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22 23 Horizonte Geográfico Horizonte Geográfico Secura em curso As regiões da caatinga, que vêm sofrendo processo de desertificação, precisam repensar suas escolhas econômicas, antes que seja tarde demais Fotos | Araquém Alcântara Texto | Joana Marins Em Capelinha, no PIauí, uma cena típica do semiárido brasileiro: Gonçala Batista dos Santos chega ao açude quase seco com os galões para o consumo doméstico diário. Mau uso do solo está por trás de muitos dos problemas vividos na região

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Page 1: Secura em curso - edhorizonte.com.br€¦ · cama, no Chile, foi natural, uma combinação de solo e clima. Já no semiárido brasileiro, o processo de desertificação é causado

22 23Horizonte Geográfico Horizonte Geográfico

Secura em cursoAs regiões da caatinga, que vêm sofrendo processo de desertificação, precisam repensar suas escolhas econômicas, antes que seja tarde demais

Fotos | Araquém AlcântaraTexto | Joana Marins

Em Capelinha, no PIauí, uma

cena típica do semiárido

brasileiro: Gonçala Batista

dos Santos chega ao açude

quase seco com os galões

para o consumo doméstico

diário. Mau uso do solo

está por trás de muitos dos

problemas vividos na região

Page 2: Secura em curso - edhorizonte.com.br€¦ · cama, no Chile, foi natural, uma combinação de solo e clima. Já no semiárido brasileiro, o processo de desertificação é causado

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Gilbués, no Piauí, é uma das regiões mais afetadas pela desertificação. Na paisagem, grandes pedras tomam o lugar da vegetação

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26 27Horizonte Geográfico Horizonte Geográfico

Do norte de

MInas Gerais

(Varzelândia,

acima) ao

Piauí, uma área

da caatinga

equivalente à

Guiana sofre

desertificação

A vegetação verde e o ar úmido de Na-

tal, capital do Rio Grande do Norte,

vão ficando para trás. No caminho

para o interior nordestino o verde da ve-

getação vai dando lugar aos tons de bege,

ocre e areia em tempos de seca. As pedras

começam a ficar cada vez mais frequentes

e na linha do horizonte nos deparamos com

serras em diversas nuanças de marrom.

Nosso destino é a região do Seridó potiguar,

encravada no semiárido brasileiro, uma das

zonas mais secas da caatinga. Para aon-

de vamos, a temperatura do chão chega a

atingir 60 graus, e a temperatura ambiente

oscila entre 25 e 33 graus na maior parte do

ano, segundo dados do Plano de Desenvol-

vimento Sustentável do Seridó.

Em Caicó, a maior cidade da região, com

62 mil habitantes, é comum ver guarda-

chuvas na mão das senhoras que andam

nas ruas, apesar de não cair uma chuva “de

encher os açudes”, como dizem os mora-

dores, há mais de um ano. As sombrinhas

no sertão servem para proteger o corpo

da forte incidência solar nessa região de

“pouca folhagem e pouca sombra”, fazendo

justificar a origem do nome Seridó, segun-

do o folclorista Luís da Câmara Cascudo,

nascido não muito distante dali, em Natal.

Tanto calor e o pouco cuidado humano com

o solo pedregoso e de baixa profundidade

transformaram esse pedaço do semiárido

em uma das regiões brasileiras mais próxi-

mas do que se entende como um deserto.

“A formação de desertos, como o do Ata-

cama, no Chile, foi natural, uma combinação

de solo e clima. Já no semiárido brasileiro, o

processo de desertificação é causado pelo

homem, pois a caatinga é muito rica, tanto

em plantas quanto em biodiversidade e as

chuvas por aqui são mais abundantes do

que em um deserto propriamente dito”,

explica Leonardo Tinoco, pesquisador do

Instituto Nacional do Semiárido (Insa), um

órgão de pesquisa governamental ligado ao

Ministério da Ciência e Tecnologia. Para ele,

o problema está no manejo inadequado da

Orgulhoso da família que criou com Inês,

sua esposa há 30 anos, ele diz ter abando-

nado o gado porque dava mais trabalho

do que lucro. “Quando tinha seca, como

agora, eu precisava comprar ração, que

é muito cara. Agora só planto banana,

manga, coco e goiaba, porque a minha

propriedade é perto do rio Seridó. Mas,

se não chove, tenho de irrigar”, conta.

A seca se instalou por aqui desde 2011.

