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SECULARIZAÇÃO EM DEBATE: POLÍTICA E RELIGIÃO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA SILVA, Emilly Oliveira Lopes Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4 68 SECULARIZAÇÃO EM DEBATE: POLÍTICA E RELIGIÃO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA SILVA, Emilly Oliveira Lopes Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais [email protected] RESUMO A pergunta central que serve de guia para essa comunicação é: considerando as implicações sociais, quais são os arranjos existentes na atualidade entre o universo religioso e o político? Na tentativa de respondê-la, nos voltamos para o conceito de secularização, fundamental para a modernidade, em sua relação com situações políticas contemporâneas. Mais especificamente, propomos uma análise dos comentários deixados na página da enquete feita pela Câmera dos Deputados sobre a noção de núcleo familiar, que revelam o quanto a política é permeada por visões religiosas do mundo. Palavras-chave: Secularização; Religião; Política. ABSTRACT The central question that guides this lecture (communication) is considering its social implications, what are the existing arrangements between the religious universe and the political one nowadays? In order to try to answer it, we take the concept of secularization, fundamental for the modernity, in its relation to present-day political situations. Specifically, we propose an analysis of the comments made in the webpage of the online poll about the notion of family, proposed by the Chambers of Deputies (Brazilian Parliament), which we claim that revels to what extent politics is pervaded by religious views of the world. Key-words: Seculaziation; Religion; Politics. INTRODUÇÃO A ideia central do trabalho que propomos aqui é mapear não um território, mas sim um assunto específico ou, melhor dizendo, um debate. Esse assunto pode ser simplificado pela palavra secularização, mesmo que nela não haja nada de simples. O nó principal está no tensionamento entre o religioso e político, centrado no deslocamento de força de um para o outro 1 . Em uma perspectiva mais ampla, propomos uma análise do conceito de secularização desde antes do seu surgimento, nos primórdios 1 Ao falarmos de religioso e político, não deixamos de incluir outras esferas profundamente relacionadas a essas duas, como é, hoje em dia, o caso da economia. A política atual está profundamente amparada nos ditames econômicos de base capitalista. Isso faz com que a relação entre o econômico e o teológico, como mostraremos mais adiante, também tenha papel central nesse debate. O mesmo vale para outros aspectos da realidade contemporânea, como o científico, o cultural e a racionalidade.

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SECULARIZAÇÃO EM DEBATE: POLÍTICA E RELIGIÃO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

SILVA, Emilly Oliveira Lopes

Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro

de 2015, ISSN 2316-266X, n.4

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SECULARIZAÇÃO EM DEBATE: POLÍTICA E RELIGIÃO NA

SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

SILVA, Emilly Oliveira Lopes

Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais

[email protected]

RESUMO

A pergunta central que serve de guia para essa comunicação é: considerando as implicações

sociais, quais são os arranjos existentes na atualidade entre o universo religioso e o político?

Na tentativa de respondê-la, nos voltamos para o conceito de secularização, fundamental para a

modernidade, em sua relação com situações políticas contemporâneas. Mais especificamente,

propomos uma análise dos comentários deixados na página da enquete feita pela Câmera dos

Deputados sobre a noção de núcleo familiar, que revelam o quanto a política é permeada por

visões religiosas do mundo.

Palavras-chave: Secularização; Religião; Política.

ABSTRACT

The central question that guides this lecture (communication) is considering its social

implications, what are the existing arrangements between the religious universe and the political

one nowadays? In order to try to answer it, we take the concept of secularization, fundamental

for the modernity, in its relation to present-day political situations. Specifically, we propose an

analysis of the comments made in the webpage of the online poll about the notion of family,

proposed by the Chambers of Deputies (Brazilian Parliament), which we claim that revels to

what extent politics is pervaded by religious views of the world.

Key-words: Seculaziation; Religion; Politics.

INTRODUÇÃO

A ideia central do trabalho que propomos aqui é mapear não um território, mas

sim um assunto específico ou, melhor dizendo, um debate. Esse assunto pode ser

simplificado pela palavra secularização, mesmo que nela não haja nada de simples. O

nó principal está no tensionamento entre o religioso e político, centrado no

deslocamento de força de um para o outro1. Em uma perspectiva mais ampla, propomos

uma análise do conceito de secularização desde antes do seu surgimento, nos primórdios

1 Ao falarmos de religioso e político, não deixamos de incluir outras esferas profundamente relacionadas

a essas duas, como é, hoje em dia, o caso da economia. A política atual está profundamente amparada nos

ditames econômicos de base capitalista. Isso faz com que a relação entre o econômico e o teológico, como

mostraremos mais adiante, também tenha papel central nesse debate. O mesmo vale para outros aspectos

da realidade contemporânea, como o científico, o cultural e a racionalidade.

