estratos da secularização: religião, secularização, e poder · do tempo como secularização...
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Estratos da Secularização:
Religião, Secularização, e Poder
PEDRO DAMAZIO FRANCO1
Um estudo sobre o conceito de secularização se depara com uma série de dificuldades.
Pra começar, a bibliografia sobre o tema é simplesmente inabarcável - mas a questão de volume
evidentemente não é nosso único desafio. As conotações que o termo carrega apontam para tal
diversidade de fenômenos que determinar um denominador comum já se se torna uma tarefa
problemática. Reinhart Koselleck rastreia os primeiros usos do termo no âmbito jurídico, onde
há naturalmente um esforço de minimizar a ambiguidade dos termos. A partir do momento em
que seu potencial metafórico se prestou a especulações histórico-filosóficas, a densidade do
conceito é aproveitada para penetrar estratos de significação mais profundos, trazendo à tona
processos históricos antes encobertos. O perigo deste modo de exploração, no entanto, é o
crescente grau de ambivalência e ambiguidade que pode vir a confundir mais do que esclarecer
a natureza e interrelação dos estratos que o conceito procura trazer à luz da teoria. A quantidade
quase ilimitada de processos históricos que podem ser analogicamente associados à
secularização leva à tentação de usar o conceito como fator causal de fenômenos cuja descrição
exigiria maiores relevos explicativos. Daí que esclarecimentos teóricos sobre o suposto
fenômeno da secularização em âmbitos diversos da experiência humana normalmente precisam
recorrer a outros termos, como o desencantamento, a mundialização, dessacralização,
desdivinação, imanentização, aceleração, abreviação entre outros - o que torna difícil seguir o
rastro do conceito sem avaliar as especificidades de cada uma dessas aplicações.
Naturalmente não teremos espaço aqui de penetrar essa diversidade de temas.
Concentraremos nossos esforços em explorar a aplicabilidade do conceito à certas formulações
histórico-filosóficas que surgem com da modernidade. Isso inevitavelmente nos desviará, ao
longo do estudo, da análise do termo para uma análise dos fenômenos reais que ele procurou
revelar em seu empreendimento metafórico. Tomaremos como base dessa tarefa algumas das
* Mestrando do departamento de História Social da Cultura, PUC-Rio. Bolsista do programa Bolsa
Nota 10 da FAPERJ.
críticas à moderna filosofia da história empreendidas por Karl Löwith, Reinhart Koselleck, e
Eric Voegelin entre outros.
Mencionamos que haveria uma transposição metafórica do termo quando ele foge do
âmbito jurídico e procura se aplicar a outros estratos de significado. Hans Blumenberg aponta
algumas precauções metodológicas para se lidar com conceitos que preservam seu ‘fundo
metafórico’ e, portanto, uma relação ainda implícita com seu contexto de origem
(BLUMENBERG, 1985, p. 23). No caso do conceito de secularização, seu referencial de origem
como um processo jurídico implica o estabelecimento de determinadas categorias relacionais
inerentes à lógica interna desse processo. Em termos práticos, um processo de transferência de
propriedades de um domínio para o outro no âmbito jurídico exige a definição clara de três
elementos: 1) qual é a propriedade a ser transferida, 2) quem são os agentes dessa
transferência, e 3) a legitimidade da posse dessas propriedades pelas partes envolvidas. Em
processos jurídicos é de se esperar que esses elementos possam ser univocamente definidos
para se dar início ao processo - algo que não podemos esperar conseguir com tanta facilidade
nas expansões metafóricas do termo. Não obstante, começar com essa observação oferece ao
menos um ponto de partida para nossa investigação.
Começaremos portanto com o primeiro elemento da equação: quais são as propriedades
que seriam transferidas de um contexto para outro? No uso jurídico, nos referíamos aos bens
materiais da igreja que seriam apropriados por outras instituições. No uso metafórico, o estrato
de significação é transposto e a propriedade referida passa a indicar atribuições intelectuais e
espirituais. Isso gera um outro problema metodológico, pois quando um bem material é
transferido de uma mão a outra é relativamente fácil determinar se esse bem continua
substancialmente o mesmo durante as etapas da transferência. No caso de atribuições
intelectuais e espirituais há uma certa dose de ambiguidade quanto à unidade substancial de
uma ideia que se desenrola na história, ao ponto de que a possibilidade de uma ‘história das
ideias’ foi praticamente enterrada na academia contemporânea. De que forma então podemos
dizer que uma propriedade intelectual ou espiritual permaneceria ‘a mesma’ uma vez que for
‘secularizada’?
