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Segurança alimentar e agricultura Alfredo José Barreto Luiz* A análise dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2004, realizada pelo IBGE, mais especificamente os que dizem respeito à segurança alimentar, à luz de outros dados obtidos de forma independente e para finalidade diversa, permite desfazer alguns mitos e confirmar algumas teses. Antes mesmo que os dados da PNAD 2004 estivessem disponíveis, foi imaginado um trabalho que estudasse o tipo de relação existente entre o modelo de agricultura praticado em determinada região e a insegurança alimentar dos moradores da zona rural. Todos os dados utilizados nas análises realizadas estão disponíveis no endereço eletrônico do IBGE (http://www.ibge.gov.br ). O IBGE faz anualmente a Pesquisa Agrícola Municipal (PAM), que levanta para cada um dos mais de 5.500 municípios brasileiros, dados sobre área plantada e colhida, quantidade produzida e valor da produção de 62 espécies vegetais. Os dados do ano de 2004 relativos ao valor da produção, foram analisados por Unidade da Federação, para poderem ser comparados aos dados da PNAD, que não podem ser estimados para o nível municipal. Foram considerados, para efeito deste trabalho, como “alimentos” os seguintes produtos: azeitona; castanha de caju; palmito; alho; amendoim; arroz; aveia; batata-doce; batata- inglesa; cebola; ervilha; fava; feijão; mandioca; milho; tomate; e trigo. No grupo denominado “frutas” constavam: abacate; banana; caqui; coco; figo; goiaba; limão; maçã; mamão; manga; maracujá; marmelo; noz; pêra; pêssego; tangerina; uva; abacaxi; melancia; e melão. Sob a designação de “não alimentícias” estavam: algodão (arbóreo e herbáceo); borracha; chá-da- índia; dendê; erva-mate; guaraná; pimenta-do-reino; sisal; urucum; fumo; juta; linho; mamona; rami; tungue; centeio; cevada; malva; e sorgo. As culturas: cacau; café; laranja; cana-de-açúcar; e soja foram nomeadas de “commodities”. Nenhuma dessas classificações é perfeita, pois o linho pode ser usado como alimento e não como fonte de fibra, parte da produção de cana-de-açúcar e de laranja é consumida como alimento, assim como a polpa do cacau e o óleo de soja. O milho em grande parte é utilizado na alimentação animal e não humana, o trigo também pode ser considerado uma commodity etc. Mas qualquer outra classificação também não seria exata. É importante dizer que a escolha dos componentes do grupo foi feita uma única vez e antes de se conhecerem os valores, tanto oriundos da PAM quanto da PNAD. Lembra-se ainda que os dados relativos à pecuária não foram considerados nesse estudo. Na tabela 1 são apresentados os valores para o coeficiente de correlação entre os percentuais de insegurança alimentar e do valor da produção agrícola, nas 27 Unidades da Federação.

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Page 1: Segurança alimentar e Agricultura - Embrapa Meio Ambientewebmail.cnpma.embrapa.br/down_hp/374.pdf · Tabela 1 – Correlação entre o percentual de insegurança alimentar total

Segurança alimentar e agricultura

Alfredo José Barreto Luiz*

A análise dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2004, realizada pelo IBGE, mais especificamente os que dizem respeito à segurança alimentar, à luz de outros dados obtidos de forma independente e para finalidade diversa, permite desfazer alguns mitos e confirmar algumas teses.

Antes mesmo que os dados da PNAD 2004 estivessem disponíveis, foi imaginado um trabalho que estudasse o tipo de relação existente entre o modelo de agricultura praticado em determinada região e a insegurança alimentar dos moradores da zona rural. Todos os dados utilizados nas análises realizadas estão disponíveis no endereço eletrônico do IBGE (http://www.ibge.gov.br).

