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SEGURANÇA HUMANA E OPERAÇÕES DE PAZ: O CASO DO HAITI Idunalvo Mariano A. Jr* RESUMO Este artigo tem o objetivo de analisar a evolução do conceito de segurança humana, bem como na verificação de suas aplicações nas Operações de Paz da ONU, mais especificamente nas duas principais operações de paz empreendidas pela ONU no Haiti, a saber, Missão das Nações Unidas no Haiti (UNMIH) e a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH), verificando a diferença e o conceito de segurança adotado em cada uma, tomando como marco temporal os anos e 1993-1996 e 2004-2010. Acredita-se que o conceito de segurança por trás dos mandatos de cada uma delas foi essencial para a condução das mesmas, e, principalmente, para os resultados obtidos. A teorização e a evolução do conceito de segurança humana, juntamente com os antecedentes históricos do Haiti, formam os ingredientes para a intervenção feita neste país. Através da apreciação dos documentos oficiais da ONU, (Relatórios, Informes e Resoluções) pode-se identificar as diretrizes traçadas referentes as missões citadas, visando ao menos reduzir o cenário caótico formado neste país. Ressalta-se a adoção de um novo conceito, de segurança humana, pela MINUSTAH, prezando pela segurança dos indivíduos e os inserindo no processo reconstrutivo do país, portanto, dentro de um modelo de operações de paz de última geração. O tema é atual e de suma importância, visando registrar dados e de se trabalhar com uma operação ainda em vigor (MINUSTAH), e que, provavelmente, encerrará seus trabalhos em breve. Palavras-chave: Segurança – Segurança Humana – Operações de Paz – Haiti. * Oficial do Exército Brasileiro, brasileiro, formado pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 1997, e também graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2003. Realizou Pós-graduação em Direito Militar pela UGF/Fundação Trompowski em 2013, e em Psicopedagogia pela UFRJ em 2001. Instrutor do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de Belo Horizonte de 2012 a 2014. Assessor Jurídico do 3° B Sup de 2005 a 2007.

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SEGURANÇA HUMANA E OPERAÇÕES DE PAZ: O CASO DO HAITI

Idunalvo Mariano A. Jr*

RESUMO

Este artigo tem o objetivo de analisar a evolução do conceito de segurança humana, bem comona verificação de suas aplicações nas Operações de Paz da ONU, mais especificamente nas duasprincipais operações de paz empreendidas pela ONU no Haiti, a saber, Missão das Nações Unidas noHaiti (UNMIH) e a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH), verificando adiferença e o conceito de segurança adotado em cada uma, tomando como marco temporal os anos e1993-1996 e 2004-2010. Acredita-se que o conceito de segurança por trás dos mandatos de cada umadelas foi essencial para a condução das mesmas, e, principalmente, para os resultados obtidos. Ateorização e a evolução do conceito de segurança humana, juntamente com os antecedentes históricosdo Haiti, formam os ingredientes para a intervenção feita neste país. Através da apreciação dosdocumentos oficiais da ONU, (Relatórios, Informes e Resoluções) pode-se identificar as diretrizestraçadas referentes as missões citadas, visando ao menos reduzir o cenário caótico formado neste país.Ressalta-se a adoção de um novo conceito, de segurança humana, pela MINUSTAH, prezando pelasegurança dos indivíduos e os inserindo no processo reconstrutivo do país, portanto, dentro de ummodelo de operações de paz de última geração. O tema é atual e de suma importância, visando registrardados e de se trabalhar com uma operação ainda em vigor (MINUSTAH), e que, provavelmente,encerrará seus trabalhos em breve.

Palavras-chave: Segurança – Segurança Humana – Operações de Paz – Haiti.

* Oficial do Exército Brasileiro, brasileiro, formado pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 1997, e também graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2003. Realizou Pós-graduação em Direito Militar pela UGF/Fundação Trompowski em 2013, e em Psicopedagogia pela UFRJ em 2001. Instrutor do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de Belo Horizonte de 2012 a 2014. Assessor Jurídico do 3° B Sup de 2005 a 2007.

1. CONCEITOS

Ao iniciar o trabalho em tela, se faz necessário esclarecer alguns conceitos para seu perfeito

entendimento. Os termos em questão muitas vezes são vinculados uns aos outros, cabendo

desenvolver, em alguns casos, o cerne dos mesmos para diferenciá-los. Assim, partindo da distinção

do que significa segurança e suas variantes, até, por fim, ao esclarecimento do que se entende por

segurança humana e seus desdobramentos.

Portanto, ao mencionar a palavra segurança, é importante distinguí-la do termo defesa. O

termo segurança tem uma amplitude de aplicações que se alimenta da capacidade de pesquisadores

e agentes políticos em conferir segurança a tudo aquilo que esteja – obejtiva e subjetivamente – sob

ameaça. Assim, compõe o seu rol histórico de atribuições: segurança nacional, regional e

internacional; segurança humana, econômica, ambiental, social e alimentar; segurança pública,

institucional, coletiva, etc. Ainda conforme o mesmo autor, Junior (2006), os usos que se pode

conferir ao termo são vastos e, em alguma medida, infindáveis. Um motivo relativamente evidente

para que se tenha vulgarizado em tão larga medida seus usos e atribuições passa pelo seu

significado mais “dramático”. Em outras palavras, a construção genérica em torno da ideia de

segurança empresta ao termo o sentido de urgência, de sobrevivência, remetendo a uma situação

instável, ameaçadora, pertubadora.

A construção política em torno do conceito de segurança implica o emprego de meios

extraordinários por parte dos agentes políticos, para contrapor um estado de ameaça ou de

vulnerabilidades, uma ação em resposta à identificação de um estado de insegurança. Portanto,

imprime ao conceito uma perpectiva prática e dinânima, que se volta para a repercussão nos

processos políticos e sociais, saindo do ambiente estável, de sensações de estabilidade dentro de um

Estado ou sociedade (WAEVER, 1995).

Conforme Buzan (1991), o conceito de segurança tem uma noção prática e dinâmica,

envolto de um ambiente político e social, muito maior e mais amplo dos conceitos que concebem

um ambiente estável. Porém, traz uma dimensão muito ampla, relativa e subjetiva, o que torna

impreciso o conceito de segurança.

No bojo do texto da Política Nacional de Defesa (PND), segurança é a condição que permite

ao País preservar sua soberania e integridade territorial, promover seus interesses nacionais, livre de

pressões e ameaças, e garantir aos cidadãos o exercício de seus direitos e deveres constitucionais

(BRASIL, 2012).

Conforme Junior (2006), o conceito de Segurança Nacional tem levado o selo de segurança

pública, em diferentes graus, nos diferentes países em desenvolvimento, em geral, e da região

latino-americana, em particular. Ainda hoje, dentro de cada país e nos fóruns regionais multilaterais,

tais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), discute-se a atualização de conceitos de

segurança – e a adequação do uso das Forças Armadas para um conjunto de novas ameaças 1 (não-

tradicionais) que os países têm identificado nos últimos anos, num claro processo de militarização

das soluções de segurança, como no emprego relacionado aos principais problemas de segurança

que atingem os países da região ultimamente: tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, crime

transnacional, terrorismo, desastres ambientais, etc.

Cabe ressalvar, que, em alguns casos, como no Brasil, o termo Segurança Nacional tornou-

se algo prejorativo, sentimento visto em alguns textos, como no artigo de Coimbra (2000), tendo em

vista ter sido a expressão empregada ao tempo da doutrina relativa ao recrudescimento do aparato

repressivo estatal frente aos movimentos contra a eleição de Costa e Silva, que tornou-se o 2º

presidente militar, contra a aprovação da nova Lei de Imprensa, dentro da nova Lei de Segurança

Nacional, e, posteriormente, contra o Ato Institucional n.º 5, de 13 de dezembro de 1968, que

ampliou o poder do Estado frente aos movimentos contrários ao governo.

