maria mazarello rodrigues - coleção edição e ofício

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Neste livro, apresentamos o depoimento de Maria Mazarello Rodrigues, conhecida como Mazza, cujo apelido deu origem ao nome de sua editora, Mazza Edições. Ela nos conta, abertamente, a sua história de vida, de coragem e humildade, as diversas situações enfrentadas e a trajetória editorial atrelada à sua vivência cultural e social.

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Maria

MazarelloRodrigues

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Maria

MazarelloRodrigues

Alessandra PereiraGabrielle Freitas

Izabel FonsecaLetícia Santana

(organizadoras)

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Copyright © 2015 by Alessandra Pereira, Gabrielle Freitas, Izabel Fonseca eLetícia Santana.

CoordenaçãoPablo Guimarães de Araújo

Projeto GráficoLetícia Santana

CapaTúlio Oliveira

RevisãoLourdes Nascimento

M332 Maria Mazarello Rodrigues / organizadoras Letícia Santana [et.al.].- Belo Horizonte: Ed. do autor, 2015.

96 p. – (Coleção: Edição e Ofício).Outras organizadoras: Alessandra Pereira, Gabrielle Freitas

e Izabel Fonseca.

1. Biografia. 2. Editores mineiros. I. Gomes, Letícia Santana. II. Pereira, Alessandra. III. Freitas, Gabrielle. IV. Fonseca, Izabel. V. Série.

CDD: 920

Nossos agradecimentos a Ceuzimar Barbosa, Jussara Santana, Luciene Franke, Michel Gannam, Mirian Alves e Sylvia Vartuli, pela colaboração em diferentes etapas da Coleção Edição e Ofício.

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Em um sábado de manhã, uma senhorinha pequena e muito simpática nos atendeu no escritório de sua editora, no bairro Pompeia, para contar a sua história*. No início, ela estava um pouco tímida. Até dizem que ela não gosta muito de falar sobre si.

Maria Mazarello Rodrigues é o seu nome, mas é conhecida como Mazza, apelido que se confunde com o nome da própria editora: Mazza Edições. Mas a confusão não é somente entre o seu apelido e o nome da editora. Acontece que separar a história de Mazza e a de sua empresa é quase impossível. Não é em vão que ela começa o seu depoimento voltando à sua infância.

Com uma fala solta e envolvente, Mazza narrou a infância em Ponte Nova, a adolescência de labuta, os primeiros contatos com o universo editorial, o encontro com o Movimento Negro, a fundação da Mazza Edições. Escutamos maravilhadas. Conforme contava a sua história, Mazza perdia a timidez e fazia com que nos sentíssemos cada vez mais próximas de suas memórias.

Entretanto fazer a transposição do seu depoimento para a linguagem escrita foi uma tarefa exigente. A emoção que as

* Depoimento concedido às organizadoras em 15/11/2014.

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recordações lhe causavam tornava a sua fala emaranhada. Ora abaixava o tom de voz, ora se exaltava. Em alguns momentos, interrompia para criticar ou elogiar alguém sobre quem estava falando e, em outros, incorporava ao seu discurso as falas das personagens que transitaram por sua vida. Queríamos que o leitor que se relaciona com Mazza, cotidianamente, reconhecesse a sua voz e que, mesmo aquele que nunca se encontrou com ela, pudesse perceber os seus encantos.

A um leitor muito acadêmico o nosso discurso pode parecer um pouco apaixonado. E talvez seja mesmo, mas assim como Mazza, não estamos muito preocupados com a frieza do meio intelectual. O leitor poderá perceber que, mesmo tendo conquistado uma formação acadêmica estimável, com o privilégio de ter feito mestrado em editoração na Université de Paris-XIII (Paris-Nord), Mazza mantém uma simplicidade proposital em sua fala que não a confunde com alguns briosos doutores. Mazza prefere se identificar com o povo, e essa preferência a acompanha durante toda a vida.

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A Maria Mazarello Rodrigues

Livros editados são públicos e pessoais.São lenço em que as letras não secame não se dão a todos, íntimos postais.Múltiplos, preferem os bares maisque as gavetas. Únicos, reconhecemquem os costura. Fazê-los não é leve,mas trabalho em que a tecnologiaé artesanato. Religião e númeroscirculam no operário que mergulhadonesse templo nem o percebe oficina.Nem o percebe gráfica de seu sustento.O que faz livros se faz com eles.

Edimilson de Almeida PereiraLugares ares: obra poética 2. Mazza Edições, 2003.

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Em nota introdutória, as organizadoras deste capítulo esclarecem que sua entrevista foi feita e transcrita de maneira que o texto dê condições ao leitor de reconhecer a voz da entrevistada. Reconhecimento no caso do leitor que já conhece a Mazza. No caso de quem ainda não cruzou com a pequena grande dama da editoração, as organizadoras esperam que através de sua fala, os leitores possam perceber os seus encantos.

Comecei concordando com elas, pois a voz da entrevistada é realmente calorosa. Inspira ternura. Mas, em seguida – e rindo à socapa – pensei na “pegadinha” que a leitura deste texto pode suscitar em quem ainda vai conhecer pessoalmente Maria Mazarello Rodrigues. Só quem muito se aproxima da doce e amorosa Mazza com sua voz sussurrante, poderá ouvir também seus estridentes berros. Sua fúria.

Por mais absurdo que possa soar esta contradição, não há nisso nenhum conflito. Ousaria eu até avançar, em desautorizada perspectiva psicanalítica – mas falando de cátedra – que se o interlocutor mais suscetível sentir-se constrangido por não suportar os gritos e sussurros mazzarelísticos, o problema é de quem ouve, e não de quem fala. Pois quem não enfrentar sua fúria, jamais perceberá sua ternura.

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Digo isso em um tom bastante pessoal, após um conflituoso e maravilhoso convívio por mais de quarenta anos com minha mestra, chefe, companheira e, sobretudo, amiga. Como ela mesma revelará em sua entrevista, nossa vida-a-dois teve até casamento-para-francês-ver em Paris, nos anos 1970. A bem da verdade esclareço que o “casamento” de Mazza e Paulo B nunca foi vivido a dois. Mazza é coletiva. Sua convivialidade, suas ações de trabalho a divertimento, suas festas e afetos, tudo nela acontece no plural. Costumo definir o que ela faz e o que circula em torno dela como “Viva o Povo!” Com exclamação.

Suas ações, aliás, são as mais consequentes do mundo, como o leitor se dará conta nesta longa e saborosa entrevista. Em Ponte Nova, na década de 1940, revelou-se a negrinha atrevida que transitava entre a casa, os quintais, as ruas, a escola e a igreja. Igreja, aliás, onde nunca pode coroar Nossa Senhora, mas que, sem ressentimento, jamais deixou de frequentar. Em Belo Horizonte, sobretudo a partir dos anos 1960, encontrou os cenários onde viria se formar negra fera, mostrando suas garras: em sua casa e casa editorial nos bairros Esplanada e Pompéia; nos bairros Funcionários e João Pinheiro tomou fôlego e adquiriu know-how para os muitos trabalhos afazeres posteriores; na região central administrou suas livrarias e casas editoras onde chegou a provocar tremores de terra. Em Paris preparou seu armamento, treinou seus passos e montou estratégias para voltar ao ataque no campo de batalha

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editorial brasileiro. Aqui fincou pé. E daqui não sai. E daqui ninguém a tira.

Ainda em sua introdução, as organizadoras chamam a atenção do leitor para diversas situações enfrentadas por Mazza, que elas não qualificaram. Tento eu defini-las nesta breve revisão, dizendo que as situações que ela enfrentou ao longo de toda sua vida, foram atropelos, percalços e vitórias. Mazza não sabe de sucesso que não seja resultado de luta. Árduas lutas. Invento uma cena, que nada tem de inventada: vejo-a em um campo de batalha, portando um estandarte como gosta de portar buquês de flores, levantando-os à altura dos ombros. Assim a vejo na vanguarda de um exército-de-brancaleone, uma joana d’arc a brandir espadas imaginárias. Com bravura e fé in-que-bran-tá-veis.

Ao final da leitura de seu depoimento dou-me conta de que sua vida parece um roteiro de cinema. Filme parcialmente visto por mim. Qualquer leitor, certamente, reconhecerá cenas deste filme vivido por si próprio ou por alguém próximo ou distante, pessoa de qualquer idade, gênero e raça. Este reconhecimento é ainda maior naqueles filmes protagonizados por pessoas muito sofridas aqui e em todos os lugares.

