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Ricardo Marcelo Fonseca Professor da graduação e do curso de pós-graduação em direito da UFPR; Doutor em direito das relações sociais pela UFPR; Pós-doutor na Università degli Studi di Firenze, Itália (2003/2004), onde Integra o collegio dei docenti do curso de doutorado em storia dei diritto; Pesquisador do CNPq; Presidente do IBHD (2007-2011); Procurador federal; Membro do IAP (Instituto dos Advogados do Paraná); Diretor eleito da Faculdade de Direito da UFPR. Airton Cerqueira Leite Seelaender Doutor em direito na J.W.Goethe-Universitàt (Frankfurt/Alemanha); Pesquisador visitante do Max Planck Instituí für europãische Rechtsgeschichte (1994-1997) e Presidente do IBHD (2005-2007); Ex-Procurador do Estado de São Paulo; Professor de História do Direito e Direito Constitucional na Universidade Federal de Santa Catarina. HISTORIA DO DIREITO EM PERSPECTIVA Organizadores Do Antigo Regime à Modernidade Colaboradores: Airton Cerqueira Leite Seelaender Andrei Koerner Antonio Carlos Wolkmer António Manuel Hespanha Arno Dal Ri Júnior Bruno Feitler Carlos Petit Ezequiel Abásolo Gilberto Bercovici Ignacio Maria Poveda Velasco James Walker José Antônio Peres Gediel José Ramon Narvaez Luis Fernando Lopes Pereira Luiz Edson Fachin Manuel Martinez Neira Marcos César Alvarez Paolo Cappellini Paolo Grossi Peter Oestmann Pietro Costa Samuel Rodrigues Barbosa Silvia Hunold Lara Thomas Simon Curitiba Juruá Editora 2009

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  • Ricardo Marcelo Fonseca Professor da graduao e do curso de ps-graduao em direito da UFPR; Doutor em direito

    das relaes sociais pela UFPR; Ps-doutor na Universit degli Studi di Firenze, Itlia (2003/2004), onde Integra o collegio dei docenti do curso de doutorado em storia dei diritto; Pesquisador do CNPq;

    Presidente do IBHD (2007-2011); Procurador federal; Membro do IAP (Instituto dos Advogados do Paran); Diretor eleito da Faculdade de Direito da UFPR.

    Airton Cerqueira Leite Seelaender Doutor em direito na J.W.Goethe-Universitt (Frankfurt/Alemanha); Pesquisador visitante do Max Planck

    Institu fr europische Rechtsgeschichte (1994-1997) e Presidente do IBHD (2005-2007); Ex-Procurador do Estado de So Paulo; Professor de Histria do Direito e

    Direito Constitucional na Universidade Federal de Santa Catarina.

    HISTORIA DO DIREITO EM PERSPECTIVA

    Organizadores

    Do Antigo Regime Modernidade Colaboradores:

    Airton Cerqueira Leite Seelaender Andrei Koerner Antonio Carlos Wolkmer Antnio Manuel Hespanha Arno Dal Ri Jnior Bruno Feitler Carlos Petit Ezequiel Absolo Gilberto Bercovici Ignacio Maria Poveda Velasco James Walker Jos Antnio Peres Gediel

    Jos Ramon Narvaez Luis Fernando Lopes Pereira Luiz Edson Fachin Manuel Martinez Neira Marcos Csar Alvarez Paolo Cappellini Paolo Grossi Peter Oestmann Pietro Costa Samuel Rodrigues Barbosa Silvia Hunold Lara Thomas Simon

    Curitiba Juru Editora

    2009

  • JURISTAS E DITADURAS: UMA LEITURA BRASILEIRA

    Airton Cerqueira Leite Seelaenderx

    I. "Em minha vida tenho tido o hbito salutar de no ficar remoendo o passado"'. Essa frase, que curiosamente figura nas memrias do jusfilsofo Miguel Reale, bem que poderia servir de divisa para algumas faculdades de direito no Brasil. Nunca poderia, porm, servir de orientao para quem preten-de analisar a histria ou compreender melhor algumas das linhas doutrinrias ainda hoje relevantes, no campo do direito.

    Tanto quanto a atuao do "Schreibtischtter"3 na mquina judicial e administrativa dos regimes ditatoriais, o comportamento coletivo dos juzes e dos profissionais do direito durante as ditaduras tem atrado crescente interesse dos historiadores do direito. Recentemente, alguns destes ltimos tm mesmo enfrentado um tema "tabu": o papel desempenhado pelos professores de direito - inclusive de figuras influentes no campo doutrinrio - na legitimao e mesmo na gesto dos regimes supracitados.

    Ainda em desenvolvimento na Alemanha, na Frana e em outros pases europeus, a discusso sobre tal tema deveria ser prontamente iniciada, no Brasil. Trata-se no s de viabilizar a obteno de maiores conhecimentos sobre o pe-rodo ditatorial, mas tambm de estimular o abandono, pelas faculdades de di-reito, de sua ltima atitude de conivncia com a ditadura: o silncio sobre as opes polticas passadas 4 .

    Professor da Universidade Federal de Santa Catarina; Doutor em Direito pela J.W. Goethe-Universitt (Frankfurt).

    2 REALE, M. (1987a), p . 136. 3 Para uma anlise do conceito e de sua distino de outras formas de colaborao com ditaduras,

    por parte de juristas e intelectuais, cf. RTHERS, B. 1990, p. 22-24. Sobre a opo pelo silncio e suas causas, no meio universitrio alemo, cf, entre outros, R T H E R S , B. 2 0 0 1 , p. 154; H A T T E N H A U E R , H. 1981, p. 7, e S T O L L E I S , M.; SIMON, D. 1981, p. 20. Para uma crtica a tal silncio, no Brasil, cf. SEELAENDER, A. 2004, p. 35-36, n. 24.

  • 416 Air ton Cerque i ra Lei te See laender

    A superao desta atitude no ser tarefa fcil. H que se contar com a resistncia dos antigos professores, muitos dos quais capazes de mobilizar am-plas redes de apoio e de produzir autojustificaes de alta qualidade literria. H que se esperar a resistncia de assistentes, sucessores, ex-colaboradores e anti-gos orientandos - enfim, de todos que precisem "defender o velho", para impe-dir o questionamento do seu prprio pedigree acadmico 5 . A "defesa coletiva", a "lealdade" e a "solidariedade" podem, inclusive, gerar novos ganhos estratgi-cos a tais indivduos, permitindo-lhes reforar laos, ampliar redes de apoio recproco e dar eficcia maior s "coortes de sociabilizao"6 de que participam.

    O silncio sobre a colaborao com as ditaduras tende a se acentuar no meio jurdico, no qual a ascenso a posies de destaque e mesmo o xito na advocacia tendem a ser mais fceis para quem sabe manter canais abertos, no provocar "antipatias", impedir vetos informais e evitar a fama de "criador de caso"1. No obstante, posturas defensivas anlogas podem ser encontradas mesmo em faculdades de histria. Na Alemanha, por exemplo, Rthers de-monstrou que os mesmos historiadores que se haviam escandalizado nos anos 80 com as interpretaes revisionistas sobre o Holocausto vieram a adotar, na dca-da seguinte, uma postura bem mais contida, quando veio tona a "contribuio cientfica" de seus prprios mestres para a legitimao da poltica racial e do expansionismo nazistas*. Antes, imperava um cmodo silncio a respeito do tema, tendo a prpria "rea da Histria (...) por dcadas ocultado com xito a sua prpria histria"9.