Juntando-se a isso, a grande confusão conceitual e as dificuldades de operacionalização

surgem das diferenças internas existentes em cada país – ou entre conjuntos de países (sub-regiões)

que compartilham, mais ou menos consensualmente, padrões e problemas de segurança, mas que

não se reverberam para outras sub-regiões vizinhas (JUNIOR, 2006).

Segundo Ballesteros (2014, p. 30), desde a criação do Estado moderno até a queda do

bloco comunista, a ideia de segurança se vinculava à noção de soberania nacional, a qual implica a

legitimidade do uso exclusivo da força tanto no âmbito interno, ao defender os cidadãos ante a

violência dos outros cidadãos (ordem pública), como no externo, ao defender o território

nacional frente a agressões de outros Estados. A chave da segurança nacional estava fundada no

poder das armas.

Segundo o mesmo autor, a novidade que introduz a doutrina da segurança humana não se

opõe, em princípio, ao monopólio da força em mãos do Estado, já que a ausência de tal

monopólio, como ocorre nos Estados em crise (failed States), é a causa de graves danos às

pessoas e de um grande número de mortes evitáveis pela atuação incontrolada dos grupos

paramilitares ou associações delitivas. A mudança no conceito de segurança, introduzida pela

doutrina da segurança humana, está radicada de forma simultânea nos seguintes aspectos: na

passagem de um enfoque “macro”, centrado no Estado, a um enfoque “micro”, centrado na

pessoa; e no alargamento do conceito mesmo de segurança, compreendendo não somente as

ameaças provenientes do exterior, mas também as que vêm do próprio Estado (de fato, nos

últimos cem anos, a maior parte das pessoas foi assassinada por seus próprios governos e não por

1 VII Conferência de Ministros de Defesa das Américas, de 01 a 05 de outubro de 2006. Agenda Temática: conclusõese recomendações, linha temática: “Sistemática de segurança hemisférica, cenários e regimes: fortalecendo a cooperação e a institucionalidade no continente”. Disp. em: www.oas.org/csh/spanish/docminist.asp, 20/08/2015.

governos estrangeiros) – não somente as ameaças violentas (hard threats), mas também as

aparentemente não violentas (soft threats), que causam mortes evitáveis, por falta de alimentos e

remédios.

Alinhado com isso, conforme Bazzano (2014, p. 42), o fim da Guerra Fria como um fator

importante para permitir o desenvolvimento de abordagens alternativas para a segurança. Ao mudar

a ênfase do conflito entre os Estados para as necessidades de proteção de todas as pessoas,

independentemente do seu pertencimento a um determinado Estado, aparece o discurso da

segurança humana, que se entrelaça com os direitos humanos e desenvolvimento, buscando se

consolidar como uma alternativa às tradicionais perspectivas de segurança estadocêntrica.

Assim, segundo Ballesteros (2014, p.31), todos os defensores da doutrina da segurança

humana coincidem em que o objetivo primário consiste na proteção dos indivíduos, e não no

aumento de armas. Nesse sentido, dois estudos recentes, entre muitos outros, ressaltam essa

diferença entre a ideia de segurança nacional e a de segurança humana. Assim, o “Parecer sobre

uma estratégia de segurança humana para a União Europeia”, dirigido por Mary Kaldor e Marlies

Glasius (2001), destaca que “a primazia dos direitos humanos é o que distingue o conceito de

segurança humana do conceito de segurança nacional”. Por sua vez, no parecer da Anistia

Internacional de 2006. Em busca da segurança humana, afirma-se: “o que caracteriza a

segurança humana é a convicção de que não se pode perseguir a segurança violando os

direitos humanos”, pois a “verdadeira segurança humana consiste em fazer os direitos humanos

efetivos a todos”.

2. EVOLUÇÃO DA DOUTRINA DE SEGURANÇA HUMANA

Segundo Bazzano (2014, p. 41), dentro da Ciência Política e das Relações Internacionais,

tradicionalmente, os estudos de segurança se dedicavam aos assuntos ligados à proteção dos

Estados e do território. No âmbito interno, esses estudos se relacionavam com as questões de

segurança pública, como a proteção da vida dos seus cidadãos e do patrimônio, e os seus meios de

proteção proveriam do aparato policial. No âmbito externo, a preocupação em relação à segurança

internacional estava ligada à possibilidade da guerra e o meio de proteção dos Estados eram os

recursos militares. Contudo, ao longo do século XX e especialmente, após a 2ª Guerra Mundial,

houve um intenso debate acadêmico e político a respeito da redefinição do conceito de segurança.

Continua a mesma autora, que, assim, surge o debate sobre quem deveria ser o referente principal

da segurança (Estados, sociedades, indivíduos) e quais meios seriam utilizados para a proteção

(militar, economia, desenvolvimento social). Este debate até hoje é polêmico e controverso, porém,

com o fim da Guerra Fria, ganhou-se certo reconhecimento internacional de que o referente

principal da segurança deveria ser o indivíduo e um dos principais meios para protegê-los seria por

meio do desenvolvimento humano. A essa proposta de segurança convencionou-se chamar de

Segurança Humana.

Sobre a evolução do conceito em estudo, Jorge Nef diz que, entre 1945 e 1989, o

desenvolvimento e a segurança distintos conceitualmente e na prática. O tema da segurança

nacional foi enquadrada num contexto Leste-Oeste. A dinâmica Norte-Sul era diretamente vinculada

ao problema do desenvolvimento. Depois de 1989, o foco da segurança volta-se para os problemas

internos, como as guerras civis, os conflitos étnicos, a disputa por recursos naturais, etc, a segurança

e o desenvolvimento teriam agora que ser vistos com possibilidades de ganhar e perder juntos, ou

seja, vinculados (NEF, 1999, p. 40 e 41).

Reforçando tal assertiva, as sociedades aparentemente seguras do Norte passaram a ser cada

vez mais vulneráveis aos eventos nas regiões menos seguras e menos desenvolvidas do globo com o

advento das ameaças transfronteiriças e a nova realidade de segurança mundial. Portanto, com as

mudanças após a Guerra Fria, precisava-se ser cada vez mais entendidas através de uma

conceituação abrangente e dinâmica, que exigem abordagens interdisciplinares a fim de explicar

melhor a interdependência complexa (CHENOY; TADJBAKHSH, 2009, p.100).

Portanto, Nef (1999) propõe reconceituar os paradigmas de Norte/Sul (desenvolvimento) e

Leste/Oeste (segurança) pelo modelo centro-periferia, baseado na ideia de vulnerabilidade mútua.

Para ele, o paradigma da segurança humana se basearia na noção de vulnerabilidade mútua, o que

significaria dizer que, em um mundo interdependente, mesmo os setores mais desenvolvidos e

aparentemente mais protegidos se encontram também num estado de vulnerabilidade, enquanto

outros setores sofrem de uma situação de vulnerabilidade e insegurança extrema (NEF; 1999, p.

41). Assim, para Nef, o tema central da segurança humana seria a redução do risco coletivo e

compartilhado das causas e circunstâncias da insegurança. Segundo o mesmo autor, a segurança é a

probabilidade de redução do risco e da vulnerabilidade, ou seja, a diminuição e o controle da

insegurança, ou seja, Nef foca naquilo que afeta a grande maioria da população, especialmente os

setores mais suscetíveis a uma maior vulnerabilidade e exposição de fatores de risco.

Mahbub Ul Haq é quem pela primeira vez afirma que a segurança humana é um suplemento

para o debate do desenvolvimento humano no Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD,

em 1994. De acordo com Chenoy e Tadjbakhsh, o conceito foi introduzido como uma “extensão

natural do desenvolvimento humano no campo da segurança” no contexto das oportunidades do

pós-Guerra Fria para os dividendos da paz (CHENOY; TADJBAKHSH, 2009, p. 98).