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do catolicismo, até as abordagens mais contemporâneas que falam do desencantamento

do mundo, bem como de uma retomada do sagrado. Essa análise será levando em

consideração o debate em diferentes áreas, como a História, a Filosofia, as Ciências

Sociais e a Teologia. Reduzindo o foco, nos aproximamos da atualidade para pensar

como ocorrem as relações entre o político e o religioso hoje no Brasil. Nessa escala

reduzida, optamos por observar mais de perto o debate em torno da aprovação do

Estatuto da Família, que restringe o conceito de núcleo familiar a uniões entre homem e

mulher. Essa discussão vem sendo profundamente marcada por uma forte defesa do

caráter laico do Estado em oposição aos argumentos religiosos comumente utilizados.

Por isso, acreditamos que ela pode nos ajudar a compreender melhor quais são os

arranjos existentes na atualidade entre o universo religioso e o político.

Esta proposta surge do incômodo diante de situações comuns na atualidade, nas

quais a tensão entre o político e o religioso se manifestam. Para nós brasileiros, os dois

últimos processos eleitorais (2010 e 2014) foram fortemente caracterizados por esse

embate. De um lado, discursos efusivos em favor da moralidade religiosa falavam

contra temas como o aborto ou a defesa dos direitos civis para casais homoafetivos. Do

outro, bravos defensores da laicidade alegavam que essas questões não poderiam ser

debatidas democraticamente apenas pelo viés religioso. Em meio a esse confronto, é

difícil não questionar quais são os limites dessas esferas e, mais do que isso, até onde os

princípios da religião podem interferir na vida de pessoas que não estão de acordo com

eles. A laicidade do Estado é o eixo principal desses debates, uma vez que, em tese, as

decisões de ordem pública não deveriam ser tomadas como base na fé restrita à ordem

privada. Ainda assim, discussões marcadas por confusões desse tipo podem ser vistas

com frequência em redes sociais, comentários de notícias e outros espaços para a

manifestação de opinião, o que justifica nossa escolha pela utilização desses

“fragmentos” na composição de uma cartografia.

O Brasil, no entanto, não é uma ilha se tomamos esse embate como foco.

Recentemente, eventos como o polêmico ataque à revista satírica francesa Charlie

Hebdo trouxeram à tona a discussão que perpassa os fundamentos do islamismo e os

fundamentalistas que dizem agir em nome da religião. Mais uma vez, parece haver um

problema de limitação entre o político e o religioso, trazendo implicações sociais

gravíssimas, além de posicionamentos múltiplos sobre os campos de atuação do Estado,

das religiões e dos cidadãos em uma perspectiva político-ideológica. Tudo isso revela

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que o presente do qual partimos é realmente fervilhante. Várias questões complexas

surgem quando olhamos para o emaranhado que constitui essas relações de poder.

Nossa investigação se restringe ao Brasil por questões de recorte, mas não há dúvidas de

que esse embate é presente em um nível bem mais global. Parece-nos, contudo, que a

produção a respeito do tema por pesquisadores brasileiros é ainda é restrita,

principalmente no que tange à contemporaneidade, o que torna este projeto relevante

academicamente e também socialmente.

A metodologia adotada para este trabalho se ampara no que hoje é chamado de

cartografia. No artigo intitulado A cartografia com método para as ciências humanas e

sociais, Kléber Prado Filho e Marcela Teti analisam as observações de Deleuze para a

metodologia foucaultiana, entendida pelo primeiro como uma cartografia, bem como as

apropriações feitas por outros autores desse possível método de pesquisa. Logo nas

primeiras páginas, os autores estabelecem uma diferenciação entre a cartografia

tradicional, que se destina à produção de mapas que representem de modo objetivo um

espaço pré-definido, e a cartografia social como método de pesquisa, que se inspira nos

mapeamentos tradicionais, mas com foco em questões pertinentes ao entendimento de