Uma distinção utilizada tanto por Blumenberg quanto por Koselleck parece nos poder
ajudar. Em seu Legitimacy of the Modern Age, Blumenberg procura responder à afirmativa de
Karl Löwith de que a ideia moderna de progresso seria uma versão secularizada das
expectativas escatológicas cristãs. Blumenberg não negava que as filosofias da história
progressistas do Iluminismo de fato estivessem articulando o progresso como categoria inserida
em uma perspectiva escatológica - no entanto ele procura argumentar que não há nada intrínseco
ao conceito de progresso que obrigue sua inserção nessa perspectiva.
A partir do fato de que fora o cristianismo que impregnou o ocidente com símbolos que
expressam a expectativa esperançosa do futuro (LÖWITH, 1949, p. 73), poderíamos
argumentar que a articulação simbólica da experiência da aceleração e da ideia do progresso
(ou qualquer outra experiência temporal voltada à expectativa do futuro) seria inconcebível sem
a tradição judaico-cristã anterior. Blumenberg responderia (BLUMENBERG, 1985, p. 30) que
não basta dizer que ‘A’ seria impensável sem ‘B’ para concluir que ‘A’ é uma versão
secularizada de ‘B’: isso só significa que a tradição anterior prestou auxílio simbólico-
conceitual para uma determinada formulação posterior. Para Blumenberg é perfeitamente
possível articular uma ideia ‘moderada’ de progresso que seja autenticamente moderna e
desemaranhada das implicações salvacionistas que decorrem de sua inserção em uma forma
simbólica apocalíptica. Com isso Blumenberg traça a distinção entre o conteúdo semântico de
um conceito e a função que o conceito exerce quando inserido em um determinado contexto
simbólico.
Koselleck parece lançar mão da mesma distinção em sua avaliação das aplicabilidades
do conceito de secularização. De acordo com Koselleck, a experiência da aceleração introduz
uma experiência temporal que se torna autonomamente articulável na era moderna,
independente da experiência implícita no simbolismo escatológico(KOSELLECK, 2014, p.
182-6). A aceleração é sentida quando eventos de ordem política, técnica ou econômica que
estão associados a uma ordem sequencial recorrente passa a proceder em intervalos cada vez
menores. Isso se dá porque o tempo não é experienciado pelo homem somente através dos
ponteiros do relógio - ele é percebido na interrelação de eventos concretos articulados
diacrônicamente(KOSELLECK, 2014, p. 142-6), portanto quando o intervalo entre eventos
esperados diminui, perceberemos o tempo transcorrer de maneira acelerada.
Sem dúvida podemos dizer que durante a era moderna diversos fenômenos relacionados
à ação humana se prestam a tal modo de simbolização temporal, gerando expressões da
aceleração sentida no âmbito político, social e econômico. Daí que na aceleração, como diz
Koselleck, o conteúdo da experiência é específico à era moderna e estritamente temporal. A
articulação simbólica da experiência da aceleração só adquire um jaez salvacionista quanto esse
conteúdo é transposto para um estrato de significação supra-temporal. Essas tentativas ocorriam
devido ao fato de que os instrumentos conceituais e metafóricos disponíveis para expressar a
experiência da aceleração tinham ainda grande parte de suas conotações implicadas àquelas que
tentavam expressar uma outra experiência temporal - a da abreviação sentida pela expectativa
apocalíptica do fim dos tempos - cuja longa história deixara marcas profundas no imaginário
cultural do ocidente. A justificativa parcial que Koselleck vê em falar da experiência moderna
do tempo como secularização estaria, portanto, nos casos onde a forma simbólica implicado à
abreviação do tempo se presta a usos metafóricos para tratar de eventos que estariam apenas
acelerando no tempo (KOSELLECK, 2014, p. 177).