Quanto ao Parecer sobre o Desenvolvimento Humano de 1994, o mesmo se refere à

segurança da comunidade ante às agressões recebidas dentro do próprio grupo (como a violência

doméstica), e a segurança política ante o despotismo. Assim, é a primeira vez que aparece a noção de

segurança humana, sendo inserida no bojo da organização da Conferência de Copenhague sobre o

assim dito “dividendo de paz” no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano

(PNUD) e, posteriormente, desenvolvida pela Comissão de Segurança Humana, criada em 2003 e

liderada por Japão, com apoio do Chile. Assim, os autores do Relatório do PNUD de 1994 ressaltam

que a segurança humana não deve ser equiparada ao desenvolvimento humano, pois este é um

conceito mais amplo, que ressalta a ampliação das oportunidades para os indivíduos. A segurança

humana seria a possibilidade das pessoas exercerem as suas opções de forma segura e livre, além de

uma relativa confiança de que essas oportunidades serão perenes (PNUD, 1994, p. 26-27). Assim,

poder-se-ia afirmar que a segurança humana seria a capacidade de desfrutar dos benefícios do

desenvolvimento humano num ambiente seguro e o desenvolvimento humano seria um dos meios de

se criar a segurança humana.

Na evolução do tema da segurança humana, ressalta-se o trabalho do economista indiano e

Nobel de Economia, Amartya Sen2. Ele escreve que a segurança humana pode ser entendida como

a proteção e a preservação da sobrevivência humana e da vida quotidiana (contra as mortes

prematuras, as enfermidades evitáveis, a incapacidade do analfabetismo), assim como a

eliminação de várias indignidades que podem provocar dano, ofensa ou desprezo em nossas vidas,

como, por exemplo, a indigência, a penúria, o encarceramento, a exclusão e o analfabetismo. O

conceito de segurança humana parte, como se pode ver, da dimensão da necessidade do ser humano

(contra a monstruosidade e o malquerer de alguns), e ressalta como prioridade mundial a luta

contra as vulnerabilidades ou fragilidades físicas evitáveis (GASPER, 2005).

Para Sen (2008) a noção de segurança humana se caracteriza pela exigência de

desenvolvimento em situações de especial vulnerabilidade, nas “emergências políticas

complexas”, que são provocadas fundamentalmente por perdas econômicas ou crises estatais que

geram conlitos especialmente dentro do Estado, ou dão lugar a guerras especialmente entre

Estados, bem como doenças, fomes e migrações, insalubridade, analfabetismo e ditaduras.

Desta forma, Sen identifica a superação das privações como parte central do processo de

desenvolvimento. O desenvolvimento e a riqueza são os meios para os indivíduos conquistarem

seus desejos, mas não são exclusivos, ou seja, não se esgotam, assim, nem sempre a assertiva é

verdadeira e constante. Tem que se reconhecer o papel crucial da riqueza na determinação das

condições e da qualidade de vida, mas também é preciso entender a natureza restrita e dependente

dessa relação, ou seja, o desenvolvimento deve ir muito além da acumulação de riqueza e do

crescimento econômico, “sem desconsiderar a importância do crescimento econômico, precisamos

enxergar muito além dele” (SEN, 2008, p.28).

Desta forma, para Sen, ressalta a necessidade de adotar a segurança humana como um

2 SEN, A. Basic Education and Human Security. Workshop on Basic Education and Human Security. UNICEF, University of Kolkata, January 2002.

instrumento para repensar o futuro e o próprio desenvolvimento. Neste último, teríamos a remoção

dos obstáculos que impedem a expansão das escolhas individuais, tais como: o analfabetismo, a

fome, ausência de atendimento médico ou ausência de liberdades civis e políticas. Sendo o objetivo

do mesmo a melhora das vidas humanas por meio da expansão de suas capacidades. Assim, as

mulheres que nascem em sociedades repressoras, a criança que não vai à escola, o trabalhador

escravizado, não estão privados somente do bem-estar, mas das capacidades e do potencial que os

levariam a uma vida responsável e autônoma, já que esta dependeria do usufruto de certas

liberdades básicas. Segundo Sen, “responsabilidade requer liberdade” (idem, p. 22).

O mesmo autor defende que se deve redefinir as velhas instituições internacionais e elaborar

uma agenda de mudanças necessárias, o que deveria incluir os acordos comerciais, as leis de

patentes, as iniciativas de saúde global, além de possibilitar a educação universal, disseminar a

tecnologia, preservar o meio-ambiente, alterar o tratamento dado à dívida externa, investir no

desarmamento e alterar a gestão dos conflitos. Enfim, uma agenda para tornar viável a segurança

humana.

Alinhada com Sen, para Ruth Jacoby, a “liberdade do querer” e a “liberdade do medo” são

indivisíveis, sendo o desenvolvimento outra palavra para essas duas liberdades. A insegurança seria

o desenvolvimento no seu sentido inverso, pois estudos empíricos mostram que a insegurança não

só prejudica as perspectivas de sobrevivência, como também diminui as variáveis macroeconômicas

e de qualidade de vida, particularmente para os mais pobres. Segundo a mesma autora, o

desenvolvimento deveria promover a segurança e as pesquisas têm demonstrado que a ausência de

desenvolvimento econômico e social estaria relacionada com a “falência” do Estado, com a

violência e conflito. Logo, estas interligações significariam que as estratégias para uma redução

efetiva da pobreza deve ser a parte central dos esforços para se alcançar um mundo mais seguro e

vice-versa (JACOBY, 2006, p.03).

Ballesteros (2014, p. 31) diz que a primeira corrente doutrinal da segurança humana é a

canadense, tal como foi proposta pelo Ministro de Relações Exteriores, Axworthy, em 1996,

baseando-se na superação da violência nas relações internacionais e, por conseguinte, na

superação do paradigma da segurança nacional. Tal visão entende substituir a velha diplomacia

que apela às armas, ou seja, a prática do bastão largo (big stick), proposta por Theodor Roosevelt e

por muitos de seus sucessores na Casa Branca, por uma nova diplomacia fundada no soft power,

no poder de persuasão, pois a teoria da dissuasão do “si vis pacem, para bellum” não conseguiu

que houvesse um só dia no mundo sem guerra, portanto, essa deve ser repensada de acordo com o

critério muito mais razoável, do “si vis pacem, para pacem”. Assim, a política exterior do

Canadá terminou propondo uma tese restritiva (narrow) de segurança como proteção da

liberdade, entendida exclusivamente como freedom from fear, ante a violência física, no caso de

conlito. Para interromper o círculo de violência, caberia recorrer às intervenções humanitárias,

mediante uma força civil de paz (peacemaking) de caráter multilateral que assegurasse a

liberdade de imprensa e a existência de um Poder judiciário independente.

Por sua vez, o Canadá promoveu em 2001 a criação da Comissão Internacional sobre

Intervenção e Soberania Estatal (CISSE ou ICISS), para cumprir para com os Objetivos do

Milênio, dentre os quais, de modo particular, a defesa da democracia e da não-violência. Essa

Comissão fez a redação de um parecer substituindo a tese do direito a intervir pela da

“responsabilidade de proteger” (responsability to protect), no sentido de prevenir, atuar e

reconstruir. M a s essa mesma redução da segurança humana a somente questões relacionadas à

eliminação da violência oferece um enfoque conservador e pouco crítico das relações internacionais,

sustentando posições que se consideram satisfeitas somente com a redução do número de guerras no

mundo. Outra crítica subsiste n o risco de servir de instrumento da agenda neoliberal do Norte

para impor os seus próprios valores aos países do Sul, incrementando o perigo de intervenção

militar em tal zona, como através do Consenso de Washington, que aceita a desregulamentação da

economia, favorecendo as desigualdades econômicas no mundo. Assim como também na assinatura

do acordo de defesa com os Estados Unidos, em 09 de dezembro de 2001, que Axworthy qualificou

como o fim da soberania canadense3.

