trigo mourisco, pode ver-se como ficou todo chamuscado. É como se o fogo tivesse passado por ele e o camponês dá-nos a explicação seguinte: "Foi um raio!" Mas porquê? Pois vou contar-lhes o que disse a um pardal um velho salgueiro que se encontrava perto dum campo de trigo mourisco e ainda lá está. É um salgueiro grande e venerável, mas enrugado e velho, um pouco rachado ao meio, com uma fenda onde crescem ervas e sarças. A árvore está um pouco tombada para a frente, e os ramos pendem para o solo, como se fossem uma longa cabeleira verde.

Em toda a volta havia campos de cereal, de centeio, de cevada e de aveia, a bela aveia que, quando está sazonada, parece um enorme bando de pequeninos canários amarelos pousados num ramo. Os cereais são assim uma bênção de Deus e quanto mais pesados estão, mais baixos se inclinam em humildade.

Mas havia também um campo de trigo mourisco, bem perto do velho salgueiro, que não queria nunca inclinar-se como os outros cereais; sempre se mantinha direito, orgulhoso e altivo.

— Sou tão rico como a espiga de trigo — disse ele. — Sou, além disso, mais bonito. As 15 minhas flores são tão belas como as da macieira, e é um regalo olhar para mim e para a minha floração. Conheces algo de mais belo, velho salgueiro? O salgueiro abanou a cabeça, como quem diz "pois claro que conheço", mas o trigo mourisco inchou de orgulho e exclamou: — Árvore estúpida, tão velha estás que te crescem ervas na barriga!

Então rebentou uma terrível trovoada. Todas as flores dobraram as folhas ou inclinaram as cabeças, enquanto passava a trovoada sobre elas. Só o trigo mourisco continuava com a cabeça erguida, no seu orgulho.

— Abaixa a cabeça, como nós! — disseram as flores.

— Não tenho nenhuma necessidade disso! — respondeu o trigo mourisco.

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— Abaixa a cabeça como nós! — gritou o trigo. — Vem aí o Anjo da Tempestade! Tem asas e com elas alcança tanto o céu lá em cima como a terra cá em baixo. Pode ceifar-te sem teres sequer tempo de pedir-lhe mercê.

— Está bem, mas eu não vergo! — retorquiu o trigo mourisco.

— Anda, fecha as flores e dobra as folhas! — disse o velho salgueiro. — Não olhes para cima, para os raios, quando as nuvens rebentam. Nem os próprios homens o podem fazer, pois que por eles é possível olhar para dentro do Céu, mas isso é bastante para os cegar. E o que nos aconteceria a nós, plantas da terra, se o ousássemos fazer, nós que somos muito menos?

— Muito menos? — disse o trigo mourisco. — Pois vou mesmo olhar para dentro do Céu! E foi isso que fez, com presunção e orgulho. Caiu então uma faísca tão grande que parecia que toda a terra ardia em chamas.

Quando o mau tempo passou, sentiram-se as flores e os cereais numa atmosfera calma e pura, refrescada pela chuva; mas o trigo mourisco ficara completamente queimado, reduzido a carvão pelo raio. Era agora uma erva inútil e morta no campo.

O velho salgueiro agitava os ramos ao vento e deixava tombar grandes gotas de água das suas folhas verdes, como se chorasse. Os pardais perguntaram-lhe:

— Porque estás a chorar? Não é tudo maravilhoso? Repara como brilha o sol e deslizam as nuvens. Não sentes o perfume das flores e dos arbustos? Porque choras, pois, velho salgueiro?

Então, o salgueiro falou-lhes do orgulho e da presunção do trigo mourisco e do seu castigo. É sempre assim. Eu, que escrevi este conto, ouvi-o duns pardais. Contaram-mo uma tarde em que lhes pedi uma história.

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O Patinho Feio

Recorte em papel feito por Hans Christian Andersen Museus da Cidade de Odense

Estava muito agradável no campo. O ar rescendia a Verão; o milho estava amarelo; a aveia estava pronta a ser ceifada; as medas de feno nos prados pareciam pequenas colinas de erva e a cegonha passeava por cima delas com as suas longas pernas vermelhas. A toda a volta dos campos havia bosques e florestas com fundos lagos de água fresca. Sim, estava mesmo muito agradável no campo. E, brilhando ao sol, podia ver-se uma velha mansão rodeada por um fosso. Grandes folhas de azedas cresciam nas paredes até à água; algumas eram tão grandes que uma criança podia ficar de pé debaixo delas. À sombra podia-se até pensar que se estava numa florestazinha secreta e primitiva.

Era aí que uma pata chocava os seus ovos no ninho. Porém, já estava a ficar bastante farta, porque os patinhos nunca mais apareciam; quanto a visitas, quase não as tinha; os outros patos preferiam nadar no fosso a ir ter com ela debaixo das grandes folhas para conversar.

Por fim, os ovos começaram a estalar, um a seguir ao outro.

— Pip, pip!

O ninho ficou cheio de avezinhas que deitavam as cabeças fora das cascas.

— Quac, quac! — disse a mãe. — Depressa, depressa! E as criaturinhas saíram o mais depressa que puderam e olharam à sua volta, no abrigo de folhas verdes; e a mãe deixou-as olhar à vontade, porque o verde faz bem aos olhos.

— Como o mundo é grande! — disseram os pequenos.

É claro que agora tinham muito mais espaço do que dentro dos ovos.

— Pensam que o mundo é só isto, seus patetas? — perguntou a mãe. — Ora! O mundo estende-se muito para além do outro lado do jardim, mesmo até ao campo do vigário. Embora, verdade seja dita, eu nunca tenha lá estado. Já cá estão todos, não estão? — Levantou-se do ninho. — Não, tu ainda não. Ainda falta o ovo maior. Quanto tempo demorará ainda? Estou mesmo farta disto, se querem saber.

E lá tornou a deitar-se.

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— Bem, que tal vão as coisas? — perguntou uma velha pata que veio visitá-la.

— Este ovo está a demorar um tempo horrível — disse a mãe pata. — Não há meio de estalar! Mas olhe para os outros! São os patinhos mais bonitos que já vi, tal e qual o pai, aquela peste, que nunca vem visitar-me!

— Deixe lá ver o ovo — disse a velha pata. — Ah! Acredite no que lhe digo, isso é um ovo de peru. Uma vez aconteceu-me a mesma coisa e nem calcula o trabalho que tive com os miúdos! Como eram perus, tinham medo da água, e não consegui metê-los lá. Deixe ver. É, é um ovo de peru. Deixe-o ficar e vá ensinar os outros a nadar.

— Bem, vou aguentar um pouco mais — respondeu a pata. — Já aqui estou há tanto tempo que mais vale acabar o trabalho.

— Está bem, faça como quiser — respondeu a velha pata, e foi-se embora.

Por fim, o grande ovo estalou.

— Pip, pip! — disse o jovem, saindo cá para fora.

Mas que grande e que feio que ele era! A mãe olhou para ele.

— Que grande patinho! — pensou. — Será mesmo um peru? Bem, já vamos ver; há-de ir para a água, nem que eu tenha de o empurrar.

No dia seguinte, o tempo estava lindo, e a mãe pata saiu com todos os filhos e desceu até ao fosso, onde mergulhou.

— Quac, quac! — chamou ela.

E, um atrás do outro, os patinhos saltaram para a água. Ficaram com as cabeças debaixo de água, mas vieram logo à tona, e em breve nadavam afanosamente. As suas patinhas mexiam-se naturalmente, e lá estavam todos — até o feio cinzento nadava com os outros.

— Não, isto não é um peru! — exclamou a mãe. — Que bem que ele usa as patas e que direito que nada. É meu filho, isso não há dúvida. Realmente, é bem bonito, se virmos bem. Quac, quac! Venham comigo, meninos; venham conhecer o mundo e as outras aves da quinta; mas fiquem perto de mim, para ninguém os pisar. E cuidado com o gato!

E lá foram para o pátio da quinta. Aí havia um barulho horrível e grande agitação, porque duas famílias discutiam por causa da cabeça de uma enguia — e afinal quem a apanhou foi o gato.