um aspecto social e não um território. Segundo eles:

a cartografia social aqui descrita liga-se aos campos de conhecimento

das ciências sociais e humanas e, mais que mapeamento físico, trata

de movimentos, relações, jogos de poder, enfrentamentos entre forças,

lutas, jogos de verdade, enunciações, modos de objetivação, de

subjetivação, de estetização de si mesmo, práticas de resistência e de

liberdade. Não se refere a método como proposição de regras,

procedimentos ou protocolos de pesquisa, mas, sim, como estratégia

de análise crítica e ação política, olhar crítico que acompanha e

descreve relações, trajetórias, formações rizomáticas, a composição de

dispositivos, apontando linhas de fuga, ruptura e resistência (FILHO;

TETI, 2013, pp. 47).

Essa talvez seja uma das melhores definições para a metodologia que

propomos para o trabalho. A partir dos relatos encontrados na enquete feita pela Câmara

dos Deputados, buscaremos observar as mais diferentes nuances sociais, culturais e

políticas que perpassam a discussão. Com atenção para o todo e olhar crítico para os

detalhes, acreditamos que esses fragmentos fornecem peças para o entendimento

daquilo que a teoria nem sempre dá conta de compreender.

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Traduzindo a complexa teoria de Deleuze, Liliana da Escóssia, Virgínia

Kastrup e Eduardo Passos (2012), na introdução do livro Pistas do método da

cartografia, dizem que o sentido da cartografia envolve “acompanhamento de

percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou rizomas”. Os

autores falam ainda da cartografia como inversão do método, uma vez que, na origem

da palavra (metá + hódos), o sentido é de um caminho (hodós) indicado pelas metas. No

processo cartográfico, os caminhos é que apontariam as metas, ou seja, é por meio da

experimentação do terreno que surgem as próprias definições da pesquisa (p. 10). Por

isso, falar de uma metodologia fechado para o trabalho do cartógrafo é ir de encontro à

essência da cartografia. Os autores, como o nome do livro indica, defendem a existência

de pistas: “As pistas que guiam o cartógrafo são como referências que concorrem para

manutenção de uma atitude de abertura ao que vai se produzindo e de calibragem do

caminhar no próprio percurso da pesquisa – o hódos-metá da pesquisa” (p. 13).

As pistas que inicialmente adotaremos serão, conforme o que foi dito

anteriormente, os estudos históricos, sociológicos, filosóficos ou teológicos que tenham

como ponto principal a secularização e seus possíveis desdobramentos, bem como

recortes do debate ocorrido no Brasil a respeito do Estatuto da Família. Para tanto,

proposta envolve tanto a pesquisa bibliográfica quanto o uso de fontes documentais.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para tratamos mais especificamente da secularização e seus desdobramentos,

não podemos esquecer que o conceito se inscreve na história do Ocidente, marcada

desde o início pelo casamento entre a racionalidade filosófica surgida em Atenas e uma

tradição religiosa, a judaico-cristã. Foram séculos de convivência mais ou menos

pacífica entre fé religiosa e razão, até se chegar mais diretamente ao que nomeamos

como modernidade, muitas vezes caracterizada como cisão entre racionalidade e fé. É

nesse contexto que surge o conceito de secularização, ligado à visão de

"desencantamento do mundo" e à racionalização cada vez maior da experiência. Em

certas perspectivas, o termo também será entendido como destruição gradual de

qualquer fundamentação teológica da vida humana, servindo, portanto, de metáfora para

a modernidade. A entrada neste debate sobre o alcance e os limites do conceito de

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secularização, como veremos adiante, solicita a contribuição de vários saberes

disciplinares, como a História, a Filosofia, as Ciências Sociais e a Teologia.