    Mas voltemos s faculdades de direito e s estratgias nelas adotadas para ocultar o passado. O que est por trs de tanto silncio?

    Seria possvel, por exemplo, explicar tal atitude invocando-se um "es-pecial talento do professor de direito" para fugir a dissabores desnecessrios, identificando, por exemplo, riscos de um eventual processo por danos morais?

    No de se crer que aqui esteja a causa do problema. Note-se que, no Brasil, o professor conta no apenas com a liberdade de expresso prevista no

    5 Sobre tal postura, cf. RTHERS, B. 2001 , p . 22 e as., 153. 6 Sobre o conceito, cf. RTHERS, B. 2001 , p. 3 e ss. Inspirando-se na denominao da unidade

    militar romana, o conceito de "coorte de sociabilizao" remete a "grupos de pessoas marcadas por experincias de vida comuns" , sob a influncia de fatores como idade, origem social, for-mao e exposio a situaes semelhantes (transformaes polticas, oportunidades de carreira, riscos etc.). Segundo Rthers (2001, p. 4), tais pessoas "no raramente" apresentariam seme-lhanas cm suas "vises de mundo e de valores", "modos de pensar" e "formas de agir e reagir, quando" fossem "questionadas as concepes fundamentais enraizadas atravs da (sua) socializa-o" (cf. tambm R T H E R S , B. 2001 , p. 9). Analisando o caso alemo, reconhece Hattenhauer que, enquanto continuaram nos seus cargos os principais juristas do perodo hitleriano, "uma crtica" a eles "podia ser prejudicial" para os j o -vens que iniciavam a carreira acadmica (cf. H A T T E N H A U E R , H. 1981, p. 7. Sobre o tema, cf. tambm STOLLE1S, M.; SIMON, D. 1981, p. 20).

    s Sobre a "42. Deutsche Historikertag" (1998) e sobre o debate a respeito da atuao de historia-dores alemes no perodo nazista, cf. R T H E R S , B. 2001 , p. 15-7, 152.

    0 RTHERS, B. 2001 , p. 23 .

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  • Histr ia do Dire i to e m Perspec t iva 417

    art. 5 o , IV e IX, da Constituio, mas tambm com uma especfica "liberdade de ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento (...) e o saber" (art. 206-11). Os alunos tm direito informao (art. 5 o , XIV) e liberdade de aprender" (art. 206-11), inclusive sobre temas espinhosos cujo exame contribua para prepar-los "para o exerccio da cidadania" (art. 205). Dentro desse quadro, evitados abusos como o insulto e a imputao infundada de aes desonrosas ou ilcitas, sequer haveria lastro real para pedidos de indenizao.

    E bem verdade que a meno do passado pode por vezes gerar hiper-reaes, por parte dos ex-defensores da ditadura no meio jurdico. Autores j estabelecidos podem irritar-se quando chegam ao conhecimento do pblico obras publicadas no incio de suas carreiras, em perodos ditatoriais cuja curta durao no haviam previsto adequadamente. Temendo por sua reputao, po-dem at provocar o Poder Judicirio, ansiando por uma apreenso de escritos ou pelo fornecimento de um "Persilschein"10.

    Isso parece j ter ocorrido na Frana, onde a atuao dos juristas sob o regime de Vichy ainda um tema insuficientemente estudado", a despeito de haver uma discusso pblica estimulada at mesmo pelo cinema 1 2 . Vejamos, aqui, s a ttulo de exemplo, o chamado "Caso Duverger".

    Um dos mais destacados tericos do Ps-Guerra, Maurice Duverger ha-via escrito, no incio de sua carreira, comentrios "situao dos funcionrios depois da Revoluo de 1940". Vendo na ascenso de Ptain aps a derrota francesa uma "revoluo" autoritria e nacional, Duverger descrevera como algo normal a vedao do acesso de judeus e cidados naturalizados aos cargos p-blicos 1 3 . Tentando dcadas depois se justificar do ocorrido, o pensador francs invocou um acrdo de 1968, que declarava seu texto "um estudo puramente

    jurdico, tcnico e crtico da legislao racial ento em vigor"14. Restou escla-recer, no entanto, se essa anlise supostamente "neutra da legislao racial" -uma anlise sem rejnidio - no constituiria, ela mesma, uma forma de aceitao das novas normas ' 3 . Se a atitude voluntria do autor, redigindo e publicando tal artigo, no contribuiria, por si s, para a legitimao dessas normas como objeto normal do trabalho do jurista.

    1 0 Designao popular dos documentos fornecidos na Alemanha ocupada pelos Aliados, atestan-do que o passado poltico individual no era demasiado comprometedor. A referncia decorre de uma propaganda de sabo em p ("Persil lava branco como a neve").

    n Na Frana, j em 1961 um artigo de Emile Giraud enfrentava o problema da "responsabilidade das faculdades de direito no declnio da democracia" (v. GIRAUD, E. 1961 e SAULNIER, F. 2004, p. 32). Sobre a colaborao de juristas com Vichy, podem ser teis - alm de STERNHELL, Z. 2000 e SAULNIER, F. 2004 G R O S , D. (2000), p. 26, 28 e ss., 34-35; e LOISELLE, M. 2000, p. 450 e ss.

    1 2 Cf. o filme Sections spciales de Costa Gavras. ' O texto foi publicado na Revue de droit public et de la science politique, t. 57, 1940/1941.

    Sobre ele, cf. STERNI1EEL, Z. 2000, p. 4 2 1 , 472, n. 2. 14 Apud STERNHEEL, Z. 2000, p. 475 , n. 2. 1 5 STERNHEEL, Z. 2000, p. 476, n. 2.

  • 4 1 8 Airton Cerqueira Leite Seelaender

    Mesmo quem achasse possvel algum abster-se totalmente de juzos de valor no exame de temas polmicos teria de reconhecer que os professores de direito realizam opes de certa fornia "comprometidas", quando elegem seus temas e quando definem as ocasies para a divulgao de seu pensamento. A preparao e a publicao de um texto frio e tcnico sobre normas anti-semitas so atitudes que indicam, seno entusiasmo, pelo menos conformismo com o direito vigente em uma ditadura racista. E so atitudes que tendem a indicar um certo empenho individual na legitimao de tal regime- empenho muito superior, alis, ao exteriormente expresso nos mecnicos "juramentos de fidelidade" impostos pelas ditaduras ao professorado, sob risco de perda de cargo ou outras sanes 1 6 .

    O civilista que se promovia pontificando sobre "casamentos inter-ra-ciais" bem que podia estar escrevendo sobre rvores limtrofes, se a legislao sobre o primeiro tema o houvesse levado mesmo indignao. Em meios uni-versitrios mais sofisticados, a histria do direito podia fornecer temas "clssi-cos", nem sempre relevantes para as ideologias oficiais, at mesmo aos estudio-sos do direito pblico 1 7 .

    A bem da verdade, nada obrigava Carl Schmitt a escrever obras como O Fhrer protege o direito 1 8 , justificando um massacre determinado por Hitler. E teriam Panunzio e Costamagna se arruinado, se houvessem imitado a autocon-teno de Mortati no tratar da questo judaica 1 9 ?