— O mundo é assim — disse a mãe pata.

Ficou com água no bico, porque também ela teria gostado de apanhar a cabeça da enguia.

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— Vá, usem as pernas; despachem-se e façam uma vénia à velha pata que está ali! E a pessoa mais importante da quinta; os antepassados dela vieram da Espanha e, como veem, tem um pedacinho de pano vermelho atado a uma pata. Isso é uma coisa muito especial: significa que ninguém a pode matar e que tanto os homens como os animais têm de a tratar com respeito. Venham! Não metam os pés para dentro! Um patinho bem educado anda com os pés bem afastados, como o pai e a mãe. Vá! Façam uma vénia e digam: «Quac!».

Os patinhos fizeram o que ela lhes disse, mas os outros patos do pátio olharam para eles e disseram em voz alta:

— Lá vamos ter de aturar estes, como se já não fôssemos bastantes! E, meu Deus!, que patinho tão esquisito aquele! Não o queremos com certeza por aqui.

E um pato esvoaçou em direção ao patinho cinzento e deu-lhe uma bicada no pescoço.

— Deixa-o em paz — disse a mãe. — Ele não está a incomodar ninguém.

— Pois não, mas é muito grande e tem um ar esquisito — respondeu o pato que o tinha bicado. — Tem de ser metido na ordem.

— Bela família — comentou a velha pata com o paninho vermelho à volta da perna. — Os patinhos são todos bonitos, excepto aquele, não pode ser. Se ao menos a mãe pudesse tornar a fazê-lo!

— Isso é impossível, Vossa Senhoria — disse a mãe pata. — É verdade que não é bonito, mas tem bom feitio e nada tão bem como os outros. Atrevo-me até a dizer que, quando for crescido, é capaz de vir a ser mais bonito e talvez, com o tempo, um pouco mais pequeno. Ficou tempo de mais dentro do ovo e foi isso que lhe estragou o aspeto. — Ajeitou-lhe a penugem do pescoço e alisou-lhe uma penita ou outra. — Além disso — acrescentou —, é um pato, por isso não tem muita importância se é bonito ou feio. É saudável, tenho a certeza, e há de vingar neste mundo.

— Seja como for, os outros patinhos são encantadores — retorquiu a velha pata. — Bom, estejam à vontade, e se encontrarem uma cabeça de enguia podem trazer-ma.

Isto foi o primeiro dia; depois, a sina do patinho cinzento piorou. Que infeliz se sentia por ser tão feio! Era perseguido por todos. Os patos tentavam dar-lhe bicadas; as galinhas também; e a rapariga que dava de comer aos animais empurrava-o com o pé. Até os irmãos e as irmãs estavam contra ele e diziam:

— Feio! Era bem feito que o gato te apanhasse!

A mãe também dizia em voz baixa:

— Quem me dera que estivesses longe...

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E então ele foi-se embora. Primeiro, voou por cima da sebe — e os passarinhos nos arbustos voaram alarmados.

«É por eu ser tão feio», pensou o patinho, fechando os olhos.

Mas continuou o seu caminho. Por fim, chegou aos charcos onde vivem os patos bravos e ficou lá deitado toda a noite, porque estava muito cansado e triste.

De manhã, os patos bravos apareceram e observaram o seu novo companheiro.

— Que espécie de criatura és tu? — perguntaram.

O patinho virou-se para cada um e cumprimentou-os o mais amavelmente que pôde.

— És mesmo feio, lá isso és! — disse um pato bravo. — Mas isso pouco importa, desde que não cases com nenhuma das nossas filhas.

Pobrezinho do patinho. A ideia de casar nem sequer lhe tinha vindo à cabeça. Tudo o que queria era deitar-se e descansar nos juncos e beber um pouco da água do charco.

Ali ficou durante dois dias, até que apareceram dois gansos selvagens — dois jovens machos. Também tinham nascido há pouco, mas eram muito vivos e descarados.

— Olá, amigo — disseram. — És tão feio que gostamos de ti. Que tal vires connosco quando voarmos para mais longe? Num charco perto daqui há umas lindas gansas, belas raparigas, com um «quac!» que vale a pena ouvir. Com o teu aspeto esquisito pode ser que tenhas sorte com elas.

Nesse momento ouviu-se «bang!, bang!» e ambos os alegres gansos caíram mortos nos juncos. A água ficou vermelha de sangue. Outra vez «bang!, bang!» — e um bando de gansos selvagens levantou voo dos juncos. Era uma grande caçada. Os desportistas estavam a toda a volta do charco; alguns estavam mesmo empoleirados nas árvores. Fumo azul subia como nuvens dentro e fora dos ramos escuros e ficava a pairar sobre a água. Os cães faziam tchac!, tchac!, pela lama, esmagando os juncos. O pobre patinho estava aterrorizado; quando tentava precisamente esconder a cabeça debaixo da asa um cão enorme e assustador parou em frente dele com a língua de fora e os olhos a brilharem de uma maneira horrível. Encostou o focinho ao patinho, arreganhou os dentes aguçados e depois — tchac!, foi-se embora sem lhe tocar.

— Oh, graças a Deus! — suspirou o patinho. — Sou tão feio que até o cão pensa duas vezes antes de me morder. E ficou muito quieto enquanto ouvia os tiros, um após outro, guincharem e troarem pelos juncos. O dia já ia longo quando o barulho parou; mas a pobre criatura nem então se atreveu a mexer-se. Por fim, levantou a cabeça, espreitou cautelosamente em redor e apressou-se a fugir do charco tão depressa quanto pôde. Correu por campos e prados, mas o vento soprava tão forte contra ele que era difícil avançar.

Perto da noite, chegou a um casinhoto miserável; estava em tal estado que nem sabia para que lado havia de cair, de modo que continuava de pé. O vento soprava com

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tanta força que o patinho teve de se sentar para não ser levado por ele, mas o vento parecia ficar cada vez mais forte. Então notou que a porta já não tinha uma dobradiça e estava pendurada de tal modo que ele conseguia esgueirar-se lá para dentro, e foi isso mesmo que fez.

No casinhoto vivia uma velhota com um gato e uma galinha. O gato, a quem ela chamava Filhinho, sabia arquear as costas e fazer ronrom; também fazia faíscas, mas só quando lhe faziam festas ao contrário. A galinha tinha umas pernitas curtas e por isso chamava-se Pinta-Pernas-Curtas. Punha muitos ovos, e a velhota gostava dela como se fosse sua filha.

Quando amanheceu, repararam logo no estranho pequeno visitante. O gato começou a fazer ronrom, e a galinha a cacarejar.

— O que é que aconteceu? — perguntou a velhota, olhando a toda a volta.

Mas já não via muito bem, de modo que tomou o pequeno recém-chegado por uma pata adulta.

— Ora isto é que é sorte! — exclamou ela. — Agora vou ter ovos de pata... desde que não seja um pato. Bem, veremos...

E o patinho ficou à experiência durante três semanas, mas não apareceram ovos.

O gato era o senhor da casa, e a galinha a senhora. Passavam a vida a dizer «Nós e o mundo...», porque pensavam que eram metade do mundo e, claro, a metade melhor. O patinho achava que podia haver outras opiniões sobre o assunto, mas a galinha não queria ouvir falar nisso.

— Sabes pôr ovos? — perguntou. — Não? Então, faz o favor de guardar as tuas opiniões para ti próprio!

O gato perguntou:

— Sabes arquear as costas e fazer ronrom ou soltar faíscas? Não? Então o melhor que tens a fazer é ficares calado quando as pessoas sensatas estão a falar.

De maneira que o patinho se sentava a um canto e aborrecia-se. Vinham-lhe à ideia pensamentos sobre o ar livre e o sol, e depois uma saudade extraordinária de flutuar na água. Por fim, não pôde deixar de falar nisso à galinha.

— Que ideia tão disparatada! — exclamou ela. — O teu mal é não teres nada que fazer; por isso é que tens essas fantasias. Põe mas é uns ovos ou tenta fazer ronrom que isso passa-te.

— Mas é tão delicioso flutuar na água — disse o patinho. — É tão bom baixar a cabeça e mergulhar até ao fundo!