O IBGE faz anualmente a Pesquisa Agrícola Municipal (PAM), que levanta para cada um dos mais de 5.500 municípios brasileiros, dados sobre área plantada e colhida, quantidade produzida e valor da produção de 62 espécies vegetais. Os dados do ano de 2004 relativos ao valor da produção, foram analisados por Unidade da Federação, para poderem ser comparados aos dados da PNAD, que não podem ser estimados para o nível municipal. Foram considerados, para efeito deste trabalho, como “alimentos” os seguintes produtos: azeitona; castanha de caju; palmito; alho; amendoim; arroz; aveia; batata-doce; batata-inglesa; cebola; ervilha; fava; feijão; mandioca; milho; tomate; e trigo. No grupo denominado “frutas” constavam: abacate; banana; caqui; coco; figo; goiaba; limão; maçã; mamão; manga; maracujá; marmelo; noz; pêra; pêssego; tangerina; uva; abacaxi; melancia; e melão. Sob a designação de “não alimentícias” estavam: algodão (arbóreo e herbáceo); borracha; chá-da-índia; dendê; erva-mate; guaraná; pimenta-do-reino; sisal; urucum; fumo; juta; linho; mamona; rami; tungue; centeio; cevada; malva; e sorgo. As culturas: cacau; café; laranja; cana-de-açúcar; e soja foram nomeadas de “commodities”.

Nenhuma dessas classificações é perfeita, pois o linho pode ser usado como alimento e não como fonte de fibra, parte da produção de cana-de-açúcar e de laranja é consumida como alimento, assim como a polpa do cacau e o óleo de soja. O milho em grande parte é utilizado na alimentação animal e não humana, o trigo também pode ser considerado uma commodity etc. Mas qualquer outra classificação também não seria exata. É importante dizer que a escolha dos componentes do grupo foi feita uma única vez e antes de se conhecerem os valores, tanto oriundos da PAM quanto da PNAD. Lembra-se ainda que os dados relativos à pecuária não foram considerados nesse estudo. Na tabela 1 são apresentados os valores para o coeficiente de correlação entre os percentuais de insegurança alimentar e do valor da produção agrícola, nas 27 Unidades da Federação.

Page 2: Segurança alimentar e Agricultura - Embrapa Meio Ambientewebmail.cnpma.embrapa.br/down_hp/374.pdf · Tabela 1 – Correlação entre o percentual de insegurança alimentar total

Tabela 1 – Correlação entre o percentual de insegurança alimentar total (leve + moderada + grave) por local de moradia e o percentual do valor da produção agrícola por grupo de produtos, nas Unidades da Federação, Brasil, 2004.

Grupo de produtos agrícolaslocal de moradia commodities alimentos frutas não alimentícias

Urbana -0,3329 0,2933 0,2234 -0,1825Rural -0,4798 0,5397 0,2092 -0,3747Total -0,4368 0,4582 0,2131 -0,2894

A primeira constatação é que, independente do local de moradia, os grupos “alimentos” e “frutas” correlacionam-se de forma positiva com a insegurança alimentar, e os grupos “commodities” e “não alimentícias” têm correlação negativa. Ou seja, em 2004, à medida que no conjunto das Unidades da Federação, aumentava o percentual do valor da produção dos grupos “alimentos” e “frutas” entre os 62 produtos estudados na PAM, a insegurança alimentar, tanto na zona urbana como na rural e no total do Estado, também aumentava. O contrário acontecia com os grupos “commodities” e “não alimentícias”, para os

quais, à medida que o percentual do valor da produção aumentava a insegurança alimentar diminuía. Os maiores valores de correlação ocorreram para a insegurança alimentar na zona rural, com os grupos “alimentos” (correlação positiva) e “commodities”

(correlação negativa).

A correlação existente entre a renda per capita em cada Unidade da Federação (PIB/população, dados do IBGE para 2003) e o percentual de insegurança alimentar entre os moradores da zona rural, igual a -0,6760, indica uma dependência negativa e relativamente alta entre essas duas variáveis.