Aqui Koselleck parece convergir com Löwith na afirmativa de que o único canal através
do qual se pode abarcar o todo da História é uma forma simbólica escatológica. Essa
necessidade pode se explicar com o pressuposto metodológico afirmado por Koselleck de que
toda história que se pretende uma unidade requer um ‘mínimo de transcendência’ para ser
contada. Nas palavras do historiador, “todas as unidades de experiência precisam de um
mínimo de transcendência: sem ela não haveria uma explicação última - por mais
provisória que esta possa ser - e nenhuma experiência poderia ser convertida em
ciência”(KOSELLECK, 2014, p. 25). Essa ‘transcendência’ não precisa necessariamente se
referir a um além atemporal. Qualquer unidade de experiência na história pode ser
transcendidas pelo próprio tempo, dessa forma adquirindo sentindo e formando as histórias
particulares, com início, meio e fim, que os homens podem contar uns aos outros. Para se
atribuir sentido à unidade de experiência da História como um todo, no entanto, nada menos se
pode exigir do que uma transcendência atemporal que evoque o Começo e o Fim dos Tempos.
Isso significa que qualquer elemento temporal lançado em um contexto que procure se referir
ao telos da ‘história em si’ está sujeito a adquirir sentido atemporal.
Daí podemos dizer que, formalmente, a distinção entre forma e conteúdo é relativamente
simples de se fazer, mas mesmo que o conteúdo semântico não procure indicar o além
transcendente em sua conceitualização originária, ele ainda está sujeito a promessas
salvacionistas quando a experiência aludida pela forma simbólica que o contém evoca a vida
do espirito, isso é, a relação do temporal com o atemporal, a busca do homem por sua posição
no Ser. Daí que Koselleck, apesar de opera a distinção entre conteúdos temporais e formas
simbólicas atemporais (KOSELLECK, 2014, p. 162-3), parece reconhecer no entanto que trata-
se de uma distinção conceitual e não uma separação que se pode fazer em sentido absoluto na
linguagem. A interação hermenêutica entre forma e conteúdo que ocorre no ato da fala e da
interpretação (atos sem os quais não existe linguagem alguma) não pode nos escapar aqui, nesse
caso fazendo com que a fronteira entre esse mundo e o outro se torne um pouco confusa na
linguagem concreta que observamos na linguagem política - fato que faz com que Koselleck
admita que o ‘fundamento religioso’ transparece em muitas articulações simbólicas da
aceleração moderna, mesmo que essa experiência seja, em princípio, estritamente
temporal(KOSELLECK, 2014, p. 178).
A tarefa de definir o caráter eminentemente religioso das articulações simbólico-
políticas da modernidade gerou uma volumosa literatura que inclui inúmeros ensaios em torno
do tema das ersatzreligionen. Algumas das problemáticas que circundam a questão podem ser
abordadas agora para o nosso proveito. Tomemos como exemplo um caso comum: Costuma-
se acusar o Manifesto Comunista de lançar mão de fervor evangelista, de expectativas
apocalípticas, e de uma linguagem ‘cripto-religiosa’. Um texto tão difundido quanto o
Manifesto naturalmente produzirá diversas leituras - e que algumas dessas leituras tenham
ocasionado um fanatismo quase-religioso não há dúvida. Mas não há dúvida também de que
muitos homens, trabalhadores e líderes sindicais esperavam nada mais do que a melhoria de
suas condições materiais e nunca aspiraram qualquer dose de realização espiritual ou religiosa
ao se juntarem ao partido comunista - para não falar das ambições menos nobres de notórios
oportunistas, psicopatas e genocidas que se destacaram na história do partido.
Esse dado nos indica que uma linguagem ou forma escatológica com conteúdos
temporais de fato não irá necessariamente evocar a vida do espírito no nível da consciência.
Que exista um número significativo de comunistas cristãos (e até mesmo de nazistas não-
arianos) nos leva a somente uma conclusão possível: a vida é muito mais tolerante à contradição
do que a linguagem formal. A maneira com a qual um homem se insere na ‘grande narrativa’
oferecida por qualquer mitologia evidentemente não depende somente da linguagem - ela
depende também do homem, do sujeito que interpreta e vive na sua própria hermenêutica
pessoal e existencial - e essa hermenêutica só irá operar (ao menos conscientemente) nos
estratos de significação aos quais o homem estiver disposto a reportar sua experiência.