Ela se configura, tecnicamente, quando o

período de precipitação dura menos que

quatro meses no ano e o balanço hídrico

é negativo, ou seja, chove menos do que é

A família de José Ávila da Nóbrega

sempre viveu no Seridó, mais especifi-

camente na zona rural do município de

Parelhas. Ao caminhar pela propriedade

de 12 hectares, ele aponta a casa em que

vivia sua bisavó. Esse não é o único peda-

ço de terra pertencente ao agricultor, mas

é onde fica a sua residência, herdada do

pai. Ao lado dela podemos ver mais três

casas, uma ocupada pelo filho mais velho

e duas vazias, à espera dos quatro filhos

que estudam em cidades maiores. “Deus

me livre vender uma delas! É para ficar

aqui quando eles precisarem”, afirma.

terra, responsável por retirar da região do

semiárido 100 toneladas de solo por hectare

ao ano, segundo estima Tinoco, que com-

pleta: “E a natureza demora 300 anos para

recuperar isso”. Por manejo inadequado

entenda-se o desmatamento das árvores

nativas, a retirada de solos férteis para a

fabricação de telhas e tijolos, a mineração

e as queimadas. E, ainda, a criação de ani-

mais de grande porte em número acima do

suportável para essa região. Além de consu-

mir a pouca vegetação disponível, com seus

cascos as vacas e cabras impedem que as

novas plantas vinguem.

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28 29Horizonte Geográfico Horizonte Geográfico

Rebanho bovino

acima do

tolerável pelo

bioma faz dessa

atividade, tão

tradicional na

região, mais

uma ameaça

ambiental à

caatinga

evaporado. Esse cenário já se repetiu diver-

sas vezes na história, como em 1915, 1932,

1958, 1983 e 1998. Algumas dessas secas se

tornaram lendárias, como a de 1915, trans-

formada em tema do romance O Quinze,

da escritora cearense Rachel de Queiroz,

ou a ocorrida na década de 1930, retratada

no livro Vidas Secas, do alagoano Graciliano

Ramos. “A seca é caracterizada mais por

um problema social, pelo desequilíbrio ao

acesso da água do que apenas pela falta de

chuvas. Felizmente, não temos mais o ce-

nário de morte e destruição que tínhamos

no início do século passado. Muitas pessoas

ainda passam necessidade, mas não perde-

mos mais vidas”, afirma Leonardo Tinoco.

Migrantes do semiáridoFrancisco Teixeira de Araújo nasceu na

zona rural de Jardim do Seridó e era filho

de meeiros em uma fazenda de algodão.

Com muito esforço do pai, conseguiu ir

para a cidade estudar e hoje é o único dos

sete irmãos que fez faculdade. Morando

em Natal, ele recorda os tempos difíceis

da seca. “Hoje a vida que dou aos meus

filhos é milhares de vezes melhor do que

a que eu tive. Saí do Seridó, mas vou para

lá sempre que posso”, conta o advogado.

Assim como ele, milhares de nordestinos

migraram do semiárido nas décadas de

1980 e 1990, por conta das últimas secas.

A população rural da Paraíba, por exem-

plo, caiu de 1,3 milhão de habitantes, em

1980, para pouco mais de 1 milhão, em

1996. Grande parte dos que deixaram suas

cidades, diferentemente de Francisco, que

ficou ali perto em Natal, foram para o Rio

de Janeiro, São Paulo e Brasília.

Nos anos de seca chove no Seridó cer-

ca de 200 milímetros por ano, índice mais

próximo ao observado em desertos como o

de Sonora, no México, no qual a média é de

130 mm, do que em Natal, a 300 quilômetros

daqui, que tem média de 1.200 mm por ano.

Essa pouca precipitação, que dificulta a

agricultura, aliada a razões culturais, levou

a maior parte da população rural do Seridó

a se dedicar à pecuária. “A cultura do gado

começou com as grandes fazendas, des-

de a ocupação da região no século 17, e se

mantém até hoje. Os pequenos agricultores

acreditam que ter cabeças demonstra poder,

é simbólico”, analisa José Procópio Lucena,

coordenador da Articulação do Semiárido

(ASA), no Rio Grande do Norte, uma rede

formada por mais de mil organizações não

governamentais que atuam na caatinga.

Manuel Tavares da Silva, morador da

comunidade rural de Cachoeira (RN), ilustra

bem essa realidade. Dono de 20 cabeças de

gado, o senhor de 63 anos tira o sustento

do leite proveniente de oito vacas leiteiras

e, atualmente, tem plantado palma forra-

geira, uma espécie de cacto, para alimentar

seus animais quando a chuva não apare-

ce. “O pessoal da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte veio aqui nos mostrar

como plantar a forrageira. Sem isso, não

teria como segurar o rebanho, como em ou-

tros anos que tivemos dificuldades”, conta.