    Mas voltemos ao silncio das faculdades de direito. Percebamos que ele tambm serve a interesses "corporativos". Ele independe da qualidade da rela-o institucional com os regimes ditatoriais - relao, esta, que pode ser muito variada 2 0 . Pode at ser favorecido por inclinaes conservadoras do corpo do-cente. De qualquer forma, tal silncio libera as faculdades de polmicas especial-mente desgastantes, com alto custo poltico interno. No por acaso, imperou o silncio, na Universidade de Munique do Ps-Guerra, acerca da literatura nazista

    Sobre a massiva aceitao do juramento de fidelidade, por parte dos professores universitrios na Itlia fascista, cf. STAFF, I. 2002, p. 89, n. 18. Sobre os juramentos de fidelidade no servio pblico da era nazista, cf., entre outros, HATTEN11AUER, H. 198 lb , p. 112-113, 125 e ss. C o m o mostra Stolleis, os publicistas podiam optar, mesmo na Alemanha nazista, por "temas inofensivos da histria do direito, do direito internacional, do direito administrativo e da teo-ria da administrao" (STOLLEIS , M. 1994, p. 21). SCHMITT, C. 1994, p. 227-232. Sobre os posicionamentos de Schmitt e suas circunstncias, no que tange a tal obra, cf. MULLER, I. 1989, p. 51-52; RTHERS, B. 1990, p. 76-80; R T H E R S , B. 1994, p. 120-124; STOLLEIS, M. 2002, p. 318-319; e BLAS1US, D. 2002, p. 119, 142 e s s . Mostrando diferentes graus de anti-semitismo nas obras desses autores STAFF, I. 2002, p. 100-101. Os malogrados projetos de constitucionalizao de Vichy parecem demonstrar o prestgio institucional das faculdades de direito (cf, a respeito, a composio prevista para a "Corte Su-prema de Just ia" no art. 35-2. da "Lei Constitucional de 10.07.1940"). J na Alemanha, em 1943, o Ministro Otto Thierack teria chegado a ameaar os decanos das faculdades de retirar das universidades a formao jurdica (cf. STOLLEIS . M. 2002, p. 410).

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  • Histr ia do Direi to e m Perspec t iva 4 1 9

    de Larenz e Maunz 2 1 . Ou em Gttingen, quanto a textos de Wieacker e Ebel anteriores a 1945 2 2 .

    E verdade que a tecnicizao do direito, o peso do positivismo e o ethos profissional do acadmico tendem a afastar o professor de direito da polmica sobre os temas mais candentes da esfera poltica. A poca do empolgante "Affaire Dreyfus", por exemplo, parte considervel dos juristas franceses sim-plesmente se absteve de manifestaes pblicas 2 3 , a despeito da repercusso poltica do caso e de suas evidentes implicaes no mbito jurdico. De qualquer forma, tal tendncia no irreversvel - pensemos em Weimar. Nem explica a fuga das faculdades a uma rediscusso cientfica- cujas implicaes polticas mal seriam percebidas pelo "pblico externo" - sobre textos jurdicos relativos ao regime do funcionalismo, ao poder constituinte ou ao locus do ato institucio-nal no ordenamento.

    Em nossas faculdades, a coragem que sobra para atacar o "Neolibera-lismo", o "Estatismo" ou a "Globalizao" - criaturas etreas que no podem influenciar a composio de bancas - falta para analisar criticamente obras dif-ceis de conciliar com a concepo usual do que seja democracia. J estaria o Largo S. Francisco preparado, hoje, para aceitar uma tese sobre o pensamento corporativista-autoritrio de antigos docentes seus? Ou sobre o apoio de alguns de seus professores ao regime ps-64, tanto em cargos elevados quanto em seus textos doutrinrios?

    Cumpre registrar, porm, que o silncio das nossas faculdades no pode ser explicado apenas a partir de "estratgias de mimetismo" dos jurisconsultos que seriam, em tese, os seus principais beneficirios. Com efeito, o silncio persiste at mesmo quando estes no ocultam suas opes polticas passadas.

    Na verdade, h que se reconhecer que a omisso das faculdades nem sempre indica, necessariamente, a existncia de uma "censura interna" imposta de maneira informal pelos professores diretamente envolvidos. Tal omisso deriva, muito mais, de atitudes assumidas coletivamente por professores e ps-gra-duandos. Reflete uma autoconteno que , para estes ltimos, to cmoda como conveniente.

    Nesse ponto, ao invs de treinarem os jovens para o debate aberto e a anlise crtica - vitais democracia e prpria cincia do direito - nossas facul-dades os esto mantendo na ignorncia. Ou, pior ainda, os esto estimulando a optar entre a hipocrisia da "discrio cortes" e o "oposicionismo inviril" da "queimao no corredor".

    2 1 Cf. R T H E R S . B. 2001 , p. 22. Sobre Maunz, cf. a fundamental anlise de STOLLE1S, M. 1994, p. 306 e s s . Cf. R T H E R S , B. 2001 , p. 22. Sobre a situao de tais autores e da Histria do Direito sob o regime hitlerista, cf. tambm STOLLE1S, M. 1994, p. 57 e ss., 68 e ss.

    2 3 O R O S , D. 2000, p. 23 . Segundo Emile Giraud, at a Primeira Guerra a maioria dos professores de direito franceses tendia a uma conduta moderada, no se lanando a uma "critica sistemti-ca, negativa ou construtiva da democracia", mesmo que esse regime no lhe despertasse maior simpatia (cf. G I R A U D , E. 1961. p. 270).

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  • 4 2 0 Air ton Cerque i ra Lei te See laender

    II. A anlise da trajetria e do pensamento dos juristas pr-ditadura tanto mais necessria, por ser imprescindvel para a compreenso da base ideo-lgica de boa parte da literatura jurdica ainda hoje utilizada no ensino e no foro. A participao de muitos juristas, ainda que passageira, em regimes ou movi-mentos polticos de inspirao autoritria, contribuiu para a ocorrncia de trans-formaes no campo doutrinrio, com a adoo de novos temas e teorias. Sob a influncia direta ou indireta de tal participao, conceitos foram criados, recria-dos e reformulados, no raro como arma ideolgica na luta contra o pensamento jurdico liberal. O universo dos argumentos jurdicos foi alterado, alterando-se tambm o campo dos possveis "atos de fala" no jogo do discurso jurdico.

    Isso no significa, porm, que todos os juristas pr-ditadura tenham tido, sempre, um compromisso com a inovao de sua rea, em um sentido antilibe-ral. Um certo rejeitar das novidades foi mesmo nota caracterstica, por exemplo, dos juristas brasileiros ligados ao conservadorismo catlico integrista. Cultores do "Princpio da Autoridade", tais juristas nem sempre tiveram dificuldades para se adaptar ao Estado Novo nem ao regime ps-64 2 4 . Tendiam a compartilhar com estes o discurso anticomunista, o moralismo em questes sexuais, a averso ao livre debate e o ideal do poder mnocrtico 2 5 .

    Papel mais inovador tiveram, entre ns, os egressos do movimento inte-gralista. Assim como os comunistas, o partido de Plnio Salgado exerceu grande atrao, nos Anos 30, sobre jovens intelectuais inconformistas. A assemblia de fundao da Sociedade de Estudos Polticos, da qual se originaria a Ao Inte-gralista Brasileira, j comparecia - nas palavras do prprio Plnio 2 6 - um "grupo magnfico da Faculdade de Direito", com vrios jovens que se destacariam, nas dcadas seguintes, por sua influncia na doutrina, na legislao e na jurispru-dncia.