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— Deve ser ótimo! — disse a galinha sarcasticamente. — Não deves estar bom da cabeça! Pergunta ao gato, que é a pessoa mais inteligente que conheço, se ele gosta de flutuar na água ou de mergulhar até ao fundo. Não faças caso da minha opinião; pergunta à nossa dona, a velhota: não há ninguém mais sábio no mundo inteiro. Achas que ela quer flutuar ou meter a cabeça dentro de água?

— Não compreendes... — disse o patinho tristemente.

— Bem, se nós não te compreendemos, ninguém compreenderá. Nunca saberás tanto como o gato ou a velhota, para já não falar de mim. Não tenhas peneiras, miúdo, e agradece as coisas boas que te têm acontecido. Não encontraste um quarto quente e companheiros elegantes, com quem podes aprender muito se prestares atenção? Mas tu só dizes disparates; nem sequer és uma companhia alegre. Acredita que o que te digo é para teu bem. Vá, faz um esforço e põe uns ovos ou, pelo menos, aprende a fazer ronrom e a deitar faíscas.

— Acho que o melhor é ir por esse mundo fora — respondeu o patinho.

— Então vai — exclamou a galinha.

E o patinho lá foi. Boiou na água e mergulhou; mas parecia-lhe que os outros patos não faziam caso dele por ele ser feio.

Até que chegou o Outono: as folhas do bosque ficaram castanhas e amarelas; o vento apanhava-as e fazia-as rodopiar como loucas; até o céu parecia gelado; as nuvens pairavam, pesadas com granizo e neve, e o corvo, empoleirado numa sebe, gritava «crá, crá» por causa do frio. Só de olhar para aquilo ficava-se logo a tremer. Foi um tempo difícil também para o patinho.

Uma tarde, com o céu avermelhado pelo pôr-do-sol, um bando de grandes aves maravilhosas ergueu-se dos juncos. O patinho nunca tinha visto aves tão belas. Eram de um branco brilhante, com longos pescoços graciosos — na verdade, eram cisnes. Emitindo um estranho som, abriram as esplêndidas asas e voaram para longe, para terras mais quentes e lagos que não gelavam. Voaram até bem alto e o patinho feio ficou muito excitado; andava à roda, à roda, na água, e chamou-os com uma voz tão alta e estranha que até ele próprio se assustou. Oh, nunca esqueceria aquelas aves maravilhosas, aquelas aves felizes! Assim que a última desapareceu, mergulhou mesmo até ao fundo e, quando voltou de novo à superfície, estava excitadíssimo. Não sabia como se chamavam as aves; não sabia de onde tinham vindo nem para onde voavam — mas sentia-se mais atraído por elas do que por qualquer outra coisa.

No Inverno ficou ainda mais frio. O patinho tinha de nadar às voltas na água para esta não gelar, mas cada noite a parte sem gelo se tornava mais pequena. Depois, tinha de bater com os pés a toda a hora, para quebrar a superfície; por fim, acabou por ficar estafado. Parou e depressa gelou completamente.

De manhã cedo apareceu um camponês. Vendo a ave, foi até lá, partiu o gelo com os socos de madeira e levou-a para casa, para a mulher. Pouco tempo depois, o patinho

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reanimou-se. As crianças queriam brincar com ele, mas ele julgava que queriam fazer-lhe mal e, assustado, voou para dentro da selha do leite. O leite salpicou a sala toda; a mulher deu um grito e deitou as mãos à cabeça; depois, o patinho voou para dentro da cuba da manteiga, depois para o barril da farinha, e depois saiu. Meu Deus, que espetáculo! A mulher, ainda aos gritos, atirou-lhe o atiçador da lareira; as crianças, rindo e guinchando, caíam umas por cima das outras, tentando apanhar o patinho. Felizmente, a porta estava aberta; lá foi ele a correr para os arbustos e para a neve recém-caída e aí ficou meio entontecido.

Mas seria demasiado triste contar-vos todas as dificuldades e infelicidades por que ele teve de passar durante aquele Inverno cruel. Um dia, estava a tentar aconchegar-se entre os juncos do charco quando o Sol começou a enviar novamente raios quentes; as cotovias cantavam; que maravilha! Tinha chegado a Primavera. O patinho ergueu as asas. Pareciam mais fortes do que antes, e levaram-no velozmente para longe; antes de perceber o que estava a acontecer, encontrou-se num lindo jardim cheio de macieiras em flor, com lilases perfumados que pendiam dos seus longos ramos mesmo até um riacho sinuoso. E então, mesmo em frente dele, saindo das sombras das folhas, apareceram três magníficos cisnes brancos, agitando as penas enquanto deslizavam pela água. O patinho reconheceu as maravilhosas aves e sentiu uma estranha tristeza.

— Vou voar até àquelas nobres aves, mesmo que me matem à bicada por me atrever a aproximar-me, feio como sou. Mas não me importo... é melhor ser morto por umas criaturas tão esplêndidas do que apanhar bicadas de patos e galinhas e pontapés da rapariga da quinta ou ter de aguentar outro Inverno como o último.

Voou para a água e nadou em direção aos magníficos cisnes. Estes viram-no e vieram ter com ele a toda a velocidade, agitando a plumagem.

— Vá, matem-me — disse o pobre patinho curvando a cabeça mesmo até à água enquanto esperava pelo fim.

Mas o que é que viu ele refletido em baixo? Observou-se bem — já não era uma desajeitada ave feia e cinzenta. Era igual às orgulhosas aves brancas ali ao pé: era um cisne!

Não interessa nascer num terreiro de patos quando se sai de um ovo de cisne.

Sentiu-se feliz por ter sofrido tantas dificuldades, porque agora dava valor à sua boa sorte e ao lar que finalmente tinha encontrado. Os majestosos cisnes nadaram à sua volta e acariciaram-no com admiração com os bicos. Umas criancinhas apareceram no jardim e atiraram pão para a água e a mais pequenina gritou alegremente:

— Há mais um!

E as outras disseram, encantadas:

— E verdade, apareceu mais um cisne!

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Bateram palmas e dançaram de contentamento; depois foram a correr contar aos pais. Deitaram mais pão e bolo para a água e todos disseram:

— O novo é o mais bonito de todos. Olhem que belo que é, aquele novo!

E os cisnes mais velhos curvaram as cabeças diante dele.

Ele sentia-se muito envergonhado e escondeu a cabeça debaixo de uma asa; não sabia o que fazer. Estava quase feliz de mais, porque um bom coração nunca é orgulhoso nem vaidoso. Lembrava-se dos tempos em que tinha sido perseguido e desprezado, e agora ouvia toda a gente dizer que era a mais bela de todas aquelas maravilhosas aves brancas. Os lilases curvaram os ramos até à água para o saudarem; o Sol enviou o seu calor amigo, e a jovem ave, com o coração cheio de alegria, agitou as penas, ergueu o pescoço esguio e exclamou:

— Nunca pensei que alguma vez pudesse sentir tamanha felicidade quando era o patinho feio!

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A Família Feliz

Recorte em papel feito por Hans Christian Andersen Museus da Cidade de Odense

A maior folha verde que temos neste país é com certeza a folha da bardana. Uma menina podia usá-la como avental; se a pusesse na cabeça quando chovia, faria de guarda-chuva — é tão grande como isso. Nenhuma bardana cresce sozinha; não, onde há uma, há sempre muitas outras. São um lindo espetáculo — e todo esse esplendor costumava ser a comida dos caracóis. Há um género especial de caracóis que vive nas folhas, uma espécie de caracol que os ricos costumavam cozinhar e comer. Murmuravam «Delicioso!» quando os comiam. E foi por isso que se começou a plantar bardanas.

Ora, havia uma velha mansão onde há muito tempo que se tinha deixado de comer caracóis. Os caracóis estavam mesmo quase extintos, mas não as bardanas, que cresciam e se multiplicavam. Espalhavam-se pelos caminhos e pelos canteiros de flores até não se ter mão nelas: o jardim era uma autêntica floresta de bardanas. Aqui e ali, havia uma macieira ou uma ameixieira; se não fosse isso, nem se percebia que tinha havido ali um jardim. Havia bardanas por todo o lado — e entre elas viviam os dois únicos sobreviventes dos caracóis, ambos muitíssimo velhos.

