sebastião nunes - coleção edição e ofício

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Este volume apresenta a entrevista concedida pelo ex-poeta, editora e escritor de literatura infantil, Sebastião Nunes. Ele lança, de forma categórica, a frase: "Não existe inocente em literatura". E finaliza afirmando que ainda faz sentido ser editor.

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SebastiãoNunes

SebastiãoNunes

Copyright © 2015 by Danielle Oliveira e Darkhom Reis

CoordenaçãoPablo Guimarães de Araújo

Projeto GráficoLetícia Santana

CapaTúlio Oliveira

RevisãoLourdes Nascimento

S443 Sebastião Nunes / organizadores Danielle Oliveira e Darkhom Reis. – Belo Horizonte: Ed. do autor, 2015.

64 p. – (Coleção: Edição e Ofício).

1. Biografia. 2. Editores mineiros. I. Oliveira, Danielle. II. Reis, Darkhom. III. Série.

CDD: 920

Nossos agradecimentos a Ceuzimar Barbosa, Jussara Santana, Luciene Franke, Michel Gannam, Mirian Alves e Sylvia Vartuli, pela colaboração em diferentes etapas da Coleção Edição e Ofício.

Não existe inocente em literatura.

Sebastião Nunes

Os textos da Coleção Edição e Ofício foram produzidos a partir de uma entrevista realizada com cada editor. Editar as respostas dos entrevistados foi algo complexo, pois toda edição se efetua por meio de escolhas, e foi extremamente difícil selecionar os trechos, uma vez que nossa vontade era reproduzir por inteiro as falas repletas de sabedoria desses editores. Ressaltamos que, por mais que as falas tenham sido adequadas ao texto escrito, é impossível apagar por completo todas as marcas da oralidade. Dessa forma, os textos da cole-ção podem, ao primeiro momento, parecer lacunares, o que é próprio da fala em que há constantemente o processo de digressão, de divagação. Por isso, esses textos não obedecem a uma rígida linearidade.

Este volume traz o depoimento* do original Sebastião Nunes, editor que, ainda na década de 1970, já utilizava a forma, tão em voga em nossos dias, de edição por subscrição. Fundador da extinta Dubolso, Tião atualmente é proprietário da editora de livros infantojuvenis Dubolsinho, dirigida por sua filha Tereza (Tetê). Sebastião nos conta um pouco de sua relação conflituosa com a publicidade, como começou a es-crever e editar e porque se considera um ex-poeta, além de outros temas.

* Depoimento concedido aos organizadores em 22/11/2014.

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Pensar na elaboração de uma obra literária requer certa largueza que, às vezes se volta para a extensão do trabalho acumulado, às vezes para a intensidade que ela instaura. Por outra via, a reunião desses dois aspectos aparecem no fazer poético de poucos escritores. Este último é o caso de Sebas-tião Nunes. O nosso escritor não fala muito de sua investida nas artes plásticas, mas já fez e vendeu uma série de quadros à moda do bricoleur. Também se lançou no espaço da anima-ção, para acentuar apenas alguns fazeres de saber comum. Mas Tião é mais conhecido como um escritor de verve afiada e mordaz que não poupa nem mesmo a própria escrita em sua crítica voraz; característica de todo bom satírico: rir de si mesmo para zombar do outro.

Uma de suas marcas mais conhecidas é a maestria com que ele trata a ironia. Oscilando entre a leveza de um humor circunstancial e o sarcasmo desconstruidor de modelos, obje-tos, sujeitos e fazeres, sua escrita vem despertando a ira e a admiração de diferentes gerações de leitores dentro e fora do Brasil. Um bom exemplo pode ser o do fechamento do jornal Ponta de Lança, quando da publicação do poema “As rampas do palácio”, de sua autoria. Raro é o poeta que tem em seu currículo um texto poderoso o bastante para causar tamanho

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estrago nos meios de comunicação de massa. Ainda nesse sentido dos veículos de informação, é preciso também lem-brar a contenda com a Folha de S.Paulo que, por acreditar ser o poeta um plagiador de seu caderno Ilustrada, ameaçou-o com um processo judicial. Todavia, como esperaram uma resposta daquele, sucumbiram em sua ideia reacionária do processo civil, diante dos argumentos, à moda de um Vieira filho de Gaius Valerius Catullus, com que foram impelidos a refletir sobre o ato criativo e a sua liberdade de expressão.

Outro modo de inscrição comum em seus textos é o diálogo com o visual. Seja na poesia, na prosa literária ou mesmo na crônica, Nunes procura colocar em diálogo as lin-guagens verbal e visual. No início, nos anos 1960, seus ins-trumentos eram a letraset, a prancheta, a caneta nanquim, etc. Mais recentemente, o computador e suas múltiplas fun-ções e seus irmãos gadgets têm sido o conjunto de instrumen-tos que contribuem para o trabalho do artista. Como traço comum, verifica-se um percurso histórico que privilegia uma concepção de texto como o exercício semiótico, seja para a produção, seja para a recepção de seus trabalhos. Isso sempre causou espécie àqueles que se debruçaram sobre seus escritos para qualquer fim. Destaque-se desse procedimento criativo que esse modus operandi traz à tona as várias faces da ima-gem e suas respectivas possibilidades de construção de senti-do apresentadas por Tião. Recentemente, um estudioso de sua obra revelou o seu extraordinário caráter imagético ao realizar

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um procedimento de transcriação da linguagem poética de Nunes para a da pintura. Isto deixa clara a preocupação com a categoria imaginária exercitada pelo escritor em suas com-posições.

Neste livro que o leitor ora tem em mãos, verá uma série de histórias sobre o início da carreira do escritor, sua formação, sua alegria e sua decepção com o fazer poético, certa noção de mundo acurada, cirúrgica, e um pensamento perspicaz sobre as relações possíveis e vertiginosas daqueles que se aventuram no universo da escrita e da edição. Enfim, uma vida na qual a memória se faz com a fruição daqueles que se jogam na aventura de existir sem medo do porvir.

Wagner MoreiraDoutor em Literaturas de Língua Portuguesa

e professor do CEFET-MG

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Meu interesse por livros começou aos 9 anos, quando uma professora me deixou de castigo e me obrigou a decla-mar um poema do Alvarenga Peixoto: “Bárbara bela,/Do Nor-te estrela,/Que o meu destino/Sabes guiar”. Fiquei encanta-do com o poema e a partir desse momento comecei a gostar de literatura. Na verdade, eu já gostava de ler influenciado pelo meu pai. Então, com 15 anos, resolvi ser escritor. Bur-rice, não é? Digo isso porque, em um país deste, resolver ser escritor... Comentei há alguns dias que na minha terra havia três alternativas para o sujeito: ser padre, ser médico ou ser engenheiro. A primeira era escolhida porque o seminário era fácil e de graça. Já a medicina era uma opção porque, quando nasci, faltavam médicos na minha cidade. E ser engenheiro era uma profissão na qual o sujeito ganhava bem, além de ter a possibilidade de ir trabalhar fora.