Não é só pela falta de chuva que o ca-

pim não tem crescido em muitos trechos

da caatinga. A principal consequência do

processo de desertificação é a falta de fer-

tilização do solo, e uma das causas dela

é justamente a criação de gado bovino e

caprino em excesso. E esse é um problema

que atinge não apenas o Seridó. O apego à

criação de animais de grande porte é um

dos elementos que formam a identidade de

grande parte dos mais de 22 milhões de ha-

bitantes pertencentes ao semiárido, espa-

lhados em nove estados da federação. Eles

representam 13% da população brasileira e

vivem por quase 1 milhão de quilômetros

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30 31Horizonte Geográfico Horizonte Geográfico

ESCALA0 200 400km

CEPI

MA

PB

RN

AL

PE

SE

BA

MG

ES

Fonte: Programa de Combate à Desertificação, Instituto Internacional de Cooperação para a

Agricultura (IICA), 2006

Diversas atividades humanas podem acelerar o processo de desertificação em diferentes ambientes. Veja algumas práticas que contribuem para o empobrecimento do solo da Caatinga

O mesmo problema em diferentes graus

Todos os estados nordestinos já sofrem diferentes graus de desertificação. As regiões estão identificadas, no mapa ao lado, como áreas riscadas dentro do bioma da caatinga.

Áreas semiáridas

Áreas susceptíveis à desertificação

Áreas afetadas por processos de desertificação

Áreas do entorno

Moderada

Grave

Muito grave

Áreas subúmidas secas

Criação de animaisA criação de animais de grande e médio porte pode causar fortes danos ao solo em casos de superpovoamento em áreas já degradadas. O gado, abundante na região, se alimenta da pouca matéria orgânica presente no ambiente e, ao pisotear o solo, causa a erosão da terra, além de impedir o crescimento de novas plantas. Segundo dados do IBGE de 2006, o semiárido brasileiro abriga 28,2 milhões de animais entre bovinos e caprinos, o que representa 1,25 cabeça de animal por habitante.

QueimadasAlguns produtores rurais ainda usam a queimada, tanto por comodidade quanto por acreditarem que essa prática pode renovar o solo. A consequência é a destruição da cobertura vegetal, principalmente das matas ciliares, que leva à redução da capacidade de regeneração do solo e ao aumento da sua impermeabilização, reduzindo a fertilidade. Sem a penetração da água e sem nutrientes, a terra se torna estéril.

CerâmicaA produção de cerâmica é feita com argila extraída de áreas aluviais, que são terrenos baixos e planos próximos aos rios e açudes. Além da perda de solos férteis e bem localizados, que poderiam ser utilizados para a agricultura, a indústria ceramista irresponsável contribui para a desertificação ao fazer uso de carvão vegetal, geralmente obtido a partir da mata nativa.

MineraçãoEssa atividade econômica, quando feita sem cuidados, causa danos irreversíveis aos solos. Os problemas começam na retirada da mata nativa para a construção de estradas e picadas, além da abertura de clareiras para acesso às áreas de mineração. Seguem com as explosões e vazamento de combustível nos processos de extração por meio de bombas. A perfuração de poços e galerias, além da realização de estudos para prospecções geológicas e hidrogeológicas, podem gerar prejuízos aos recursos hídricos subterrâneos.

A desertificação em foco

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32 33Horizonte Geográfico Horizonte Geográfico

quadrados. Nessa região, os três grupos

de animais, juntos, somam 28,2 milhões,

o que representa 1,25 cabeça de gado por

habitante do semiárido, segundo dados do

IBGE de 2006. “O número de animais deveria

ser controlado, pois eles comem a cobertura

vegetal, causando a erosão do solo. Com o

tempo, ele não consegue mais armazenar

água e vai se tornando estéril. O resultado

disso é que os animais emagrecem e muitos

morrem”, afirma Iêdo Bezerra Sá, pesqui-

sador da Embrapa Semiárido.

Caminhão-pipa todo mêsMorador do distrito de Palmas, também

no Seridó, Edinaldo da Costa Dantas sabe

bem o que é isso, ainda mais quando é che-

gada a época de seca. Trabalhador rural, ele

acaba de vender 50 das 200 cabeças de gado

da propriedade do pai por falta de alimento

para os animais. “Tiramos algumas para

salvar o resto. Este ano, com a seca, está

muito difícil”, conta. No sítio da família

Dantas nada é plantado e a renda familiar

fica exclusivamente por conta da criação. A

pouca chuva e o solo desgastado resultam

em nenhum alimento para o gado afora o

que é comprado na cidade.