    A capacidade do Integralismo de atrair jovens intelectuais e juristas fato admitido no s nas memrias de Miguel Reale 2 7 , mas tambm em escritos de autores que jamais aderiram a esse movimento poltico 2 8 . Desiludidos com o liberalismo e com nossas instituies, tais jovens passaram a interessar-se pela

    Nos Anos 30, algumas manifestaes de clrigos mais radicais j permitiam imaginar tal desenvolvimento (cf. DIAS, R. 1996, p. 63). Estimulado pelo Conclio Vaticano II e pela modernizao do pensamento poltico catlico, o surgimento de um grupo coeso de "juristas catlicos" comprometidos com a democracia e projetos emancipatrios parece ser, entre ns, fenmeno recente. Fenmeno que no deve ser confundido, a rigor, com a simples presena de padres " insubmissos" em muitas rebelies libe-rais at 1842 (sobre tal fenmeno e suas razes, cf., entre outros, C A R V A L H O , J. M. de 1996, p . 166 e ss). Cumpre ressalvar, contado, o papel pioneiro de figuras como Herclito Sobral Pinto, que j registrava em 1942 seu desconforto com a adeso dos "melhores elementos no nosso catolicismo" aos "quadros do autoritarismo social?, com "muitos" j pugnando "pela vitria de Franco, de Salazar, de Hitler" (apud DULLES, J.W.F. 2 0 0 1 , p. 210).

    2 h ApudCAVALARI, R.M.F. 1999, p. 13. 2 7 REALE, M. 1987a, p. 81-82. 2 8 C A L M O N , P. 1995, p. 182.

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  • His tor ia do Dire i to e m Perspec t iva 421

    criao de novas alternativas politicas, em parte inspiradas nas ditaduras que poca floresciam na Europa.

    Esta era prdiga em modelos, que iam do Portugal salazarista 2 9 Itlia fascista - e mesmo Alemanha de Hitler, referncia importante para a corrente integralista liderada por Gustavo Barroso 3 0 . No Integralismo brasileiro, segundo dois destacados juristas egressos do movimento - Reale 3 1 e Goffredo Telles Jr . 3 2

    - o anti-semitismo no teria desempenhado, contudo, papel de relevo, tendo ficado restrito a Barroso e seus adeptos. Uma plena identificao do Integralis-mo com o Nazismo seria, alis, leviana, at porque foi abertamente combatida pelo prprio Plnio Salgado 3 3 .

    Desprezando os valores da democracia liberal, ensinando a obedincia automti4ca e reforando a hostilidade contra a esquerda, o Integralismo formou quadros para o Estado Novo ' 4 e para o regime ps-64. Juntamente com o inte-grismo catlico, ops democracia e ao liberalismo o "Princpio da Autoridade"3*. Como o integrismo catlico, treinou seus jovens intelectuais para a atuao conjunta no combate "subverso", ensinando-os a identific-la e a denunci-la. Como o integrismo catlico, praticou e legitimou a censura e o controle do pen-samento 3 6 .

    2 9 Por algum tempo, o modelo salazarista exerceu certo fascnio no s no Brasil, mas tambm em pases mais desenvolvidos, como a Frana c a ustria (cf., entre outros, H U R A U L T , E. 2000, p. 439 e ss.; e D U L L E S , J .W.F. 2001 , p. 119-210).

    3 0 Em textos dos Anos 30, afirma, porm. Reale que o Integralismo repudia "o racismo hitleris-td\ ainda que apresente "valores que se encontram tambm nos movimentos fascistas euro-peus, como o de Mussolini, de Hitler e Salazar". "A luta racista" - adverte Reale - "no nos se-duz (...) Do Hitlerismo podemos tirar algumas lies em matria de organizao poltica e fi-nanceira, mas no sabemos em que nos poderia ser til a tese da superioridade racial, tese que consulta uma situao local (...) A moral no permite que se distinga entre o agiota judeu e o agiota que se diz cristo". (REALE, M. 1983b, p. 227, 231 -232).

    3 1 Sobre a diversidade das correntes no seio do Integralismo, cf. REALE, M. 1987a, p. 80. 3 2 Sobre o tema, tambm negando que o anti-semitismo de Barroso seduzisse a AIB como um

    todo, T E L L E S JR., G. 1999, p . 120 e DITZEL, C. de H.M. 2004, p. 169-170, 192 e ss.). 3 3 Cf. C A V A L A R 1 , R.M.F. 1999, p . 116 e ss. e SOUZA, F.M. de 1989, p. 326. 3 4 A despeito da represso getulista ao Integralismo, so vrios os intelectuais do movimento

    acolhidos pelo Estado Novo e sua mquina administrativa. Reale, em 1942, passa a atuar no Departamento Administrativo do Estado de So Paulo. Cmara Cascudo preside a Comisso de Salrio Mnimo da 6 a Regio (cf. MICELI , S. 2001 , p. 133, 276, n. 3 1 ; e REALE, M. 1987a, p . 164 e ss.).

    3 5 Tal princpio, objeto de um captulo do "Manifesto de Outubro" da AIB (cf. C A V A L A R I . R. M. F. 1999, p . 15, n. 5), foi difundido no Brasil sobretudo por expoentes do integrismo catli-co, como Jackson de Figueiredo. "A autoridade acima de tudo!" - pregava este pensador mili-tante, que chegou a descrever o regime de Mussolini como um "er ro" menos nefasto do que os "er ros" da "soberania popular, trs poderes, liberdade de imprensa" (apttd DIAS, R. 1996, p. 74, 76).

    3 6 Informa Cavalari que, para publicar obras integralistas, o autor dependia da aprovao da Secretaria Nacional de Doutrina e Estudos (SNDE). Isso explica a presena do nada obsta de Miguel Reale em obras como a Introduo ao Integralismo de Machado PAUPERIO e J. R. M O R E I R A (cf. C A V A L A R I , R.M.F. 1999, p. 139).

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  • 4 2 2 Ai r ton Cerque i ra Leite See laender

    A oposio de liberais e catlicos conservadores chegada de Miguel Reale ctedra de Filosofia do Direito na U S P j 7 no nos deve levar a desprezar a eficcia do Integralismo na criao de "cortes de sociabilizao". Pelo contr-rio, tal eficcia j se revela nos prprios apoios obtidos poca por Reale no meio jurdico nacional 3 8 . A AIB criou redes de relaes pessoais e afinidades ideolgicas que podem ter ampliado as chances de seus adeptos na disputa de posies no Poder Judicirio, na Administrao e na Universidade 3 9 .

    Ao menos na rea jurdica, no foram isolados os casos de aproveita-mento, pelo regime ps-64, de quadros com passado integralista. O novo regime podia aqui, contudo, selecionar seus colaboradores dentro de um universo muito mais amplo do que a antiga AIB. Como no Estado Novo, Francisco Campos continuava til e a mostrar seus talentos de jurista 4 0 - opes, porm, no falta-vam. O quadro nas principais faculdades de direito era distinto daquele da dita-dura anterior, no raro rejeitada pelos professores liberais.

    Em 1964, vrios integrantes do corpo docente da Faculdade de Direito da USP manifestavam "o seu jbilo" pela derrubada do Governo Goulart 4 1 . No falavam aqui s os antigos integralistas. No falavam aqui, tampouco, s os intelectuais ligados ao catolicismo conservador. O "jbilo" era compartilhado, tambm, por alguns dos mais destacados liberais da Casa.