Ao falar então da continuidade substancial de ideias na história, sejam de conteúdo
intelectual ou espiritual, podemos concluir a partir daqui que, se há algum grau mensurável de
continuidade, ela necessariamente será uma continuidade potencial. Se mesmo no caso das
grandes religiões o conteúdo espiritual dos símbolos pode se enrijecer e se tornar opacos às
experiências a que se referiam originalmente,2 tanto mais isso é possível em formulações
ideológicas o cerne espiritual da formulação é ocultada sob camadas de terminologia
cientificista que se prestam facilmente a estratos de significação materiais quando o leitor não
está particularmente interessado em penetrar a esfera do espírito.
O exemplo de Comte ilustra bem como essa dinâmica de potencialidade pode se
desenrolar na história das ideias, gerando bifurcações como a que se observa na própria história
do positivismo. A obra de Comte, como coloca Voegelin, é normalmente dividida em duas
fases. O ‘primeiro’ Comte estabelece princípios teóricos que fundam a ciência positivista e
conquista um séquito considerável de intelectuais seculares ao redor do mundo. O ‘segundo’
Comte se torna fundador e sumo-sacerdote de uma nova religião da humanidade, uma mudança
de ênfase que fez com que muitos seguidores do primeiro Comte até mesmo acusassem a
influência de distúrbios mentais. Voegelin argumenta, no entanto, que não há cisão substancial
entre a primeira e segunda fase e que a intenção dos primeiros trabalhos sempre foi a de
substanciar o messianismo do pouvoir spirituel que seria colocado mais explicitamente na
segunda fase.
A obra inteira de Comte, de acordo com Voegelin, teria seguido a trilha de uma intuição
espiritual original, havendo somente uma mudança de acento mas não de substância entre as
duas fases. Essa trilha, no entanto, não foi seguida por todos os positivistas. Aqueles que não
tinham interesse ou sensibilidade para perceber a lógica interna do movimento que levou Comte
do positivismo intelectual ao positivismo religioso estacionaram na primeira fase sem ver
necessidade de levar a posição até suas conclusões últimas no reino do espírito. Voegelin inclui
na sua análise que o ponto decisivo em relação a esses homens é que eles “estão dispostos a
aceitar o Positivismo contanto que seja apenas uma atitude intelectual irresponsável, mas não o
reconhecem mais quando ele os obriga a praticar seus princípios na vida diária”(VOEGELIN,
1975, p. 145).
Apesar de todas as críticas que desfere a Comte, percebe-se em Voegelin um desapreço
notável também pela atitude do positivista liberal moderado. Isso é explicitado pela analogia
que ele traça entre essa atitude e a conivência indireta da população alemã com os horrores do
Nazismo. A atitude de aderir a um movimento intelectual ao mesmo tempo em que se procura
2 Para um estudo sobre a perda de conteúdo experiencial em símbolos religiosos ao longo da história
ver VOEGELIN, Eric. Immortality: Experience and Symbol. In: The collected works of Eric Voegelin, volume 12: published essays 1966-1985. Louisiana State University Press, 1990.
manter uma distância sensata das consequências últimas de seus princípios teria sido, de acordo
com Voegelin, precursora da atitude de muitos “bons alemães que se embeveciam
emocionalmente com os discursos do salvador somente na medida em que seu estupor
intelectual não os obrigava a fazer nada”(VOEGELIN, 1975, p. 145).
Seja como for, a leitura de Voegelin sugere que, desde a primeira fase do positivismo
de Comte, a linguagem (enquanto forma simbólica) se prestava a estratos de significação que
os positivistas de viés liberal simplesmente não estavam dispostos a explorar. Daí que, em um
ambiente onde a tradição espiritual parece se esfacelar, as modernas filosofias da história podem
servir tanto como orientação existencial para o homem que busca nelas sua posição perante o
Ser quanto para aqueles que delas só extrairão ideias ‘moderadas’ de progresso, aplicáveis a
domínios particulares da vida secular.