A narrativa que se segue, narrada por Mazza, parece recontar a vida de cada negra barbaramente capturada na África e transportada ao Brasil, cada negra resistente a todos suplícios infligidos por um mundo de homens e mulheres que se julgavam superiores a ela. Ao ouvir o relato de Mazza nos

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damos conta de que esses soit-disant dominadores, foram, são e serão sempre mosquitos-no-cocô-do-bandido na bela história de sua vida. Foram jogados para escanteio, ficando para lá com seu saco-de-maldades esvaziado, enquanto ela segue desfilando em sua linda e possante carruagem movida a diesel, carregada de tralha de pescaria e de pacotes de livros. Livros, livros e mais livros que mudaram não apenas sua vida, mas a vida de muita, muita gente no mundo. Mundo que Mazza, brava, terna e furiosamente, faz mudar. Para melhor. Longa vida à Mazza!

Paulo Bernardo Vaz

Professor no PPGCom-UFMG

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Não sei se foi por acaso que entrei no ramo editorial. Dizem que o acaso não existe, mas talvez tenha sido. Nasci em Ponte Nova. Pertenço a uma família pobre de operários. Minha mãe, que era lavadeira, ficou viúva com nove filhos para criar, e, como sentiu que não teríamos o amanhã, nos trouxe para Belo Horizonte.

Em Ponte Nova, aconteceu um episódio que sempre conto nas entrevistas. Eu tinha um sonho de estudar com as irmãs salesianas, inclusive, o meu nome é Maria Mazarello por causa de uma santa salesiana. Minha mãe trazia os livros da casa das patroas, colocava em nossas mãos, e nós levávamos para todo lugar. Eu adorava ler, e claro, estudar.

Pela missão de Dom Bosco, eles tinham que receber órfãos, meninos pobres, meninos de rua, e nós fazíamos parte das escolas anexas. Eu gostava muito de estudar, mas por mais inteligente que fôssemos, nós éramos “pretos”, tínhamos que estar atrás. Mas não podemos generalizar, algumas irmãs tinham um cuidado especial conosco. Eu queria estudar na Escola Normal, que formava professores. Então elas tentaram arrumar uma vaga no colégio de nível médio, antigo ginásio. Insisti com minha mãe, que trabalhava de manhã, de tarde e de noite, para ir comigo em uma conversa no colégio. A irmã tinha dito que iria arrumar tudo, uniformes, material; mas sem a ordem da diretora,

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irmã Cira, não teria jeito. E, para isso, minha mãe deveria ir conversar na escola.

Batalhei para que ela pudesse ir, mas parece que minha mãe já tinha uma ideia do que poderia acontecer. Quando chegamos – e essa é uma cena que não sai da minha cabeça, vou morrer com ela –, custamos a ser recebidas pela irmã Cira. Mamãe estava impaciente. Estávamos em pé, já que não tínhamos esse privilégio de sentar. Se fosse filha de fazendeiro, seria outro tratamento. Quando entramos na sala da irmã – que já conhecia minha mãe como a lavadeira Dona Penninha –, ela olhou para minha mãe e para mim e falou: “Dona Penninha, a senhora sabe que a sua menina não vai ter condição de ser professora. Mas podemos fazer uma coisa: ao invés da senhora pedir uma vaga para a escola de professoras, pode matriculá-la na escola doméstica. Porque a senhora sabe, o futuro dela vai ser mesmo de empregada doméstica. Então eu não posso autorizar”.

Existia uma escola, dentro da ação dos salesianos, que formava domésticas. As patroinhas estudavam na Escola Normal. A minha mãe não esperou a irmã terminar de falar. Lembro direitinho que ela me pegou pelo braço e saiu, mas já saiu sem falar nada! E fui apanhando do colégio até em casa. Eram uns quatro quarteirões. Lembro direitinho de minha mãe falando assim: “Sua desocupada! Sua desocupada! Eu vou te dar o que fazer! Tirar do meu trabalho para vir conversar com essa irmã! Não precisava ouvir isso”. Não me esqueço dessa trajetória.

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Primeira Comunhão da Mazza, 1948, Ponte Nova-MG

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Dois dos meus irmãos se mudaram para Belo Horizonte para trabalhar como marceneiros. Aprenderam o ofício quando eram pequenos, com o meu pai, que era carpinteiro. Na época, tínhamos duas opções: ir para Brasília, que estava começando a ser construída, ou vir para Belo Horizonte. Minha mãe achou mais fácil que nós viéssemos para Belo Horizonte. Então os mais velhos se mudaram para a capital e depois nós viemos.

Chegamos a Belo Horizonte quando eu tinha 13 anos e eu já tive que começar a trabalhar. Minha tia, que era lavadeira de um pessoal de Ponte Nova, arrumou para mim um trabalho como secretária de um médico, o Dr. Otávio, o mesmo para quem ela lavava as roupas. Paralelamente, dei um jeito de começar a estudar à noite. Fui para a escola de comércio, porque me formando em Contabilidade teria mais condição de ganhar dinheiro e ajudar em casa. Eu não tinha a menor ideia do que era esse negócio de editora.

Então, estudava de noite e trabalhava durante o dia, mas como eu ganhava pouco trabalhando para o Dr. Otávio, resolvi sair e tentar arrumar um emprego melhor. Nesse tempo, eu tinha treze ou quatorze anos, mas arrumar emprego era complicado. No jornal Estado de Minas tinha aquela seção enorme com procura de funcionários, e uma das condições era ter boa aparência. Eu era exímia datilógrafa, já tinha

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experiência como auxiliar de escritório, formei-me com boas notas, mas tudo isso não era suficiente. A concorrência era entre brancos e negros. Não interessava o seu currículo, o entrevistador olhava e depois escrevia uma carta nos dispensando. No fundo, sabíamos que pela quarta, quinta, sexta vez, não seríamos chamados nunca.

Minha mãe começou a ficar brava. “Não tinha nada que sair do emprego”, ela dizia. Eu argumentava que ganhava uma miséria, mas mesmo assim ela insistia: “Não tinha nada que sair, tem que arrumar emprego!”. Nesse tempo, tentei até ser babá. Lembro-me de um dia quando cheguei na casa de uma senhora para uma entrevista e ela me disse que tinha alguma coisa errada, que eu não deveria trabalhar como babá. Percebi que a recusa era ao contrário. Evidentemente, eu não falava mal, não andava desarrumada, não tinha o perfil de babá, de empregada, e não tinha mesmo!

Foi então que resolvi participar de uma seleção para estudar no Instituto Municipal de Administração de Ciências Contábeis (IMACO), que ficava no Parque Municipal de Belo Horizonte. O principal motivo era o fato de o IMACO ser uma escola gratuita. Assim, poderia estudar à noite e trabalhar durante o dia. Fui aprovada e fui parar em uma classe onde eu era a única negra. O pessoal gostava de me chamar de Mariazinha: “Mariazinha, você é uma menina triste, o que acontece?” Ninguém entendia que o motivo de eu não conseguir emprego era por ser negra. Por isso, tentaram me

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ajudar – tinham bons empregos –, mas toda vez eu voltava dizendo o mesmo: fui recusada na entrevista. E eles mesmos acabaram percebendo que a questão era a aparência.

Essa questão da aparência era muito séria. Desde pequena, eu alisava o cabelo. Aliás, quando pequenos nós não queríamos ser negros. Mas por que não querer ser negro? Porque negro é maltratado, fica para trás, segue um estereótipo, e o cabelo é a questão da mulher. Cabelo de negra é o grande x da questão. Quando o país é colonizado é ainda pior. Em país de terceiro mundo colonizado, o preconceito é terrível. Chamam-nos de cabelo duro. “É a nega do cabelo duro!” Por isso, alisávamos o cabelo com ferro quente, saía o cheiro forte de queimado, passávamos a vaselina e o cabelo fritava. Moral da história: aquilo queimava o couro cabeludo! Ainda passávamos uma pasta à base de soda que sempre deixava uma ferida na cabeça. O ideal era ter o cabelo liso para melhorar a aparência, conseguir chegar e reivindicar um emprego. Nada disso funcionava.

No último ano no IMACO, fiz amizade com um colega de sala que conseguiu para mim um emprego de auxiliar de escritório em uma mobiliadora no bairro Floresta. O slogan da empresa era Arranja a noiva que nós arrumamos os móveis. O dono se chamava Sr. Isaac Golguer, e a contadora, Marilsa.

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As vendas na mobiliadora eram feitas à prestação. Tinham dois cartões, um que ficava com o cliente e outro no escritório. Então, a pessoa pagava a prestação, e nós rubricávamos. A Marilsa era responsável pelo caixa e, quando o dinheiro sobrava, o Sr. Isaac colocava no bolso. Mas acontecia algo errado, porque, quando faltava dinheiro no caixa, a Marilsa era quem deveria repor a quantia. E ela era muito cuidadosa, anotava tudo o que acontecia. E, no final do dia, como de costume, o Sr. Isaac estava ali.