Eles próprios não sabiam que idade tinham, mas lembravam-se muito bem que, em tempos, tinha havido ali muitos mais, que a família tinha vindo do estrangeiro e que tinha sido especialmente para ela que a floresta de bardanas fora plantada. Nunca tinham saído dali, embora soubessem que havia uma outra coisa no Mundo chamada mansão. Lá, era onde os cozinhavam, era onde eles ficavam pretos e onde eram depois postos numa travessa de prata; mas o que acontecia depois ninguém sabia. Quanto a isso, não imaginavam o que se sentia ao ser cozinhado e posto numa travessa de prata, mas parecia que era muito interessante e, com certeza, muito fino. O escaravelho, o sapo e a minhoca foram interrogados sobre o assunto, mas nenhum deles tinha sido cozinhado ou colocado numa travessa de prata.

Os velhos caracóis brancos eram os aristocratas daquele mundo — disso não tinham a menor dúvida. A floresta existia só para eles, tal como a antiga mansão e a sua travessa de prata.

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Passavam os dias numa felicidade tranquila e isolada e, como não tinham filhos, adotaram um pequeno caracol vulgar, que criaram como se fosse deles. O pequeno não cresceu, porque não passava de um caracol vulgar. No entanto, os velhotes, especialmente a mãe-caracol, achavam sempre que ele tinha crescido um bocadinho desde o dia anterior. E quando o pai-caracol parecia não ver a diferença, ela pedia-lhe que apalpasse a pequena casca. E ele lá apalpava e concordava que ela tinha razão.

Um dia caiu uma grande chuvada.

— Ouve o tum-tum-tum nas folhas da bardana! — exclamou o pai-caracol.

— É verdade, e olha que alguns pingos estão a passar — respondeu a mãe-caracol. — Olha, escorrem pelos caules. Meu Deus, vai ficar tudo molhado aqui em baixo! Ainda bem que temos as nossas belas casas, uma para cada um e outra para o nosso pequeno! Realmente, devemos ser os animais mais favorecidos! Vê-se bem que somos os príncipes deste mundo. Cada um de nós tem uma casa sua assim que nasce, além de uma floresta inteira plantada para nós. Às vezes penso onde é que ela acabará e o que haverá depois dela...

— Nada! — respondeu o pai-caracol. Ninguém pode viver melhor em outro lugar e não estou interessado em ir mais longe.

— Ah, mas eu estou! — continuou a mãe-caracol. — Gostaria mesmo de ir até à mansão e de ser cozinhada, seja lá isso o que for, e colocada na travessa de prata. Todos os nossos antepassados passaram por isso, o que mostra que deve ser qualquer coisa de especial.

— A mansão é bem capaz de já se ter desmoronado — disse o pai-caracol. — Ou de estar coberta por bardanas e as pessoas nem poderem sair de lá. Seja como for, não precisas de estar com tanta pressa. Andas sempre numa lufa-lufa, e agora o pequeno está a ficar como tu! Em três dias quase chegou ao cimo daquele caule; fico tonto só de o ver rastejar daquela maneira!

— Não estejas sempre a pôr defeitos na criança — disse a mãe-caracol. — Ele rasteja com tanto cuidado! Tenho a certeza de que há de dar-nos grandes alegrias. E, afinal, não é ele a nossa razão de viver? Olha, já pensaste onde havemos de lhe arranjar uma noiva? Não achas que por aí, nalgum sítio desta floresta de bardanas, pode haver alguém da nossa espécie?

— Bem, acho que há muitas lesmas e coisas parecidas, dessas que andam por aí sem casa própria — respondeu o velho caracol. — Mas isso para nós seria descer, apesar de elas terem muitas peneiras. No entanto, podemos encarregar as formigas de procurar. Andam sempre numa azáfama, para um lado e para o outro; como se tivessem muito que fazer; podem muito bem saber de uma esposa para o nosso caracolzinho.

— Ah, sim — disseram as formigas —, conhecemos a noiva mais linda; mas é capaz de ser difícil, porque é uma rainha.

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— Isso não tem qualquer importância! — exclamou o velho caracol. — E tem casa?

— Tem um palácio! — retorquiram as formigas. — Um magnífico palácio de formigas com setecentos corredores.

— Obrigada! — disse a mãe-caracol. — O nosso filho não vai para um formigueiro! Se é o melhor que podem arranjar, vamos encarregar os mosquitos brancos do assunto; eles voam até muito longe, com chuva ou com sol, e conhecem todos os cantos da floresta.

— Sim, sabemos de uma esposa para ele — responderam os mosquitos. — A uns cem passos de homem daqui, numa groselheira-brava, vive uma pequena caracoleta com casa. Vive sozinha, e está em muito boa idade de casar. E só a cem passos de homem daqui.

— Bem — disse o velho casal —, ela que venha cá ter com ele. Ele é dono de uma floresta inteira e ela só tem uma groselheira!

Então, os mosquitos foram buscar a jovem caracoleta. Levaram oito dias a fazer a viagem, mas isso não desagradou aos pais; mostrava que ela também pertencia a uma boa família de caracóis.

E chegou o dia do casamento. Seis pirilampos fizeram o melhor que podiam para fornecer a iluminação, mas, à parte isso, foi um acontecimento bastante pacato, porque os velhos caracóis não gostavam muito de festas e paródias. A mãe-caracol fez um discurso encantador, porque o pai-caracol estava demasiado comovido para falar. E depois entregaram toda a floresta ao jovem casal, afirmando, como sempre, que aquele era o melhor lugar do Mundo e que, se o jovem par vivesse uma vida honesta e respeitável e tivesse muitos filhos, ainda podiam um dia ir à mansão e ser «cozinhados» (fosse qual fosse o significado de tal coisa...) e colocados numa travessa de prata.

Depois do discurso, os velhos caracóis meteram-se em casa e não tornaram a sair. Adormeceram. Os dois jovens passaram a reinar na floresta e tiveram muitos filhos, mas nunca foram cozinhados nem postos numa travessa de prata, de maneira que chegaram à conclusão de que a mansão tinha ruído e que as pessoas tinham morrido todas. E, como não havia ninguém para os contradizer, devia ser verdade. E a chuva batia nas folhas das bardanas para eles terem música, e o Sol brilhava para iluminar a floresta com muitas cores, e foram muito felizes; toda a família foi muito feliz; pedem mesmo ter a certeza de que nunca houve família mais feliz!

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A Pastora e o Limpa-chaminés

Recorte em papel feito por Hans Christian Andersen

Museus da Cidade de Odense

Alguma vez viram um armário muito velho, enegrecido pela idade, todo esculpido com caules e folhas de trepadeiras?

Havia numa sala de estar um armário deste género que tinha pertencido à trisavó da família. Estava coberto, de cima a baixo, com rosas e túlipas esculpidas na madeira, rodeadas por grinaldas arredondadas; e, por entre tudo isso, apareciam umas cabecinhas de veados com as suas hastes.

Mas, no meio, havia uma figura de um homem — de um tipo bem estranho. Era bastante cómico, porque tinha pernas de bode, pequenos cornos na testa, uma barba comprida e um esgar peculiar, que mal podia chamar-se sorriso. As crianças da casa chamavam-lhe Brigadeiro-General-de-Brigada-Capitão-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode. O nome ficava-lhe bem, achavam elas, por ser difícil de dizer. Além disso, quem mais, vivo ou esculpido, teria alguma vez merecido tal título?

Seja como for, lá estava ele, com os olhos sempre voltados para a mesa por baixo do espelho, porque em cima da mesa estava uma linda pastorinha de loiça. Tinha uns sapatos dourados e um vestido enfeitado com uma rosa de loiça; tinha ainda um chapéu dourado e segurava um cajado de pastora. Oh, era realmente linda!