Apesar de serem costumeiramente referidas como filosofias ‘progressistas’ da história,
há nessas formulações um inegável elemento de conservadorismo que também interessa ao
debate sobre a secularização histórico-filosófica. Esse elemento decorre de uma necessidade
interna da formulação progressista: não se pode ser inteiramente progressista quando se
pretende que o páthos emancipatório do progresso se preserve no futuro. Essa preservação exige
o estabelecimento não somente de princípios que norteiem o progresso mas de provisões
capazes de conservar esses princípios para o futuro progresso da humanidade. Se a humanidade
só será inteiramente livre quando puder seguir conscientemente o caminho da emancipação, ela
só pode fazer isso na medida em que souber identificar aquilo que caracteriza o progresso
emancipatório no passado, futuro e presente. Para Löwith, tanto Hegel quanto Comte podem
ser descritos como ‘pós-revolucionários’, isso é, “inspirados pelo impacto emancipador da
Revolução Francesa e, ao mesmo tempo, procurando reintroduzir um elemento de estabilidade
à dinâmica revolucionária da tendência progressista moderna” (LÖWITH, 1949, p. 68).
Koselleck, enquanto historiador, não parece particularmente interessado em preservar
um páthos do progresso. Não obstante, um elemento de conservadorismo parecido com o que
descrevemos acima se mostra nas preocupações epistemológico que ele exibe em sua
metodologia. Nele encontramos frequentemente a advertência de que a aceleração desenfreada
da modernidade estaria destruindo sua inteligibilidade (KOSELLECK, 2014, p. 186-7). Isso
porque a percepção de estruturas duradouras que atravessam os estratos do desenrolar histórico
é aquilo que estabelece as condições mínimas de inteligibilidade da história, portanto a
crescente ‘descartabilidade’ das estruturas usadas acaba por suprimir nosso horizonte de
inteligibilidade. A crescente flexibilidade de critérios para se estabelecer essas estruturas pode
ser vista como um dos fatores que faz com que, na era moderna, mudanças estruturais se tornem
eventos, pois qualquer evento pode cumprir os critérios para estabelecer uma ordem estrutural
via sua expansão metonímica. Daí que a história da revolução pode vir a se tornar a Revolução
enquanto História.
Ao avaliar a forma como os Discours de D’Alembert pretendiam estabelecer os
princípios e critérios de seleção para os artigos da Encyclopedie, Voegelin empreende um
estudo de como o estabelecimento categórico de princípios epistemológicos ocorre em uma
dimensão próxima às tentativas escatológicas de colocar um fim na História. Isso porque
justificar o estabelecimento desses princípios em um contexto histórico-filosófico exige que
D’Alembert presuma que o valor da sua situação histórica é de algum modo superior a todas as
outras, e que, sendo assim, o critério de seleção estabelecido poderá se manter constante ao
longo da história. Voegelin enxerga esse procedimento como característico dentro daquilo que
ele designa como o processo de secularização tal como se manifesta no contexto da filosofia da
história.3 “Quando a ideia de uma realidade criativa transcendente” é descartada como possível
fonte de ordem, “a ideia do presente autorizado[authoritative present] toma o seu
lugar”(VOEGELIN, 1975, p. 77). Isso torna necessário que o presente histórico (ou o futuro
iminente, em alguns casos) adquira uma revestimento doutrinal que o autorize a falar em
princípios histórico-filosóficos com base em sua qualidade específica. A realidade imanente
passa a se atribuir o ‘mínimo de transcendência’ requerido para encapsular o todo da História
no momento em que o philosophe estabelece seu critério de progresso e conhecimento. Só assim
a Encyclopedie pode se tornar um ‘trampolim para o futuro’.
Um ponto que se costuma levantar nessa discussão é o grau de flexibilidade que o
princípio intramundano do progresso pode acomodar em seu desvelamento histórico. Fórmulas
histórico-filosóficas da modernidade incluem aquelas que apontam e aquelas que não apontam
para um estágio final e absoluto da história que serviria de guia para o progresso do presente.
As primeiras podemos chamar de revolucionárias, as últimas de progressistas. Nas progressistas
se procuraria então descrever o progresso como um movimento em assíntota, aproximando mas
3 Aqui a propriedade disputada (se retornarmos ao termos jurídicos) não é nada menos que o sentido
da história. Se ela antes se encontrava nas mãos de uma fonte transcendente de significado (como na
filosofia da história agostiniana), no Iluminismo ela passaria a ser atribuída a elementos extraídos da
corrente intramundana de acontecimentos humanos (VOEGELIN, 2014, p. 48).
jamais alcançando o final do movimento. Podemos nos perguntar então se nessa formulação
não teríamos escapado da forma simbólica escatológica na medida em que o vindouro reino dos
céus não estaria mais imanentizado na história.