O aspecto mais positivo do enfoque canadense consistiu no impulsionar a estipulação

de acordos contra as minas pessoais e a criação do Tribunal Penal Internacional, assim como a

Rede de Segurança Humana, em 1998, sob a tutela do Canadá e da Noruega. Essa rede reúne

vários países europeus de dimensão média ou pequena (Áustria, Holanda, Eslovênia, Suíça),

como também países da América (como o Chile) e asiáticos (como Tailândia e Jordânia), incluindo

entre os seus objetivos não somente a proteção contra a violência e a defesa da democracia

(entendida essa como o “bom governo”, com a obrigação de prestar contas), mas também a

educação em direitos humanos, a luta contra a pobreza absoluta e em favor do desenvolvimento

sustentável e a proteção em caso de crises financeiras, contaminação e conflitos laborais

(BALLESTEROS, 2014, p. 31).

O mesmo autor afirma que enquanto o conceito de segurança humana, na sua acepção

restrita, tem como ponto de referência a superação da noção de segurança nacional, a acepção

mais ampla de segurança humana se refere à superação do conceito de desenvolvimento como

Produto Interno Bruto e a sua substituição pelo conceito de desenvolvimento humano,

superando a tradicional concepção do desenvolvimento entendido como mero crescimento

econômico (no sentido economicista), em favor de insistir na responsabilidade para com o

desenvolvimento (“responsability for development”).

3 BALLESTEROS, Jesús. Seguridad humana, derechos y políticas públicas . Retos de la Justicia Global, Encuentro Mediterráneo de Jóvenesjuristas, Foro Javea de Vecindad, 2009, p. 53-59.

Alinhada com este raciocínio, Bazzano (2014, p. 42), diferencia a segurança humana

conforme dois aspectos principais: manter as pessoas a salvo das ameaças crônicas como a fome, as

doenças, a repressão (freedom from want) e protegê-las de mudanças súbitas e nocivas nos padrões

da vida cotidiana, por exemplo, das guerras, dos genocídios e das limpezas étnicas (freedom from

fear). Cita que esses dois aspectos da segurança humana foram inspirados no famoso discurso

proferido pelo Presidente Franklin Roosevelt ao Congresso Americano em 1941, intitulado “As

Quatro Liberdades”, no qual afirmou que um mundo seria justo e seguro se estivesse fundado nessas

liberdades: Liberdade de expressão e opinião; Liberdade de culto; Liberdade das privações (freedom

from want) e Liberdade dos temores (freedom from fear).

Dessa maneira, foram atribuídas à segurança humana atribuíram essas duas dimensões:

freedom from want e freedom from fear, ou seja, proteger as pessoas das vulnerabilidades

decorrentes do subdesenvolvimento e, por outro, protegê-las das violências físicas que provêm das

guerras e dos conflitos civis. Além desses dois grandes aspectos principais, o PNUD identifica sete

dimensões da segurança: 1) Segurança Econômica; 2) Segurança Alimentar; 3) Segurança Sanitária;

4) Segurança Ambiental; 5) Segurança Pessoal; 6) Segurança Comunitária; 7) Segurança Política

(BAZZANO, 2014, p. 43).

Segundo Balllesteros (2015, p. 35), o conceito amplo de segurança humana une

seguridade e desenvolvimento, tal como foi propugnado pelos diversos pareceres das Nações

Unidas, desde 2003, ao unir a defesa da freedom from fear e da freedom from want. As Nações

Unidas e o Japão apoiam claramente um conceito amplo de segurança humana, mas negam as

intervenções humanitárias com uso da força. Já a Europa, no seu Parecer A Human Security

Strategy for the European Union, dirigido por M. Kaldor e M. Glasius4, manifesta-se em

favor do conceito amplo de segurança humana, como princípio que deve reger a política

exterior comum de segurança e desenvolvimento, mas utiliza o conceito mais restrito para

justiicar o emprego das próprias capacidades operativas, sem, por isso, ter de pressupor

uma intervenção com limitação da soberania.

Para Sharbanou Tadjbakhsh e Anuradha M. Chenoy, a l i n h a d o s c o m a Ul-Haq e

A. Sen, o sentido amplo de segurança humana, devido a sua conexão com a dimensão de

desenvolvimento e com os direitos de segunda geração, ajuda a superar o relativismo cultural,

uma vez que essas perspectivas dos direitos são as mais valoradas desde os países asiáticos e os

países de maioria islâmica e, deste modo, a segurança humana contribui para ir compreendendo

melhor a verdadeira universalidade dos direitos humanos5.

4 KALDOR, Mary. A Decade of Humanitarian Intervention: The role of Global Civil Society. In: ANHEIER, Helmut;GLASIUS, Marlies; KALDOR, Mary (eds.). Global Civil Society. Oxford: Oxford University Press, 2001. 5 TADJBAKHSH, Sharbanou; CHENOY, Anuradha M. Human security: concepts and implications. London, NewYork: Routledge, 2007. p. 136 et seq.

Resumindo, o consenso entre os defensores da doutrina da segurança humana vem

menos com relação à individuação do tipo de ameaças, das quais o indivíduo deve ser defendido.

De fato, alguns sustentam a exclusão da violência, enquanto que outros, a exclusão da pobreza. Os

primeiros destacam a relação da segurança com a defesa; os segundos, a relação existente entre

segurança e desenvolvimento.

3. SEGURANÇA ADOTADA PELA COMUNIDADE INTERNACIONAL

Como se viu neste trabalho, existem dois campos de operacionalização da segurança

humana, duas facetas da segurança humana: a “freedom from want” e a “freedom from fear”. A face

“freedom from want” já foi aqui amplamente tratada, focando-se nas vulnerabilidades do homem,

numa relação entre desenvolvimento e segurança. Agora, buscar-se-á dar ênfase na face “freedom

from fear”, visando a proteção do homem, onde se destacará a relação das intervenções

humanitárias com a questão da soberania dos Estados.

Recapitulando outros autores, Chenoy e Tadjbakhsh (2009, p. 76) afirmam que a percepção

de que as inseguranças humanas estão interligadas, e que os direitos humanos e o desenvolvimento

precisavam estar associados com as questões de segurança, trouxe destaque à ideia de segurança

humana. Essa ideia foi popularizada na década de 1990 pelas agências da ONU, como o PNUD,

ACNUR, etc., que estavam empenhados em aliviar o sofrimento humano nos casos em que o Estado

não assume a responsabilidade de garantir a dignidade dos seus cidadãos.

Lloyd Axworthy, ex-ministro das Relações Exteriores do Canadá, sugeriu que o conceito de

segurança humana deveria se tornar um princípio organizador central das relações internacionais e

um importante catalisador para encontrar uma nova abordagem para a condução da diplomacia.

Assim, o individuo é o foco irredutível para o discurso de segurança. As reivindicações de todos os

outros referentes (o grupo, a comunidade, o Estado, a região e o globo) derivariam da autonomia do

indivíduo e do direito à vida digna (MACFARLANE; KHONG, 2006, p.02).

Assim, além das discussões em torno do conceito de segurança humana como uma

possibilidade de condução da diplomacia e da cooperação internacional, viu-se a mesma como uma

categoria biopolítica, nos moldes foucaultianos. Nesta vertente, Mark Duffield afirmou que a

segurança humana poderia ser vista como uma relação ou tecnologia de governança que permitiria

aos diversos atores (Estados, ONGs, instituições internacionais) agirem e atuarem, principalmente

nos povos do Sul, o que lhe daria um caráter de biopolítica global. Segundo Duffield (2005, p. 03):

a “segurança das populações contra os fatores antropogênicos que põem em risco a qualidade da

existência” se situaria na convergência de dois componentes: o desenvolvimento, pois se insere na

formulação da segurança humana ao securitizar as questões advindas do subdesenvolvimento

(pobreza, fome, epidemias), que é uma ameaça à vida das pessoas; e a proteção, que representaria a

ascensão do horizonte normativo da “responsabilidade de proteger”. Assim, o objetivo estratégico

seria proteger as pessoas e dar aos Estados (todos) “a capacidade efetiva de, in loco, criarem

condições para que as pessoas sob sua jurisdição sintam-se dia-a-dia seguras”, aumentando o

intervencionismo internacional.