Mesmo a seu lado, estava um pequeno limpa-chaminés, também de loiça. Era todo preto, excepto a cara, que era cor-de-rosa e branca como a de uma rapariga; na verdade, estava tão limpo e bem arranjado como outra pessoa qualquer, porque era apenas um limpa-chaminés a fingir. O artista também podia ter feito dele um príncipe. E lá estava ele, com o seu escadote e o seu belo rosto, que não tinha uma única partícula de fuligem. E como o limpa-chaminés e a pastora tinham estado sempre junto um do outro, em cima da mesa, tinham ficado noivos, o que era a coisa mais natural do mundo. Estavam realmente

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muito bem um para o outro. Ambos eram jovens, ambos eram feitos do mesmo material, e cada um era tão frágil como o outro.

Não longe dali havia uma figura muito diferente, cerca de três vezes maior do que eles. Era um velho chinês, um mandarim, que abanava a cabeça. Também era de loiça, e dizia sempre que era avô da pastora. Não podia prová-lo, mas insistia em que era o seu protetor, de maneira que o Brigadeiro-General-de-Brigada-Capitão-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode lhe pediu a mão dela em casamento, e ele consentiu, acenando.

— Aí está um belo marido para ti — disse ele à pastora. — É de mogno, tenho quase a certeza, e vais ser a Senhora Brigadeira-Generala-de-Brigada-Capitoa-Sargenta-Caba-Pernas-de-Bode. Ele é dono de um armário cheio de pratas e de outras coisas que lá tem escondidas.

— Não quero viver naquele armário escuro — disse a pastorinha. — Ouvi dizer que ele já lá tem onze mulheres de loiça.

— E tu serás a décima segunda! — retorquiu o mandarim — Esta noite, assim que o armário começar a estalar, vocês vão casar, tão certo como eu ser chinês!

E, com isto, acenou com a cabeça e adormeceu.

Mas a pastorinha começou a chorar e olhou para o seu bem-amado limpa-chaminés.

— Acho que tenho de te pedir que partas à aventura comigo — disse ela —, porque não podemos ficar aqui.

— Faço o que tu quiseres — respondeu o pequeno limpa-chaminés. — Vamos já; tenho a certeza de ser capaz de ganhar o suficiente para te manter com a minha profissão.

— Ai, se ao menos pudéssemos descer da mesa!... — exclamou ela. — Só serei feliz quando partir à aventura!

Então ele confortou-a e mostrou-lhe como devia colocar os pezinhos nos entalhes da perna da mesa. Levou o escadote para a ajudar e, por fim, encontraram-se no chão. Mas, quando olharam para o velho armário escuro, que agitação! Todos os veados esculpidos deitavam as cabeças ainda mais de fora, espetando os galhos e voltando os pescoços de um lado para o outro. E o Brigadeiro-General-de-Brigada-Capitão-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode estava aos pulos e a gritar, todo zangado, para o chinês:

— Estão a fugir! Estão a fugir!

Aquilo assustou os namorados, que se esconderam rapidamente na gaveta do banco da janela. Encontraram três ou quatro baralhos de cartas — nenhum deles completo — e um pequeno teatro de brincar. Estava em cena uma peça, e todas as rainhas das cartas — ouro, copas, paus e espadas — ocupavam a primeira fila, a abanar-se com as suas túlipas. Por detrás delas estavam todos os valetes com as suas cabeças, uma em cima e outra em baixo (todas as cartas de jogar são assim). A peça que estavam a ver era sobre um par de

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namorados a quem não deixavam casar. E a pastora começou outra vez a chorar, porque era tal e qual a história dela.

— Não suporto isto — dizia ela. — Tenho de sair desta gaveta.

Mas, quando chegaram ao chão e olharam para cima da mesa, o velho chinês tinha acordado e estava a abanar o corpo para trás e para a frente; tinha de andar assim, porque, à exceção da cabeça, era todo feito de uma só peça.

— Vem aí o velho chinês! — gritou a pastorinha.

E estava tão aterrorizada que caiu nos seus joelhos de loiça.

— Tenho uma ideia — disse o limpa-chaminés. — Vamos meter-nos ali dentro da grande jarra do canto; podemos esconder-nos entre as rosas e a alfazema e atirar-lhe sal aos olhos se ele se aproximar.

— Isso não ajuda nada — respondeu ela. — Além disso, sei que o velho chinês e a jarra já estiveram noivos; e fica sempre algum sentimento quando as pessoas foram íntimas. Não, a única coisa a fazer é partir à aventura.

— Tens realmente coragem para isso? — perguntou o limpa-chaminés. — Fazes ideia de como é o Mundo? E já pensaste que não podemos voltar para aqui?

— Sim, já pensei nisso — respondeu ela.

O limpa-chaminés deitou-lhe um olhar sério e penetrante e depois disse:

— O único caminho que conheço é pela chaminé. Tens a certeza que possuis a coragem suficiente para ires atrás de mim pelo fogão e pelo túnel escuro? É por aí que se vai para a chaminé, e depois já sei o que fazer. Trepamos tão alto que ninguém nos apanha; e, lá mesmo no cimo, há uma abertura por onde podemos sair para a nossa aventura.

E conduziu-a pela porta do fogão.

— Está muito escuro — exclamou ela.

Mas, apesar disso, foi com ele, através dos tijolos refratários e do cano da chaminé, onde estava escuro como a noite.

— Já chegámos à chaminé — exclamou ele. — Olha! Que linda estrela ali por cima de nós!

Realmente havia uma verdadeira estrela no céu por cima deles, a iluminá-los com o seu brilho, como se quisesse indicar-lhes o caminho. Lá continuaram a trepar e a rastejar, para cima, cada vez mais para cima; foi uma viagem horrível. Mas o pequeno limpa-chaminés ajudava-a sempre, mostrando-lhe os melhores sítios para ela colocar os seus

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pezinhos de loiça, até que por fim chegaram ao cimo da chaminé, onde se sentaram, porque estavam cansados, o que não admira.

Lá no alto estava o céu cheio de estrelas; em baixo, ficava a cidade com todos os seus telhados. Eles podiam ver até bem longe à sua volta, por esse mundo fora. A pobre pastora nunca tinha imaginado nada como aquilo; deitou a sua cabecinha no ombro do limpa-chaminés e chorou tão amargamente que o ouro da faixa da cintura desbotou.

— Isto é de mais — chorava ela. — Não aguento. O Mundo é demasiado grande. Oh, quem me dera estar outra vez na mesa debaixo do espelho! Só serei feliz outra vez quando voltar para lá. Vim contigo, mas, se realmente gostas de mim, leva-me para casa.

O limpa-chaminés falou calmamente com ela; recordou-lhe o chinês e o Brigadeiro-General-de-Brigada-Capitão-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode, mas ela continuava a chorar, desesperada, e beijava-o e agarrava-se a ele, até que este acabou por ceder, apesar de ser uma patetice.

Então, tornaram a rastejar pela chaminé, desta vez para baixo — uma tarefa dura e perigosa; esgueiraram-se pelo cano (uma das piores partes da viagem) e, por fim, chegaram à caverna escura do fogão. Ficaram encostados à porta durante um bocadinho, para ouvirem o que se passava na sala. Tudo parecia bastante calmo, de maneira que espreitaram — mas, oh!, mesmo no meio do chão estava o chinês! Ao tentar correr atrás deles, tinha caído da mesa, e agora estava feito em três pedaços — a parte de trás, a parte da frente e a cabeça, que tinha rebolado para um canto. O Brigadeiro-General-de-Brigada-Capitão-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode estava no seu lugar de sempre, absorto em pensamentos.

— Que horror! — exclamou a pastorinha. — O meu pobre avô está todo partido e a culpa é nossa. Nunca hei de esquecer isto!

E torcia as mãozinhas.

— Pode muito bem ser consertado — afirmou o limpa-chaminés. — É fácil. Vá, não fiques tão preocupada. Depois de ser colado e de lhe porem um gato no pescoço, fica como novo, e ainda vai dizer-te muitas coisas aborrecidas.

— Achas que sim? — perguntou ela.

E treparam para a mesa onde sempre tinham estado.