O resultado observado permite que se concorde com aqueles que afirmam que, no Brasil, a fome, ou melhor, a insegurança alimentar, está muito mais ligada à falta de renda do que propriamente à falta de alimentos. Embora esta afirmação já tenha sido incorporada à maioria dos textos técnicos e mesmo ao discurso político, é importante ressaltar que se chegou, de forma totalmente independente, a uma evidência que é compatível com ela. Ou seja, os dados obtidos no âmbito da PAM não foram coletados com objetivo de analisar a insegurança alimentar nem, por outro lado, os dados da PNAD foram coletados com o objetivo de correlacionar a insegurança alimentar com a produção agrícola.

Na realidade, a correlação observada entre o tipo de agricultura praticada e a insegurança alimentar não pode ser atribuída a uma relação de causa e efeito, pois não há lógica possível para justificar que em Estados nos quais a produção agrícola é predominantemente voltada

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aos “alimentos”, a insegurança alimentar da população rural seja maior. O que podemos supor é que a produção desses gêneros está concentrada em Estados com menor renda per capita, a qual, esta sim, é a principal determinante da insegurança alimentar. Da mesma forma, a produção das culturas chamadas de commodities é predominante em Estados com renda per capita maior e, conseqüentemente, insegurança alimentar menor. Os valores do coeficiente de correlação apresentados na tabela 2 corroboram essas suposições.

Tabela 2 – Correlação entre a renda per capita (2003), e o percentual do valor da produção agrícola por grupo de produtos (2004) nas Unidades da Federação, Brasil.

Grupo de produtos agrícolascommodities alimentos frutas não alimentícias

Renda per capita 0,3346 -0,3532 -0,1858 0,2778

Isso, de certa forma, valida ou justifica as políticas de transferência, distribuição ou suplementação de renda, adotadas pelo governo federal, pois mesmo na zona rural das regiões que produzem os alimentos o que determina a segurança alimentar é a capacidade de adquiri-los e não sua existência.

De maneira alguma isso descarta a importância da produção de alimentos de forma organizada e distribuída regional e geograficamente. Apenas reforça a tese de que não basta produzir alimentos (fazer o bolo crescer), é preciso garantir que os indivíduos tenham renda para poder ter acesso a eles (dividir o bolo).

A produção de alimentos localmente está muito mais relacionada à soberania alimentar do que exatamente com a segurança alimentar. Entende-se soberania alimentar como a situação na qual uma determinada comunidade, com localização bem definida no espaço, é capaz de produzir a maioria dos alimentos de que necessita para o seu consumo, em quantidade e qualidade suficientes, com respeito as suas

tradições culturais e de forma sustentável no tempo.

Políticas públicas voltadas para alcançar a soberania alimentar podem contribuir para a segurança alimentar de diversas maneiras: 1) alimentos tradicionais geralmente são nativos ou bem adaptados às condições de clima e solo do local, o que tende a proporcionar eficiência à produção, baixando custos e elevando a produtividade; 2) produtos de consumo alimentar local, em geral, consumidos in natura, ganham em qualidade ao serem comercializados imediatamente depois de colhidos (alimentos frescos); 3) a proximidade

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entre produtores e consumidores facilita a logística de distribuição e diminui o espaço para intermediários no processo, contribuindo para a redução dos custos ao consumidor ou melhor remuneração ao produtor; 4) as relações interpessoais entre produtores e consumidores, facilitadas pela proximidade física, podem interferir positivamente no compromisso entre esses atores, tanto no compromisso do produtor com a qualidade nutricional e sanitária dos produtos e com a conservação ambiental, quanto no compromisso do consumidor na preferência pelos fornecedores locais e a disposição em remunerar de forma adequada a fonte local de sua alimentação saudável; 5) a produção local exige mão de obra e gera renda, o que, como vimos, diminui a insegurança alimentar. É um sistema que se retro-alimenta, ou seja, promover a soberania obriga a produção local, que gera emprego e renda, que aumenta a demanda por produtos e assim por diante.

*Doutor em Sensoriamento Remoto, pesquisador da Embrapa Meio Ambiente.