A secularização, entendida em termos gerais como a cisão entre o religioso e o

político, tem sua origem no próprio cristianismo. Segundo Fernando Catroga (2006), as

características primeiras do surgimento do catolicismo criaram uma separação entre o

religioso e as demais esferas da vida. Ao promover um paraíso extraterreno, o político é

“abandonado” pela Igreja, como fica expresso na frase atribuída a Jesus Cristo: “Dai a

César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (p. 23). Santo Agostinho, importante

teólogo do cristianismo, também separa a “Cidade de Deus” da “Cidade dos Homens”,

deixando claro que o território do sagrado não está neste mundo. No entanto, no

decorrer da história, a confusão entre esses “terrenos foi bastante comum”. Quando

Constantino impôs, no século IV, o cristianismo com religião do Estado, a separação

fundadora do cristianismo parece ter sido revista. As bases teológicas cristãs aceitavam

a separação feita por Platão entre alma e corpo, entendendo que a alma é governada pela

ordem espiritual e o corpo pela ordem temporal. A religião segue o princípio de que o

corpo está sujeito à alma e, portanto, também se encontra sob sua jurisdição. Os

governos, ao mesmo tempo, buscam trazer para si o controle de tudo o que é terreno,

incluindo até mesmo as instituições religiosas. Assim, cada uma das esferas almeja se

manter autônoma, muitas vezes “invadindo” o território uma da outra em nome dessa

“autonomia” (TODOROV, 2008, p. 66).

No pensamento moderno, é recorrente a noção de que o mundo está se

dessacralizando ou tem por tarefa se dessacralizar. Muito possivelmente, as origens

desse processo estão na racionalidade que surge com o pensamento iluminista. Kant, em

1784, afirma que:

O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele

próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do

entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa

própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas

na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia

de outrem (KANT, 1990, p. 11).

A definição expressa bem o pilar central do Iluminismo: a razão. Não se trata,

todavia, de uma razão simplesmente metafísica, mas de uma razão humana. O que se

defende é a capacidade de apreensão e entendimento do mundo através de explicações

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racionais, em detrimento de uma visão mística ou supersticiosa da realidade. A

definição kantiana também destaca a ideia de autonomia do homem, uma vez que a

saída da menoridade está intrinsecamente relacionada com a emancipação do

pensamento humano de qualquer autoridade externa. Nesse sentido, destaca-se no

pensamento da época uma perspectiva dessacralizada do mundo, definida pela ruptura

com o entendimento metafísico da realidade. De um modo geral, os seres humanos

deixam de se preocupar com a eternidade para se ocupar com a vida terrena e “a busca

de felicidade substitui a salvação” (TODOROV, 2008, p. 20).

O conceito de lacidade também ganha força nesse momento. Sua definição é

bastante próxima da secularização, nem sempre havendo consenso sobre o que

diferencia os dois termos. Para Catroga (2006), toda laicidade é uma secularização, mas

nem toda secularização é ou foi uma laicidade. O cerne da diferenciação estaria na

existência de um “sujeito ativo” para a implementação da laicidade. Segundo o autor,

“ela implicaria tanto um intervencionismo mais direto do Estado na instituição da

liberdade de consciência, como a neutralização do religioso na vida pública” (p. 274). O

ideário da modernidade, nesse aspecto, entrou em confronto direto com a igreja católica,

sobretudo com Roma, exigindo que os Estados se tornassem independentes da

ingerência religiosa. Contudo, ainda hoje observamos que laicidade do Estado é muito

mais uma meta que uma realidade

Dessas bases lançadas no século XVIII e dos debates sobre a modernidade (a

começar por Hegel, seguindo-se Nietzsche, Marx e Freud), surge uma série de leituras

relacionadas à secularização, dentre as quais se destaca a hipótese defendida, no início

do século XX, por Max Weber (2004). Ao analisar a racionalidade formal que perpassa

o capitalismo, ele observa que a moral protestante, sobretudo a puritana, ao preconizar a

doutrina da predestinação, favorece a consolidação do sistema capitalista. Para os

protestantes, os homens nascem predestinados ou não para ocupar o reino dos céus – ou

pelo menos assim o era na origem calvinista. Assim, as ações positivas no decorrer da

vida não interfeririam diretamente na salvação. Isso possibilita, no entendimento de

Weber, o avanço capitalista, muito mais que uma possível noção de “progresso” ou

“espírito de trabalho” contida nas bases do protestantismo (p. 38). No decorrer de sua

análise, ele utiliza a expressão desencantamento do mundo2 para tratar desse processo:

2 No Glossário criado por Antônio Pierucci para a edição comemorativa dos cem anos de A ética

Protestante e o Espírito do Capitalismo (que usamos aqui), é informado que a expressão

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Aquele grande processo histórico-religioso do desencantamento do

mundo que teve início com as profecias do judaísmo antigo e, em

conjunto com o pensamento científico helênico, repudiava como

superstição e sacrilégio todos os meios mágicos de busca da salvação,

encontrou aqui [doutrina da predestinação] sua conclusão. O puritano

genuíno ia ao ponto de condenar até mesmo todo vestígio de

cerimônias religiosas fúnebres e enterrava os seus sem canto nem

música, só para não dar trela ao aparecimento da superstition, isto é,

da confiança em efeitos salvíficos à maneira mágico-sacramental. Não

havia nenhum meio mágico, melhor dizendo, meio nenhum que

proporcionasse a graça divina a quem Deus houvesse decidido negá-la

(WEBER, 2004, p. 96).