Conforme Bazzano (2014, pp. 47 e 48), as ameaças à Nova Ordem mundial, após a Guerra

Fria, na pauta da política internacional, trouxeram à tona e evidenciaram as graves crises

humanitárias que ocorriam no interior dos países. Ruanda, Somália, Bósnia e Haiti são alguns dos

exemplos que levantaram importantes questões a respeito da defesa dos direitos humanos e da

garantia da segurança humana. Desta maneira, ganhou evidência nos anos 1990 o debate sobre as

intervenções humanitárias. Além do contexto histórico, o próprio escopo conceitual da segurança

humana questiona o status da soberania e o princípio de não intervenção dos Estados, já que para os

formuladores da segurança humana as ameaças são transnacionais e o esforço para combatê-las

também exigiria uma coalizão internacional. Assim, um caso que exemplifica bem a inter-relação

entre a segurança humana e a soberania, são as intervenções humanitárias.

Segundo Kaldor (2001, p. 109), pode-se definir as intervenções humanitárias como uma

intervenção militar, com ou sem a aprovação do Estado, para prevenir genocídios, violações em

larga-escala dos direitos humanos (incluindo a fome em massa) e as graves violações do direito

internacional humanitário.

Conforme Gallardo et all. (2006, p.53) e Baranyi (2006, p. 08), distinguem-se diferentes

“gerações” das operações de paz: as de “primeira geração” consistiam na observação do cessar-fogo

entre as forças armadas regulares, e vingou do ano de 1948 até o fim da década de 80. As de

“segunda geração” ou “multidimensionais”, no início da década de 1990, que participavam da

negociação dos acordos de paz. E no final da década de 1990, cujo marco é a Guerra de Kosovo, em

1999, surgem as operações de paz de “terceira geração” ou “operações de imposição de paz”, que se

utilizam da força para estabilizar os conflitos.

Entretanto, desde as intervenções dos EUA no Oriente Médio e Ásia Central, no final de

2001, discute-se a possibilidade de incluir uma quarta geração de operações: de “estabilização”.

Após os ataques terroristas de 11/09/2001 formou-se a tendência em direção a uma intervenção

forçada, ainda que seja distinta em determinados pontos das demais intervenções, como as do

Iraque, segundo Baranyi (2006): no Afeganistão justificou-se por razões de auto-defesa, apoiada

pelo Conselho de Segurança da ONU por supostos motivos “humanitários”, e, assim, os EUA

permitiram que a ONU e as novas autoridades nacionais liderassem a reconstrução do país; já no

Iraque, dois anos depois, foi justificada pelos EUA como uma medida preventiva de auto-defesa,

jamais foi aprovada e sequer punida pelo Conselho de Segurança da ONU, e as potências ocupantes

(“aliados”) mantiveram o controle quase absoluto da vida pública no Iraque.

Após tais intervenções, a questão que se levanta aos especialistas é sobre os Estados

poderem ou não promover tais ações em outros países, sem a autorização expressa do Conselho de

Segurança da ONU (CSNU). Autores como J.L. Holzgrefe e Tom Farer afirmaram que, caso o

CSNU não consiga colocar fim às graves violações aos direitos humanos, os Estados devem

intervir, mesmo sem autorização. Já Daniele Archibugi e Nicholas Wheeler consideram que todas as

intervenções sem a autorização da ONU são ilegais, e se mostram extremamente preocupados com

ações unilaterais, tal como ocorreu no Iraque. Assim, para eles, há a necessidade de se reestruturar e

reafirmar o papel do ONU e especialmente do CSNU (FARER et all; 2005, pp. 211-251).

Levanta-se também a questão da soberania, uma questão clássica das relações internacionais

e da ciência política. A Paz de Westfalia, em 1648, na Europa, consolida a tendência de

territorialização da política, ganhando forma o sistema de Estados territoriais, conhecido como a

“ordem westfaliana”, para o qual a soberania é territorial e não existiria autoridade suprema acima

dos Estados. É claro que o conceito de soberania e a questão da inviolabilidade dos territórios é um

assunto controverso e polêmico. Contudo, em várias situações da política internacional, os Estados

não hesitam em levantar o argumento da soberania e da inviolabilidade dos territórios quando se

sentem ameaçados por outros Estados. Portanto, as intervenções humanitárias aprofundam essa

polêmica em torno da soberania e do princípio de não intervenção dos Estados (BAZZANO, 2014,

p. 48).

Para Robert Keohane e Holzgrefe (2005, pp. 1 e 2), a intervenção humanitária não é algo

condenável em si, mas estão cientes do potencial de abuso inerente em sua prática. Tais autores

analisam as intervenções humanitárias no contexto dos “Estados falidos” e explora questões

fundamentais da teoria moral, além dos processos de mudança no direito internacional e como as

concepções de soberania estão se movendo como resultado das mudanças das normas em direitos

humanos. Análise feita de forte cunho liberal. Há uma grande defesa dos direitos humanos, mesmo

que seja necessária uma intervenção humanitária, seja ela autorizada ou não. Assim, a soberania é

um valor relativo, útil, mas não uma condição inflexível, principalmente em relação à vida humana.

Como no caso para impedir o genocídio em Ruanda, em 1994, onde a omissão teve consequências

mais graves do que a falta de uma intervenção.

Segundo Michael W. Doyle e Nicholas Sambanis (2006, pp. 02 a 26), existe uma lacuna das

intervenções da ONU, pois não são adequadamente focalizadas na relação entre a reconstrução

econômica, o desenvolvimento e a paz. Os autores apontam que as capacidades locais são

importantes para alcançar a paz negativa (ausência de guerra), tanto no curto como no longo prazo.

Já as missões de paz da ONU podem até expandir a participação política, porém não têm

conseguido iniciar um processo de auto-sustentação do crescimento econômico. O crescimento

econômico é fundamental no apoio aos incentivos para a paz (particularmente, negativa) e contribui

para evitar a guerra, mesmo na ausência de extensas capacidades internacionais. Além de ser um

determinante importante de uma paz duradoura, o crescimento econômico e uma redução nos níveis

de pobreza são determinantes de uma democracia sustentável. Assim, reduzir o fosso entre a política

de manutenção da paz e a assistência no desenvolvimento, com ênfase na transformação estrutural,

é uma boa estratégia de consolidação da paz. Os autores sugerem que as missões de peacebuilding

das Nações Unidas se beneficiariam ao adicionar políticas econômicas nas suas operações, e isto é

um fator decisivo para resolver essa lacuna das operações de paz.

4. O CASO DO HAITI

O Haiti é um pequeno país situado na região do Caribe com aproximadamente 27.751 Km²,

herança da colônia francesa de uma parte da Ilha Hispanhola (Figura nº 1). Seu grupo étnico é

composto por 95% de negros e 5% de pardos e brancos, onde 80% deste total se denominam

Católicos Romanos. Estima-se que sua população corresponda a um total de 9.801.664 de pessoas.

Sua língua oficial é compartilhada entre o Creole e o Francês6 .

Para entender o caso haitiano em relação à Segurança Humana, temos que entender seu

passado histórico. Segundo o General Heleno7, a história do Haiti é dolorosa e trágica desde o

início, desde a sua independência, pois foi um país que se isolou político-economicamente do

continente norte-americano, onde está situada a maior economia do mundo, os EUA, bem como da

América Central e também da América do Sul. Em 1986, com a queda do regime ditatorial de Jean-

Claude Duvalier, imaginou-se uma outra era para o Haiti, foi feita uma nova Constituição e foram

marcadas novas eleições, sendo eleito para Presidente Jean-Bertrand Aristide em dezembro de 1990.