Aqui se torna útil a distinção que Voegelin faz entre o elemento axiológico e o
teleológico da forma escatológica cristã (VOEGELIN, 1987, p. 120). O elemento axiológico se
refere à visão beatífica, o estado de perfeição absoluta que o progressismo afirma não ter como
meta dentro da história. O elemento teleológico, por sua vez, se refere ao movimento em direção
à meta, o avanço do peregrino, a santificação da vida pela imitatio dei. Na forma cristã esses
elementos estão intrinsecamente unidos pela dinâmica movimento-direção-meta. Na filosofia
progressista da história, se busca manter um movimento e uma direção presumindo ter
eliminado a necessidade de uma meta - uma teleologia sem axiologia. Nesses casos
o objetivo não precisa ser esclarecido porque os pensadores progressistas, homens como Diderot e
D’Alembert, presumem a seleção de fatores desejáveis como padrão e interpretam o progresso como
aumento qualitativo e quantitativo do bem presente - o ‘maior e melhor’ do slogan simplificador. Essa é
uma atitude conservadora, a qual se pode tornar reacionária a menos que o padrão original seja ajustado
à situação histórica em fluxo” (VOEGELIN, 1987, p. 93).
Koselleck também não parece muito convencido da coerência dessa fórmula
progressista ao dizer que “mesmo quando o futuro delimitado pela escatologia ou pelo
apocalipse era reinterpretado e visto como aberto, sempre restava um excesso de expectativas
cristãs nas esperanças dissimuladas cientificamente”(KOSELLECK, 2014, p.177). Isso porque
qualquer teleologia que pretenda preservar um páthos emancipatório em contexto histórico-
filosófico exige um mínimo axiológico. Mesmo que o padrão original admita ajustes, resta
sempre a questão dos critérios a serem utilizados nos ajustes. Na recusa de reconhecer o seu
mínimo de determinante axiológico, o progressismo periga se tornar reacionário ou então de
lançar a história nos trilhos do evolucionismo relativista. Em seu Crítica e Crise, Kosseleck
parece argumentar que algo da irresponsabilidade que subjaz essa recusa está de certa forma
prefigurada na estratégia de ocultamento político operada pela filosofia da história iluminista
em suas próprias origens.
No seu destrinchamento do contexto sociopolítico de onde surge a filosofia da história
iluminista, Koselleck nos proporciona um vislumbre esclarecedor da concepção que essa
filosofia tem do ‘homem’ que é seu sujeito e agente. Trata-se, para Koselleck, de um conceito
moldado pela consciência histórico-filosófica burguesa que se forma em oposição ao estado
absolutista. Com a separação da moral e da política promovida pela fundação do estado
moderno, gera-se uma sociedade burguesa que passa a empreender um assalto indireto ao estado
na medida em que é capaz de invocar uma moral absoluta para falar em seu nome. “As sentenças
de foro interior moral reconhecem na realidade vigente apenas um ser imoral, cuja condenação
era exigida, enquanto os próprios juízes morais não são capazes de executar sua
sentença”(KOSELLECK, 2015, p. 159-61). Para possibilitar a tomada de poder do homem
iluminado, a solução foi fazer com que a sentença fosse executada pela própria História. Para
Koselleck, a filosofia da história é formulada de maneira a ocultar essa tomada de poder
transformando o imperativo moral que o iluminista reivindicava para si em imperativo
teleológico da história. Oculta-se a responsabilidade política do homem conferindo a ela um
revestimento histórico-filosófico autojustificador. Koselleck localiza em Abbé Raynal a nítida
passagem “da jurisdição moral para a garantia histórico-filosófica” (KOSELLECK, 2015, p.
152).