A partir do trecho, é possível notar que esse processo de desencantamento não

se refere a algo amplo, relacionado à secularização das mais diversas esferas da

sociedade, mas sim de um ponto específico da moral protestante, que rompe com os

meios mágicos de obtenção da salvação.

Contudo, a análise proposta por Weber servirá de apoio para um debate amplo,

principalmente na Sociologia, acerca da secularização. De acordo com Catroga (2006),

a partir da década de 60 do século XX em diante, várias teorias surgiram a fim de

explicar o fenômeno da secularização. Em síntese, as chamadas teorias da secularização

mostraram a relação do processo de secularização com uma ideia de modernidade,

enfatizando a influência da religião-judaico cristã, a racionalidade capitalista e a

urbanização como catalizadoras da mudança nos modos de entender o mundo e a vida.

Para Giacomo Marramao (1997), o conceito de secularização passou por diversas

mudanças no decorrer do tempo. Em sua origem, o termo se referia especificamente ao

campo político-jurídico, tratando da passagem de terras religiosas para mãos seculares.

Gradualmente, a palavra secularização ascende ao “status de categoria genealógica

capaz de sintetizar ou expressar unitariamente o desenvolvimento histórico da sociedade

ocidental moderna, a partir de suas raízes (judaico-) cristãs” (p. 15), ou seja, é

convertida em metáfora da modernidade.

Ao tratar do mesmo tema, José Legorreta Zepeda também aborda a relação

estreita entre secularização e modernidade. Segundo ele, a modernidade pode ser

definida como:

desencantamento do mundo não aparece na primeira versão da obra de Weber, mas somente na segunda,

datada de 1920. Segundo o verbete, o sentido específico da expressão é “repressão/supressão da magia

como meio de salvação” (WEBER, 2004, p. 282).

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processo sócio-histórico complexo e multidimensional – original da

Europa Central –, caracterizado fundamentalmente por uma visão de

mundo descentrada, profana e pluralista, por uma reflexão que ao

incorporar-se de forma sistemática e permanente na vida social,

desestabiliza a experiência, as instituições e os conhecimentos, e

consequentemente gera uma realidade profundamente dinâmica,

contraditória, ambígua e precária (ZEPEDA, 2010, p. 130).

Além dessas características, a modernidade também seria marcada pela

primazia da razão instrumental, pelo individualismo e por uma compreensão otimista da

história expressa com a noção de progresso. Com a conformação desses elementos, o

papel desempenhado pela religião como algo que legitima e integra as sociedades se

perderia gradativamente. Zepeda afirma a existência de duas tendências principais para

a secularização: a primeira seria a “tese dura da secularização”, segundo a qual esse

processo levaria inexoravelmente à abolição das religiões; a outra seria a “tese suave da

secularização”, que trata de mudanças profundas no universo religioso, sem que ele

desapareça. Nas teorias ditas suaves, a religião e a modernidade são vistas de modo

imbricado, pois o discurso religioso se entremeia na própria cultura, ao mesmo tempo

em que a política incorpora a moral judaico-cristã. Já na tese dura, percebe-se o

surgimento de um programa político que almeja, num futuro não muito distante, uma

vida sem religião (ZEPEDA, 2010, p. 131).