Quanto a minha formação, ela ficou dividida entre Bo-caiúva, onde fiz o primário; Montes Claros, onde cursei o ginásio, que agora são os últimos anos do ensino fundamen-tal; e Belo Horizonte, onde fiz o científico, que equivale hoje ao ensino médio. Eu me mudei para Belo Horizonte com 15 anos, época em que, como mencionei, já queria ser escritor. A minha tia Ignez foi quem me levou para a capital. Ela con-seguiu, por intermédio de um deputado casado com minha

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prima, que eu estudasse de graça no colégio Marconi, porque meu pai não tinha dinheiro. Eu ficava no colégio lendo todo o tempo. Ia para a biblioteca, que era onde hoje é o Centro Cul-tural de Belo Horizonte, lá no cruzamento da rua da Bahia com a Augusto de Lima. Essa biblioteca era muito boa. Eu me lembro de um bibliotecário que trabalhava lá e que se tornou meu amigo. Ele era uma pessoa ótima e me indicava vários livros. Graças a ele, li todos os escritores importantes da lite-ratura brasileira. Isso foi até eu completar 20 anos. Durante esse tempo, como eu não trabalhava, ficava somente por con-ta de ir ao colégio e de ler. De noite, às vezes, eu saía para dar uma volta, sozinho, pois não tinha nenhum amigo, por-que quando passei a estudar à noite, eu era bem mais novo em relação aos meninos da minha turma do colégio. Por isso fiquei esse tempo todo isolado, apenas lendo, basicamente, literatura nacional, pois até os 20 anos eu ainda não havia aprendido nenhuma língua estrangeira. Foi somente quan-do comecei a trabalhar em uma agência de propaganda que aprendi outras línguas. Lá entrei em contato com o diretor de arte, arquiteto de formação, que só lia literatura americana, e também com o diretor de criação, advogado, que lia em espa-nhol e em inglês. Eles me gozavam porque eu lia apenas em português. Nessa época, comecei a estudar com dedicação o inglês, o francês e o espanhol. As duas primeiras línguas eu já havia começado a estudar no científico, porém sem muito empenho. Essas três línguas foram as que estudei e as quais

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passei a ler. Graças a isso, comecei a ler outros livros de lite-ratura. Li a maioria dos grandes escritores estrangeiros, tan-to traduzidos quanto alguns no original. A maioria deles me agrada. Nunca fui uma pessoa preconceituosa, que tivesse es-colhas determinadas. É claro que há uns que considero mais chatos, que inclusive nunca entendi porque são tidos como grandes escritores e são tão valorizados. Por exemplo, sem-pre julguei o Ezra Pound um escritor chato de ler. O livro Os cantos é terrível. Muitas pessoas não o conhecem mais, ele é um daqueles escritores que vão sumindo da história, mesmo já tendo sido considerado um dos maiores poetas do século XX. Mas gosto muito do Proust, do Kafka, do Dostoiévski, etc.

Agora, para citar apenas um dos escritores pouco co-nhecidos no Brasil dos quais gosto muito, me recordo do Mal-colm Lowry, que escreveu o Under the Volcano, o qual já devo ter lido umas três vezes. Esse livro foi traduzido em Portugal e aqui no Brasil. Esse é um grande escritor, mas existem vá-rios outros, o Malcolm Lowry é apenas um deles.

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Tião Nunes no quintal de sua casa

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Aos 20 anos, já havia feito três vestibulares tentando o curso de Medicina e, como eu não estudava, fui reprovado nos três. Eu ficava fazendo de conta que estava estudando, mas apenas lia. Às vezes, eu marcava vinte páginas de Física para ler, e quem disse que eu estudava as páginas que eu ha-via marcado? Lia outros textos, ficava delirando, divagando. Estudo é concentração, e se você não se concentra não adian-ta. Eu não tinha o mínimo interesse naqueles assuntos e só ia fazer Medicina por causa da minha tia, que dizia: “Vai cursar Medicina, menino”. Depois da terceira reprovação no vesti-bular, me lembro até hoje, eu estava deitado lendo um jornal quando vi um anúncio sobre a atual Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) e me interessei. Então fui estudar Publicidade lá.

Na UEMG, havia várias mulheres e apenas dois homens, eu e um pintor chamado Nello Nuno, que era de Ouro Pre-to. Com um ano e meio frequentando o curso, um professor me chamou para trabalhar com ele. Abrindo um parêntese, é importante dizer que nessa época a publicidade ainda era muito machista, apenas homens trabalhavam nessa área. As mulheres trabalhavam, talvez, em cargos de contabilidade, mas não nos cargos de criação. Agora, retomando o momento em que paramos, isto é, quando meu professor me convidou para trabalhar com ele na agência de publicidade: com uma

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semana trabalhando na agência aprendi mais que com um ano e meio de curso. Por isso abandonei o curso. Na publici-dade, conheci muitas pessoas, por exemplo, o Raul Alvarenga Sobrinho1, que se corresponde comigo até hoje. Nessa época, era muito engraçado porque não havia profissional formado em publicidade, ninguém queria ser publicitário. A publici-dade era somente um meio de “ganhar a vida”. Havia apenas uma escola, em Belo Horizonte, que ofertava o curso de Pu-blicidade: a UEMG. Tanto que o fundador da Escola de Co-municação da UFMG era o gerente na agência de publicidade em que eu trabalhava. Mas a verdade é que sempre odiei a publicidade, digo isso o tempo todo. Eu a considero um negó-cio escrotíssimo. Mas dá para ganhar muito dinheiro.

Quando eu trabalhava na agência de publicidade, fun-cionava da seguinte maneira: chegava o tráfego, aquela pes-soa que controlava o trabalho, e perguntava: “Como está a campanha que te pedi?” ou dizia: “Quero uma campanha e está aqui o briefing dela, com quanto tempo acha que con-segue terminá-la?”. Para responder tinha-se que olhar quem era o cliente, se era um cliente estrela, por exemplo, a Coca- Cola. Aí a gente respondia: “Bom, acho que vou precisar de quinze dias”. Então, dos quinze dias, a gente ficava doze sem

1 Sebastião Nunes o descreve como: “estudante aplicado de canto lírico e pintor por temperamento, que ganhava a vida como ‘layoutman’”. Ver em <http://www.otempo.com.br/opini%C3%A3o/sebasti%C3%A3o-nunes/quem-teve-professores-t%C3%A3o-bons-levante-o-dedo-1.220423>.

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fazer nada, só lendo, passeando, porque não havia muito con-trole. Com o trabalho de criação não havia esse negócio de ponto. O sujeito entrava e saía a hora que bem entendia. Cla-ro que entrávamos às 10 horas, saíamos às 12 para almoçar, e voltávamos às 15 ou 16 horas, como dizem que o ministro da Justiça, o José Eduardo Cardozo, faz, não é? Eu li no blog2 do Nassif que ele chega às 11 horas da manhã e às 12h30min sai para almoçar. Aí volta às 16 horas e às 18h30min pega o pa-letó e vai embora. E vai para a noite. O pessoal da esquerda odeia o José Eduardo Cardoso, apesar de ele ser do Partido dos Trabalhadores (PT) e, inclusive, muito ligado à Dilma. Mas porque ele está lá no Ministério ninguém sabe.

Mas retomando o que eu disse sobre a publicidade, ela era apenas para ganhar dinheiro, somente para isso. Quando comecei a trabalhar, eu tinha duas opções: ser publicitário ou ser jornalista. Jornalismo dá muito trabalho, vejo como é a “cozinha” do jornal O Tempo, porque escrevo lá todo do-mingo: é um desespero. Às vezes, ligo e digo: “Ô, Júlio, pos-so falar com você agora ou está muito ocupado?”, porque é desesperadora a rotina deles. Vida de editor e de subeditor é um inferno.

2 <http://jornalggn.com.br/blogs/luisnassif>.

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O motivo pelo qual cursei Direito é muito simples. Eu já trabalhava, era diretor de criação na segunda agência de publicidade em que trabalhei. Essa agência era a filial em Belo Horizonte da segunda maior agência brasileira e uma das maiores do mundo, cuja sede era em São Paulo. Eu não fazia nada na agência, porque como filial a gente só redistri-buía a propaganda nacional, tínhamos alguns clientes locais, mas pouco movimento.

Nessa época, como eu ganhava bem, cuidava de dois irmãos que tinham vindo para Belo Horizonte e queriam es-tudar, mas não tinham trabalho. Minha mãe ficava dizendo na minha cabeça: “Ô, Tião, ou você estuda ou você economi-za”, e mãe quando começa a falar não desiste. Quando minha mãe quis que meu pai derrubasse nossa casa e fizesse outra, mesmo sem ter dinheiro, ele foi obrigado a derrubá-la e a fazer outra no lugar. Depois disso, nunca mais aprumou na vida, mas fez o que ela queria. Bom, aí eu pensei: “Meu Deus do céu, estudar ou trabalhar, economizar ou estudar?”. Eco-nomizar eu sabia que não ia mesmo, porque eu tinha aquela vida de gastador, de solteiro, já que não tinha nada para fazer com o dinheiro. Não gostava de economizar mesmo, nunca tive jeito para guardar dinheiro. Então fiquei pensando qual seria o curso mais fácil para eu poder fazer, depois de ter feito

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um ano e meio de publicidade e abandonado. Pensava que cursos que tinham Matemática, Física e Química não podiam ser. Apesar de que depois passei a gostar dessas matérias, só que nunca aprendi muito bem, principalmente Matemática. Então fui pesquisar os cursos e achei o Direito, que considerei como o mais provável, porque esse curso tinha apenas quatro matérias: Português (li a vida inteira), uma Língua Francesa ou Inglesa (eu lia as duas), Filosofia (que eu também lia fre-quentemente) e Latim (o meu problema era o Latim).