— Bem, fartámo-nos de andar — suspirou o limpa-chaminés —, e cá estamos de novo no mesmo sítio. Podíamos ter poupado a viagem.

— Ai, quem me dera que o meu avô já estivesse consertado! — disse a pastora. — Achas que vai ser muito caro?

O chinês foi consertado. A família mandou colar os pedaços e pôr um gato no pescoço; ficou como novo, mas já não abanava a cabeça.

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— Estás muito importante desde que te partiste! — disse-lhe o Brigadeiro-General-de-BrigadaCapitão-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode. — Mas por que é que estás tão orgulhoso? Responde-me! Posso ou não ficar com a pastora?

O limpa-chaminés e a pastora olharam ansiosamente para o velho chinês, com medo que ele acenasse com a cabeça. Mas ele não conseguia e também não queria admitir que lhe tinham posto um gato no pescoço. E assim os namoradinhos de loiça ficaram juntos e continuaram a amar-se, na maior felicidade, até se partirem.

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O Firme Soldado de Chumbo

Recorte em papel feito por Hans Christian Andersen

Museus da Cidade de Odense

Era uma vez vinte e cinco soldados de chumbo, todos irmãos, porque tinham sido todos feitos da mesma colher de cozinha. Tinham armas aos ombros e olhavam em frente, muito elegantes nos seus uniformes encarnados e azuis. — Soldados de chumbo! — foi a primeira coisa que ouviram neste mundo, quando levantaram a tampa da caixa onde estavam.

Um rapazinho tinha dado esse grito e batido as palmas; tinham-lhos dado como prenda de anos, e ele colocou-os em cima de uma mesa. Os soldados eram todos iguais uns aos outros — excepto um, que só tinha uma perna; fora o último a ser moldado e já não havia chumbo que chegasse. No entanto, mantinha-se de pé tão bem como os outros que tinham duas pernas, e é ele o herói desta história.

Na mesa onde os colocaram havia muitos outros brinquedos, mas aquele em que se reparava logo era um castelo de papel. Pelas suas janelinhas via-se o interior das salas. À frente havia pequenas árvores à volta de um pedaço de espelho, a fingir que era um lago. Cisnes de cera pareciam flutuar na sua superfície e olhavam para o seu reflexo. Toda a cena era um encanto, mas o mais bonito de tudo era uma menina que estava à porta; também ela era feita de papel, mas tinha uma fina saia de musselina, uma estreita fita azul cruzada nos ombros, como se fosse um xaile, presa por uma brilhante lantejoula quase do tamanho da cara. A encantadora criaturinha tinha os braços estendidos, porque era uma bailarina; tinha mesmo uma perna tão levantada que o soldado de chumbo nem conseguia vê-la; então ele pensou que ela só tinha uma perna, tal como ele.

"Ora aí está a mulher que me convém", pensou ele. "Mas é tão importante; ela vive num castelo, e eu tenho uma caixa... e estamos vinte e cinco lá dentro! Não há espaço para ela, com certeza. Mas posso tentar conhecê-la."

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Então, deitou-se ao comprido atrás de uma caixa de rapé que estava em cima da mesa; daí podia ver bem a dançarina de papel, que continuava de pé numa só perna sem perder o equilíbrio.

Quando anoiteceu, todos os outros soldados de chumbo foram guardados na caixa e as crianças foram para a cama. Nessa altura, os brinquedos começaram a brincar; jogaram às visitas, às escolas, às batalhas e às festas. Os soldados de chumbo chocalhavam na caixa, porque também queriam brincar, mas não conseguiam levantara tampa. Os quebra-nozes davam cambalhotas e a pena da ardósia rangia a escrever; o barulho era tanto que o canário acordou e se meteu na conversa — melhor ainda, fê-lo em verso. Os dois únicos que não se mexeram foram o soldado de chumbo e a pequena bailarina; ela continuava apoiada na ponta do pé, com os braços estendidos; ele parado firmemente na sua única perna, sem nunca tirar os olhos dela.

O relógio bateu a meia-noite. Crac! — a tampa da caixa de rapé abriu-se e saltou de lá de dentro um duendezinho negro. Não havia rapé dentro da caixa — afinal era um truque, um boneco que saltava de uma caixa.

— Soldado de chumbo! — guinchou o duende. — Deixa de olhar para ela!

Mas o soldado de chumbo fingiu não ouvir.

— Muito bem, então amanhã vais ver! — disse o duende.

Quando amanheceu e as crianças se levantaram outra vez, puseram o soldado de chumbo no parapeito da janela. Pode ter sido culpa do duende, ou talvez de uma corrente de ar — seja como for, a janela abriu-se de repente, e o soldado de chumbo caiu da altura de três andares para a rua. Foi uma queda terrível! A perna apontava para cima, tinha a cabeça para baixo, e acabou por ficar com a baioneta espetada entre as pedras da calçada.

A criada e o rapazinho foram para a rua à procura dele, mas, embora quase o pisassem, não conseguiram vê-lo. Se ele tivesse gritado: "Estou aqui!", tê-lo-iam encontrado facilmente, mas ele achou que não era um comportamento correto começar a gritar estando fardado.

Depois, começou a chover; caíam grossas pingas — era um valente aguaceiro. Quando acabou, passaram por ali dois rapazitos da rua.

— Olha! Disse um deles. — Está aqui um soldado de chumbo. Vamos metê-lo num barco.

Fizeram um barco de papel de jornal, puseram o soldado de chumbo no meio e fizeram-no deslizar pela valeta cheia de água. Lá foi ele a toda a velocidade e os dois rapazitos corriam a seu lado a bater palmas. Meu Deus, que grandes ondas havia naquela valeta, que marés! Tinha sido uma grande chuvada. O barco de papel balançava para baixo e para cima, por vezes andando às voltas, até o soldado de chumbo ficar completamente tonto. Mas manteve-se firme como sempre, sem mexer um músculo, sempre a olhar em frente e com a arma ao ombro.

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De repente, o barco entrou num túnel. Oh, como estava escuro, tão escuro como na caixa lá em casa!

"Para onde irei agora?", pensou o soldado de chumbo. "Sim, isto deve ser obra do duende. Ah! Se ao menos a jovem estivesse aqui no barco comigo, não me importava que a escuridão fosse duas vezes maior."

Subitamente, da sua casa no túnel, saiu uma grande ratazana da água.

— Tens passaporte? — perguntou. — Não podes entrar sem passaporte!

Mas o soldado de chumbo não disse uma palavra; limitou-se a segurar a arma ainda com mais força. O barco seguiu em frente, e, atrás dele, a ratazana, a persegui-lo. Ai! Como ela rangia os dentes e gritava para os paus e palhas que boiavam na água:

— Obriguem-no a parar! Agarrem-no! Não pagou a portagem! Não mostrou o passaporte!

Mas nada conseguia fazer parar o barco, porque a corrente era cada vez mais forte. O soldado de chumbo avistou a luz do dia no fim do túnel, mas, ao mesmo tempo, ouviu um rugido que bem podia ter assustado o homem mais valente. Imaginem! Mesmo no fim do túnel, a corrente desembocava num grande canal. Era tão terrível para ele como seria para nós um mergulho numa gigantesca queda de água.

Mas como podia ele parar? Já estava perto da beira. O barco continuou a sua corrida, e o pobre soldado de chumbo aguentou-se o mais firme possível — ninguém podia dizer que tivesse piscado um olho.

De repente, o pequeno barco rodopiou três ou quatro vezes e encheu-se de água até acima; que podia acontecer senão afundar-se?! O soldado de chumbo ficou de pé, com água até ao pescoço; o barco afundava-se cada vez mais, com o papel a ficar todo mole, até que, por fim, a água cobriu a cabeça do soldado de chumbo. Ele pensou na linda bailarina que nunca mais veria e lembrou-se da letra de uma canção:

Em frente, em frente, soldado do império! Não receies o perigo nem o cemitério!

Depois, o barco de papel desfez-se completamente.

O soldado de chumbo caiu e foi logo engolido por um peixe.