O que ocorre, porém, é que a secularização, assim como a própria ideia de

modernidade, é posta em xeque nas últimas décadas do século XX. Vários autores

notam que as religiões, ao invés de desaparecerem, ganharam força e se multiplicaram

(PIERUCCI, 1998, p. 45). Esse fenômeno, chamado por Stefano Martelli (1995) de

“eclipse da secularização” se associa à retomada do pensamento religioso, observada

empiricamente, como forma de atribuir sentido ao mundo à medida que os pilares da

modernidade declinam. Expressões como “ressurgimento religioso”, “ressacralização” e

“reencantamento” se tornam comuns nas investigações sociológicas. Contudo, as teses

que enfatizam o ressurgimento da esfera religiosa encaram essa tendência como algo

diferente do que foi a religião pré-moderna (ZEPEDA, 2010, p. 133). Por isso, Martelli

fala de uma dessecularização, como forma de questionar a linearidade racionalista da

secularização e a própria ideia de uma ressacralização como simples retomada do

religioso na crise da modernidade. De acordo com o autor:

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a Religião na sociedade “pós-moderna” apresenta um andamento

complexo, que, numa primeira aproximação, denominamos

“flutuação” entre secularização e dessecularização. A Religião não é,

de fato, a parte residual da sociedade, mecanicamente conexa com os

vínculos da comunidade, a ponto de retrair-se diante do avanço do

processo de racionalização. Pelo contrário, ela “flutua” nas correntes

socais que vão redesenhando a sociedade contemporânea, sem que se

possa prever seu futuro (MARTELLI, 1995, p. 411).

Como podemos notar, o autor destaca a ineficiência das análises que

simplesmente preveem o desaparecimento da religião, sem, contudo, ignorar o processo

de secularização. Para que pudéssemos falar em uma ressacralização, seria necessário

dizer que o sagrado, em algum momento da história, perdeu sua função na sociedade, o

que de fato nunca ocorreu. Nossa hipótese, diante desses apontamentos, é de que a

secularização se refere muito mais a uma “flutuação” do poder entre o religioso e o

político que a uma ruptura com a religião. Essa hipótese pode ser endossada por Giorgio

Agamben no livro Profanações (2012). Para ele, é importante opor o conceito de

profanação ao de secularização, porque este último não representa uma alteração

profunda nas relações de poder. Nas palavras do filósofo, “A secularização é uma forma

de remoção que mantém intacta as forças, que se restringe a se deslocar de um lugar a

outro”. Assim, a secularização deslocaria as forças do religioso para o político, sem que

haja, de fato, uma neutralização do poder em disputa. Já a profanação implica

necessariamente nessa neutralização, restituindo ao uso comum algo que estava

indisponível pela sua sacralização, que equivale precisamente a um confisco das coisas

do uso comum. Dessa forma, Agamben conclui que “Ambas as operações são políticas,

mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a

um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso

comum os espaços que ele havia confiscado” (p.68).

RESULTADOS ALCANÇADOS

Trazendo esse debate para situações contemporâneas, analisaremos a enquete realizada

pela Câmara dos Deputados durante todo ano de 20143. Ela perguntava aos brasileiros:

“Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre

3 O resultado da enquete está disponível em:

http://www2.camara.leg.br/enquetes/resultadoEnquete/enquete/101CE64E-8EC3-436C-BB4A-

457EBC94DF4E (acesso em 29-11-2015).

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homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?”. O que estava em

jogo era a aprovação do Projeto de Lei 6583/13, do deputado Anderson Ferreira (PR-

PE), que funda o Estatuto da Família. O projeto tem como intuito a proteção de um

conceito de família muito restrito, formado apenas pela união entre homem e mulher.

Ao final da enquete, foram contabilizados mais de 10 milhões de votos (era

possível que uma mesma pessoa votasse mais de uma vez). 51,62% responderam “não”,

ou seja, discordaram do conceito de núcleo familiar proposta no Estatuto da Família.

48,09% foram favoráveis à definição e 0,29% declararam não ter opinião formada sobre

o assunto. Enquanto a votação popular esteve aberta, várias viradas de resultado

ocorreram, às vezes com maior vantagem para um o outro posicionamento. Além disso,

grupos de discussão em redes sociais, sites de notícias, blogs e outros canais

comunicativos estimularam o voto tanto de pessoas favoráveis ao conceito de família

formada por homem e mulher, quanto de indivíduos contrários a essa visão.