Do armazém de Caicó chega o cardápio

dos rebanhos: ração de milho e bagaço de

cana. Por conta da baixa nutrição dos ani-

mais, a produção de queijo está parada. As

grandes panelas de ferro usadas para fazer

a mistura para o queijo coalho repousam na

garagem da residência, ao lado do fogão a

lenha, das grandes bacias de plástico cheias

de água trazida pelo caminhão-pipa e dos

jarros de barro que garantem a baixa tem-

peratura do líquido reservado para o con-

sumo humano. Com a ausência de chuvas,

o riacho que abastece a comunidade está

quase seco e o reforço que vem do governo

é necessário. “O caminhão-pipa vem de mês

em mês e, às vezes, isso não é o suficiente.

Mas sabemos que não tem como vir mais

vezes”, conforma-se Dantas.

Apesar das dificuldades, comida e dis-

posição é o que não faltam na casa do se-

ridoense de 27 anos, casado e pai de uma

filha. O som alto do forró e o bolo que a

mãe dele cozinha para vender e reforçar

a renda animam a conversa enquanto ele

oferece outra xícara de café. Assim como

Dantas, muitos sertanejos preservam a ale-

gria e o amor à terra, mesmo em tempos de

seca. Uma das provas disso é que o semi-

árido brasileiro é um dos mais populosos

do mundo, mesmo já tendo cerca de 20%

de suas terras degradadas, incapazes de

suportar a produção agropecuária – uma

área equivalente à nossa vizinha Guiana.

Cultura que desertificaA mineração, que revolve e remove o

solo por meio da abertura de clareiras, per-

furações e explosões, também pode causar

a desertificação, se não houver cuidado

em reparar os danos causados. Ao mesmo

tempo, a extração de minérios se tornou

uma das grandes esperanças econômicas

do Seridó. No fim da década de 1980, a

região comemorava a maior produção de

scheelita do país, um mineral do qual se

obtém o tungstênio, usado na fabricação

de aeronaves, canetas e brocas de perfu-

ração de poços de petróleo, entre outras

aplicações. Com a queda na produção chi-

nesa desse minério, a atividade voltou a

prometer prosperidade. Em visita à região,

a governadora do estado, Rosalba Ciarlini,

comemorava a volta do município de Cur-

rais Novos ao “mapa da mineração”, com

uma produção estimada de 770 toneladas

anuais de scheelita. “Por enquanto, o que

se vê são muitas mineradoras pequenas

que não agem com responsabilidade,

tomam propriedades e até expulsam fa-

mílias. É uma atividade violenta, e para o

solo pode ser irreversível. Tira-se o minério,

mas a riqueza, normalmente, vai para fora

da cidade”, lamenta Procópio Lucena.

“Quando as pessoas vêm para cá, sem-

pre me perguntam como nós conseguimos

viver em uma terra tão árida. E eu tenho

de parar para me lembrar: como é mesmo

que vivemos? Mas, dando um jeito aqui,

outro ali, e com muito trabalho, consegui-

mos viver muito bem”, afirma Galvão Freire,

diretor da Agência de Desenvolvimento do

Seridó (Adese). Um dos “jeitos” citados pelo

diretor da agência para o convívio com a seca

são as barragens subterrâneas. Essa tecnolo-

gia simples de armazenamento da chuva é

uma espécie de trincheira forrada com uma

lona e enterrada embaixo da terra, cortando

algum riacho ou rio temporário, e que serve

para deixar o solo úmido mesmo durante os

tempos de seca. Não estando em um grau

de desertificação avançada, a terra que fica

sobre a barragem se torna fértil tanto para

o cultivo de frutas, quanto para a pecuária.