Entretanto, continua o mesmo autor, em 1991, houve um Golpe de Estado Militar, sendo assim a

Organização dos Estados Americanos (OEA), sob orientação dos norte-americanos, impôs sanções

econômicas e, em 1994, um bloqueio total ao país, o que agravou a situação da economia haitiana,

que já era frágil. As poucas indústrias que tinham deixaram o país e se transferiram para países do

continente asiático, na época da ascensão dos Tigres Asiáticos.

Ainda em 1994, continua o Gen. Heleno, o Conselho de Segurança das Nações Unidas

aprovou o envio de uma Missão de Paz, encampada pelos EUA, com 20 mil homens americanos

para tentar resolver o problema do Haiti. Mas, apesar deste auxílio e do retorno de Aristide ao

poder, as Forças Armadas do Haiti foram extintas, e não foi resolvido o problema sócio-econômico

6 Segundo informações do site <http://www.haiti.org/>, acessado em 02/11/2015. 7 PEREIRA, Augusto Heleno Ribeiro. Palestra: Operação de Paz no Haiti. Brasília: Gabinete de SegurançaInstitucional; Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais, 2005, p. 11-12.

e a instabilidade política crônica do país. Com nova eleição, assume a Presidência da República

René Préval. Em 2001, foi reeleito e deu início ao seu segundo mandato. Em 29 de fevereiro de

2004, com país em situação caótica, renunciou e foi substituído pela Força Interina Multinacional -

MIF.

Figura nº 01: Ilha de Hispanhola – Haiti (Parte francesa)Fonte: http://www.guiadacarreira.com.br/historia/colonizacao-terremoto-haiti/, acesso em: 02/11/2015.

Cabe lembrar ainda, que o Haiti tem mais de 200 anos de Independência e não se trata de

uma nação onde haja facções brigando para tornar o país independente, mas sim de um território

com dois centenários de Independência conquistada.

Pelo histórico do país, no Haiti não é exclusivamente um problema militar, embora tenha

sido tratado desta maneira. O país padece mais de problemas sociais, ecológicos e políticos do que,

propriamente, militares. O problema passa a ser militar na medida em que uma Força de Paz lhe é

vital, mas não é um país onde a ação militar, por si só, possa resolver todos os conflitos. Alguns

aspectos marcantes da vida do país reforçam a afirmação de que se trata de um problema

multifacetado como, por exemplo, as construções (que estão inacabadas); o lixo, presença constante

na paisagem do Haiti e que faz parte do dia a dia do haitiano; e a precariedade das habitações

(PEREIRA, 2005, pp. 7 e 8).

A fome e a miséria são grandes, mas não se vê nas crianças o esteriótipo infantil da Somália

e dos países africanos, pois existe fruta em abundância no país, principalmente quando se foge da

capital

Assim, o Haiti foi adotado como estudo de caso, uma vez que este mesmo país conseguiu

abarcar em seu âmbito duas operações de paz embasadas por concepções diferentes de segurança.

Pois, apesar de estarem voltadas para a reconstrução do mesmo país, ambas tentaram por diferentes

vias. A Missão das Nações Unidas no Haiti (UNMIH – Tabela nº 1) primou pela reforma e

modernização das forças de segurança, como via de restabelecer a região. E em contrapartida, a

Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH – Tabela nº 2) adotou um

caráter mais multidimensional, preocupando-se com distintos setores, como os de infraestrutura,

social, promoção de democracia, questões de gênero e respeito aos direitos humanos. A primeira

operação inicia no ano de 1993, da UNMIH no Haiti, indo até o ano de 1996, ano em que a referida

operação de paz foi finalizada. A segunda, no ano de 2004, onde tivemos a instalação da

MINUSTAH, que perdura até os dias de hoje (CAVALCANTI, 2013, p.30).

Argumenta-se ainda que a deposição de Aristides do poder ocorrera não apenas em virtude

de suas palavras proferidas, mas, sobretudo, em decorrência de sua agenda política de alto risco e

altivez, que enfrentava os interesses da elite local, empresarial e de agentes externos, como os EUA.

De acordo com o Global Security, a raiz do golpe também estaria imbricada com a insatisfação do

exército de se subjugar a um controle civil, visto que, o mesmo se percebia como um ―quarto

ramo‖ do Governo no Haiti (idem, p. 56).

Apesar de não ter sido reconhecido de fato pelos países, apenas pelo Estado do Vaticano, o

governo militar encabeçado por Raoul Cédras, que depôs Aristides, se instalou no Haiti entre os

anos de 1991 a 1993, ocasionando inúmeros retrocessos ao Haiti. Como resultados, podemos

apontar um elevado êxodo de refugiados, que se destinaram a países como EUA, República

Dominicana, Jamaica, Bahamas, Guiana Francesa e Ilhas Britânicas Turks e Caicos. Estima-se que

fugiram 10 mil (dez mil) haitianos para as ilhas Turks e Caicos, 30 mil (trinta mil) para a República

Dominicana e para os EUA foram 38 mil (trinta e oito mil)48, onde apenas uma média de 10 mil

(dez mil) haitianos receberam autorização para perseguir o pedido de asilo neste país; para só então

estabelecer-se na Baía de Guantánamo (GAVIGAN, 1997).

Tabela 1: Dados da UNMIH

Tabela 2: Dados da MINUSTAH

Além disso, neste mesmo período, houve um elevado número de mortes, sejam eles meros

civis ou apoiadores do Aristides, totalizando um número estimado de 4 mil (quatro mil) pessoas

assassinadas nas proximidades da região urbana do Haiti (BUSS e GARDNER, 2008). Como

resultado do golpe, os haitianos sofreram ainda com o abandono de investimentos na infraestrutura

social local e declínio de sua economia, onde suas fábricas têxteis e de montagem tiveram de fechar

as portas. Assim, sem um governo justo, sem investimento nas áreas necessárias, com um retrocesso

econômico, e fuga em massa, o Haiti ia se afundando cada vez mais, e com isso, as investidas

postas em prática por Aristides para restaurar o país iam sucumbindo.

Para complicar a situação do povo haitiano, a Organização dos Estados Americanos (OEA),

sendo requisitada por Aristides, e visando retornar pacificamente o Presidente democrática e

legitimamente eleito ao poder, frear as tiranias que estavam ocorrendo no país, resolve intervir na

questão. Desta maneira, por meio de uma reunião de seus Chanceleres, optou pelo isolamento do

país. Entretanto, está singela atitude não surtira os efeitos esperados. Com isso, a Organização

resolveu endurecer, ordenando o congelamento de todos os bens do Estado haitiano e o bloqueio

comercial do país (ZEPEDA, 2009).

Não surtindo o efeito desejado, a ONU, após requisição da OEA, aprovou em 16 de julho de

1993 a Resolução 841 (S/RES/841), universalizando o embargo comercial ao Haiti. Mesmo fazendo

uso detes instrumento legal, pode-se afirmar que isto representou mais uma fonte de dano ao país,

visto que proporcionou entraves ao desenvolvimento econômico do mesmo. O embargo gerou o

impedimento da nação em adquirir petróleo e seus derivados, armas e munições, veículos e

equipamentos militares, além do congelamento dos ativos do Estado haitiano no exterior

(SILVEIRA, 2009; ZEPEDA, 2009). Mas não resolveu a questão. Assim, a ONU resolveu

endurecer por meio da Resolução 867 (S/RES/867/1993), autorizando o envio Missão das Nações

Unidas para o Haiti (UNMIH) por um período de 6 (seis) meses. O mandato conferia à Missão as

tarefas de modernização das forças armadas, reconstrução da infraestrutura local e o

estabelecimento de uma nova força policial (SILVEIRA, 2009).