Mais do que o resultado da enquete, nos interessa os comentários deixados

pelos participantes. O debate parece ser tão importante para a sociedade que meses após

o encerramento da pesquisa os cidadãos continuam visitando a página e deixando lá

suas opiniões. De modo geral, eles podem ser divididos em dois grupos principais: os

que concordam com o conceito de núcleo familiar apresentado no PL 6583/13 e os que

acreditam que outros arranjos devem ser incluídos na noção de família. A argumentação

dos favoráveis ao núcleo formado por homem e mulher está embasada nos preceitos das

religiões cristãs, com várias referências ao texto da Bíblia. Em contraposição, o outro

lado do debate quase sempre enfatiza a laicidade do Estado brasileiro e a não

possibilidade de interferência de questões religiosa nas decisões políticas.

Vejamos um dos comentários deixados por defensores do Estatuto da Família:

Deixará o homem sua casa e se unirá a sua mulher e os dois se

formarão uma só carne". Esta é a ordem de Deus e ela é clara, não tem

como confundir. Vamos nos unir para que a família não seja

desestruturada por vontade de uma minoria. Dizer não também a

Ideologia de Gênero, ao aborto e todos os projetos contra a família!

Amém! (Inês, em 17-11-2015).

A autora do comentário retoma uma passagem bíblica para justificar sua

opinião. Ela também se posiciona contrária ao que chama de ideologia de gênero e ao

aborto, por serem ideias opostas ao seu entendimento do que é uma família.

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O próximo comentário também se utiliza da Bíblia, mencionando o que está

escrito em Gênesis 2:18 “E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só;

far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele”. Há também a noção de procriação como

fundamental para o que constitui uma família: “Tudo se faz através da religião, Deus

criou tudo e tudo se fez através de Sua palavra. Gênesis 2:18 diz tudo, não há procriação

a partir de um gênero só. FAMILIA é criação do coração de Deus, o que passar disto é

procedência maligna” (Leila, em 31-10-2014).

Além dos argumentos de base religiosa, há também uma visão de política

expressa em alguns dos comentários. A questão das minorias, presente no primeiro

comentário, aparece algumas vezes no debate estabelecido a partir da enquete. A

democracia, num certo entendimento, parece ser a manifestação dos desejos políticos da

maioria, como fica claro na opinião abaixo:

Destruir toda a família em pró da minoria? Vivemos numa democracia

e somos a maioria e a minoria deve submeter-se e adaptar-se a maioria

e não o contrário. Portanto é sim para o estatuto da família, pois temos

que ter mecanismos para preservara família já que as minorias estão

com diversos projetos para emancipar-se e impregnar a sociedade com

suas subversões (Fábio, em 31-10-2014).

É importante observar também que existe um ponto “oculto” na discussão. Por

mais que o conceito de família debatido exclua outros arranjos, como crianças criadas

por apenas um dos pais, e isso apareça em vários comentários, as famílias

homoparentais parecem o alvo tanto do Estatuto da Família quanto de seus defensores4.

As recentes decisões do Supremo Tribunal Federal em favor da união estável e da

possibilidade de casamento civil entre casais homoafetivos não deixa de estar

incorporada no debate. Em certa medida, a criação do Estatuto da Família baseado em

um conceito tradicional parece funcionar como um “antídoto” para essas medidas que

atribuem legalidade a novas configurações familiares.

Em contraposição aos argumentos de base religiosa, aparecem também na

enquete os comentários contrários a qualquer interferência das religiões nas decisões do

4 No texto do Estatuto da Família, o conceito inclui pais que criam seus filhos sem a presença do cônjuge:

“Art. 2º Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união

entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade

formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (BRASIL, 2013).

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Estado. A título de exemplo, separamos algumas opiniões elucidativas deste

posicionamento:

Gente, é preciso separar o que é de direito de todo cidadão que vivem

em um estado Estado Laico e o que é direito de escolha de cada

cidadão que tem sua fé e suas crenças. O Estado não deve interferir

nas crenças de ninguém assim como as crenças de qualquer pessoa

não podem reger a vida de toda a população. Vamos melhorar os

argumentos gente! Meu voto é NÃO, família é muito mais do que a

simples união entre um homem e uma mulher, a prática mostra muito

bem isso e regulamentar o que já é realidade no Brasil é apenas

reconhecer os direitos de cada cidadão e fortalecer todo tipo de família

(Rômulo Neiva, em 31-10-214).

O ponto mais importante do comentário é a ênfase na separação do direito de

todo cidadão e do campo da crença. Para autor, a fé dos indivíduos não pode interferir

nas leis que dizem respeito a toda a população. Também é mencionado no texto o

fortalecimento da família, defendido pelo PL 6583/2013. O posicionamento não é

avesso aos cuidados com a família, porém rejeita a visão limitada de núcleo familiar

proposta.