Quando comecei a pensar em prestar o vestibular, fal-tava somente um mês e meio para a prova, mas como tinha que estudar apenas Latim, – ia cair o livrinho Comentários sobre a Guerra da Gália, do Júlio César – então decidi que realmente ia fazer a prova. Eu e um colega passamos um mês e meio decorando esse livro. Fiz a prova, conto que devo ter levado zero na prova oral de Português, porque o professor me pediu para colocar na ordem direta uma estrofe do Castro Alves. Não é que eu não soubesse ou que não pudesse ten-tar, mas estava tão inibido que nem me passou pela cabeça a ideia de tentar fazer, virar aquilo para a ordem direta que é uma coisa facílima. Depois de dois minutos olhando para mim o professor disse: “Ô, pode ir embora, estou satisfeito”, aí pensei: “Pronto, fui reprovado”. Depois fiz a prova de Fi-losofia. O professor era o Lídio Machado Bandeira de Melo, sujeito engraçadíssimo. Ele escreveu o livro Prova matemá-tica da existência de Deus, por orientação do quarto grau, e

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até me deu uma cópia de mimeógrafo, já que não conseguia me vender nada, evidente, porque era matemática. E depois escreveu de forma semelhante ao Comte o Prova da impossi-bilidade da fissão nuclear, um pouco antes da bomba explodir em Hiroshima. Mas tudo ficou na História. Ele era engraçado por causa dessas coisas.

Ah... ele tinha a mesma aula inaugural todos os anos. Então eu estava lá esperando a prova oral e peguei um li-vrinho da coleção francesa Que sais-je? que foi lançada no Brasil como Saber atual, era sobre o Existencialismo. O pro-fessor de filosofia era uma pessoa extremamente reacionária. Então ele passou ao meu lado e viu o que eu estava lendo, como ele era muito curioso, me chamou e disse: “Era o se-nhor que estava lendo aquele livro sobre o Existencialismo?” Eu respondi: “Era”. E ele insistiu: “O que o senhor sabe, em tempo, sobre o Existencialismo?”, e eu “Bom, o Existencialis-mo é...”, “Pode parar. O Existencialismo é uma farsa, é uma mentira, é uma pseudofilosofia” e passou cinco ou dez mi-nutos falando sobre aquilo, falando mal do Existencialismo. E finalizou “Pode ir embora”, e assim eu passei no vestibular de Direito da Católica e da Federal.

Passei os cinco anos da faculdade de Direito sentado na porta ou na biblioteca lendo. Nos três primeiros anos do curso, eu estudava à noite e trabalhava em uma agência de publici-dade. Os que estudavam de manhã viravam desembargadores, ministros, e os que estudavam à noite viravam advogados de

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“porta de cadeia”, porque todos eram funcionários de empresas. Foi também no terceiro ano que descobri a política e nunca mais larguei aquela política ativa, de ficar na porta da facul-dade discutindo o tempo todo sobre política, fazendo passe-ata – na verdade, participei das passeatas desde o primeiro ano em que entrei na faculdade. Aí, depois disso, larguei a agência. Daí para frente eu trabalhava um ano, geralmente, era mandado embora ou pedia demissão e ficava três meses sem fazer nada, só escrevendo.

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Eu gostava de desenhar desde pequeno, desenhava mal, mas desenhava. Também, ainda criança, gostava de escrever e de teatro. Houve uma época em que eu ia para o teatro, escrevia peças, fotografava, era arte-finalista em agência de propaganda e era tipógrafo. Enfim, fazia tudo em termos de arte. Vivia escrevendo, quando estava tentando descobrir o que eu queria fazer na vida. Cheguei a passar uma noite de-senhando na agência em que trabalhava.

Como eu tinha a chave da agência, saía da pensão onde morava e ia até a agência desenhar. Em 1967, me parece, tive um estalo. Eu morava com quatro estudantes, dois de Direito, um de Engenharia e um que ainda estava no pré-vestibular. Certo dia, um deles, depois de ter dormido com uma mu-lher lá na pensão, esqueceu uma garrafa com meio litro de um uísque vagabundíssimo. Eu estava lá pensando na vida, deitado no chão, e bebendo esse uísque e, então, comecei a mexer em um poema que tinha escrito. E foi assim que con-segui fazer pela primeira vez algo que realmente deu certo, algo do qual gostei. Esse poema tinha um desenho ou uma fotografia. Era uma colagem de texto com imagem, não me lembro exatamente. Eu já estava bêbado e aquilo foi o resul-tado de uma “cachaçada”. A partir daquilo não separei mais o desenhar do escrever. Sempre fiz os dois ao mesmo tempo. Tanto que disse a’O Tempo, quando eles me convidaram para

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escrever a coluna no jornal3: “Quero ilustrar também”. Eles responderam: “Tudo bem”. Contaram-me, um dia, que eles inclusive gostam que eu envie o desenho, pois assim a página já vai pronta. Enviando o texto e a ilustração é só colocar os dois no lugar certo.

3 Colaborou no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, entre agosto de 2001 a fevereiro de 2015, com mais de 600 crônicas publicadas – www.otempo.com.br/opiniao. Atualmente publica, também aos domingos, no jornal online GGN, de Luís Nassif, http://jornalggn.com.br/luisnassif.

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A minha carreira foi assim, sempre escrevendo e ten-tando publicar. Eu já tinha 30 anos quando publiquei, por minha conta, meu primeiro livro. Depois usei a edição por subscrição, uma forma que na época estava em desuso e que hoje virou moda de novo. Logo que entrei na publicidade, eu já queria escrever e publicar. Conheço pouquíssimas pessoas que escrevem para não publicar. Um amigo meu tem mais de quarenta livros e publicou apenas um, mas ele é exceção.

Meu sonho era comprar um mimeógrafo para fazer li-vros, o que muito escritor fez. O João Cabral teve uma grá-fica, o Dalton Trevisan fazia os livros dele, praticamente, no quintal da casa onde morava. Na verdade, o Trevisan fazia em uma graficazinha, mas ele acompanhava todo o processo de produção do livro. O Balzac também teve uma editora que, inclusive, faliu. Outra que teve editora foi a Virginia Woolf. Ela editou vários autores importantes como, por exemplo, a Katherine Mansfield, grande contista neozelandesa, que a Virgínia lançou na Inglaterra. Depois as duas andaram às tur-ras, há quem diga que uma tinha ciúme da outra, como era normal no meio literário.

Quando eu ia publicar um livro, sentia um frio na bar-riga, via o livro e me perguntava: “É isso que vou publicar?”. Aí tinha que conferir se o livro estava bom, reescrevia tudo

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de novo, porque não dava para publicar um livro, por exem-plo, o Somos todos assassinos sem reescrevê-lo. Ele foi escrito em um mês, sendo o layout e o texto produzidos ao mesmo tempo. Eu fiz um rafe, um esboço do livro, em papel vegetal, como eu havia aprendido com o diretor de criação no Rio de Janeiro. Coloquei o título, a ideia da ilustração, o rabisco do texto e fiquei um mês produzindo. Claro que ele foi reescrito várias vezes. Levei um ano para montar o livro, as fotos nele são praticamente todas minhas.