    Como compreender a atitude deste ltimo grupo? O percurso poltico de muitos jurisconsultos liberais no deve ser com-

    preendido s em funo do fracasso poltico da UDN no plano nacional e da insatisfao com a insistente adeso popular aos adversrios do partido 4 2 . Re-

    Sobre a resistncia a Reale cf. DULLES, J.W.F. 1984, p. 167-168, e REALE, M. 1987a, p. 149 e ss. Cf. DULLES, J .W.F. 1984, p. 168, e REALE, M. 1987a, p. 152. Mostrando como essas "coortes de sociabilizao" podem se enfrentar na luta por espaos na universidade, cf. a correspondncia entre o positivista Ivan Lins e o Gal. Peri Bevilqua, em que se imputa a uma "cabala integralista e clerical" a perseguio poltica ao filsofo Cruz Costa ( L E M O S , R. (Org.). 2004, p. 142-144). Vanguardista, como poltico, na importao da simbologia fascista, o jurista mineiro se mante-ve afastado do integralismo, movimento no qual tinha desafetos. Intelectualmente atualizado e verstil, Campos tende a ser automaticamente visto como o crebro jurdico do Estado Novo, muito embora tenha demonstrado, ao longo de sua vida, certa variao quanto s convices polticas e jurdicas. Miceli o v "escrevendo quase sempre ao sabor das circunstncias e con-venincias suscitadas por determinadas conjunturas de crise politica" - ou ento "produzindo em regime de encomenda o elenco de justificativas" de seus "pareceres e projetos" (MICELI, S. 2001 , 270, n. 13. Sobre o pensamento de Campos e sua contextualizao, cf. t a m b m - entre outros - LAUF.RIIASS JR., L. 1986, p. 135 e ss.; e S C H W A R T Z M A N , S.; B O M E N Y , H. M. B.; COSTA, V. M. R. 2000, sobretudo p. 53 e ss., 61 e ss., 79 e ss., 298, 302 e ss.). D U L L E S , J .W.F. 1984, p. 375.

    J em 1945 a eleio para o Senado decepcionava os udenistas de So Paulo, com Getlio Vargas, Marcondes Filho e Lus Carlos Prestes deno tando o jurista liberal Ernesto Leme (sobre os re-sultados, cf. DULLES, J. W. F. 1984, p. 368, e N O G U E I R A . J.C. de A. 1968, p. 9. Para uma leitura um tanto "udenista" dos mesmos, cf. LEME, E. 1979, p. 138-139, 180). Advirta-se, po-rm, que Leme acabaria abandonando a UDN j em 1951, ano em que se tornaria Reitor da

  • Histr ia do Dire i to e m Perspec t iva 4 2 3

    flete, tambm, os limites de seu liberalismo, em uma sociedade com dificuldades para assimilar este ltimo fora dos editoriais, discursos e diplomas legais.

    Tais limites permitem que se fale em uma "concepo liberal-conser-vadora", tambm estimulada, em parte, pela prpria formao jurdica 4 3 . Uma concepo talvez difcil de compatibilizar com a instabilidade social atribuda por alguns juristas ao "clamor permanente, pela elevao de vencimentos e salrios" e a um "governo (...) impotente para conter a espiral inflacionria" e sem "fora para impedir tais reivindicaes"1,4'.

    A participao ou apoio de juristas liberais a movimentos e regimes no-democrticos no , evidentemente, um fenmeno s brasileiro. E fato veri-ficvel at na Frana, onde nem Georges Ripert escaparia seduo de Vichy 4 5 . Joseph-Barthlemy - um "republicano moderno"46 e "perfeito liberal parla-mentar"41 que combatera a censura e a discriminao racial 4" - acabaria mesmo por tornar-se ministro de Ptain.

    O temor da esquerda 4 9 , um certo apego ordem 5 0 , a perspectiva do exerccio do poder 5 ' e a idia de uma continuidade do Estado francs 5 2 podem,

    USP (cf .LEME, E. 1981, p. 119). Este combativo adversrio do Estado Novo ainda seria Em-baixador na O N U (1954-1955) - ocupando em julho de 1954 a Presidncia do Conselho de Segurana - e Secretrio da Justia em So Paulo (1964-1965). difcil identificar, porem, em que grau os fatores " locais" conduzem a esta relativizao do liberalismo. Assim como difcil precisar, em outros pases, o peso, na formao de uma mental idade avessa ao liberalismo, das tradies autoritrias, da mensagem conservadora do clero ou de um certo " temor das massas". Em todo caso, qualquer que seja a origem das moda-lidades menos intensas da opo liberal, o fato que estas mal resistem a quadros de radicali-zao. A "bar thlemyzao" do jurista liberal - entendida como sua transformao de doutri-nador de inspirao liberal em agente legitimador de uma ditadura no deve ser interpretada como uma adeso do liberalismo ditadura, mas sim como uma opo "superadora" de um liberalismo mal enraizado. v. LEME, E. 1979, p. 180. Causada pela "ambio desmedida" de "todas as classes sociais" -dos "industriais e comerciantes" aos "servidores pblicos, operrios e empregados" - a "espi-ral inflacionria" estaria devorando como uma "leucemia" - segundo o jurisconsulto liberal -"as ltimas energias do Pas" (cf. LEME, E. 1979, p. 180). Cf. SAULNIER, F. 2004, p. 270, n. 814, que aqui invoca estudos de Paxton. Saulnier lembra, na esteira de Birnbaum e S. Riais, que parece ter havido aqui mais continuidade do que ruptu-ra, em relao Terceira Repblica (SAULNIER, F. 2004, p. 270). Assim se apresentava o prprio Barthlemy (v. SAULNIER, F. 2004, p. 526). No dizer de A. Mestre, cit. em SAULNIER, F. 2004, p. 254. Segundo o prprio Barthlemy, referindo-se - nos Anos 30 ao legado da Revoluo Francesa, "nossa bssola a doutrina li-beral" (apud SAULNIER, F. 2004, p. 258). Cf. SAULNIER, F. 2004, p. 255-256, n. 708 e 710.

    Vendo "a ptria em perigo" j antes da derrota francesa, Barthlemy no escondia sua preocupa-o com a Frente Popular e a ascenso das esquerdas (cf. SAULNIER, F. 2004, p. 266, 268 e t c ) . Saulnier o caracteriza como "um defensor da ordem" (SAULNIER, F. 2004, p . 267). Sobre o problema da "ambio pessoal" no caso Barthlemy, cf. SAULNIER, F. 2004, p. 282-285 , e os autores ali citados. Saulnier no destaca tal fator, posto que lembre a atrao exercida por Vichy sobre os que tiveram ambies frustradas na III Repblica (cf. SAULNIER, F. 2004, p . 282).

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  • 4 2 4 Ai r ton Cerque i ra Lei te See laender

    ao lado de outros fatores 3 0 , ter levado Barthlemy a ver a ditadura de Vichy com mais simpatia. A repulsa pela "desordem" social e poltica talvez tenha tido aqui um peso considervel - at porque, para este jurista liberal, "a primeira necessidade da sociedade a ordem. A liberdade s vem depois"5*. No inco-mum que juristas liberais mais prximos do conservadorismo se inclinem por este ltimo em detrimento do liberalismo, quando a prpria ordem social lhes parece prestes a ruir.

    No de se crer, na esteira de Dulles, que "era inevitvel (...) que os bacharis liberais anti- Vargas", confrontados com os triunfos eleitorais do popu-lismo, "fizessem alianas"'5, inclusive com o golpismo militar. Opes polticas foram feitas, tanto na adeso de juristas udenistas violao da Constituio de 1946 quanto no perpetuar de sua colaborao com o regime, mesmo aps o AI-5.

    Datam de bem antes de 1964, alis, os apelos dos jurisconsultos ude-nistas para que as Foras Armadas pusessem fim "criminosa tolerncia do governo" em face da mobilizao comunista. Isso se v claramente nas suas palestras na Escola Superior de Guerra - instituio onde seguiriam ocorrendo, aps 1964, interessantes conferncias de juristas.