Ademar Dantas, morador da zona rural

de Parelhas (RN), fez um curso na Secretaria

de Recursos Hídricos do estado e ajudou

na construção da própria barragem e do

poço em sua propriedade. “Aqui dá manga,

melancia, crio gado, porco e galinha. Nossa

Os quase desertos do sul do país

Há cerca de 3 mil anos, o sudoeste do Rio Grande do Sul era semiárido, mas, ao contrário do que vemos no Nordeste do país, a temperatura lá era fria. O tempo passou, as chuvas aumentaram, o bioma pampa se desenvolveu e os campos tomaram conta da paisagem. A dinâmica hídrica da região, que tem uma média alta de chuvas, cerca de 1.400 milímetros anuais, combinada com um solo pouco fértil, ajudou a formar sulcos, ravinas e voçorocas, ou seja, rachaduras no solo que atingem o lençol freático. O resultado desse processo é chamado de arenização. Em cidades gaúchas, como Alegrete e Maçambará, encontram-se verdadeiras dunas de areia em meio às propriedades rurais. “Registramos manchas de até 200 hectares de extensão. Desde que comecei a estudar a arenização, em 1987, o fenômeno é natural”, afirma Dirce Suertegaray, professora colaboradora da pós-graduação em geografia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). O ponto em comum entre a desertificação que ocorre no semiárido brasileiro e a arenização gaúcha é a baixa fertilização do solo nas duas regiões, mas por razões distintas.

Vegetação

rala, arbustos

retorcidos,

poucas

folhas, muitos

espinhos:

uma caatinga

adaptada à

pouca chuva da

região (acima,

Itainópolis,

no Piauí)

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34 35Horizonte Geográfico Horizonte Geográfico

que voltou? Até o trabalho da enxada deixei

de lado, agora tem de ser com a roçadeirinha

ou com a mão”, ensina José Arthur.

A desertificação em curso no semiá-

rido brasileiro, agora, é enfrentada com

novas tecnologias e mudanças de hábitos.

E se a chuva continua a vir rala e intermi-

tente, ela, hoje em dia, é armazenada para

os dias de secura. Assim, em vez de deixar

o sertão em busca de água, o sertanejo

cuida de não desperdiçar cada gota que

porventura caia dos céus quase sempre

tão azuis da caatinga.

Queimada

para preparar

a terra para

o próximo

plantio, como

essa no Raso

da Catarina

(PI), ainda é

prática comum

na região

alimentação é muito boa, bem diferente

da época do meu pai, que teve de comer

xiquexique [espécie de cacto abundante na

caatinga]”, revela o agricultor.

Cerâmica sustentávelMelhorar a convivência com o semiárido

passa, também, pela mudança de hábitos. A

Fundação Araripe, por exemplo, com sede

em Crato, no Ceará, faz da sustentabilidade

das cerâmicas uma de suas lutas. A argila,

matéria-prima dessa indústria, é retirada de

terras úmidas e férteis, próximas a rios ou

riachos. Além da remoção desse solo, que po-

deria receber uma plantação, as companhias

também colaboram com o desmatamento,

pois a produção necessita de grande quan-

tidade de lenha para queimar os produtos.

Em Crato, conhecemos uma fábrica de

cerâmica que pratica o manejo florestal.

A indústria separou suas terras, das quais

extrai 60% da madeira utilizada na produ-

ção, em 22 lotes. Cada faixa é desmatada

ao longo de um ano, deixando as outras

fatias preservadas. “Dessa forma, as árvo-

res dos lotes que não estão sendo usados

têm seu tempo para crescer. Essa solução

requer grandes áreas para serem divididas,

mas indústrias menores podem aproveitar

a técnica utilizando planos de manejo co-

munitários”, explica Magno Feitosa, técnico

da Fundação Araripe.

Há novidades também no plantio. José

Arthur é dono de uma pequena proprieda-

de localizada na árida zona rural de Nova

Olinda, próxima a Juazeiro do Norte (CE).

Pai de oito filhos e avô de 16 netos, ele ti-

nha todos os motivos para ser como foram

seus pais, avós e bisavós, um ruralista que

aprendeu desde criança a queimar a terra

para acelerar a produção de culturas como

o milho e o feijão. Contudo, atualmente ele

percorre o Brasil dando palestras e recebe

pesquisadores dos mais diferentes lugares

do mundo em sua casa, mesmo sem nunca

ter pisado em uma universidade. O segredo

do seu sucesso é ter feito uso de um sistema

conhecido como agrofloresta.

A sorte do agricultor começou a mudar

em meados de 1995, quando um técnico vin-

do da Alemanha ensinou-lhe aquele méto-

do. “Ele me disse que nada crescia porque

a terra estava descoberta, que eu precisava

deixar as folhas e matérias orgânicas no solo.

O alemão garantiu que, se eu trabalhasse

certo, o que já viveu aqui voltaria. E não é

O agricultor

José Arthur

aprendeu

as técnicas

agroflorestais,

que deram

certo em

seu sítio, no

qual, antes,

praticava

queimadas

jOA

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