Um dia, chegou uma cliente na loja dizendo que tinha pagado a prestação, mas, quando o Sr. Isaac foi conferir, não constava o pagamento no cartão da loja. A cliente afirmava que tinha pagado. Foi então que a Marilsa perguntou a quem ela tinha entregado o dinheiro, e a cliente se virou para mim. Era verdade. Eu havia esquecido de rubricar o bendito cartão. Conferimos a data e tinha sobrado exatamente a quantia que ela tinha indicado. Evidentemente, o Sr. Isaac havia pegado o dinheiro e colocado no bolso. Mas ele começou a gritar: “A senhora pagou, a senhora pagou! Ladra! Ladra! Pode botar pra fora! Bota pra fora!”

Eu fiquei estatelada! Eu era pequenininha, e os empregados me olhavam assustados, tinham certeza de que havia sido eu. A Marilsa tentou argumentar, mas ele continuava: “Ladra! Põe na rua agora!” Eu saí de lá com as pernas trêmulas, andei pela Avenida do Contorno e desci a rua Pouso Alegre. Não sei como consegui chegar em casa, no Horto, mas eu cheguei chorando de tal maneira que minha

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mãe nem me xingou. Eu estava com 15 anos. Desde esse dia, disse para mim mesma que nunca mais na vida iria ter patrão! É claro que, inicialmente, não foi assim, tive de batalhar, mas fiquei com essa marca na cabeça.

Ainda quando estava no IMACO, fui à busca de mais um emprego. Estava me formando na melhor escola para ser con-tadora e iria ser. Havia um rapaz chamado Avelar, casado com a irmã do professor Wilson Chaves, um dos diretores do IMA-CO e também diretor de um programa que existia no Brasil chamado PABAEE (Programa de Assistência Brasileiro-Ameri-cana ao Ensino Elementar).

Esse programa foi um dos primeiros acordos entre o governo americano, o governo do Brasil e o Estado de Minas Gerais. Era a chamada Aliança para o Progresso (um dos primeiros acordos firmados entre o MEC/USAID). O governo americano mandava para o Brasil diversos produtos para as escolas daqui, como leite em pó e requeijão, mas apenas 1/3 era o que realmente as escolas recebiam, os outros 2/3 ficavam por debaixo dos panos.

Outro acordo feito durante esse programa foi o seguinte. O Instituto de Educação estava caindo aos pedaços. O gover-

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no americano se responsabilizou por reformar o Instituto de Educação em troca de um espaço físico na escola para montar uma gráfica. E por que essa gráfica? Para produzir um mate-rial que era especificamente para um curso de formação de professores. Vieram técnicos dos Estados Unidos para formar esses professores e para preparar o material. Inclusive, essa já era a interferência do governo americano no nosso país. Entre esses técnicos, muitos eram da área de inteligência, para fazer um trabalho com os militares. Para os americanos, havia cer-ta tendência comunista no Brasil. Com a questão de Cuba, os americanos estavam preocupados.

O PABAEE montou uma gráfica de primeiro mundo, com equipamentos de primeira geração. O Avelar, então, quis me ajudar a arrumar um emprego de qualquer manei-ra. Conversou com os responsáveis diretos, e o professor Wilson Chaves mandou um cartão para que eu fosse à grá-fica do Instituto fazer um teste de datilografia. Fiquei mui-to entusiasmada porque pagavam salário mínimo. A nossa meta em casa era ganhar o salário mínimo. Meus irmãos, que ganhavam, compraram lotes e conseguiram construir barracões para morar, depois de casados.

Então eu fui fazer o teste, na rua Paraíba com Timbiras, e tinha certeza absoluta de que iria conseguir. Era, e ainda sou, uma excelente datilógrafa. Mas quando cheguei para fazer o teste com o responsável, Henrique Correia... Olhei para má-quina e tive que perguntar: “Mas que máquina é essa?”

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Henrique olhou para mim e já ficou com dó. Era uma IBM executive elétrica. Eu nunca tinha trabalhado em uma máquina elétrica, e essa marca era a precursora das máquinas de composição, muito diferente. O teste era em uma chapa que se chamava “plastplaite”. O processo era assim: batia-se nessa chapa com uma fita especial e passava-se um determinado líquido. Depois, colocava-se o material na impressora e já conseguíamos rodar. Caso não fosse por esse processo, tínhamos que datilografar no estêncil, e eles tinham o mimeógrafo de primeira geração para fazer esse trabalho. Mas eu nunca tinha visto isso na vida. Até sentei para fazer o teste, mas eu não sabia nem como ligar a máquina, e desandei a chorar! Eu chorava muito. Tiveram que me dar água e perguntaram: “Por que você chora tanto? Isso é só um teste! Você não passou no teste porque não conhece a máquina. Por que chorar tanto?” Disse que essa seria a minha última esperança, e como eu sabia que não tinha passado no teste, não teria outra oportunidade.

Então, o Henrique virou-se para mim e explicou o que era gráfica, como se faz um livro. E disse que, como era muito amigo do chefe, tentaria me arrumar algo, mas que não poderia garantir um trabalho muito bom. É claro que eu disse que não teria problema algum. Aceitaria qualquer coisa.

Ele conversou com o Sr. Antônio, um dos chefes, que teve uma solicitação da equipe de limpeza para uma faxineira. A primeira coisa que eu perguntei foi: “Quanto eles pagam?” E disseram: “Salário mínimo!”. É claro que eu aceitei! Seria para

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fazer faxina, limpar o chão, o banheiro, mas eu aceitei. Não tinha problema, eu já estava acostumada a fazer faxina em casa.

O tempo foi passando e, no segundo e terceiro meses, já acompanhava aquele processo dinâmico e interessante da gráfica. Ficava maravilhada com a questão da composição! O material vinha escrito à mão. Primeiro, passava pela composição na máquina. Depois por uma câmera escura, o fotolito. E assim, se fazia um livro.

No meu terceiro mês, como já estava entendendo do processo de fazer livros, o Henrique me perguntou se não gostaria de aprender a compor. Era tudo que eu queria! Mas fez uma ressalva: “A senhora, se quiser, precisa vir no intervalo. Tem de almoçar por aqui, trazer uma marmita”.

Eu levava a marmita e, na hora do intervalo, eu aprendia. Comecei a prestar atenção em como o livro era feito, como se fazia a impressão. Foi a partir daí que vi como o livro era composto em caderno, fui entender sobre o corte de papel. Aprendi um pouco sobre tudo: papel, formato e até costura. Chegou um determinado ponto em que o Sr. Antônio perguntou se eu não queria trabalhar na etapa de intercalação, ou seja, de acabamento. Então, eu saí da faxina. Pouco tempo depois, o Henrique disse que já estava ótima na composição, e passei a trabalhar nessa etapa. Portanto, aprendi na gráfica do PABAEE todo o processo simples de feitura de um livro. Paralelamente, aprendi como imprimir, como ajustar a chapa e como fotografar no fotolito.

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Formatura da Mazza na Escola de Comércio Tito Novaes, 1955

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Mazza compondo acompanhada de Antonio Faria Lopes, Editora Vega, década de 70

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Enquanto trabalhava no PABAEE, estabeleci um contato direto com o pessoal da “elite” da gráfica, os americanos e as secretárias dos americanos. Eu tinha um contato diferente do restante do pessoal que trabalhava na gráfica por uma razão muito simples: estava em um nível intelectual muito acima, mais equiparado às secretárias que trabalhavam com eles. No contato com essas secretárias, acabei conhecendo Anna Lúcia Campanha Baptista. E essa Anna Lúcia era uma danadinha de uma visionária.

Quando me formei, deixei todos os meninos orgulhosos. Avelar ficou feliz da vida, o professor Wilson Chaves também. A Anna Lúcia Baptista, nessa mesma ocasião, disse que tinha um curso de Jornalismo na Universidade Federal de Minas Gerais, que ficava na FAFICH, na Rua Carangola, e que eu tinha de fazer esse curso. Eu logo questionei se ela não estava doida: “Eu sou contadora, fiz o curso, agora vou arrumar emprego como contadora”. Sabia que era interessante, mas meu negócio era subir de padrão e melhorar em casa. A minha mãe disse para não inventar mais nada: “Você já está ganhando mais que um salário mínimo”. Mas não estava bom, e Anna Lúcia, novamente, insistia para eu prestar o vestibular.

Eu me perguntava como iria prestar o vestibular, não tinha a menor condição. Não podia fazer um cursinho preparatório, pois só aconteciam aulas durante o dia, e eu

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trabalhava. Mas a Anna Lúcia disse que poderia ficar tranquila, porque eles dariam um jeito nisso, e me aconselhou a fazer a inscrição. E, de tanto que ela procurou uma solução, de tanto que ela cutucou o pessoal do PABAEE, conseguiu, enfim, uma autorização para que eu pudesse estudar de manhã e compensar as horas de trabalho à noite. Eles tinham muita confiança no meu trabalho.