Oh, como estava escuro na barriga do peixe! Ainda era pior do que o túnel e muito mais apertado. Mas a coragem do soldado de chumbo manteve-se inalterável; lá ficou, firme como sempre, ainda de arma ao ombro. O peixe nadava que nem um louco, virava-se e revirava-se, e depois ficou absolutamente quieto. Qualquer coisa luziu como um relâmpago — e então tudo à sua volta ficou claro como o dia e uma voz gritou:

— O soldado de chumbo!

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O peixe tinha sido pescado, levado para a praça, vendido e levado para a cozinha, onde a cozinheira o cortara com uma grande faca. Pegou no soldado, segurando-o pela cintura com o polegar e o indicador, e levou-o para a sala, para que toda a família visse a extraordinária personagem que tinha viajado dentro do peixe. Mas o soldado de chumbo não se sentia nada orgulhoso. Puseram-no de pé em cima da mesa e então — bem, o mundo é assim mesmo! — ele viu que estava na mesma sala onde as suas aventuras tinham começado; lá estavam as mesmas crianças; lá estavam os mesmos brinquedos; lá estava o belo castelo de papel com a graciosa bailarina à porta. Continuava apoiada numa perna, com a outra bem levantada no ar. Ah! Ela também era firme! O soldado de chumbo estava profundamente comovido; gostaria de ter chorado lágrimas de chumbo, mas isso não era comportamento de um soldado. Olhou para ela, e ela olhou para ele, mas não trocaram uma palavra.

E então aconteceu uma coisa estranha. Um dos rapazinhos pegou no soldado de chumbo e atirou-o para a lareira. Não tinha qualquer motivo para fazer isto; deve ter sido outra vez culpa do duende da caixa de rapé.

O soldado de chumbo ficou emoldurado pelas chamas. O calor era intenso, mas se vinha do lume ou do seu amor ardente ele não sabia. As suas cores brilhantes já tinham desaparecido — mas se tinham sido lavadas pela água durante a viagem ou pelo seu desgosto ninguém sabia. Olhou para a linda bailarina, e ela olhou para ele; sentiu que estava a derreter-se, mas continuou firme, de arma ao ombro. Subitamente, a porta abriu-se; uma aragem apanhou a bailarina de papel, que voo como uma sílfide direitinha à lareira e ao soldado de chumbo, que a esperava; aí se transformou numa chama e desapareceu.

O soldado também derreteu rapidamente, ficando reduzido a um montinho de chumbo; e no dia seguinte, quando a criada limpou a lareira, encontrou-o entre as cinzas — do feitio de um coraçãozinho de chumbo. E a bailarina? Dela só encontraram a lantejoula, preta como a fuligem.

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O Duende da Mercearia

Recorte em papel feito por Hans Christian Andersen

Museus da Cidade de Odense

Era uma vez um estudante, um autêntico estudante; vivia num sótão e não possuía nada. E era uma vez um merceeiro, um autêntico merceeiro; vivia no rés-do-chão e era dono do prédio inteiro. E foi por isso que o duende decidiu morar com o merceeiro. Além disso, todos os Natais recebia uma tigela de papa de aveia com um grande pedaço de manteiga lá dentro. O merceeiro tinha posses para isso, de maneira que o duende continuava a morar na loja. Há por aqui algures uma moral, se a procurarem bem.

Uma noite, o estudante entrou na mercearia pela porta das traseiras para comprar um pedaço de queijo e velas. Fez as compras e depois pagou, e o merceeiro e a mulher acenaram-lhe com a cabeça e disseram «boa noite». A mulher, contudo, era bem capaz de fazer mais do que acenar; era muito faladora — falava, falava, falava. Tinha o que se chama o hábito de falar pelos cotovelos, disso não havia dúvida. O estudante também fez um aceno — e foi nessa altura que viu qualquer coisa escrita no papel que embrulhava o queijo e parou para ler. Era uma página de um velho livro de poemas, uma página que nunca devia ter sido arrancada.

— Tenho aqui mais desse livro, se quiser — disse o merceeiro. — Dei a uma velhota alguns grãos de café por ele. Pode ficar com o resto por seis dinheiros, se estiver interessado.

— Obrigado — respondeu o estudante. — Dê-mo em vez do queijo. Passo bem só com pão. É uma pena usar um livro destes para papel de embrulho! O senhor é muito boa pessoa e bastante prático, mas percebe tanto de poesia como aquela banheira ali ao canto.

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Ora isto foi uma frase indelicada, especialmente aquela parte respeitante à banheira, mas o merceeiro riu-se, e o estudante também; afinal de contas, fora apenas uma brincadeira. Mas o duende ficou aborrecido por alguém se atrever a falar assim com o merceeiro — ainda por cima o senhorio, uma pessoa importante que era dono do prédio todo e vendia manteiga da melhor qualidade.

Nessa noite, quando a loja estava fechada e toda a gente, excepto o estudante, estava na cama, o duende entrou no quarto do merceeiro em bicos de pés e roubou à mulher do merceeiro o dom de falar pelos cotovelos, porque ela não precisava dele enquanto dormia. A seguir, fez com que cada objeto em que tocava ficasse capaz de exprimir as suas opiniões tão bem como a mulher do merceeiro. Mas só podia falar um de cada vez, o que era uma bênção, se não desatavam todos a falar ao mesmo tempo.

Primeiro, o duende deu o dom de falar pelos cotovelos à banheira onde se guardavam os jornais velhos.

— É mesmo verdade que não percebes nada de poesia? — perguntou.

— Claro que percebo! — respondeu a banheira. — A poesia é uma coisa que vem no fim das folhas dos jornais e que as pessoas costumam recortar. Acho até que tenho mais poesia dentro de mim do que o estudante; e, apesar disso, sou apenas uma humilde banheira, comparada com o merceeiro.

Depois, o duende deu o dom de falar pelos cotovelos ao moinho de café. Meu Deus, que chinfrineira! Depois, deu-o ao pote de manteiga, e depois à caixa registadora. Todos eram da mesma opinião da banheira e as opiniões da maioria têm de ser respeitadas.

— Agora posso pôr o estudante no seu lugar! — exclamou o duende.

E lá foi em bicos de pés, pela escada das traseiras acima, até ao sótão onde morava o estudante. Havia luz lá dentro. O duende espreitou pelo buraco da fechadura e viu o estudante a ler o velho livro da loja.

Que grande claridade havia no quarto! Do livro saía um brilhante raio de luz, que se tornou num tronco de árvore, de uma nobre árvore que subiu e espalhou os seus ramos por cima do estudante. As folhas eram novas e verdes, e cada flor tinha o rosto de uma linda rapariga, algumas com olhos escuros e misteriosos e outras com olhos azuis cintilantes. Cada fruto era uma estrela luminosa e o ar estava impregnado de um belo som de canções.

O duende nunca tinha visto nem ouvido falar de tais maravilhas; e muito menos seria capaz de as imaginar. Portanto, ficou ali à porta, em bicos de pés, a espreitar, de olhos muito abertos, até que a luz se apagou. O estudante devia ter assoprado a vela e ido para a cama — mas o duende continuava sem ser capaz de arredar pé. Parecia-lhe ouvir a linda música, que ainda ecoava no ar, ajudando o estudante a adormecer.

— Isto custa a crer — murmurou o duende para consigo. — Nunca esperei nada do género. Acho que vou ficar no sótão com o estudante. — Depois pensou um bocado e suspirou: — Tenho de ser sensato; o estudante não tem papas de aveia.

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E portanto, é claro, voltou para baixo, para a mercearia. Ainda bem que o fez, porque a banheira tinha quase esgotado o dom de falar pelos cotovelos, contando todas as notícias dos jornais que estavam guardados dentro dela. Tinha falado para um lado e estava prestes a virar-se para o outro e a continuar quando o duende devolveu o dom de falar pelos cotovelos à mulher do merceeiro adormecida. E, a partir dessa altura, todas as coisas da loja, desde a caixa registadora até à lenha, seguiram as opiniões da banheira; tinham-lhe tanto respeito que, depois daquilo, quando o merceeiro lia nos jornais críticas de peças ou de livros, pensavam que ele tinha aprendido tudo com a banheira.