A primeira edição desse livro foi produzida em Belo Ho-rizonte, que na época, em termos de gráfica, era bem ruim. Para um livro experimental, então, nem se fala. Eu me lem-bro de que os concretistas davam “murro em ponta de faca” para conseguir produzir os livros e mesmo assim também fa-ziam porcarias, porque o parque gráfico brasileiro era muito primário, muito deficiente, e todas as máquinas imprimiam uma cor de cada vez. Se você queria um trabalho em quatro cores, eles faziam uma cor e lhe perguntavam: “Está bom isso aqui?”. Eu dizia: “Mas como é que vou saber se está bom se são quatro cores, só vou saber quando tiver as quatro cores impressas!”. Mas era preciso aprovar primeiro uma, então, era tudo por intuição.

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Fui para o Rio de Janeiro porque as pessoas comentavam que quem queria ser escritor tinha de ir para o Rio ou para São Paulo, ficar aqui em Belo Horizonte não adiantava nada. De fato ninguém apareceu na literatura brasileira, naquela época, mo-rando em Minas. Apareceu mal e porcamente o Murilo Rubião − com quem tive contato quando fui diagramador do Suplemen-to Literário de Minas Gerais −, o único a fazer sucesso, mas mes-mo assim um sucesso meio subalterno. Para fazer sucesso você tinha de estar no centro dos acontecimentos, por isso a maioria dos meus conhecidos já tinha ido para o Rio ou para São Paulo. Os que queriam trabalhar em jornal iam para São Paulo.

Eu mesmo fui convidado para fundar o Jornal da Tarde, em São Paulo, o jornal mais interessante que apareceu no país junto com o Jornal do Brasil. Um dia recebi um convite para ser editor de Política Internacional da Folha de S.Paulo. Disse-ram-me: “Vem para cá ser o editor de Política Internacional”. Aí respondi: “Meu Deus do céu, eu por acaso entendo alguma coisa de Política Internacional?!”. Mas era um bando de loucos que entravam no jornal, faziam e aconteciam, porque não era preciso ter conhecimentos em Política Internacional, mas sim saber escrever. Depois fui para o Rio, porque tinha de ir para lá, não tinha outro jeito.

Mas ser escritor no Brasil é uma burrice, porque para ser um escritor de sucesso você tem de ser, principalmente,

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um autopropagandista, isso é inevitável. Você não vai falar que um Carlos Drummond não foi publicitário de si mesmo, é evidente que foi. Ele conchavava o tempo todo, dizem que ele ficava pendurado ao telefone fofocando. E com todos é assim, por exemplo, os que baixaram do Norte, o Graciliano Ramos, ele ia fazer sucesso se ficasse naquela biboca? Nunca. Podia escrever o que quisesse. Como sabia disso, foi para o Rio de Janeiro beber cachaça na Cinelândia. Ficava na por-ta da Cinelândia, austero, mas estava lá, bajulando o José Olympio4. Com a Raquel de Queiroz foi a mesma coisa. En-tão não adianta. Para citar outro mineiro, o Cyro dos Anjos, que inclusive é tio-avô da minha mulher e que não considero um escritor tão brilhante. O fato é que o Cyro é muito mais conhecido que todos os outros que ficaram por aqui, como, por exemplo, o Waldemar Versiani dos Anjos, que ninguém sabe quem é. O Waldemar escreveu o Jornal da Serra Verde, um livro ótimo, que considero melhor que os livros do Cyro.

Comecei escrevendo contos. Escrevi nove contos, quan-do eu chegava ao último voltava ao primeiro, até desistir. Um deles saiu no Estadão, sem que eu pedisse favor o conto foi publicado. Contudo, percebi que a minha não era de contista, por isso resolvi ser poeta. E para ser poeta não queria fazer por menos, fui ser poeta experimental. Já que fazer poesia é uma coisa que não serve para nada, fui ser poeta experimen-

4 José Olympio, editor e fundador da Livraria José Olympio Editora.

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tal que serve para menos ainda. Escrevendo textos desse tipo você produz para meia dúzia, pode ter certeza que é para meia dúzia, porque esse tipo de escritor não vai conseguir público.

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Visitei duas vezes a Clarice Lispector. Gostei muito dela, mas ela me pareceu uma pessoa muito insegura. Nas duas vezes em que fui a casa dela, me vi na seguinte situação: eu falava como se fosse eu o escritor e a Clarice fosse uma aprendiz. Então, pensei: “Não posso fazer isso”. Mas ela que-ria ouvir e, por isso, não falava nada, apenas escutava. Ela me chamou até a casa dela por curiosidade e me disse: “Eu senti que tem coisa aí dentro do seu livro, mas não entendi o que é, e eu queria que você viesse aqui para me explicar”.

Eu adorava a Clarice, como a maioria das pessoas. Cor-respondemo-nos por meio de cartas. Depois fui visitá-la pela segunda vez, mas a casa dela estava cheia de artistas de te-levisão, de teatro, pessoas que a paparicavam. Por isso, parei de ir a casa dela.

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A Dubolsinho nasceu da minha falta do que fazer. Em 2000, eu não tinha nada para fazer, tinha filhos para criar e estava sem dinheiro. Então fundei a editora Dublosinho, depois de entrar em contato com algumas pessoas por meio de uma cartinha e solicitar contribuições. Carreguei essa cruz entre 2000 e 2010, lá em casa, no meu escritório. Agora te-mos esse espaço aqui5, mas continuo no meu escritório e ve-nho aqui uma vez por semana, quando venho.

O conselho editorial da Dubolsinho sou eu. Antes eu tinha um conselho editorial, mas percebi que isso não funcio-na. Eu mesmo seleciono os livros, meu critério é a qualidade. Mas para isso é preciso ter feeling. Veja, eu tenho cinquenta anos de leitura. Agora é claro que, às vezes, nós erramos. Comentando sobre isso, me lembrei da seleção para o Pro-grama Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Quem escolhe os livros? Veja bem, há analfabetos ou semianalfabetos esco-lhendo livros. Essas pessoas que selecionam os livros, esses profissionais da educação, a maioria nunca leu um livro de literatura na vida, pois só leem livros de educação. O negócio deles é educação, são educadores, entendem de letramento, mas de literatura eles não entendem. O problema é que são essas as pessoas que escolhem os livros, por isso ocorrem as

5 Sebastião refere-se à sede da editora, em Sabará.

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barbaridades – como dizem os paulistas – e essa seleção aca-ba se tornando uma loteria.

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O contrato inaugural da Dubolsinho especificava os di-reitos dos cotistas: os ilustradores e os autores teriam direito a 10%. Alguns me diziam que eu estava louco, que dessa for-ma iria falir. Mas eu mantive essa porcentagem durante mui-to tempo. Penso que é uma sacanagem pagar mil ou dois mil reais de direitos autorais para os ilustradores e nunca mais pagar um centavo. Nós temos o objetivo de pagar as pesso-as, não queremos que elas trabalhem de graça, não somos uma empresa capitalista. Atualmente, padronizamos todos os contratos do seguinte modo: o autor tem 10% e o ilustrador, geralmente, recebe mil reais como uma espécie de pró-labore e tem direito a 5% dos direitos autorais, tanto na Dubolsinho quanto na Aaatchim!. Então, são 15% de direitos autorais. É muito? Continua sendo muito, mas nossa estrutura é muito pequena, muito enxuta, considero que dá para bancar esses valores. Isso também faz parte do projeto social da editora. Se é pesado para a editora? É. Os outros fazem isso? Não, mas eu acho que a gente tem de fazer.

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Considero-me um ex-poeta porque não tinha mais nada de poesia para escrever. Quando eu escrevi o livro Ode ao pon-to final, percebi que estava voltando à origem, escrevendo o mesmo poema, com a mesma estrutura que tinha escrito o pri-meiro, aí pensei: “Bom, então acabou. Se comecei a escrever agora como escrevia há vinte anos, então acabou”. Por isso nunca mais escrevi poema, parei sem o mínimo drama, sem o mínimo trauma, sem problema nenhum. Porque eu acho que escrever também é um exercício, tem gente que escreve por sentimentalismo, são os piores escritores. E tem também os que escrevem por vocação, com método, disciplina e muita concentração, esses não têm sentimentalismo em relação ao trabalho deles, escrevem porque querem escrever. Então quan-do você abandona é porque já esgotou, como eu esgotei a pro-sa (experimental) também. Agora eu só escrevo crônica e me divirto muito e não tenho a mínima saudade de ser escritor de prosa e poesia.