Independente disso ter sido uma estratégia consciente ou não, é inegável que as
concepções empregadas nessa formulação tomaram de assalto o imaginário político do
ocidente. A linguagem que germina do contexto histórico-filosófico iluminista tornou-se
onipresente e consolidou alguns dos inescapáveis paradigmas de legitimação da nossa era
moderna. Porém, admiráveis o quanto são as realizações conquistadas sob a égide desses
paradigmas - da democracia, da liberdade e da paz - não podemos deixar de notar, assim como
Koselleck nota, um altíssimo grau de anonimato que circunda esses conceitos quando são
tomados como agências decisórias (KOSELLECK, 2015, p. 129). O crescente grau de abstração
requerido para associar tais princípios a fenômenos sociopolíticos concretos os transforma em
palavras de ordem que se prestam à aglutinação de movimentos políticos e à sedimentação de
estruturas institucionais de naturezas diversas e, por vezes, contraditórias entre si. O processo
desencadeado por tal dinâmica seria de dois gumes: por um lado garante a expansão das
liberdades modernas e por outro amplia o campo de conflito potencial dentro da sociedade. Esse
conflito se dá na medida em que mais e mais grupos reivindicam, por um lado, uma autonomia
normativa em relação ao corpo político e, por outro, o poder de influir sobre esse mesmo corpo
político (KOSELLECK, 2015, p. 213). Além do potencial desestabilizador, poderíamos
também colocar em pauta a possibilidade da apropriação indevida desses princípios por
qualquer movimento que se coloque a falar em nome da democracia, da liberdade e da paz - um
perigo para o qual a hipocrisia preponderante da política contemporânea não falha em prover
advertências.
Vislumbramos assim a natureza problemática do ‘homem’ iluminista quando inserido
em uma formulação histórico-filosófica. A noção de responsabilidade é diluída na garantia
oferecida pela História, tornando-a juíza final das ações humanas na medida em que confere
anonimato moral às forças que a impulsionam. A emancipação do homem, entendida como
categoria histórico-filosófica, se torna assim tão ou mais problemática quanto o próprio
conceito de homem do qual emerge. Para explicitar essa problematicidade, começaremos com
a distinção que se traça nas formulações histórico-filosóficas - sejam imanentes ou
transcendentes - entre aquilo que está sob controle do homem e aquilo que não está. Na filosofia
da história imanentista aquilo que compõe o coeficiente de incontrolabilidade na história passa
a ser visto não mais como mistérios da providência divina, mas como obra da natureza ou então
efeitos involuntários da ‘astúcia da razão’. Tanto um quanto o outro fator está sujeito a se tornar
controlável pelo homem na medida em que a história humana progride: os elementos da
natureza pelo avanço das ciências, a astúcia da razão pela crescente conscientização da
população mundial - essa conscientização dará à humanidade a escolha de seguir
voluntariamente os ditames da razão antes ocultos nos processos históricos (LÖWITH, 1949, p.
60-103).
Tal formulação não admite outro telos se não a maximização do domínio controlável da
história e a minimização dos domínios incontroláveis, todo o tempo aceitando a premissa de
que o ‘homem’ é quem adquire e exerce controle sobre o processo. No contexto de uma filosofia
da história intramundana, o conceito de emancipação é necessariamente abstraído da ação
humana na história - ação que é simultaneamente entendida como progresso da história em si.
Não havendo outra fonte possível para se extrair a emancipação do homem que não a ação do
próprio homem, a ideia do controle absoluto se torna paradoxalmente compatível com a da
emancipação absoluta.
A eliminação da imprevisibilidade se torna o axioma da modernidade também na
medida em que a ciência moderna equipara a inteligibilidade científica com o controle do
homem sobre a natureza - uma equiparação que não deixa de ter sua influência nas ciências
sociais. Pode-se argumentar que uma filosofia da história teleológica porém não-axiomática
nunca pretenderia adquirir a previsibilidade e o controle total sobre o desenvolvimento da
história. Pode-se argumentar também que a previsibilidade e controle absoluto nem mesmo é
possível. Mas quem poderá negar a influência do telos do controle na história moderna?4 C.S.
Lewis certa vez escreveu que o que chamamos o poder do Homem sobre a Natureza revelou
ser na verdade um poder exercido por alguns homens sobre outros, usando a Natureza como
instrumento. Sob o ponto de vista das tentativas de dominar intelectualmente a História em uma
forma histórico-filosófica imanente, podemos nos perguntar se aquilo que chamamos de
controle do Homem sobre a História não se revela um controle exercido por instituições
anônimas sobre todos os homens, usando a História como justificativa.