    III. Como salienta Dominique Gros 5 6 , toda tradio jurdica francesa, aps o Cdigo Civil, parece repousar sobre "uma concepo unificada do estado das pessoas", de tal sorte que as "discriminaes religiosas e raciais" de Vichy faziam "explodir o edifcio construdo por Cambaceres e Portalis". por isso que o civilista Georges Ripert - em 1938, ou seja, antes de aderir ao regime colaboracionista de Ptain - podia contrapor o direito francs legislao anti-semita do Terceiro Reich, dizendo haver, tanto quanto uma "linha Maginot" de defesa militar, "uma linha do cdigo civiF5'.

    Para contornar o equalizador conceito de pessoa 3 8 - conceito nuclear no direito moderno - tinha o jurista de comprar riscos, lanando-se aventura da inovao. Isso mostra, ainda mais, a adaptabilidade dos juristas nas ditaduras.

    Olhemos de novo Georges Ripert 5 9 - ainda hoje to influente no campo do direito privado. Assim como Joseph-Barthlemy, futuro ministro de Ptain, Ripert figurava entre os signatrios de um protesto contra o anti-semitismo hitle-rista em 1933. E assim como Barthlemy, Ripert tambm viria a assinar, na

    5 Cf. "supra", n. 93 . Sobre o "argumento da continuidade" como linha de defesa de Barthlemy, cf. SAULNIER, F. 2004, p. 292-294.

    3 3 Para uma anlise dos demais fatores, cf. SAULNIER, F. 2004, p. 282 e ss. 5 4 Apuei SAULNIER, F. 2004, p. 267. 5 5 DULLES, J .W.F. 1984, p. 377. 5 6 G R O S , D.(000, p. 30. 57 Apud G R O S , D. 2000, p. 34. 5 8 Sobre a funo equalizadora em tela, cf. R A D B R U C H , G. 1979, p. 261 . 5 9 Sobre Ripert e sua participao no regime de Vichy cf. GROS, D. 2000, p . 26, e M O T T E , O.

    1995, p. 519.

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  • Histr ia do Dire i to e m Perspec t iva 4 2 5

    dcada seguinte, atos discriminatrios contra judeus 6 0 . Na verdade, como podemos ver, a linha do cdigo civil sucumbiu to rapidamente quanto a linha Maginot, assim que se comprovou um embarao carreira daquele jurista - que ainda defenderia, em seu Tratado Elementar de Direito Civil, o uso da "religio para estabelecer um direito racial"h[.

    Foi, porm, no campo do direito pblico que as teorias mais rapida-mente se adaptaram s pretenses dos ditadores do sculo XX. Aqui, nem o princpio constitucional da igualdade escapou de "releituras revolucionrias". Teses foram escritas especialmente para "adaptar" o princpio da igualdade ao racismo nazista, ao mesmo tempo em que negavam a possibilidade de invocar tal princ-pio para submeter atos legislativos ao controle judicial 6 2 .

    No direito pblico francs j se esvaziava a igualdade constitucional mesmo antes da ascenso de Ptain. Antes de servir Vichy 6 3 , Barthlemy j falava de uma "relatividade do direito constitucional" na esfera colonial 6 4 . Em 1936 destacava tal autor que, se o direito francs pressupunha a igualdade dos homens, o "sistema imperiaF pressupunha "a desigualdade das raas1 . E que a admisso do direito dos povos ao autogoverno no implicava o paralelo reco-nhecimento, na esfera colonial, de um direito de secesso 6 6 .

    O pensamento jurdico de inspirao direitista e contrrio democracia liberal soube apropriar-se do vocabulrio desta ltima, assim como de conceitos-chave do socialismo e da solidariedade religiosa, alterando-lhes habilmente o sentido original 6 7 . Na Alemanha hitlerista, o conflito capital-trabalho passou a se ocultar sob a bela idia de uma "comunidade empresarial" fundada em "honra, confiana e cuidado", qual o trabalhador se incorporaria para tomar-se um "camarada de trabalho" do "Fhrer da empresa"6*. Na Itlia, Costamagna des-

    6 U Cf. G R O S , D. 2000, p. 28, 34-35. 61 Apuei G R O S , D. 2000, p. 35. 6 2 Cf., por exemplo, LUNGWITZ, A. 1937, p. 12-13. 6 3 Joseph Barthlemy (1874-1945), professor de Direito Constitucional na Universidade de Paris,

    foi deputado e uma das mais prestigiosas figuras do meio jurdico e poltico francs antes da Segunda Guerra. Convertido em ministro no regime de Vichy (1941-3), tornou-se um dos ju -ristas que tentaram legitimar as perseguies polticas e atos repressivos do novo regime. No final da guerra, Barthlemy arcou com as conseqncias de suas opes. Em Paris, o deo Ripcrt j relatava, no incio de 1944, atos de hostilidade na universidade, onde Barthlemy teria sido recebido com gritos de "assassino" (cf. SAULNIER, F. 2004, p. 16, n. 103). No mesmo ano, o ex-ministro foi preso. Morreu em 1945, antes de ter sido julgado (cf. SAULNIER, F. 2004, p.16, n . l03 e 18-24. Para a caracterizao de Barthlemy como "um grande oportunista", v. GIRAUD, E. 1961, p. 269).

    6 4 Cf. GROS, .D. 2000, p . 30-31 . 6 5 Apud GROS, D. 2000, p. 3 1 . 6 6 Apud GROS, D. 2000, p. 3 1 . 6 7 Talvez influenciando nesse ponto as hbeis redefinies de Francisco Campos, Carl Schmitt

    foi um dos mais atentos estudiosos do poder dos conceitos e de sua utilidade como arma poltica (cf, por exemplo, SCHMITT, C. 1992, p. 57, 119).

    6 8 Cf. o art. I o do projeto de lei sobre a relao de trabalho (1938) e os regulamentos empresariais da Hoechst de 1934 e 1939 transcritos em SLLNER, A. 1981, p. 150. 155. Sobre o tema, alm do texto de Sllner, cf. KROESC1IELL, K. 1992, p. 102-104, e a bibliografia ali indicada).

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  • 4 2 6 Air ton Cerque i ra Lei te See lacnder

    crevia o estado de Mussolini como um "Estado de Direito"69. Expresses como "democracia autoritria", empregadas na Ao Francesa dos anos 30 7 0 , encontra-riam numerosas variantes - como a "democracia substantiva" do nosso Estado Novo ' 1 e a "Democracia de fins" ou "Democracia Orgnica" do pensamento integralista . E Carl Schmitt no hesitaria em descrever as normas anti-semitas do hitlerismo como "a Constituio da Liberdade"13.

    O pensamento jurdico autoritrio precisava, contudo, mostrar que re-presentava a superao do pensamento jurdico da era liberal - e no apenas a sua deturpao sistemtica, a servio de novas ideologias e regimes. Era preciso, pois, invocar "uma nova idia de direito" - como fez em 1942 o Curso de Di-reito Constitucional de Georges Burdeau, ao justificar a concentrao de pode-res nas mos do Marechal Ptain 7 4 .

    Aqui no teve importncia apenas, como poderia parecer, a identifica-o pura e simples da lei com a vontade e a deciso do ditador, tidas por mere-cedoras de cega obedincia 7 5 . A concepo decisionista conviveu, pelo contr-rio, com concepes institucionalistas que agradavam os juristas mais conserva-dores, por parecerem reconhecer o carter natural, a dignidade e a intangibilida-de da famlia, da Igreja, da propriedade e da empresa.