Hoje escrevo também para crianças. Comecei a escrever literatura infantil a partir de um sonho da minha filha Tetê. Um dia ela sonhou que “ontem em dia passam muitos velhos dirigindo carros nessa rua”. O “ontem em dia” me deu um es-talo, um insight e pensei “Que troço interessante!”. Aí resolvi escrever um conto, uma historinha, O hoje que virou ontem.

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Gostei do que escrevi e, então, escrevi outros, por exemplo, Sa-patolices. Enviei-os para a Angela Lago, que estava na editora RHJ. Após dois dias ela me disse que os livros tinham sido apro-vados. Perguntei à Angela se ela tinha visto os livros, ela respon-deu que sim, me chamando para ir à editora para decidirmos sobre a edição. Mas depois descobri que ela tinha lido metade do O hoje que virou ontem. Ela gostava de mim e eu dela.

Depois disso escrevi vários livros de literatura infantil, pois estava meio sem ter o que fazer. Entre 1996 e 1998, escre-vi mais de vinte livros. Descobri que era muito fácil, escrevia e ilustrava. Enfim, foi assim. Resolvi voltar a escrever e fiz as pazes com a literatura, pensei: “Então dá para escrever coisa boa em literatura infantil. Não precisa ser só uma Ângela Lago ou um José Paulo Paes, pode ser qualquer um com um pouco de habilidade e de criatividade”.

Após terem saído os meus três livros pela RHJ, pensei: “Vou ficar editando livro aqui?”. Não fazia muito sentido e, além disso, o Otávio Ramos tinha enviado o Pequena história de um anão para a RHJ, livro que provavelmente não sairia por outra editora, porque era uma brincadeira com o anão (Ah, não), o que hoje é proibidíssimo. O editor da RHJ me chamou na editora e disse: “Nós estamos com o seu livro aqui e tam-bém com o livro do Otávio, mas está difícil e só dá para editar um. Ou editamos o seu ou o do Otávio”. Eu disse: “Edita o do Otávio, pois ele ainda não tem nenhum livro editado”, aí fize-mos o contrato e ele editou o livro do Otávio.

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Depois resolvi enviar os meus livros para São Paulo, para o José Paulo Paes e para a Nelly Novaes Coelho, que eram duas pessoas que eu conhecia bem, embora apenas por meio de cartas. O José Paulo eu nunca cheguei a conhecer pessoalmente, já a Nelly eu conheci no aniversário de oitenta anos dela, lá em São Paulo. A Nelly não conseguiu nada e o José Paulo Paes conseguiu que uma editora de São Paulo les-se os livros, mas eles me devolveram alegando que não dava para publicar. Aí eu pensei: “Vou fundar a editora, já que eu fundei a Dubolso, vou fundar uma editora infantil para poder editar os livros que eu quiser”. Foi assim que por meio das cartas de subscrição nasceu a Dubolsinho. Consegui quarenta mil reais e deu para fazer os seis livros iniciais da editora.

O slogan da editora é muito simples: Criança não é um idiota pequeno, mas pode ser o projeto de um idiota grande, porque passei a detestar literatura para adulto e não quero mais escrever esse tipo de literatura, pois penso que o adul-to não tem salvação. Apesar de a criança virar adulto – e aí não vai ter salvação –, enquanto é criança ainda tem alguma chance. Então vamos apostar na chance, é o que todo mundo diz, na dúvida vamos apostar na possibilidade.

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Tião Nunes e sua filha Tetê

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A Tetê – Tetê é minha filha Teresa, que está dirigindo a Dubolsinho – foi em um uma palestra, me parece que na Câmara Mineira do Livro, e saiu de lá chorando após a pa-lestrante dizer que, atualmente, existem apenas dois tipos de livro: o clássico e o best-seller, e ela tem razão. Se pensarmos em âmbito nacional, por exemplo, os outros livros que não podem ser classificados dentro desses dois grupos são abso-lutamente desprezados. Ou o livro se tornou um clássico ou é best-seller. O clássico é aquele que ficou na história da litera-tura, mas isso não quer dizer que as pessoas o leem. E os best-sellers, pelo menos a maioria, desaparecem, pois é somente uma questão de momento. O André Schiffrin6 tem dois livros sobre esse assunto.

Entre uma e duas semanas atrás, resolvi ler A mulher de trinta anos, do Balzac, livro que eu ainda não tinha lido. O escritor francês escreveu esse livro entre 1820 e 1830. Pen-sei: “Deixe-me ver como é essa ficção que foi escrita há apro-ximadamente duzentos anos”. Li o livro praticamente todo,

6 André Schiffrin foi, durante trinta anos, editor-chefe da Pantheon Books, em Nova York, da qual se desligou para fundar, em 1990, uma editora sem fins lucrativos, a New Press. É autor de O negócio dos livros: como as grandes corporações decidem o que você lê (2000) e de O dinheiro e as palavras (2011).

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mas o julguei muito chato, há partes intoleráveis, essas eu realmente tive de pular. Um dos motivos para isso é a exage-rada descrição que o livro contém. A descrição com o tempo foi sendo superada na literatura, principalmente depois do cinema, aí a descrição perdeu totalmente o sentido. Às vezes, os autores dão apenas uns toquezinhos, mas somente para situar o leitor. Mas, para não ser injusto com o Balzac, ele tem bons livros. Por exemplo, há um livro dele que é funda-mental, me refiro ao Ilusões perdidas, publicado em 1843. O livro trata do mercado editorial e do jornalismo. No século XIX, o jornalismo estava surgindo e o Balzac explica como era a competição pelo sucesso no jornal, nas editoras e na publicidade. É um livro avassalador, devastador.

Mas, retomando a questão sobre a literatura, eu detes-tava literatura infantil, até hoje considero a maioria dos livros desse segmento muito ruim, porque penso que existe escritor e não escritor e a maioria dos não escritores escreve para criança. Há raros casos de bons escritores na literatura infan-tojuvenil, o melhor deles para mim ainda é a Angela Lago, uma vez que ela ilustra e escreve muito bem. O José Paulo Paes também era ótimo, a poesia dele é de alto nível. O Bar-tolomeu Campos de Queirós também tem textos excelentes, mas não são para criança. Considero que o Bartolomeu nunca escreveu para criança. Já o Pedro Bandeira é engraçadinho, é aquele escritor que nunca vai ser um grande escritor, vai sempre ficar naquele “chove não molha”, escrevendo livros

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divertidos, mas que não passam disso. Entretanto literatura, para mim, não é apenas isso. Ela tem que dar algo a mais. Se for divertido com a qualidade do Millôr Fernandes, tudo bem, pois o que ele escreve tem uma densidade. Não é possível compará-lo ao Pedro Bandeira, não é? Com a maioria dos li-vros é assim, e principalmente com os best-sellers. Quer maior exemplo que o Paulo Coelho? Sabe por que o Paulo Coelho tem castelo, tem “cacique” no mundo inteiro? Simplesmente porque ele é um escritor absolutamente medíocre que copiou o Castaneda7, escritor que inventou um tal de Don Juan.

Li toda a obra do Castaneda, cinco anos após ele ter feito sucesso no Brasil, pois nunca leio um best-seller antes desse período, para esperar passar o “oba-oba” em cima dele. Atualmente não leio best-seller de jeito nenhum. Mas, então, fui ler o Castañeda. Comecei pelo primeiro livro dele e per-cebi que não dizia nada. Com o segundo e o terceiro foi do mesmo modo, por isso pensei: “Mas não pode ser só isso!”. Li o quarto livro dele, e nada, não dizia nada. Enfim, o Castañe-da não diz nada, fica dando volta ao redor do próprio um-bigo. Depois publicaram, no Brasil, um livro dele que tinha feito muito sucesso nos Estados Unidos. Vendeu milhões de exemplares. Esse livro também não diz nada. O Paulo Coelho

7 Escritor peruano que se notabilizou após a publicação, em 1968, de sua dissertação de mestrado intitulada The Teachings of Don Juan – a Yaqui Way of Knowledge, lançada no Brasil como A Erva do Diabo.