Com relação ao debate, é importante ter alguma cautela sobre os

posicionamentos religiosos. Nem todas as pessoas que seguem uma fé cristã tradicional

estão ao lado do Estatuto da Família, como podemos ver no comentário que segue:

“NÃO! as crenças e atitudes individuais têm de ser separadas disso.

Sou cristã, heterossexual, de família tradicional e compreendo que o

conceito de família deva ser alargado. Casais homoafetivos ou pessoas

solteiras que têm a coragem e generosidade de adotar crianças

abandonas (geradas pela tradicional união entre homem e mulher) não

formam família? E há muitos outros casos... Vamos dizer „não‟ à

discriminação e o preconceito” (Rita, em 31-10-2014).

Mais uma vez, é possível perceber que a discussão em torno do conceito de

núcleo familiar extrapola os limites da questão proposta na enquete. A pauta inclui

assuntos polêmicos na atualidade como a homofobia (bem como outras formas de

preconceito) e a laicidade do Estado. Os dois últimos comentários ressaltar a

necessidade de se separar crenças individuais das decisões públicas, o que desvela,

novamente, o viés religioso da discussão. Para além das crenças, o que mais sustentaria

um conceito de família centrado na união entre homem e mulher? Essa é uma pergunta

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importante que subjaz aos comentários deixados por muitos optantes do “não” na

enquete. Não nos interessa respondê-la aqui, mas parece-nos que a força do argumento

sempre reside, mesmo que de forma indireta, em preceitos religiosos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não é apenas em debates como os do Estatuto da Família que despontam

argumentos religiosos. A PEC 171/1993, que versa sobre a redução da maioridade penal

de 18 para 16 anos, usa o texto bíblico como fonte principal para defender a emenda

constitucional5. Outros projetos, trazidos à tona por Eduardo Cunha em seu mandato

como Presidente da Câmara dos Deputados, também se alinham com as diretrizes

conservadoras da Frente Parlamentar Evangélica.

Propostas como essas nos levam a pensar sobre a validade do conceito de

secularização na realidade atual. No entanto, é preciso colocar em perspectiva um

sentido mais comum do termo para entendê-lo de forma mais ampla. A secularização se

liga a uma ideia de imanentização da experiência humana. Na prática, isso significa que

a vida terrena passa a se sobrepor a qualquer expectativa extramundana. Assim, é

possível pensar que as religiões também tenham se secularizado, ou seja, que seus

campos de atuação se aproximem, cada vez mais, do território político.

Talvez esse seja o grande nó da questão da secularização. Ainda que suas bases

modernas e iluministas suponham um distanciamento entre as Igrejas e os governos,

essa separação não corresponde à realidade em que até mesmo as religiões se

preocupam mais com a experiência intramundana. A hipótese que levantamos, portanto,

é de que a secularização, e seus desdobramentos modernos, tragam para o universo

profano os ideais religiosos antes ligados somente ao sagrado. Dito de outro modo, seria

por meio de uma institucionalização política que o religioso encontraria espaço para

reverberar seu ideário. Assim, a secularização não estaria de modo algum oposta ao que

vemos na contemporaneidade, ainda que seja necessário ampliar o modo como

entendemos seu conceito.

5 Cf. Bíblia é a principal fonte que embasa a PEC da Redução da Maioridade Penal. In: Revista Fórum.

Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/04/biblia-e-a-principal-fonte-que-embasa-a-

pec-da-reducao-da-maioridade-penal/ (acesso em 29-11-2015).

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Conjugando a análise do contexto político atual com o que foi dito sobre a

secularização, observamos que, a despeito dos modelos teóricos que insistem em tratar

política e religião como esferas separadas, elas permanecem bastante imbricadas na

atualidade. A partir dessa discussão, entendemos que o conceito de secularização

adquire definições diversas, sem, contudo, deixar de fazer sentido na atualidade. Se, por

um lado, é notório que o mundo não se desencantou, segue difícil negar, por outro, que

a relação entre o religioso e o político não foi abalada pelas forças secularizantes da

modernidade. O que percebemos é um arranjo complexo, que dificilmente será

compreendida por meio de uma oposição entre fé e razão ou mesmo distanciando o

religioso e político.

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