Diante deste cenário, segundo Buss e Gardner (2008), a ONU expressou a sua profunda

preocupação com a situação humanitária no Haiti, com as violações sistemáticas das liberdades

civis e a alta incidência de refugiados haitianos. A UNMIH, após a prorrogação de seu mandato,

conseguiu atender os seus principais objetivos: Aristides retomou o poder, novas eleições ocorreram

em dezembro de 1995, um novo Presidente e seu Primeiro-Ministro foram eleitos, as FAH (Forças

Armadas do Haiti) foram extintas e a força policial foi criada, a Polícia Nacional Haitiana (PNH).

René Préval, aliado político de Aristides, foi quem o sucedeu na Presidência. O período de

vigência do mandato de Préval foi marcado por tensões, pois o mesmo reduziu a gama de serviços

civis que era de incumbência do Estado e tentou impor um plano de austeridade (BUSS e

GARDNER, 2008). Tais ações tomadas por Préval geraram manifestações entre a população, que

ficou então contra o seu governo. assim, Préval decidiu em 1999 suspender o Congresso em sua

totalidade, além de dois terços do Senado e concluir seu governo por meio de decreto. Os que se

opunham ao governo iam sendo torturados e assassinados, todos os indivíduos sofriam com o

retrocesso político (BUSS e GARDNER, 2008).

Com novas eleições em 2000, Aristides saiu vitorioso. Entretanto as eleições presidenciais e

o seu resultado ocorreram sob muita desconfiança de fraude (nunca evidenciadas), apesar da

supervisão da OEA. Aristides obteve 92% dos votos válidos, apresentando uma vitória expressiva

sob os demais candidatos, se não pelo fato de que apenas uma margem de 5% a 10% dos eleitores

aptos a votar tivessem comparecido as urnas (ESCOTO, 2009). Assim, nem a oposição partidária

nem alguns setores da sociedade civil haitiana aceitaram o resultado desta eleição como válida, e

com isso, passaram a se organizar a fim de enfrentar o governo de Aristides e forçar a sua

deposição. Aristides não hesitou em apelar para a violência a fim de manter-se no poder, passando

então a fazer uso de policiais corruptos e de bandos armados, os Chiméres. Desta maneira, eventos

violentos, desaparecimentos, assassinatos, abusos de direitos humanos, brutalidade policial

passaram a ser episódios comuns durante o Governo Aristides. Com isso, observadores da ONU,

dos EUA, do Canadá e da França passaram a assimilar o comportamento de Aristides a de um

ditador (ESCOTO, 2009).

Conforme Buss e Gardner (2008, p.37) foi durante a vigência do segundo mandato de

Aristides que o tráfico de drogas aumentou em volume vultoso, a produção de cocaína destinada aos

EUA acresceu em média de 5% a 15% do montante tradicional, e tornou-se a maior fonte de lucro e

enriquecimento pessoal de Aristides. Entretanto, tendo em vista a pressão internacional e também

interna, que não se arrefecia, Aristides renuncia. O Presidente da Suprema Corte do Haiti, Boniface

Alexandre, assume o governo do Haiti como Presidente Interino, conforme previa a Constituição

Haitiana e recorre a ONU pedindo auxílio e a intervenção da mesma, visto que mesmo com a saída

de Aristides o caos e a violência continuam ocorrendo.

A ONU interpreta a situação no Haiti como uma ameaça a paz e a segurança internacional

bem como para a região do Caribe, e, preocupada com a rápida deterioração do país, portando o

devido consentimento da autoridade local e com voto unânime entre seus membros, em 29 de

fevereiro de 2004, autoriza o envio da Multinational Interin Force, Força Interina Multinacional

(MIF), para o Haiti por um período não superior a três meses (CAVALCANTI, 2013, p. 65). A MIF

não obteve o êxito esperado, e em virtude disso, através da Resolução 1542 (2004) de 30 de abril de

2004, a mesma é substituída pela Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti

(MINUSTAH) é uma missão de paz criada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas,

seguindo a cartilha do Direito Internacional, em 30 de abril de 2004, para restaurar a ordem no Haiti

(ALMEIDA JR, 2012), uma missão de estabilização multidimensional de caráter não

exclusivamente militar, mas igualmente humanitária.

Resumindo, a peculiar situação presente no Haiti, criada por inúmeros golpes de governos e

corrupção massiva, demonstrou uma natureza deteriorada e complexa, solicitando uma resposta

excepcional ao caso. Assim, em 1993 o país recebe efetivamente a sua primeira operação de paz

agenciada pela ONU. Esta Missão quebrou o paradigma de outras missões, deixou de se assentar no

capítulo “seis e meio”, que tradicionalmente as colocava entre os capítulos VI e VII da Carta da

ONU para se estabelecer formalmente no capítulo VII, que permitia uma ação mais contundente

pelas operações, o uso da força. Conforme autorizado nos termos do capítulo, o mesmo deveria ser

utilizado a fim de implantar a democracia (ESCOTO, 2009). Mais tarde, não surtindo o efeito

esperado, é substituída por outra Missão, que vem se estabelecer no país com uma roupagem

categoricamente diferente da sua antecessora. Com isso, o Haiti é o estudo de caso, visto que ele se

tornou o primeiro país a abarcar em seu âmbito duas operações de paz, embasadas por concepções

diferentes de segurança, porém com a mesma finalidade: reestabelecer a segurança no país e

constituir o Estado democrático.

Dissecando a assertiva acima, de acordo com o mandato da UNMIH, expresso através da

Resolução correspondente, o objetivo elementar da missão é o de permitir a retomada das operações

normais do Governo haitiano, que dizem respeito, especialmente, segundo esta resolução, às

funções policiais e militares do país, sob o controle civil. Assim, para manter a paz e a segurança

internacionais, a missão deve buscar reformar a força policial e militar para então, restaurar o

Estado de direito. Ademais, cabe a mesma ainda as tarefas de modernização das forças armas,

treinamento e orientação de todos os níveis da policia haitiana (S/RES/867/93). Portanto, apesar de

a ONU estar sensibilizada com as questões humanitárias e ter intervido com a UNMIH, esta última

não foi criada para solucionar os problemas humanos e de desenvolvimento do Haiti.

Entretanto, segundo Cavalcanti (2013, p. 106), não vendo a contrapartida das autoridades

haitianas e com a pemanência das violações cometidas contra os indivíduos de partido políticos

opostos, a UNMIH recebe mais uma atribuição (S/RES/917/94), conduzir o país ao estabelecimento

de um ambiente favorável para que a mesma consiga organizar novas eleições, sob o

monitoramento da ONU junto com a OEA, a fim de instalar novamente um governo legitimamente

eleito. Com isso, a UNMIH aponta com o seu grande diferencial, é a primeira operação de paz no

Haiti a atuar, sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas. A fim de agir de maneira mais rígida

diante da indiferença dos militares, e deliberando definitivamente o uso da força, a ONU passou a

dotar medidas adicionais, visando ultimar a crise política haitiana.

Apesar da UNMIH ter conseguido bons resultados, inclusive com eleições democráticas

para presidente, e de ter tido mobilização e investimento, apenas uma parcela da população

conseguia se desenvolver com as aquisições emanadas do exterior. E com isso, continua a autora, a

falta de avanços notáveis naquela localidade, somado a percepção da insegurança pública neste

local, parecia estar impedindo o investimento estrangeiro. Desta maneira, percebe-se o ciclo

(vicioso) da segurança, no período, é ele quem determina todo o desenvolvimento do país, sem ela é

impossível ter democracia, uma sistema judiciário eficiente e o pleno desenvolvimento da

sociedade, seja em termos econômicos e/ou sociais. Fica claro, então, que uma ação coordenada

deve ser implementada no Haiti a fim de retirá-lo deste espiral de miséria e violência. Outra crítica

se faz ao mandato da UNMIH que foi caracteristicamente breve, o que pode ter atrapalhado o

desenvolvimento e o resultado oriundo das suas atividades.