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eu nunca li, mas li Os dez pecados de Paulo Coelho, do Eloésio Paulo, que é exatamente um livro para quem não quer ler o Paulo Coelho. Então fiquei conhecendo um pouco sobre esse escritor e a vida dele por meio do livro do Eloésio. Em suma, o Paulo Coelho é um escritor medíocre, que escreve sobre esoterismo, você lê os livros dele e no final não tem consis-tência nenhuma. Não tem nada de concreto no livro, aliás, o que tem é enrolação linguística, conversa “fiada”, em um nível muito baixo para quem quer ser enrolado. Nada melhor para ganhar dinheiro do que enrolar.

E é o que eles fazem. É o que o Castaneda fez, e é o que o Paulo Coelho faz, com uma única vantagem: a cada livro dele o enredo se passa em um lugar do mundo. Graças a isso, ele tem público no mundo inteiro. Mas ele já está saindo de moda, daqui a pouco vai ser pior que a Adelaide Carraro, al-guém já ouviu falar dela? Ela escreveu livros famosíssimos. Segundo o Eloésio Paulo, o Paulo Coelho nunca vai chegar ao nível da Adelaide Carraro, que foi muito melhor escrito-ra que ele, e hoje ninguém sabe mais quem ela foi. Ela fez um grande sucesso na época, mas o problema é que foi um sucesso localizado no Brasil, o que não quer dizer grande coisa. Já o Paulo Coelho foi muito esperto, o primeiro livro dele já se passa na Espanha, não é? E depois vai pelo mun-do afora, pulando de país em país. Então nada melhor que fazer sucesso no mundo, é uma grande jogada de marketing. Agora, não sei dizer se isso foi espontâneo ou se foi planejado,

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sei somente que ele já trabalhou com marketing. Considero-o, pessoalmente, uma pessoa intelectualmente muito ingênua, com uma inteligência que não deve ser das mais brilhantes. Alguém inteligente jamais escreveria o que ele escreve, para escrever aquilo tem de ter um nível mediano para baixo. A cul-pa não é minha, ele ganhou dinheiro e isso é um direito dele.

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Tenho uma birra antiga com a imprensa, houve uma vez, na década de 1970, que escrevi uma carta para a Veja, deto-nando um crítico literário que trabalhava lá. Depois disso en-trei para o índex da revista. Tenho conhecimento disso, porque o diretor de publicidade da Veja, quando esteve em Belo Ho-rizonte, se encontrou com o diretor de comercial da TV Globo e aquele perguntou para este quem era um tal de Sebastião Nunes que estava sendo odiado pelo pessoal da revista. Depois o diretor de comercial me contou essa história.

Por isso, há razões para eles não terem me paparicado, e, na verdade, não tinham motivo, porque eu não estava bajulan-do ninguém. Imprensa é assim, se você bajula consegue, mas se não bajula não adianta. Eu mesmo tenho vários amigos que fizeram sucesso por causa dessa promiscuidade. Se alguém fez sucesso pode ter certeza de que o sujeito teve uma relação pro-míscua com a imprensa. Não existe inocente em literatura. Veja bem, esta é uma frase importante: Não existe inocente em lite-ratura! Eu citei o Sartre quando ele menciona que ninguém é inocente, mas, na verdade, não existe inocente é na literatura, nela a promiscuidade é um fato. O Roberto Drummond é um exemplo. O Oswaldo França foi muito melhor escritor que o Roberto Drummond, cujos livros nunca consegui ler. Até ten-tei, pensava: “Agora vou ler os livros dele”. E pegava o Quando fui morto em Cuba para ler, mas era um texto horroroso. Como

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um escritor daquele ganha um prêmio de literatura no Paraná8? Ele tinha apenas três contos publicados e os mandou para o Paraná. Provavelmente descobriu quem compunha a comissão julgadora e entrou lá no meio, fofocou e ganhou o prêmio.

Para conseguir público, é preciso estar no meio, mas nunca tive vocação para fazer isso. Detesto a ideia de estar em algum lugar porque preciso aparecer para vender “meu peixe”. Não consigo fazer isso, nunca consegui. Tenho vários amigos que já me falaram: “Tião, você tem que aparecer”. Não vou, não é meu temperamento, não quero ser famoso, não sou artista, se quisesse ser famoso ia ser cantor, ator, qualquer coi-sa desse tipo. Em 2013, recusei o convite do Conde9 para ir à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Eu disse a ele que não iria, pois não tinha o mínimo interesse em ir lá, sentar e fazer gracinha para a classe média brasileira ficar rindo e se divertindo. Não fui mesmo.

8 Sebastião Nunes refere-se ao prêmio recebido por Roberto Drummond no Concurso de Contos do Paraná com o livro A morte de D. J. em Paris.

9 Miguel Conde, curador da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2013.

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Tião Nunes

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Minha primeira publicação foi o folhetinho Última carta da América, composto por três poemas. Fiz duzentos exem-plares em uma gráfica na rua Augusto de Lima e dediquei-o ao Murilo Rubião, porque os poemas foram publicados pela pri-meira vez no Suplemento Literário de Minas Gerais. O Murilo publicava todos os textos que a gente enviava; ele aceitava todos os textos da turma dele, mas dos que não pertenciam à turma, ele não aceitava nada. Isso fazia com que ele vivesse às turras no Palácio. Os políticos enviavam poemas para se-rem publicados e o Murilo não aceitava, ele dizia: “Aqui não entra”.

Um dos primeiros livros que editei por subscrição foi da seguinte forma: como eu lidava no Suplemento e tinha acesso ao mailing deles, pedi a lista dos assinantes – parece-me que eram quatrocentas pessoas –, e enviei uma carta para eles. Eram assinantes, mas também pessoas que recebiam cortesia. Enviei a primeira cartinha pedindo dinheiro para o financiamento do livro em 1970. A carta dizia o seguinte: “Estou querendo publi-car o livro tal e não tenho dinheiro para isso. Preciso do apoio de vocês. O custo é x”. Fiz as contas e vi que se cada um con-tribuísse com vinte reais – ou vinte cruzeiros, não me lembro – era possível editar o livro. Parece-me que setenta e cinco res-ponderam e enviaram o dinheiro ou cheque, porque o pes-soal enviava de qualquer jeito, mas enviava. Com o dinheiro

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arrecadado, enviei o livro para a gráfica e depois do livro finalizado escrevi para os contribuintes: “Está aqui o livro, muito obrigado por terem ajudado”.

Os livros que eram pequenininhos eu mesmo fazia e os que eram grandes eu pedia ajuda. Geralmente oscilava em torno de trezentos contribuintes, porque havia os que contri-buíam antes de o livro ficar pronto e os que apenas tinham coragem de contribuir após o livro ter sido finalizado. Então ficou em torno de trezentos intelectuais brasileiros, um núme-ro bom, porque não há mais tantos intelectuais no Brasil, nem mesmo hoje, não há tantos intelectuais ligados à literatura.

Como eu não tinha a mínima chance de publicar meus li-vros em editoras convencionais, resolvi abrir a Dubolso. Certa vez cheguei a levar para o Sérgio Sant’Anna, que era meu ami-go, um dos meus livros. E o Sérgio, depois de entrar em contato com o Ênio Silveira10, disse a ele: “Ô, eu tenho um amigo poe-ta...”, porém o Ênio disse que poesia eles não publicavam, mas apesar disso o Sérgio poderia enviar o tal livro para eles, para darem uma “olhada”. Na verdade, o Ênio publicava somente dois ou três poetas, todos de poesia panfletária. Então peguei minha pasta do Finis Operis, era uma pasta enorme, coloquei debaixo do braço e levei até a editora do Ênio, na rua da Lapa, no Rio de Janeiro. Eu estava morando perto da editora, por isso fui a pé, cheguei lá e entreguei o livro para a filha do Ênio.