Assim, fui fazer o vestibular, mas tive que fazer escondi-do de mamãe, se ela soubesse o que eu estava fazendo... Tinha prova escrita e prova oral, além de uma prova de língua, inglês ou francês, mas o meu francês era aquele “fajuto” de escola, um francesinho desgraçado. Os professores da banca examina-dora eram “os cobras”... Só as feras do Português, da História, mas com essas disciplinas eu não me preocupava muito.

Já para a prova de francês eu rezava de tudo quanto é jei-to. Nessa prova, eu tive de fazer a tradução de um texto. Acon-tece que quem lê muito é capaz de inferir. E a raiz do francês é latina. Assim, eu fiz a tradução inferindo e passei no vestibular para Jornalismo. Eu passei! Entre as últimas, mas passei.

Agora, para contar isso em casa, eu dei duzentas voltas. Eu levei quase uma semana para preparar o espírito de ma-mãe. Quando contei, a primeira coisa que ela me perguntou: “Você vai estudar a que horas? Você vai sair do emprego?” Foi uma batalha! Anna Lúcia adorou, os meninos do PABAEE tam-bém, mas, lá em casa, foi assim um negócio como quem diz, esse trem vai... como é que ela vai arrumar? Moral da história:

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eu comecei a Faculdade. Estudava de manhã, mas ia para a gráfica correndo e fazia as duas horas de almoço trabalhando. O pessoal ia embora às cinco. Eu ficava mais duas horas. Desse jeito!

A universidade exerceu, na minha vida, um papel que é o fundamental de uma universidade e que acho que a universidade brasileira hoje não exerce mais. Foi um mundo, um universo que se abriu para mim. Em termos de estudo, de contatos e o fundamental: de politização. Na verdade, eu não tinha nenhuma politização. Sou filha de operário. Uma operária. O meu negócio era trabalhar, levar dinheiro para casa, ajudar a minha mãe, arrumar um emprego de contadora para ganhar mais e melhorar a situação da minha família. Esse negócio de politização... UDN... PMDB... eu não sabia, não entrava na minha cabeça. Dentro da universidade é que eu ficava ouvindo aquilo, ficava mergulhada naqueles caras. Jovens, tudo classe média, você está entendendo?! Pobre mesmo, na universidade, pobre e preto, dentro da universidade, devia ter uma meia dúzia. No meu curso tinha dois. Eu e um cara chamado Benedito, de Barbacena.

Então a universidade fervia, em termos de estrutura, de politização e discussões sobre Marx, Cuba, sobre os problemas

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do Brasil, que o país tinha que mudar, e reuniões direto e reto. Eu ficava assuntando as coisas acontecendo, e aí ficava vendo eles falarem assim: “Porque em Paris, os universitários... em Praga...” Enfim, o mundo foi se abrindo e eu falava “Meu Deus do Céu!” E fora a questão dos professores. O poeta Affonso Romano de Sant’Anna, por exemplo, que era professor adjunto na época, bonito e tal, sempre foi posudo. Eu tive aula com ele.

Acontece que tinha um professor escocês chamado Char-les Corfield. E o cara dava a matéria de Artes Gráficas, que não interessava a quase ninguém, porque era um negócio “chato”, tipologia, composição etc. Só que, no meu caso, era um prato cheio. No fim, o professor quase que dava aula só para mim, e eu bebia naquelas fontes, maravilhada! Quanto mais eu apren-dia, mais eu falava assim: “Nossa Senhora, que mágico esse negócio de fazer livro!”. O cara era brilhante, e eu aprendi demais.

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Formatura IMACO, década de 60

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Paralelamente ao curso de Jornalismo, eu fazia livros no PABAEE, e a Anna Lúcia sempre buzinava no meu ouvido para que abríssemos uma editora. Quando me formei, ela decidiu que iríamos realizar essa empreitada. Olha o que é visão! Nós fazíamos os livros de forma experimental para as professoras do projeto. Terminava aquele ciclo de teste, os livros paravam ali no processo. Então a Anna Lúcia teve a ideia de pegar esses livros do PABAEE para publicá-los. É a visão! Essa visão, honestamente, eu não tinha mesmo. Quase que nem tenho, mas a Anna Lúcia... Sabe aquele pessoal? Danada essa Anna! E eu que tinha feito universidade! Ela não tinha feito não... Eu questionei: “Mas abrir uma editora? Mas, Anna Lúcia, como nós vamos abrir uma editora? Nós não temos dinheiro!”. E ela insistiu: “Nós vamos abrir uma editora. Nós vamos chamá-la Editora do Professor.”

O pai dela era joalheiro e tinha uma loja no Edifício Dantês. Mas ele fez uma casa na Vila Paris, hoje bairro Santa Lúcia, na rua Batista Figueiredo, 16. E tinha um galinheiro. Ele fez um galinheiro tão bacana que a mulher dele, Dona Juraci, não teve coragem de criar galinha nele. A Anna Lúcia, então, decidiu que a nossa editora seria no galinheiro da Baptista Figueiredo.

Nasceu, assim, a Editora do Professor, para publicar os livros escritos e já testados pelas professoras do PABAEE. Essas

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professoras eram conhecidas na área de Educação no Brasil. Minas Gerais, pelo fato de o programa ser em Belo Horizonte, era o estado que ocupava o primeiro lugar no ranking de Educação, o segundo era o Rio Grande do Sul. Tanto que tinha uma disputa entre esses dois estados. Mas essas professoras eram chamadas para dar aulas no Brasil todo. Uma delas era Teresa Casasanta, sobrinha da Lúcia Casasanta, a grande professora do Instituto de Educação e autora do livro As mais belas histórias. Esse livro correu o Brasil todo. Até hoje perguntam se por acaso eu tenho As mais belas histórias. Nem para registro eu tenho.

Além da Teresa, tinha a Helena Lopes, Rizza de Araújo Porto, Magdala Lisboa Bacha e Nazira Feres Abi-Sáber, a grande fera da educação infantil no Brasil, que fundou o Instituto da Criança, que até hoje é uma referência, entre outras especialistas na área. O PABAEE também foi berço do Bartolomeu Campos de Queirós – que ainda não escrevia, mas já estava lá. Ele recebeu a primeira bolsa, que eu lembro, doada pelo Abgar Renault, para estudar em Paris. Então esse pessoal todo do PABAEE estava na Editora do Professor. A Anna Lúcia fez uma sociedade de cotas com esses professores. Todo mundo era cotista da Editora do Professor, inclusive eu e a minha irmã Ana, essa “por livre e espontânea pressão”.

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A Anna Lúcia inventou – que criatura, uma visionária! – cismou que a editora precisava de uma livraria. E ela inventou a tal da Livraria do Estudante, na rua Tupis, 85, loja 7.

A Livraria do Estudante foi um lugar especialmente frequentado por jovem, que é o que ousa, é o que sonha! É preciso sonhar! E é isso mesmo, é preciso ser visionário. Tem que ser. A utopia é algo importante na vida das pessoas. Não estou falando que todo mundo tem de ser utópico, mas o sonho é muito importante. Morreu Manoel de Barros, né? Uma pena, um grande sonhador.

Muito bem, abrimos a Livraria do Estudante. Como é que era a Livraria do Estudante? Quem construiu no espaço físico lá da Livraria? Foi Afrânio, meu irmão, todo sujo de pó de madeira... E ficou assim: a livraria embaixo e o escritório na parte em cima.

Essa Livraria do Estudante foi o bicho! Lá, o Chico Buarque lançou Pedro Pedreiro. Ali acontecia de tudo, era o foco. Era esse pessoal novo que estava surgindo, o João Gilberto, esse povo... esse povo vinha. Não sei como a Anna Lúcia arrumava, mas era um povo novo que agitava. O movimento estudantil, o pessoal das artes, o pintor Chanina, o ex-companheiro da Cristina Agostinho, o Oswaldo França Júnior, autor do livro Jorge, um brasileiro, ou seja, a jovem intelectualidade mineira. Todos se envolviam na Livraria do Estudante. Tudo acontecia

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naquela livraria! Lá tinha um torresminho e uma cachaça no fim de semana, ideia do querido amigo e parceiro Etevaldo (que teve de se exilar em Moçambique). Eu ia nessa onda, e eu fui “fono”, eu fui “fono”... Ficava deslumbrada!

Enfim, a livraria deu o recado, marcou época.