Como já esperávamos, nossa investigação se desviou do tema da aplicabilidade do
conceito de secularização e foi obrigada a enfrentar a substância problemática dos fenômenos
mesmos que o conceito, em sua aplicabilidade histórico-filosófica, procura explorar - mesmo
que por inúmeras ângulos possamos julgar que ‘secularização’ não é um termo adequado para
adereçá-los. Terminamos portanto com vários pontos em aberto, pois que esses fenômenos
apontam para diversos estratos cujas interrelações e implicações não podemos seguir à
exaustão. Seja como for, podemos tentar algo à guisa de uma conclusão com base naquilo que
nos propomos definir no nosso ponto de partida.
1) Quanto às propriedades intelectuais e espirituais que seriam secularizadas na
filosofia da história moderna, mostramos que determinar sua estabilidade substancial é matéria
ambígua. A distinção formal entre ‘conteúdos’ que se referem a esse mundo inseridos em uma
‘forma’ que se refere a outro mundo só nos leva à metade do caminho na medida em que os
conteúdos são inevitavelmente influenciados pela forma na qual são expressos e vice-versa.
Isso faz com que mesmo uma experiência autenticamente moderna e estritamente imanente
possa se cobrir de aura religiosa-salvacionista quando transposta ao estrato de significação
histórico-filosófico, que necessariamente deve transcender a História sob um ponto de vista
atemporal. Podemos concluir então que se há uma ‘propriedade’ estável transferida na
secularização histórico-filosófica ela reside em maior parte na forma do que no conteúdo e que,
em parte por esse motivo, a continuidade permanecerá sempre potencial e sujeita a ofuscações
e evocações erráticas.
4 Esse tema foi extensivamente explorado também por Jacques Ellul e Bertrand de Jouvenel, cujo
tratamento específico não teremos espaço de expor aqui. Ver ELLUL, Jacques. The Technological
Society. Toronto: Random House Inc., 1964 e JOUVENEL, Bertrand de. On Power. Indianapolis: Liberty Fund Inc., 1976.
2) Sobre os agentes da transferência, tivemos ocasião de mostrar alguns problemas que
se desencadeiam ao se conferir à Humanidade o papel de agente autoemancipador em um
contexto histórico-filosófico, mesmo que sob a premisse de desatrelar seu destino da
determinação arbitrária de um ser transcendente. Esses problemas se dão não somente pelas
complicações intrínsecas à forma simbólica de uma filosofia da história imanente, mas também
por causa do caráter viciado do conceito de ‘humanidade’ que é herdado através do Iluminismo.
A legitimidade de tal agência se torna igualmente ambígua na medida em que a substância desse
agente se dissolve tão facilmente no anonimato moral do institucionalismo moderno.
3) Estando os elementos anteriores da equação confusos como estão, pouco podemos
dizer quanto à legitimidade do processo. Podemos no entanto observar que, apesar do tom
condenatório que muitas das críticas mobilizadas aqui podem transmitir, não procuramos
através disso acusar uma suposta ‘ilegitimidade’ da era moderna como um todo (tampouco
pretendemos que os autores tratados aqui façam algo do tipo). A crítica que recaiu sobre
conceitos como o ‘progresso’, a ‘emancipação’ e a ‘humanidade’ também de modo algum
significa uma reprovação de todos os efeitos que a autoridade deles possam ter na vida social.
Procuramos apenas expor a problematicidade teórica envolvida na transposição de conceitos
abstraídos de um contexto imanente e temporal para contextos cujas implicações se dão em um
estrato de significação transcendente e atemporal. É de se esperar que a dinâmica dessa
transposição adquira caráter ambíguo na medida em que a linguagem das ciências históricas e
sociais é irresponsavelmente sequestrada pela propaganda político-partidária. Isso torna uma
análise das consequências que esse processo tem na formação das linguagens políticas da
modernidade ainda mais urgente e evidencia o quanto a relutância em aplicar rigor teórico à
interrelação entre a política, a linguagem, e o espírito pode acarretar efeitos destrutivos tanto na
sociedade quanto na ciência.
BIBLIOGRAFIA
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