    Que as formulaes de Hauriou teriam influenciado a doutrina alem e assim, indiretamente, o prprio direito nazista, era algo que j se afirmava na Frana dos Anos 30 7 6 . A utilidade do institucionalismo para o novo regime foi sustentada por Carl Schmitt, que j percebera a possibilidade de exorcizar as inseguranas do voluntarismo legislativo democrtico predefinindo a famlia, o Estado e a empresa como instituies dotadas de vida prpria e normatividade concreta 7 7 .

    No campo do direito do trabalho, essa concepo institucionalista de empresa logo se refletiu na jurisprudncia alem, fazendo com que se impusesse

    Cf. STAFF, I. 2002. p. 118. Sobre o tratamento do conceito na literatura jurdica do fascismo, cf. tambm STAFF, I. 2002, p. 111, 114.

    Cf. as passagens transcritas em H U R A U L T , E. 2000, p. 444. 7 1 Cf. LAUERIIASS JR., L. 1986, p. 137. 1 2 V.. por exemplo, REALE, M. 1983a, p. 205 e REALE, M. 1983d. p . 247. Sobre o uso do termo

    "democracia" no Integralismo, cf. tambm D1TZEL, C. de H.M. 2004, p. 201 e ss. 7 3 V. RTHERS, B. 1994, p. 134; e Rthers, B. 2001 , p. 49. 74 Apuei GROS, D. 2000, p. 20. 7 : 1 Segundo um jurista de grande influncia no aparato nazista de represso - o Presidente do

    "Volksgerichtshof Roland Freisler (1893-1945) quest ionar-se " c o m o o Fhrer decidiria nesse caso?" deveria ser era algo fundamental na atuao dos magistrados (cf. AHL, I.K. 1995, p. 217-218).

    7 < 1 Cf. LOISELLE, M. 2000, p. 452. preciso advertir, contudo, que Hauriou no foi um arauto do totalitarismo, tendo, pelo contrrio, prognosticado o triunfo da democracia em seus escritos (cf. GIRAUD, . 1961, p. 272).

    7 7 cf. SCHMITT, C. 1993, p. 17, e- reconhecendo tal utilidade e o papel inspirador do institucio-nalismo de l lauriou-p. 45 e ss.

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  • Histor ia do Dire i to em Perspec t iva 4 2 7

    a idia de uma "ordem concreta da empresa"1*, comunidade de colaborao regida por um pequeno "Fiihrer empresarial" 7 9 . Comunidade, alis, inspirada em uma concepo "germnica" supostamente inacessvel aos judeus, que no po-deriam invoc-la para exercer todos os direitos da legislao trabalhista 8 0.

    Na Itlia, o institucionalismo de Santi Romano tambm difundiu a crena de que a organizao interna da instituio-fbrica, com o manager exercendo um "poder disciplinar", exprimia um campo normativo prprio, que o direito estatal no podia regular de forma completa e direta 8 1 . A instituio aqui, mais uma vez, era mostrada como algo natural, distante do que deveria ser o campo de ao da vontade do legislador- inclusive do legislador democrtico. Assim se dava a ocultao do poder pelo institucionalismo* 2, em uma identificao do direito com a ordem 8 3 , com o existente.

    Como vemos, sob um discurso institucionalista que parecia conter o po-der estatal e defender um pluralismo jurdico, legitimava-se, assim, o poder e o autoritarismo privados na esfera do trabalho. Isso nem sempre se vinculava, porm, a uma defesa do liberalismo: seria afinal o Estado, eventualmente o Estado Corporativo fascista, que deveria restaurar, dentro desse quadro, a unidade. A adeso de Santi Romano ditadura de Mussolini - inclusive como Presidente do Conselho de Estado 8 4 - no expressava, pois, incoerncia alguma .

    Desde a publicao de A Interpretao Ilimitada de Bernd Rthers (1968) desmoronou o retrato - to conveniente para os juzes alemes e para os detratores do positivismo - da experincia jurdica nazista como singelo reflexo de normas impostas "de cima" por um regime truculento . A enorme massa de direito gerada antes de 1933 pela complexa sociedade alem no podia, claro, ser substituda automaticamente por normas "nazistas" - fosse l o que isso quisesse exatamente dizer. Dentro desse quadro, alguns juristas da ditadura prio-rizaram a rediscusso dos mtodos de interpretao, tentando, atravs desta,

    7 S SLLNER, A. 1981, p. 144, 153. 7 9 As expresses "Betriebsfuhrer" e "Fiihrer des Betriebs" podem ser encontradas tanto na dou-

    trina quanto na jurisprudncia e nos regulamentos internos empresariais (cf. SLLNER, A. 1981, p. 153, 155. Cf. tambm SCHMITT, C. 1993, p. 53).

    8 0 Cf. o ju lgamento do Tribunal do Trabalho do Reich de 24.07.1940, transcrito em SLLNER, A. 1981 ,p . 152.

    8 1 Cf. MANGONI , L. 1986, p . 53. 8 : J denunciada por Baratta, na anlise do pensamento de Santi Romano - cf. MURA, V.,

    p. 392, n. 45 . 8 3 Segundo Catania, cit. em M U R A , V. 1986, p. 392, n. 45 . 8 4 Cf. CALVINO, P. 1995, p. 524. Para uma tentativa de reduzir o significado das opes polticas

    de Romano, cf. O R L A N D O , V.E. 1950, p. X-XI. 8 5 Cf. M O N T A N A R I , M. 1986, p. 377. Pode ser exagero, contudo, a opinio desse autor, de que

    a "adeso ao fascismo" responderia, em Santi Romano, a "uma exigncia interna de seu siste-ma". Sobre a adaptao de Santi Romano ao fascismo, cf. tambm R O M A N O , S. 1928, p. 224-226, e a anlise de Silvio Trcntin em BOBBIO, N. 2007, p. 235.

    8 6 Sobre o tema, cf, entre outros, STOLLEIS, M. 1994, p. 11.

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  • 428 Air ton Cerque i ra Lei te See laendcr

    inserir rapidamente um "ovo de cuco no sistema jurdico liberai. Pretendiam facilitar a transposio da moldura das normas preexistentes, no s atravs de invocaes principiolgicas genricas, mas tambm por meio de um mergulho no institucionalismo**.

    O fascnio de setores da direita europia pelo institucionalismo era compreensvel. Antes da ascenso dos ditadores, este j permitia fixar - diante de parlamentos eleitos cada vez mais democraticamente e cada vez menos con-fiveis para as elites - campos sociais de autonormatizao (a Igreja, a famlia, a empresa), legitimando certa proteo destes ltimos contra o direito legislado. Como contraponto incmoda dinmica da mudana social, a aparncia de estabilidade das instituies tendia a atrair atenes em meio s rupturas da sociedade industrial . Dentro desse quadro, surgia para os prprios juristas a tentao de extrair normas a partir das instituies socialmente existentes - ou seja, de tirar de um "ser" um "dever-ser"90.

    Tendencialmente conservador, o institucionalismo podia, contudo, ser instrumentalizado pelo projeto nazista, desde que se nazificasse a prpria com-preenso da instituio. Como os demais institucionalistas, os adeptos da verso schmittiana dessa corrente ("konkretes OrdnungsdenkerT) partiam da idia de que certos mbitos da vida social (a famlia, a empresa, o funcionalismo, o exr-cito etc.) tinham uma ordem interna e uma substncia jurdica prpria, que o juiz tinha de observar ao aplicar o anterior direito legislado 9 1 . Os jurisconsultos do nazismo se esmeraram, porm, em reconceber as prprias instituies, remol-dando conceitos jurdicos ao sabor da ideologia e dos interesses do regime 9 2 .