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Anna Lúcia Campanha Baptista e Mazza, Editora do Professor, década de 60

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Afrânio, irmão de Mazza, década de 60

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Até que chegou o tal do 31 de março. Pegou a gente de calça na mão! Veio o golpe e esse povo todo que frequentava a Livraria do Estudante, aos pouquinhos, foi sendo preso, torturado. A coisa foi acontecendo no Brasil, tá tá tá, tá tá tá ... foi o AI5... E aí fecharam a Livraria do Estudante.

Henfil, na época ainda era Henrique Souza Filho, frequentava a Livraria do Estudante, e seu irmão Betinho também. Esse povo todo. Ali era o foco. O Henfil trabalhava em uma agência, que era a do Laércio Campos, dos irmãos Campos. O Laércio também foi preso, torturado. Todo mundo estava envolvido na política, e o engraçado é o seguinte: o pessoal todo foi preso e eu não fui presa coisa nenhuma. Primeiro era a questão de classe.

Concluindo, eu não pertencia a nada, eu não era da UNE, não era da União dos Estudantes, não era dos Movimentos de Ação Católica, mas estava ali. E eu tinha um negócio que era importante dentro do processo: gráfica. Eu entendia de gráfica, eu entendia de impressão. E, para politicar, tem de panfletar. Panfletagem vai existir, mesmo que seja em rede social. Tem que panfletar. Mas, naquela época, a panfletagem era impressa. Então, já viu! Veio o golpe e fecharam a Livraria do Estudante.

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Durante o tempo em que a Livraria do Estudante e a Editora do Professor existiram, eu briguei com a Anna Lúcia. Nunca discuti profundamente sobre isso com ela. Acontece que a Anna Lúcia era tão sonhadora, os passos eram tão largos... e era difícil para mim, que sou de uma formação de origem operária, de não fazer dívida, de não fazer aquilo que não pode. Com isso, eu saí da Editora do Professor e acabei montando a Editora Grafiquinha, mas ficou o seguinte ajustado: eu ficava com a Grafiquinha, uma gráfica pequena que eu consegui montar uma impressora velha “Davidson”, na rua Baturité, acho que nº 80, no bairro Floresta, na garagem do avô de Anna Lúcia. Eu montei a gráfica, mas tive de registrar para poder trabalhar e registrei uma empresa chamada Grafiquinha Editora. Paralelamente a isso tudo, eu trabalhava no PABAEE. Então o pessoal falava assim: “Onde é que está a Mazza? Na Graficona ou na Grafiquinha?” A Graficona era a do PABAEE, eu estava na Grafiquinha.

Agora, a principal edição da Grafiquinha, foi o livro do Luíz Vilela, chamado Tremor de terra. Nós imprimimos e ele ganhou o primeiro prêmio, Concurso Nacional de Brasília, aquele da capa vermelha. A Grafiquinha Editora! Eu lembro, nós imprimimos o livro à noite. Quando o livro foi para Brasília, ainda estava saindo tinta dele, e o Luíz ganhou o

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primeiro prêmio. Eu compus em uma IBM executive e imprimi, mas processo direto, para ficar mais barato, e veio na capa que nós rodamos, e colamos saindo tinta! Ele nunca se referiu à Grafiquinha Editora. Mas eu ainda me encontro com ele! Eu vou falar: “Luiz, você nunca falou, você sempre fala da segunda edição para frente, mas nunca falou quem que imprimiu a primeira! Você ganhou o prêmio com qual impressão?” Eu quero perguntar isso para ele, mas quero perguntar, se possível, em um lugar que tiver entrevista coletiva. Eu quero ver ele falar ou negar. Ele não pode negar, não tem jeito.

Na Grafiquinha, eu publiquei também uma cartilha que chegou a vender 500 mil exemplares, chamada Circo do Carequinha, de Maria Serafina de Freitas. Carequinha era um palhaço famoso, e Fred e Dengoso eram seus parceiros. Esse livro foi muito vendido, rodou o Brasil afora. E a Maria Serafina foi aluna do PABAEE. Todas as nossas origens estavam ali, no Instituto de Educação.

Muito bem, mas veio o golpe e fecharam a Livraria do Estudante. Essa história de terem fechado a Livraria do Estudante e a Editora do Professor, foi um negócio... meio assim ... fiquei meio murcha! Muita gente foi presa. Teve gente que teve que ir para fora, teve gente que desapareceu, sumiu, morreu!

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Cartilha O circo do carequinha, editora Grafiquinha, 1969

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Então um pessoal começou a sair da prisão do Dops. Esse pessoal era principalmente ligado à UFMG. Gente danada! Eles resolveram criar uma editora para trabalhar com material universitário, voltado para professores, com uma orientação específica, política e social.

Então o Antonio Faria Lopes resolveu criar a Editora Vega e foi atrás de mim e da Anna Lúcia, separadamente, perguntar se não queríamos incorporar todo o nosso trabalho ao dele e nos unirmos à editora. E nos unimos; a Editora do Professor já estava marcada mesmo... Eu fui chegando, e nós fomos traba-lhar juntos na Editora Vega. E foram dez anos de um trabalho profícuo mesmo.

O Faria era o presidente, o professor Edgar da Mata Machado cuidava da parte editorial e eu cuidava da parte de produção. A produção gráfico-editorial da Vega era por minha conta. Eu peguei os remanescentes da Grafiquinha, limpei o espaço e montei a gráfica da Vega. Foi quando comecei a construir a casa, aqui, onde hoje é a Mazza. Foi nessa época que consegui o alvará. Lá para trás. E eu formava muita gente, formava os chamados “meninos de rua”, essa questão social. Muita gente aprendeu a trabalhar comigo.

Agora, o que significava a palavra Vega? Por que chamamos a editora de Vega? Primeiramente, o nome Vega

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era de uma fábrica de penico em Contagem, onde a Enilde, mulher do Faria, trabalhava. Faria ficou com aquele nome na cabeça e resolveu assuntar o que significava e descobriu que Vega era uma estrela em direção à qual o Sistema Solar caminha. E foi assim, surgiu a Editora Vega. O Henfil fez a logomarca da editora. Nós o chamávamos de Henriquinho, porque o nome dele era Henrique Souza Filho – depois que ele virou Henfil, depois do Pasquim, mas ele era Henriquinho para nós.

O Henfil fez uma maravilha de logomarca. É uma logomarca tão boa, mas tão boa que, quando eu fui fazer o curso em Paris, eu tinha um professor fera, mas fera mesmo, que, na hora em que eu mostrei a logomarca da Vega para ele, ficou encantado e disse: “Muito boa, muito boa”. E para ele falar aquilo... é porque o trem era bom mesmo!

A Editora Vega também era um reduto de intelectuais, mas já não eram mais os estudantes. Eram Murilo Rubião, o Romanelli, os professores da universidade, Ramayana Gazinelli e o professor Edgar da Mata Machado, que era o nosso mentor e grande amigo do Alceu Amoroso Lima. Então era esse pessoal que já tinha um nome.

A Vega era uma editora que chegou a publicar alguns autores franceses, dos quais eu esqueci o nome; obras de uma certa intelectualidade católica, enfim, a Vega fez um trabalho muito bom, durante dez anos. E sempre com os militares no encalço. Vira e mexe, os militares iam lá.

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Depois do golpe, eu lembro direitinho. Eu nunca tinha visto o Magalhães Pinto de perto. E o Edgar tinha sido secretário do Magalhães. Quando chegou a questão do golpe e tudo, o Edgar pediu demissão. Assim como o Milton Campos. Um dia eu cheguei na Editora e vi subindo a escada – mas que engraçado –, o Magalhães Pinto, que ia lá escondido conversar com o professor Edgar.

No período da ditadura, a Vega foi vigiada o tempo todo. E houve obras que nós não pudemos publicar. Lembro-me, especialmente, de um livro do Pedro Casaldáliga, que fazia um trabalho importantíssimo com os sem-terra no Araguaia. Ele e a equipe sofriam muita perseguição, inclusive, mataram o padre que o ajudava. Então, nós não conseguíamos publicar o livro do Pedro. Depois, finalmente, nós conseguimos publicar um trabalho que ele fez com o Pedro Terra, parceiro do Milton Nascimento. Nós também publicamos o Milton, mas não pudemos fazer muitos trabalhos.

Algumas publicações nós nem tentávamos. O autor che-gava com a obra e já sabíamos que não conseguiríamos pu-blicar, porque a Editora Vega estava no Index do Serviço de Segurança Nacional, o SNI. Isso nos cerceava muito, era uma situação difícil economicamente falando, uma vez que todo

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o material que nós fazíamos – trabalhávamos muito com di-dático – era engajado. Essa era a política da Vega. Mas era muito difícil! Chegamos em tal ponto de dificuldade que quase fechamos.