Já o mandato da MINUSTAH se caracteriza por uma multidimensionalidade, segundo

Cavalcanti (2013, p. 138). Ao que parece, a experiência vivenciada pela UNMIH serviu de

aprendizado para a MINUSTAH. Desta maneira, continua a autora, ela foi originalmente criada

tanto para ajudar o governo em transição a garantir um ambiente seguro e estável, como para

reestruturar e reformar o aparato de segurança nacional do país, proteger civis sob iminente ameaça

de violência e empreender esforços para promover e proteger os direitos humanos, e por fim, devia

ainda apoiar os processos constitucionais e políticos do Haiti. Portanto, as suas atividades estavam

voltadas para os seguintes setores: segurança, desarmamento, desmobilização e reintegração

(DDR), reforma judiciária, direitos humanos, desenvolvimento econômico e social, e

democratização.

Cabe lembrar, que a MINUSTAH, durante determinados períodos, sofreu pressões explícitas

de países como Estados Unidos, Canadá e França para aumentar os níveis de utilização da força.

Como resultado, realizou, em seus momentos mais críticos, operações de grande envergadura e com

intenso uso da força (ABDENUR, 2008).

De outra forma, a Resolução (S/RES/1542/2004), referente a MINUSTAH, expressa ainda

seu compromisso e preocupação com a segurança humana dos haitianos. Condenado as violações de

direitos humanos; solicitando que sejam tomadas todas as medidas necessárias para por fim a

impunidade; encorajando o pessoal de Manutenção da Paz a prevenir e controlar o HIV/AIDS e

todas as doenças transmissíveis e a promover o respeito aos direitos humanos. Diferente das outras

missões, o CSNU incentiva o pessoal da MINUSTAH a dedicar especial atenção a condição das

mulheres e crianças; e por fim, o CSNU impõe a MINUSTAH a responsabilidade de proteger os

civis diante da eminente ameaça da violência física. Em virtude disso, a reconciliação política e os

esforços para a reconstrução econômica continuam a se essenciais para a estabilidade e a segurança

do Haiti (S/RES/1576/2004).

Diante da breve análise destes dados podemos aferir que a intervenção da ONU no Haiti por

meio da atuação da MINUSTAH promoveu sim melhorias ao país e que há resquícios da segurança

humana no mandato e nas resoluções da mesma, bem diferente do que se viu na UNMIH. A missão,

além de apresentar avanços na promoção do desenvolvimento econômico do país, proporcionou

melhorias na questão do desenvolvimento humano e consequentemente dos direitos humanos,

quesitos diferenciadores desta missão com relação às demais (CAVALCANTI, 2013, p. 155).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alinhado com o pensamento de Bazzano (2014), o dilema e as questões de segurança

humana giram em torno da problemática dos direitos humanos. Portanto, os direitos humanos são

um importante fator para a autorização de uma intervenção, como aconteceu no Haiti.

Assim, os direitos humanos aparecem no cenário internacional como uma bússola moral,

assim a violação dos direitos humanos está sendo levantado além das questões jurídicas, política e

estatais, flexibilizando o conceito de soberania. Implicando em questões morais, os abusos aos

direitos humanos mobilizam fortemente a comunidade internacional.

Contudo, apesar das questões morais e do forte conteúdo normativo que os direitos

humanos mobilizam, as intervenções humanitárias não são um consenso e vários problemas e

dúvidas são sucitadas durante a sua execução e eficácia, como a questão da seletividade das

intervenções, muitas vezes não sendo levantadas no hemisfério sententrional, no dilema norte-sul,

por exemplo.

A falta de definição do que significa um problema humanitário pode gerar a tal seletividade

das intervenções, pois dependem da aprovação do CSNU, embora haja casos de intervenção sem

autorização da ONU, como o caso da incursão dos EUA no Iraque, em 2003, sob a égide de

intervenção humanitária, que também é estudada como uma nova geração de Operações de Paz.

Portanto, vários componentes estão envolvidos, criando um universo de subjetividade,

levando em consideração os atores envolvidos, os interesses nacionais, estratégicos e políticos. Os

interesses dos grandes países – que não querem gastar dinheiro, nem soldados, em missões sem

interesses econômicos – ainda é um ponto crucial na decisão de intervir. Outra crítica, se faz ao

lapso temporal, na qual as intervenções humanitárias são muito mais reativas do que preventivas,

como ocorreu no Haiti, quando, na verdade, o que deveria ocorrer era justamente o contrário, as

intervenções humanitárias deveriam agir como um mecanismo dissuasório de conflitos internos.

De acordo com os autores apresentados acima, as intervenções humanitárias seriam

necessárias, principalmente, pela possibilidade da reconstrução político-econômica dos Estados que

sofrem as intervenções. Os autores, apesar de trabalharem os seus argumentos de forma diferente –

Robert Keohane discute teoricamente o conceito de soberania e a sua relação com as intervenções e

Michael Doyle e Nicholas Sambanis analisam as missões de paz e os fatores que podem garantir o

seu sucesso – apresentam as mesmas conclusões: de que não basta por um fim no conflito, é preciso

garantir que eles não ocorram novamente e a melhor maneira para se garantir isso, é investir na

construção de instituições políticas fortes e na estabilidade econômica.

Tanto a UNMIH, quanto a MINUSTAH, deixaram como legado uma importante experiência

para a Comunidade Internacional e, especificamente, para a ONU, pelo fato de que os mandatos das

operações de paz devem ser específicos a cada caso, ou melhor, a cada contexto específico de tempo. O

Haiti é um exemplo emblemático desta afirmação, onde as operações não apenas se adaptaram ao país

como também atuaram distintamente em cada cenário encontrado quando despachadas, o que

inevitavelmente gerou resultados e conquistas diferentes. A UNMIH cumpriu estritamente o seu

mandato, mas não deixou resultados sólidos, por ser efêmera e por não se preocupar no âmago com o

desenvolvimento haitiano (CAVALCANTI, 2013, p. 155).

A MINUSTAH veio com um diferencial, a multidimensionalidade e a preocupação com a

segurança humana dos haitianos, traduzida nas suas atividades em campo, ao passo que não se

preocupou apenas em trabalhar sob as questões políticas e econômicas do país, mas igualmente com a

população local, com as condições de vida e segurança deles e o desenvolvimento dos mesmos.

Adicionalmente, a missão não se empenhou apenas em restaurar a democracia, como uma simples

Operação de Imposição da Paz. Na realidade, a missão se comprometeu em inseri-los em todo o

processo de reconstrução e estabilização do país, visando deixá-los preparados para o término dessa

missão.

No ano de 2015, marcou-se 11 anos da Operação de Paz da MINUSTAH no Haiti, embebida

pelo conceito de segurança humana, contribuiu positivamente no processo de reconstrução do Haiti ao

passo que mostrou melhorias não apenas na restauração democrática, como na promoção dos direitos

humanos e das questões de gênero. Sobretudo, porque ela conseguiu aliar as duas concepções de

segurança, uma vez que durante a sua atuação no período observado não abandonou as questões de

segurança internacional. Entretanto, para que esta evolução seja contínua, o trabalho conjunto da ONU,

da Comunidade Internacional e do Governo haitiano deve contar especialmente com a participação da

população local. Sobretudo porque em algum momento as intervenções terão de deixar o país. Além

disso, ficou nítido as modificações dos discursos globais e das resoluções da CSNU, o que sugere que o

conceito de segurança humana está em progressão, adaptando-se à situação humana, à responsabilidade

de proteger da comunidade internacional e, de certa forma, tocando os governantes das potências

globais para as causas humanitárias.

REFERÊNCIAS

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