    Como salientou Rthers 9 3 , a normatividade das instituies como "ordens parciais" acabou por se converter, em ltima anlise, em um canal de normatiza-o, pura e simples, da viso de mundo nazista. "Todas essas ordens parciais (...) recebiam seu 'sentido' e sua 'idia condutora' da posio atribuda ordem parcial concreta dentro da ordem totaF, a qual, por sua vez, tinha de ser imagi-nada a partir desta Weltanschauung94. Desse modo, esta ltima se fazia direito vigente, atuando o discurso institucionalista como um singelo transformador 9 5 .

    Cf. a respeito as reflexes de H. Lange e C. Schmitt em SCHMITT, C. 1993, p. 49. Para uma anlise da estratgia desses autores, cf. o indispensvel RTHERS, B. 1994, p. 187 e ss.

    s s Analisando a verso schmittiana do institucionalismo. Rthers destaca que a mesma era "um instrumento para a mudana e organizao" do direito legislado ento ainda vigente, para sua pronta adaptao ao novo regime, sem necessidade de nova produo legislativa (cf. RTHERS, B. 1994, p. 75).

    8 9 Cf. RTHERS, B. 1994, p. 194. 9 0 Cf. a anlise de l lauriou feita em R T H E R S , B. 1994, p. 195. '" Cf. RTHERS, B. 1994, p. 65-66.

    Nas palavras de Schmitt, "ns repensamos os conceitos jurdicos (...) ns estamos do lado das coisas que esto vindo" (apud RTHERS, B. 1994, p. 68. Cf. tambm RTHERS, B. 1994, p. 70). RTHERS, B. 1994, p. 76.

    " 4 RTHERS, B. Idem, ibidem. 9 5 RTHERS, B. Idem, ibidem.

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  • Histr ia do Dire i to e m Perspec t iva 4 2 9

    O institucionalismo que tanto vicejou no solo frtil das ditaduras direi-tistas tambm influenciou profundamente o Ps-Guerra. Analisando aspectos da teoria da relao de trabalho aceita nos tribunais, Rthers demonstrou que esta era, na sua origem, tributria de uma equiparao com o casamento segundo a lei nazista de 1938 9 6 . Seria interessante verificar, alis, o quanto "paralelos ins-titucionalistas" anlogos - e teorias institucionalistas em geral - teriam influen-ciado, no Brasil, a doutrina trabalhista, o direito pblico, o direito empresarial.

    IV. A verificao da influncia do pensamento jurdico das ditaduras -ou adaptvel s ditaduras - em nossa doutrina e jurisprudncia nunca ser feita seriamente, contudo, enquanto predominar uma memria seletiva, excluidora ou suavizadora de todos os dados politicamente incmodos. Tal verificao ser particularmente dificultada quando for feita atravs de biografias de "grandes juristas", mesmo porque o gnero favorece uma certa identificao entre bigra-fo e biografado. Mesmo em meios acadmicos capazes de superar, nesse ponto, o discurso laudatrio, verificamos dois pesos e duas medidas, na apreciao das agruras do jurisconsulto e da situao das vtimas do regime ditatorial por ele servido. A comovente descrio do fim de Barthlemy por Saulnier no vem acompanhada, em sua obra, de um relato dos derradeiros dias dos rus da "Justia" colaboracionista de Vichy 9 7 .

    A discusso sobre o papel dos juristas e do pensamento jurdico nas di-taduras brasileiras merece a ateno dos estudiosos da histria do direito, no podendo mais ser abandonada nas mos de pessoas sem formao especfica nessa rea - quanto mais de antigos amigos, colaboradores, colegas e discpulos dos autores estudados 9 8 . No aceitvel que nossas universidades se omitam, enquanto se publicam obras sobre juristas relevantssimos no perodo militar, nas quais a exata relao destes com o regime parece um tema menor, tratado ao lado de assuntos de interesse meramente domstico.

    Nessa fase de consolidao da Histria do Direito como rea cientfica no pas, espera-se que dela venha uma contribuio efetiva anlise do tema aqui exposto. Isso tanto mais necessrio em face da convenincia de se cons-truir, no Brasil, uma doutrina que no tema se defrontar com o seu passado e com a sua prpria historicidade.

    Em suma, cumpre iniciar uma discusso, inclusive nas faculdades de di-reito, do pensamento jurdico produzido no Brasil no Estado Novo e durante o

    RTHERS, B. 2001 , p. 23 . Cf. SAULNIER, F. 2004, p. 14 e ss. Como adverte Stolleis, o "perigo do diletantismo e subjetivismo maior" quando "no est assegurada uma escolha e interpretao crtica das fontes". E quando pessoas "que no po-dem ser descritas como 'historiadores do direito ', no sentido usual do termo", pem-se a es-crever a histria do direito, deixando que nesta se reflitam "deforma irrefreada seus senti-mentos e seu massivo interesse na obteno de um determinado resultado" (STOLLEIS, M.; S IMON, D. 1981, p. 17-18).

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  • 4 3 0 Air ton Cerque i ra Lei te See laender

    regime ps-64. No se trata, propriamente, de julgar condutas pessoais", mas sim de tentar compreender a funo do direito, de seus tericos e dos centros de ensino nesses perodos histricos especficos 1 0 0 . Nada impede, porm, que o pesquisador reconhea e indique quais modelos e idias dentre os ainda hoje ensinados se mostraram adaptveis defesa das ditaduras e das violaes de direitos humanos - e quais destes modelos e idias surgiram justamente com esta finalidade, sob o signo do autoritarismo 1 0 ' .

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    Tal como a tendncia dos juristas para desconsiderar motivaes, prticas e condutas juridica-mente irrelevantes, a sua obsesso pelo discutir da "culpa" tambm pode, alis, gerar um de-sastroso reducionismo na anlise do direito dos regimes ditatoriais, ocultando "seqncias cau-sais inteiras", de interesse do historiador. Esta uma das razes do ataque de Stolleis a certa literatura de diletantes, produzida nesse campo por juzes e outros profissionais do direito (v. STOLLEIS, M. /SIMON, D. 1981, p. 26-27). E a busca dessa compreenso que aqui a tarefa - temerria, mas legtima- do historiador do direito. Ainda que sua "cincia possa" - no dizer de Stolleis - "preparar e apoiar enunciados normativos e aumentar a plausibilidade destes ltimos", ela certamente no pode fornecer "ensi-namentos vinculantes", extraindo um "Sol len" do que descreve como um "Sein" passado (STOLLEIS, M.; SIMON, D. 1981, p. 31 . Cf. tambm STOLLEIS, M. 1994, p. 54-55. Sobre a fortuna e descrdito da frmula Historia magistra vitae, cf. K.OSELLECK, R. 1992). Para uma anterior defesa dessa mesma posio, no Brasil, cf. SEELAENDER, A. L. C. L. 2004, p. 35-36. Para um exemplo alemo dessa postura, cf. H A T T E N H AU ER, H. 1981b, p. 131-132. e sobretudo as obras de Rthers acima citadas. Advertindo acerca das enormes di-ficuldades para verificar "o que seja especificamente nacional-socialista no direito", mas re-conhecendo a necessidade de orientar as pesquisas para uma anlise das eventuais continuida-des existentes, H A T T E N H A U E R , H. 1981, p. 9-10.

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