Uma professora, chamada Etelvina Lima, foi a nossa salvação. Essa mulher era bam bam bam! Professora nos Estados Unidos, uma fera! Fundou a Escola de Biblioteconomia da UFMG, hoje Escola de Ciência da Informação, abriu a biblioteca da UFMG, que nessas alturas já estava no Campus da Pampulha. E essa Etelvina era amiga de uma mulher, também bibliotecária, chamada Maria Alice Barroso, que foi uma das diretoras do programa do governo que comprava livros de editoras. A Maria Alice Barroso falou para a Etelvina que eles receberam uma reivindicação de uma equipe da Medicina da UFMG, que queria publicar uma coleção especializada de sete livros sobre Medicina Geral. Eles iriam bancar em todo o Brasil. Nessa época, Etelvina levou uma tese para publicar na Editora Vega. Fiquei curiosa para conhecê-la e acabei trabalhando na produção de sua tese. Ficamos muito amigas e a Etelvina acabou entendendo a situação crítica que a Vega estava enfrentando, tanto que interferiu junto com a Maria Alice Barroso1 para que nós fizéssemos a coleção de Medicina da UFMG. Só que nós éramos proibidos de negociar com o

1 Uma das diretoras do INL – Instituto Nacional do Livro, na gestão de Jarbas Passarinho no Ministério da Educação

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governo. O fato de a Vega estar no Index nos atrapalhava muito. Havia outras editoras que também estavam na mesma situação, por exemplo, a Civilização Brasileira, do Ênio Silveira. O governo não comprava os livros das editoras que estavam no Index, porque para ele nós éramos comunistas, contra o regime. Mas, no final, por causa da Maria Alice, nós conseguimos vender para o governo.

Já havia cinco anos que eu trabalhava na Editora Vega e, até então, só tinha retirado uns “caraminguás”, coisa pouca. Foi a partir da edição dessa coleção que eu consegui receber, de fato. A Vega me pagou os cinco anos atrasados. A venda da coleção foi maravilhosa!

Quando recebi o dinheiro, resolvi fazer um barracão para morar com mamãe, no bairro Esplanada, perto do meu irmão. Mamãe gostava muito de planta. E eu pensava “Ainda faço um barracão para mamãe. Nos trinques! Para ela poder plantar”. Quando recebi esse dinheiro atrasado da Vega, a primeira decisão que tomei foi a de comprar um lote, porque o negócio da gente, na minha família, era comprar lote e construir. Aí o Faria veio falando: “Não, você não vai fazer apenas um barracão para sua mãe.” Acontece que o Faria descolaria um projeto para mim. Eu não queria, mas ele insistiu. Acabei aceitando, mas disse que o lote tinha de ser “lá pro nosso lado”.

Aqui, onde está a Mazza Edições, era um lote vago. De depósito de lixo. Nós vimos o anúncio no jornal, e eu disse para o Faria: “Vamos lá, vamos”, mas ele: “Não, isso é um

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depósito de lixo, e a favela tá ali.”. Eu argumentei: “Faria, está bom demais! O preço está ótimo. Dá que eu tenho o dinheiro para comprar”.

Nessa época, eu tinha uma Variant (carro Volkswagen) e resolvi vendê-la, porque crédito no banco a gente não conseguia mesmo. Com o dinheiro da Variant, eu comprei 500 sacos de cimento. A pedido do Faria, os amigos da Vega, arquitetos, José Carlos Laenda, Roberto Manata e o engenheiro calculista Maurício Hasenclever se incumbiram do projeto. Meu primo João Bosco veio de Ponte Nova para fazer a construção, mas mal e porcamente fizemos uma base. Uma base que inventei com a intenção de fazer uma gráfica para a Vega. O Faria e o Zé Carlos não queriam que eu fizesse, não queriam nada na parte de baixo, mas insisti. A Vega precisava de uma gráfica; depois construiria a casa na parte de cima. Fizemos a base, e o dinheiro acabou.

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Casa sendo construída no bairro Pompeia, em Belo Horizonte

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Hoje, a casa é a atual sede da Mazza Edições

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Muitos que faziam parte da Vega e que tinham sido pre-sos, quando saíram da cadeia, resolveram se candidatar para cargos políticos. Uma turma novinha que estava fundando o PT passou a fazer parte da Editora Vega, como o Aloísio Mar-ques, o Fernando Pimentel. Inclusive o Patrus.

O Patrus trabalhou nos dois últimos anos da Vega. Ele saiu de Bocaiúva para fazer o curso de Direito. O pai dele era fazendeiro, mas o Patrus não queria viver do dinheiro da família por causa de seus ideais. Ele queria arrumar um emprego. Então ele foi conversar com o professor Edgar da Mata Machado, de quem ele era um grande admirador. Conversa vai, conversa vem, ele acabou vendedor de livros da Vega. Ganhava por comissão. Lembro-me do Patrus saindo com a pastinha cheia de livros para divulgação. E ele procurava sempre ficar ao lado do professor Edgar. Aquilo é que era o mais importante para ele.

O professor Edgar também foi uma grande influência na minha vida. A minha base editorial, de editora propriamente dita, aprendi com o Edgar. Era ele quem falava sobre como a utopia é importante. Tão importante, que ele perdeu um filho, o Zé Carlos da Mata Machado, que foi morto pelos militares. Foi publicado um livro pela Mazza Edições contando toda a trajetória dele. Chama-se ZÉ: José Carlos Novais da Mata Machado, uma reportagem.

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Mas enfim, o professor Edgar, era jornalista, trabalhou em vários jornais importantes, era professor de Direito. Eu aprendi muito com ele, e quando a editora estava em crise – eu naquela tristeza danada – o Edgar falou para mim: “Você vai continuar com o espírito da Vega.”

Aí veio a abertura. Em 1978, a editora Vega foi repassada para um grupo de jovens que mais tarde teriam participação destacada na criação do Partido dos Trabalhadores. Eu comungava com as ideias do PT, mas eu não queria a mesma coisa que eles. Pensava em algo diferente, embora a questão da negritude não passasse nem de leve pela minha cabeça. Acontece que a editora acabou, e, logo depois, mamãe morreu. Eu fiquei “de pé e mão quebrada”.

Mas eu tinha adquirido um sonho: fazer um curso de Editoração que havia na Universidade de Madri, com duração de seis meses. Eu achava que tinha uma prática profissional muito grande. Desde os dezoito anos que eu trabalhava na área, mas vinte anos depois, eu sentia que faltava alguma coisa. Nessa época, eu já era muito amiga da Etelvina e ela disse que iria me ajudar a batalhar por esse curso.

A Etelvina acabou insistindo para que eu tentasse uma bolsa de mestrado na Universidade de Paris. Afinal, eu já era bacharel. Eu achava que não conseguiria, tinha de fazer uns exames... Então eu fui fazer alguns cursos para melhorar o meu francês e estudar um pouco de espanhol.

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Etelvina me ajudou a conseguir a bolsa pela Capes na Universidade de Paris, mas fiquei insegura de ir sozinha. Nesse tempo, eu era professora do curso de Comunicação que estava começando na Católica2. O Paulo Bernardo Ferreira Vaz, que tinha sido meu aluno no curso de Comunicação, me substituiu como professor de Editoração na PUC. Também foram meus alunos, Marcelo Xavier, Tutti Maravilha, Elisa Fonseca e Silva, Terezinha Teodoro, Paulo César Coelho e Heloísa Starling. Aí, eu falei para Etelvina que não queria ir sozinha, mas que, se ela ajudasse o Paulo Bernardo a conseguir uma bolsa também, eu iria.

2 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas.

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Lançamento de livro na década de 70, Editora Vega, da esquerda para direita: José Silvério, Mazza, Marília de Oliveira, Prof. Edgar, Julião, Antônio

Faria Lopes, Maurinho, Terezinha Lima e José Siqueira Filho

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Lançamento de livro na década de 70, Editora Vega

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Mazza e professor Edgar Godoi da Mata Machado

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Mazza e professora Etelvina em Recife-PE, década de 80

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Em setembro de 1978, nós fomos aceitos e a Capes nos deu duas opções: fazer um curso em Bordeaux, que já era di-reto de doutorado, ou o mestrado na universidade de Paris.

Por mim, eu fazia o Doutorado em Bordeaux – nós tínhamos gabarito para fazer –, mas o Paulo Bernardo queria Paris. Eu sou... eu sempre fui meio “Maria vai com as outras”... Então fomos para Paris, três meses depois que minha mãe morreu, com o nosso francês capenga e com pouco dinheiro. A bolsa da Capes era um trocadinho de nada.

E onde nós fomos morar? O Paulo Bernardo tinha uma amiga, que morava num “muxixo” no Quartier Latin, bem ao lado da Brasserie Lip em frente ao café Les Deux Magots e ao Café de Flore, onde, antigamente se reunia a intelectualidade, como Simone de Beauvoir e Sartre. Aí o Paulo enlouqueceu!