Mas o duende já não aguentava ficar ali sentado a ouvir toda a sabedoria e bom senso pronunciados na loja; assim que via luz através das frinchas da porta do sótão, parecia ser atraído para lá por cordelinhos, e tinha de subir a escada e pôr-se a espreitar pelo buraco da fechadura. Sempre que o fazia, sentia-se invadido por uma sensação de indizível grandeza — a espécie de sensação que se tem quando se vê o mar encapelado com ondas tão fortes que o próprio Deus podia vir montado nelas! Que maravilha seria sentar-se debaixo da árvore com o estudante! Mas era impossível.

Entretanto, contentava-se com o buraco da fechadura. Olhava através dele todas as noites, ali parado no patamar deserto, mesmo quando o vento do Outono começou a soprar pela claraboia, fazendo-o quase morrer de frio. Mas ele nem o sentia até a luz se apagar no quartinho do sótão e a música se calar a pouco e pouco, ficando apenas o uivar do vento. Brr! Então, sentia como estava gelado e descia sem fazer barulho para o seu canto secreto da loja, quente e confortável. Em breve viria a tigela de papas de aveia do Natal, com o seu grande pedaço de manteiga. Sim, o merceeiro era a escolha certa.

Mas uma noite, já bem tarde, o duende acordou com uma grande agitação à sua volta. Estavam pessoas a bater nos estores, o guarda-noturno apitava: havia fogo, e toda a rua parecia estar em chamas. Que casa é que estava a arder? Aquela ou a do lado? Onde era o fogo? Que gritos! Que pânico! Que agitação! A mulher do merceeiro estava tão desorientada que tirou os brincos de ouro das orelhas e meteu-os num bolso, para salvar pelo menos alguma coisa... O merceeiro foi a correr buscar os seus valores, a criadita foi buscar o seu xaile de seda que tinha comprado com o ordenado. Toda a gente foi a correr buscar aquilo a que dava mais valor.

E o duende fez o mesmo. Num pulo ou dois subiu a escada e entrou no quarto do estudante, que estava calmamente à janela, vendo o incêndio na casa em frente. O duende pegou no livro maravilhoso, que estava em cima da mesa, meteu-o dentro do boné vermelho e agarrou-se a ele com os dois bracitos. A coisa mais preciosa da casa estava salva!

Depois, foi a correr para cima do telhado, mesmo para o alto da chaminé, e ficou ali sentado, iluminado pelas chamas da casa a arder do outro lado da rua, sempre firmemente agarrado ao boné vermelho com o tesouro lá dentro.

Agora sabia para onde o seu coração o puxava: estudante?, merceeiro? — a escolha era clara.

Mas, quando o fogo ficou extinto e o duende já tinha tido tempo para pensar com mais calma, bem...

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— Divido o tempo entre eles — decidiu. — Não sou capaz de abandonar o merceeiro, por causa das papas de aveia.

Mesmo coisa de ser humano, francamente! Também nós gostamos de nos dar bem com o merceeiro por causa das papas de aveia.

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Uma Rosa da Campa de Homero

Em todas as canções do Oriente soa o amor do rouxinol pela rosa. Nas noites calmas, claras de estrelas, o cantor alado faz uma serenata à sua odorosa flor.

Não longe de Esmirna, sob os altos plátanos, para onde o mercador puxa os camelos carregados que levantam orgulhosamente os pescoços altos e pisam desajeitados a terra, que é santa, vi um roseiral florido. Pombas bravas voavam entre os ramos altos das árvores e as suas asas cintilavam, quando um raio de sol tombava sobre elas, como se fossem de madrepérola.

No roseiral havia uma flor entre todas a mais bonita e era para esta que cantava o rouxinol as suas mágoas de amor. Mas a rosa estava silente, nem uma gota de orvalho havia, como lágrima de compaixão, nas suas pétalas. Curvava-se com o caule para baixo sobre umas pedras.

― Jaz aqui o maior cantor da terra! ― disse a rosa. ― Quero perfumar a sua campa. Sobre ela quero derramar as minhas pétalas, quando a tempestade as arrancar. O cantor da Ilíada tornou-se terra nesta terra, donde broto... Eu, uma rosa da campa de Homero, sou demasiado sagrada para florir para o pobre rouxinol!

E o rouxinol cantou até morrer.

O condutor de camelos chegou, com os seus camelos carregados e os seus escravos negros. O filhinho dele encontrou o pássaro morto. Enterrou-o na campa do grande Homero. E a rosa agitou-se ao vento. Veio a noite, a rosa fechou completamente as pétalas e sonhou... que era um belo dia de sol. Chegava uma multidão de estrangeiros, de francos. Faziam uma viagem de peregrinação, à campa de Homero. Entre os estrangeiros havia um cantor do Norte, da terra das neblinas e das auroras boreais. Arrancou a rosa, premiu-a num livro e levou-a consigo para outra parte do mundo, para a sua pátria distante. E a rosa murchou de pena e ficou no livro fechado, que ele abriu em casa, dizendo:

― Eis uma rosa da campa de Homero!

Ora vejam, isto sonhou a flor que acordou e estremeceu ao vento. Uma gota de orvalho caiu das suas pétalas na campa do cantor e o sol ergueu-se, o dia tornou-se quente e a rosa resplandeceu ainda mais bela do que antes - estava na sua Ásia quente. Ouviram-se então passos, vieram estrangeiros, francos, que a rosa vira no seu sonho e entre os estrangeiros havia um poeta do Norte. Este arrancou a rosa, premiu um beijo na sua boca fresca e levou-a consigo para a terra de neblinas e auroras boreais.

Como uma múmia repousa agora o cadáver da flor na sua Ilíada e como em sonho ouve ela abrir o livro a dizer: "Eis uma rosa da campa de Homero!".

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Dança, Dança, Bonequinha

— Oh, não passa de uma cantiguinha idiota para criancinhas pequeninas — declarou a tia Malle. — Por muito boa vontade que tenha, não vejo qualquer significado na Dança, dança, bonequinha. É uma palermice, um disparate!

Mas a pequena Amália via grande significado na cantiga. Ela tinha só três anos, mas já sabia brincar às bonecas e estava a educar as suas para serem tão inteligentes como a tia Malle.

Costumava ir lá a casa um estudante, que ajudava os irmãos da Amália a fazer os trabalhos de casa e conversava muito com ela e com as suas bonecas. Ele fazia-a rir, porque era muito engraçado e brincalhão, mas nunca fazia troça dela e falava de coisas importantes que ambos compreendiam.

A tia Malle insistia em que ele não sabia lidar com crianças e que as cabecitas delas não podiam entender todos os seus disparates ridículos. Mas a da pequena Amália podia. Na realidade, ela aprendeu a cantiga do estudante toda de cor e costumava cantá-la às suas três bonecas. Duas delas eram novas, uma menina e um menino, e a terceira já tinha um ano e chamava-se Lisa. Lisa ouvia a cantiga — e até entrava nela!

Dança, dança, bonequinha! Como ela é bonitinha! Bonito também é o seu noivo, Raul, De calças brancas e casaco azul,

Com um chapéu alto, encantador, E sapatos novos que lhe fazem dor! Ele é belo, ela uma estrelinha, Dança, dança, bonequinha.

A Lisa do ano passado Dança com ar engraçado. Louro é o cabelo que tem E o seu rosto brilha também. Parece ser a mais nova, A velha Lisa, que canta a trova. Roda e salta ainda uma vez, Dancem lá todas as três!

Dancem leves como o ar, Não há nada que enganar. É preciso que não esqueçam As piruetas quando dançam. Com vénia à esquerda e à direita A dança será perfeita! Alegrias, meu tesouro, Bonequinhas, petiz d'ouro.

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Bem, as bonecas compreendiam a canção, a pequena Amália compreendia-a e o estudante também. Afinal, ele é que a tinha escrito e ele dizia que era excelente. Só a tia Malle é que não a percebia — mas a verdade é que ela já tinha saído do mundo da infância há tanto tempo que não admirava. A tia Malle podia dizer que a cantiga era um disparate, mas a Amália não achava. E continuava a cantá-la.

É por ela a cantar que a temos aqui.