10 Ênio Silveira dirigiu por muitos anos a editora Civilização Brasileira.

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Após três dias, eles me devolveram dizendo que não publica-vam aquele tipo de poesia. Eu gozo essa história dizendo que essa foi a recusa mais rápida da qual já ouvi falar.

Outra vez, peguei um exemplar do Somos todos assassi-nos e enviei para o editor da Brasiliense, o Caio Prado Jr. Não me lembro como ele respondeu, apenas sei que ele me enviou vários panfletos de esquerda. Pensei: “Filho da puta, mais es-querdista que eu, você não vai ser nunca”. Logo em seguida enviei uma carta a ele destratando-o, e algum tempo depois ele morreu em um acidente de moto, mas não foi culpa minha. Por causa dessas recusas desisti de tentar publicar por essas editoras e fundei, em 1980, a Dubolso. Foi quando publiquei o Somos todos assassinos. Fundei a editora para publicar esse livro.

Comecei a publicar outros autores porque como havia trabalhado em agências, via a dificuldade dos autores em publicar os próprios livros. Nenhum deles tinha editora e a maioria dos livros era de poesia, poucos eram de prosa. Então eu disse: “Bom, já que tenho tempo – eu trabalhava na agên-cia, mas me sobrava muito tempo livre –, se vocês quiserem eu faço os seus livros. Não cobro nada, vocês pagam apenas a edição”. Como a editora já se chamava Dubolso, cada um bancava o próprio livro. Os primeiros que publiquei foram em 1981, me parece que devem ter sido a Rita Espeschit, a Thais Guimarães ou o Carlinhos Ávila. Ou talvez os três pos-sam ter saído no mesmo ano, não me lembro. Fiz um livro que

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fez sucesso, Amor, do André Sant’Anna11, que inclusive vamos relançar pela Dubolso Digital. Esse foi o primeiro livro dele, no qual ninguém acreditava, nem mesmo o seu pai. Quando li o li-vro, percebi que era muito bom e disse: “Nós vamos publicá-lo”.

O André estava, na época, com 33 anos, e ainda não tinha nenhum livro publicado, era um músico fracassado, porque era um músico experimental. O diabo é isso, nos Estados Unidos, se alguém abrir a boca de maneira original, ganha um milhão de dólares, já aqui no Brasil, o sujeito pode fazer o que quiser que não acontece nada, a não ser que seja apadrinhado por al-guém muito importante. Não me recordo quem foi que me dis-se que se eu tivesse produzido aquele caixãozinho de defunto12 na Europa ou nos Estados Unidos, eu estaria milionário e fa-mosíssimo. Porque isso foi uma jogada de marketing, mas aqui não aconteceu absolutamente nada. Todo mundo desconhe-ceu, fez questão de desconhecer. Entretanto quando eu ainda ia a São Paulo para participar de eventos alguns diziam: “Ah, aquele ali é o Sebastião Nunes”. Isso significa que, de alguma forma, o que fiz bateu, foi um golpe no fígado. Mas eles – os intelectuais e a mídia – simplesmente fizeram questão de des-conhecer o meu trabalho.

11Autor dos livros O paraíso é bem bacana (2006) e Sexo e amizade (2007), entre outros. Além de escritor, é roteirista, publicitário e músico.

12 Episódio da publicação do livro Decálogo da classe média. O livro foi remeti-do pelo correio dentro de um pequeno caixão de defunto a cerca de 120 intelectuais que apoiaram o autor de alguma forma nos livros anteriores.

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Exposição Decálogo da Classe Média, em Ouro Preto

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Umas das coisas que me preocupam é o fato de que não existe uma maneira de o governo saber quais são as editoras picaretas e quais não são? Como dizer para o governo: “Nós somos uma editora séria, temos projetos sociais, estamos fa-zendo um trabalho social, temos doze projetos aqui, no insti-tuto, por exemplo, que precisam de dinheiro para funcionar”. É absurdo nós corrermos o risco de fechar porque algumas editoras estão sempre picaretando. Elas tentam corromper instituições que fazem compras de livro, para “vender o pró-prio peixe” e sacanear os programas de seleção. Por que as pessoas fazem isso? Elas fazem isso com ingenuidade? Não sei. Elas sabem que, fazendo isso, estão ofendendo e prejudi-cando os outros? Uma editora pequena pode fechar por causa da sacanagem que elas estão fazendo, mas o problema é que muitas editoras têm essa postura.

Enfim, deveria haver uma política de compromisso com as editoras sérias, uma política do governo federal para sepa-rar “o joio do trigo”.

Apesar disso, temos compras institucionais de títulos de pequenas editoras que salvaram a Dubolsinho, a editora só existe em função dessas políticas. Vendemos muito para a Prefeitura de Belo Horizonte. Foi o Patrus Ananias quem lançou o programa de compra. Depois o Célio de Castro, o

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Fernando Pimentel e o Marcio Lacerda deram continuidade ao programa. Esse é o maior programa de compra municipal do mundo, não tenho dúvida.

A Dubolsinho, em 2002, vendeu oitenta mil reais para o governo de São Paulo. Vendemos os seis livros que havíamos editado. Foi a partir daí que acreditei que a brincadeira – que era a editora – estava se transformando em um negócio sério. Eu jamais tinha imaginado oitenta mil reais na minha mão. Com esse dinheiro, conseguimos fazer mais quatro mil livros em 2003. Em 2004, escrevi uma carta para a Secreta-ria de Educação de Belo Horizonte dizendo: “Ô, estou ven-do vocês comprarem livros, mas nós nunca tivemos um livro sequer selecionado pela Prefeitura, como se explica isso?”. E eles responderam: “Explica-se pelo fato de vocês nunca terem apresentado livro algum, nós nem sabemos da exis-tência da sua editora. Como é que querem que compremos livros de vocês?”. Depois disso, passei a enviar os livros para eles e realmente foram comprados. Só que, com o passar do tempo, editar livros ficou fácil e, como a verba do gover-no federal e da Prefeitura de Belo Horizonte ficou constan-te, todas as editoras entraram no filão com vários selos. A Companhia das Letras tem doze ou quinze selos. Até briguei com a Mazza13 para ela abrir outro selo, porque precisamos de alternativas para ter pelo menos o dobro de oferta para

13 Refere-se à Maria Mazarello, editora da Mazza Edições.

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as compras. O objetivo é esse, só esse, ter mais opções. O problema é que o programa está a cada dia mais afunila-do. Chegamos a vender quatro títulos para o PNBE no ano passado, quando montamos a sede da Dubolsinho. E, com o outro selo, Aaatchim!, já funcionando pensei o seguinte: se antes vendíamos dois livros, agora vamos vender quatro. Mas tive um choque com o resultado do PNBE, porque no ano passado vendemos apenas um livro da Aaatchim! e ne-nhum da Dubolsinho. O negócio apertou. E não é por causa da qualidade, pois é muito comum reeditarmos os livros – no PNBE, depois de alguns anos, é possível participar com mesmo o livro.

Em 2014, entramos no Pacto Nacional pela Alfabetiza-ção na Idade Certa (PNAIC) e no PNBE com A Revolta das Bruxinhas, da Ivana Versiani, livro muito bom, e com o meu O Rei dos Pássaros, que foi comprado por vários governos. Então, em relação às vendas para o governo, a briga conti-nua essa. Contratei funcionários, pois pensei que fôssemos vender quatro livros, e, se isso realmente tivesse ocorrido as duas editoras funcionariam direitinho. Mas aí vimos que não é bem assim, e isso me deu um baque.

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Sou colunista dominical do jornal O Tempo e nunca fal-tei um domingo. Antes eu escrevia quinzenalmente, alterna-va com o Ferreira Gullar. Mas depois ele ficou encantado pelo canto da sereia da Folha de S.Paulo e foi escrever nesse jornal. Ainda bem. Ele foi um bom poeta, bom... não grande poeta, a mídia é que fez dele um grande poeta. Ele foi um bom poeta aos 24 anos, mas, a partir do Poema sujo, para mim, o que ele escreveu é uma bobagem. Mas se a mídia quer fazer dele um herói, que faça! Ele frequentemente está recebendo prêmios, no entanto, uma coisa é literatura, outra é a mídia.