Só que não é fácil morar em Paris, especialmente para nós, pobres mortais e estudantes. A Vera tinha um quartinho, mas falou o seguinte: “Eu acolho vocês. Até três meses eu aguento vocês aqui, depois vocês têm de arrumar um lugar.”

Para se ter uma ideia, o banheiro era no corredor, aqui nós chamaríamos de latrina. Sabe aquele negócio que você bota os dois pés para fazer xixi e cocô? E banho, só três vezes na semana, porque a concierge vigiava, especialmente os brasileiros. Diziam que brasileiro gasta muita água, que tomava muito banho.

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Depois de um tempo, eu e o Paulo Bernardo já tínhamos um trocadinho e queríamos alugar um apartamento. Só que a proprietária do imóvel que queríamos alugar só alugava para quem fosse casado. Algum amigo, não me lembro quem, falou assim com a gente: “Por que você e o Paulo Bernardo não de-claram que são casados?”. Como a proprietária não pediu ne-nhum documento comprobatório, nós declaramos que éramos casados. Para todos os efeitos, eu era a Senhora Ferreira Vaz.

O Isalino Albergaria (hoje, o escritor Lino de Albergaria) foi morar conosco. Os dois ficavam em um quarto, e eu, no outro. O apartamento tinha uma sala grande, cozinha, banheiro. Era a glória total!

A universidade em que eu e o Paulo Bernardo estudávamos era a única na qual as aulas começavam às 8h da manhã e acabavam à 6h da tarde. Nós saíamos cedinho de casa. Já o Isalino estudava em Vincennes, onde estudavam os mais “folgadinhos”, coisa e tal. E então, na hora de distribuir as tarefas de casa, foi engraçado: o Isalino não sabia fazer nada! Ele era de família rica, zona sul e nem sabia como que se lavava um banheiro. Na verdade, não sabia nem que banheiro tinha de ser lavado! Mas como ele também não sabia cozinhar ou lavar roupa, acabou ficando responsável pela limpeza.

Antes de falar sobre o curso, gostaria de contar uma história que me marcou muito. Tanto eu como o Paulo Bernardo éramos muito sociáveis. Gostávamos de conversar, fazíamos muitas amizades. Um dia qualquer, estávamos em um bistrô na

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Place de Voges com uma turminha, e começou aquele papo “De onde você é?”. E Eu falei que era da Zona da Mata, de Ponte Nova. Um rapaz disse que também era de Ponte Nova e me perguntou de qual família eu era – porque em Ponte Nova tem dessas coisas de saber a qual “Família” você pertence. Então eu respondi que não era de nenhuma família importante, que era filha de lavadeira, mas perguntei de que família ele era. O rapaz disse que o seu sobrenome era Moreira e eu lhe disse que tive um colega de escola que se chamava Paulo Romeu Moreira. Era irmão dele! E eu contei no bistrô esta história.

A minha mãe lavava roupas para a família Moreira. Um dia, quando era bem menininha, eu fui à casa deles buscar uma trouxa de roupas. Acontece que, no meio do caminho de volta, antes de chegar em casa, encontrei a turma brincando no meio da poeira. Passei a mão na trouxa, coloquei no canto e fiquei na brincadeira. Acabei me distraindo e, quando fui pegá-la para ir embora, percebi que estava desamarrada e suja de sangue. Amarrei a trouxa, que estava toda empoeirada, e fui embora.

Quando cheguei em casa, mamãe falou assim: “Mas essa trouxa de roupa veio assim? Você parou no meio do caminho, tem muito tempo que você saiu”. Aí eu apanhei, outra vez, você está entendendo? Só que eu não entendi nada do que estava acontecendo. Eu fui saber depois! A roupa era de um menino que tinha nascido lá na casa dos Moreiras, estava suja de sangue por causa do parto.

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Então, eu contei essa história no bistrô e, depois de fazermos as contas, o rapaz falou: “O menino que nasceu era eu!”. Foi uma emoção! Até choramos! Encontrei-me com esse menino, o Plínio, em Paris, e foi marcante.

Muito bem, eu e o Paulo estudamos na única universidade comunista na cidade: Paris XIII. Era um curso completo de Editoração. Éramos os mais velhos do curso e os professores acabavam nos dando uma atenção especial. Entendíamos mais do que os outros alunos sobre o que os professores ensinavam. Eu, especialmente, fui colher aquilo que era a lacuna na minha formação: a teoria da editoração. Eu tinha a prática, mas não tinha a teoria, e ali foi outro mundo, outro universo que se abriu. Só que foi um universo mesmo! Na universidade, estudavam muitos africanos, e muitos desses africanos que vão estudar em Paris eram filhos de rei, príncipes. As mulheres chegavam cheias de ouro, muito bonitas, os homens muito bonitos! E eu, que tinha aquela visão de negro pisado e humilhado, descobri que “Black is beautiful!” E é mesmo!

Naquela época, já estava pipocando a questão dos movimentos negros, e tudo o que acontecia aqui no Brasil repercutia lá. Eu fui acompanhado aquela discussão. Havia reuniões na universidade sobre a questão da negritude. Os

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grupos faziam diversas reivindicações, entre elas questões relacionadas com a publicação de livros de autores negros. Era uma novidade para mim e fui ficando antenada para os autores negros que eram publicados na Europa. As publicações da França, da Inglaterra e, principalmente, da Alemanha me impressionaram muito. Eram poetas africanos, ilustradores... Nas ilustrações de livros infantis, as figuras não eram iguais àquelas que gravei na minha cabeça durante a infância, que mostravam um negro feio, estereotipado. Por causa dessas ilustrações, eu não queria ser negra. Lembro-me dos livros do Monteiro Lobato, em que tia Anastácia era uma negra beiçuda, com nariz achatado, um desenho com tudo que não representava um negro de forma bonita, como ele é.

E fui prestando atenção naquilo, elaborando, até que cheguei à seguinte conclusão: eu entendo de edição, entendo de gráfica, sou uma mulher negra, uma editora negra, na hora que eu voltasse... Aquela ideia foi amadurecendo.

No período em que estávamos em Paris, acabaram as duas últimas ditaduras na Europa, a do Salazar, em Portugal, e a do Franco, na Espanha. E tínhamos muito contato com alunos espanhóis, mas muito mesmo. Vimos, na época, as diversas publicações que eles haviam preparado para a

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militância contra a ditadura. Eram publicações para politizar o povo. Uma delas chamava-se A lo claro, que era uma coleção de vários livrinhos ilustrados: Las elecciones a lo claro, La educación a lo claro etc.

Deveríamos apresentar uma dissertação para uma banca. Eles aceitaram que eu e o Paulo fizéssemos esse trabalho juntos. Nessa época, eu estava com essa questão de negritude na cabeça, do negro no Brasil. E tive a ideia, pensando nessa coleção A lo claro, de contar a história da negritude. Como os escravos foram para o Brasil, a questão da escravidão, o papel do negro aqui. Negritude a lo claro. Perguntei para o Paulo se ele aceitaria que esse fosse o tema do nosso projeto. A participação dele era essencial, porque o Paulo era ilustrador. E nós fizemos! O título era Essa história eu não conhecia. E, nesse trabalho, relacionamos essa história com questão editorial, no caso específico da Vega. Com a tese, eu aprendi sobre os heróis negros, que eu não conhecia. Quase ninguém conhecia.

Então nós apresentamos o projeto, fomos aprovados, mas não tiramos a nota máxima. Uma amiga francesa depois nos contou o porquê. Ela era muito questionadora e foi perguntar para os membros da banca. Eles explicaram. Acontece que, na nossa tese, nós contamos a história de uma pequena editora em um país de economia capitalista. A Editora Vega produziu muito no período de 10 anos, com pouquíssimos recursos. Os números não batiam! Eles não entendiam como, com tão poucos recursos, poderíamos ter feito o que fizemos. Então nós

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não conseguimos provar. Eles sabiam que era verdade, mas cientificamente falando, não era possível provar. É o negócio da utopia... Porque, por exemplo, eu não ganhava nada. Eu comprava papel e chorava o preço do papel. O professor Edgar não ganhava... Mas, enfim, nós passamos.

Logo depois, saiu a bolsa de doutorado. Falei para o Pau-lo Bernardo que queria voltar para o Brasil. Tínhamos tanto crédito com os professores que, quando eu não aceitei ficar, o diretor aceitou que eu fizesse o trabalho no Brasil e defendesse lá. O Paulo Bernardo quis ficar em Paris. Ele falou que podia ficar lá mais três anos tranquilamente, e ficou. Eu tinha uma ânsia de voltar! Eu queria voltar e abrir uma editora.