Em 201414, participei da guerra política lá n’O Tempo, porque esse jornal não é como o Estado de Minas, O Globo, jornais extremamente reacionários. Na verdade, a nossa im-prensa em si é extremamente reacionária, não adianta. En-tretanto O Tempo tem uma postura de meio termo, tanto que o Leonardo Boff, antes de se licenciar para ser candidato, es-crevia para esse jornal. Também escreveu para O Tempo, por vários anos, até ser condenado pelo mensalão, o José Dirceu. Então entrei na guerra política e qual era o problema da elei-ção deste ano? Primeiro, precisávamos desconstruir – palavra que foi muito usada – a Marina Silva, pois me horrorizava a

14 Em 2014, houve eleições no Brasil para os cargos de presidente, governador, senador, deputado federal e deputado estadual.

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ideia de ver os meninozinhos indo para a escola com a Bíblia debaixo do braço. O que ia acontecer, inevitavelmente, não tinha outro jeito. E não porque a Marina fosse “isso ou aquilo”. Tenho um amigo, o Raul Alvarenga Sobrinho, que é batista e tem uma lucidez impressionante. Nós ficávamos discutindo o tempo todo sobre política e ele dizia: “Os evangélicos não são isso que a mídia mostra, não é o neopentecostalismo. Fico hor-rorizado com o que o pessoal está dizendo. Olha esses vídeos aí!”. Ele me enviava uns vídeos de uns evangélicos, uma coisa de altíssimo nível, uns sujeitos extremamente politizados. O problema é que esses não aparecem, porque os reacionários, os “Bolsonaros”, os “Felicianos” não deixam esses evangélicos politizados aparecerem.

Enfim, escrevi três matérias para derrubar a Marina Sil-va. Eu sabia que estava sendo parcial em certos aspectos, até comentei com o Raul: “Não tem outro jeito, tenho que fazer esse trabalho, porque se ela for eleita quem vai mandar são esses ‘caras’, não vai ser os bons e sim os ruins”. Conseguimos derrubá-la. Depois tínhamos que derrubar o Aécio Neves. A Marina tinha sido o perigo maior, porque se o Aécio ganhasse, eu não ia fazer tanto drama. O governo dele apenas iria aca-bar com o país, mas tudo bem, depois de quatro anos ele saía. Mesmo assim escrevi duas matérias contra ele. Com a primei-ra matéria, tive cerca de quatro mil curtidas. O que nunca tinha acontecido n’O Tempo, o máximo de curtidas que o jor-nal já teve foram, aproximadamente, cem. A matéria teve a

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seguinte ilustração: o Fernando Henrique Cardoso passeando junto com o Aécio, na praia do Leblon, e puxando dois tu-caninhos pelo cordãozinho. Essa ilustração rodou o mundo. O segundo desenho O Tempo não teve coragem de publicar, porque era uma sátira mais pesada.

Foi aí que me lembrei de que o jornal não era meu, que eu estava escrevendo em um jornal dos outros, que era a opi-nião pública, e eu não podia agredir as pessoas naquele nível. Mas o segundo texto eles publicaram, e não tocaram em uma linha. Enfim, aceitaram o texto, por sorte nossa, digo nossa, do país e da editora, porque imagina se o Pimenta da Veiga15 e o Aécio ganham as eleições, a Dubolsinho fecharia as portas. Primeiro porque o governo ia passar um ano sem comprar livro e segundo porque eles iam associar, inevitavelmente, a editora a mim. Eu estaria encrencado. Corria um risco grande, um duplo risco: um pessoal e outro nacional. Eu sabia do ris- co que estava correndo, mas tinha de correr. Não tinha outro jeito. Em política, às vezes, não temos alternativa.

15 Candidato ao cargo de governador, em Minas Gerais, durante as eleições de 2014.

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Considero que ser um bom editor é editar bons livros e ter projetos sociais vinculados à editora. Se você não tiver um projeto social, apenas editar livro não tem sentido, porque é preciso criar um universo de leitores. Nós temos um projeto, o Lerês, que abrange toda a rede municipal e do qual partici-pam trinta escolas. Mantivemos o projeto com nosso dinhei-ro durante três anos, dando prêmios para os alunos, para as professoras, para as escolas e para os pais dos alunos. Para todos eles, porque nós descobrimos – descobri isso durante o meu tempo de publicidade – que o problema da educação é o seguinte: o pai, às vezes, chega em casa e diz ao filho: “Ô, me-nino, você está fazendo o quê?”. Se o filho estiver lendo, o pai diz: “Deixa de ser vagabundo, vai trabalhar, vai arrumar algu-ma coisa para fazer no quintal, ficar lendo é besteira”. Porque como ele é analfabeto não quer que o filho estude, nem que ele leia. Não quer que a criança se desenvolva.

Os alunos participam desse projeto escrevendo um texto. Há uma comissão que distribui livros para as crianças e elas têm um tempo determinado para ler esses livros. A partir de um livro escolhido, sorteia-se um tema e os alunos escrevem sobre ele, os três melhores ganham um prêmio. É curioso ver as fotos da premiação, é uma beleza os pais olhando para os meninos e pensando “Meu filho ganhou um prêmio?”. Isto é, com isso os pais não vão poder dizer às crianças para não lerem,

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se eles também têm a possibilidade de ganhar prêmios. Os pro-fessores também são premiados, com o intuito de estimulá-los a incentivar a leitura das crianças.

O outro projeto da editora é um trabalho ambiental que queremos desenvolver com os alunos do ensino médio aqui de Sabará. O projeto está sendo desenvolvido por engenheiros, por especialistas, e por enquanto eles estão trabalhando de graça. Como ainda não temos dinheiro, eles vão cobrar à me-dida que conseguirmos verbas. Nesse projeto os meninos vão coletar resíduos, vão aprender a separar o material e nós va-mos comprar esse material deles. Então, em vez de o sujeito jo-gar fora a geladeira, nós vamos comprá-la. Esses dois projetos são associados à comunidade. Há algum sentido neles? Não sei. O ser humano tem futuro? Não sei. Tudo é sonho, tudo é chute. O que sei é que devemos ter vontade de fazer as coisas.

Você me pergunta se ainda vale a pena criar novas edito-ras? Eu acho que sim, principalmente por dois motivos: o pri-meiro é que a educação ainda é o centro de tudo, não adianta. Sem educação, o que ocorre é isso: os homens ficam no boteco o dia inteiro, e não sai disso. Eles vão ser o quê? Ora, ajudantes de pedreiro. Eles vão ficar satisfeitos com isso? Provavelmente não. Mas aí vão tomar uma cachaça, brigar com a mulher, co-mer mal, adoecer e vão morrer cedo. Há sentido nisso? Não. É melhor ser culto? Não. Quando se é culto o sujeito tem uma consciência muito aguda do desastre que é o ser humano e da falta de sentido da vida. Os escritores de que mais gosto,

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Faulkner, Dostoiévski, Kierkegaard, são escritores que fica-ram o tempo todo se perguntando sobre o sentido da vida. O fato é que somos nós que devemos dar um sentido a ela. E o sentido que nós damos é o de criar e de trabalhar. Trabalhan-do dá-se um sentido para a própria vida e tenta-se dar um sentido para a dos outros, na medida do possível, é claro. É por isso que, para mim, ainda há sentido em trabalhar com edição. Mas não dá para somente editar livros. É necessário ter projetos por trás que sustentem a leitura, isso ajuda a me-lhorar a vida das pessoas. Mas veja, as crianças vão crescer e depois de crescidas o problema é delas.

Este livro foi composto em tipologias Charter BT e Mind Blue e impresso em papel Pólen 90g/m2 (miolo) e papel Cartão 250g/m2 (capa), no inverno de dois mil e quinze.