Durante o tempo em que ficamos na Europa, aproveitamos o trocadinho que tínhamos e as facilidades de estudante e fomos visitar as gráficas e editoras, na Alemanha, na Espanha, na Itália... Essa questão de gráfica me interessava muito. Vimos as técnicas de impressão dos grandes e dos pequenos impressores. Eu queria saber tudo sobre as pequenas editoras para quando eu chegasse aqui no Brasil.

Na Europa, tem editora por toda parte. Lá existem po-líticas públicas que apoiam o pequeno editor. Tanto políticas que envolvem financiamento bancário, quanto políticas de

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distribuição. As editoras podiam começar editando mil exem-plares, que quinhentos exemplares automaticamente eram comprados pelo governo e distribuídos nas bibliotecas e esco-las. Era parecido com a questão do PNBE, só que não havia um processo de escolha, todas as pequenas editoras que apresen-tassem um projeto tinham a garantia dessa compra. Não era um negócio que você arrumava picaretagem, o livro tinha de ter uma certa qualidade.

Então esse incentivo permitia que os livros das editoras fossem conhecidos. No país todo, as escolas e bibliotecas rece-biam aquele material.

O processo de produção também era interessante. Você tinha uma gama de material para trabalhar. Tipos de papel di-ferenciados. Até mesmo para aquele tipo de publicação menor-zinha, de bolso, havia qualidades diferentes de papel jornal. Então havia mais facilidade para abrir e manter uma pequena editora. E isso era naquela época!

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Mazza em visita à fábrica da Heidelberg, Alemanha, em 1980

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Mazza e o “marido” Paulo Bernardo em Roma, década de 80

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Mazza em seu quarto em Paris, com o retrato da mãe e o escudo do Vila Nova – time do coração,

em destaque, década de 80

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Quando voltei para o Brasil, encontrei muitas dificuldades. O pessoal do PT deixou a gráfica da Vega praticamente abandonada, venderam as máquinas, foi um desastre total! Além disso, trabalhar com o pessoal da negritude não foi fácil. Cheguei para trabalhar com a negritude, publicar os intelectuais negros, mas onde eles estavam? Foi um “pega pra capar”!

Então essa coisa toda que eu vi na Europa muito relacionada às pequenas editoras foi que me animou. Evidentemente, na hora em que cheguei aqui, vi que não dava, sabia que grande eu não ia ser. Especialmente por causa da linha em que resolvi trabalhar. Foi muito difícil, porque, na verdade, o Brasil, até hoje, é um país racista. Entrávamos nas escolas pelas portas dos fundos.

Aliás, minha principal dificuldade como pequena editora foi desde o princípio para chegar a conseguir publicar. Tive de fazer muitos serviços de gráfica, terceirizar o meu trabalho para ganhar algum dinheiro.

Outra dificuldade que eu tive – vou ter de falar, embora eles não gostem – foi com o pessoal do Movimento Negro. Eles me ajudaram muito, mas sempre briguei com o pessoal dos movimentos. É que eles achavam que, por eu trabalhar com a questão da negritude e ter gráfica, não deveriam me pagar. Eles falavam assim: “Mas você é negra e tudo e tá querendo

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receber”. E eu respondia “Como é que é que eu vou fazer, como é que é que eu vou pagar esse papel?” Brigava direto e reto.

Mas tinha umas pessoas de quem eu realmente não cobrava, como Frei Davi, que fazia e faz até hoje um excelente trabalho na Baixada fluminense. Ele comprou vários exemplares do Essa história eu não conhecia. Cheguei a editar quatro fascículos, depois desisti. Não era fácil trabalhar com a intelectualidade negra, conseguir ilustradores. Não tinha ilustrador negro para trabalhar com a questão da negritude, com a ilustração do negro bonito.

Entretanto, com a Lei nº 10.639 que o Lula assinou, em 2003, a Mazza Edições chegou na frente por ser a primeira editora, realmente, a encarar e a trabalhar com a temática étnico-racial na realidade. Nacionalmente, o pessoal reconhece que foi a Mazza a primeira editora que topou essa empreitada. Agora digo que topei lembrando-me do professor Edgar, que me deu uma missão. Antes de morrer, quando fui visitá-lo, ele falou assim: “Você tem de continuar o espírito da editora, você que vai continuar. Você tem de perseguir”. Então, no fundo, foi isso que fez com que eu tocasse o bonde. E acabou que hoje é uma conquista. Quando vejo os livros da Mazza Edições, uma editora de pequeno porte, selecionados nesses programas, conhecida em quase todo o Brasil, penso que nós sobrevivemos. E o professor Edgar deve estar congratulando comigo lá em cima.

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O projeto Essa história eu não conhecia foi a primeira publicação da Mazza Edições, e, com ela, as primeiras dificuldades: encontrar autor e ilustrador. Se a Adriana Brito3 estivesse com a cabeça dela hoje, e estivesse na Mazza Edições naquele princípio, não tinha saído nenhuma coleção, porque eu não achei ilustrador negro. Quem ilustrou primeiro foi um estagiário que eu tinha, chamado Luis Carlos Gazinelli – branquinho, olhos azuis, novinho, amigo do Rodrigo Leste, da turminha nova e criativa da época. Ele não entendia nada, fez um desenho do tipo que eu não gostava, tosco, mas como eu não tinha ilustrador negro, não tinha grana nem quem poderia desenhar, teve de ser o Gazinelli, que ao fim e ao cabo, tornou-se um grande amigo e parceiro maravilhoso.

Cheguei a fazer quatro edições de três mil deste primeiro livro, Essa história eu não conhecia, que retratava a vinda dos escravos para o Brasil. Depois, consegui trabalhar com o ilustrador Benedito Ramos Machado, o Bené, que tinha trabalhado comigo no PABAEE, e ilustrou as outras edições do livro. Nesse projeto, vendia os livros a preço de custo, ou até abaixo do preço de custo, para oferecer às escolas que tinham professoras negras dentro dos movimentos. Até porque não quer dizer que toda escola tinha uma professora negra e que se

3 Atual divulgadora da Mazza Edições

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assumia como tal. Então, essas poucas professoras negras, como a Patrícia Santana, Benilda Regina Brito, Consuelo Dores Silva, Rosa Margarida de Carvalho Rocha, é que conseguiam que esse material fosse adquirido pelas escolas onde lecionavam. E eu tinha que vender por um preço de banana mesmo, para os alunos comprarem, para botar na mão deles, porque a escola mesmo, não comprava. Com isso, eu não conseguia muito dinheiro, então, o que fiz, foi terceirizar o meu conhecimento, e falava: “eu faço livro”. Tinha gente que pagava para fazer os livros, e como eu sabia fazê-los e já tinha o respaldo da Editora Vega, coloquei-me à disposição.

Quanto às dificuldades, estas se relacionam com as máquinas para compor esses livros. Tive duas, a primeira, tive que recuperar comprando do Zé Maria, da Lastro, que tinha pegado a máquina de composição da Vega para cobrir as dívidas que os “meninos” do PT tinham feito de panfletos. Eles não pagaram ao Zé Maria e ele ficou com a máquina. Com a ajuda do Faria, da Emely Vieira Salazar e da Etelvina Lima, juntei o dinheiro e recomprei a máquina de composição, que foi da Editora Vega. E aí desandei a compor. Eu compunha para fora e, com o dinheirinho que entrava, imprimia livros, pois consegui também recuperar uma velha máquina impressora. Compunha e fazia muitos livros no processo direto. A primeira máquina que tive foi uma Ricohzinha, de mesa. Os livrinhos da primeira coleção foram feitos no processo direto e impressos numa maquininha de mesa (Ricoh) – boa pra danar –, que

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comprei dos Padres Salesianos, os quais tinham comprado para a Fundação Dom Bosco e alguém, na época, me disse: “Ô, Mazza, lá na Fundação Dom Bosco tem uma máquina parada porque estão faltando umas peças, como eles não têm problemas de dinheiro, colocaram-na num canto”. Fui lá, negociei com os padres, comprei a máquina, e foi assim, com muita dificuldade e nenhum dinheiro.

Paralelamente, eu tinha de fazer as coisas para o Mo-vimento Negro, mas para eles pagarem era uma dificuldade, queriam preço de custo. Ainda fazia umas coisas de panfleta-gem, era uma dificuldade sem limites. Abri editora em 1981, quando voltei da Europa, e só depois de 23 anos de luta incle-mente, de falta de dinheiro, de dificuldade, que conseguimos reerguer. Nesse tempo, dei assessoria, trabalhei em programa de governo, dei aula na PUC, na Newton Paiva, na FAFICH. Então, eu dava aula para poder me sustentar, não tinha mais minha mãe, mas tinha que morar, tinha que comer. Roupa, então, não comprava de jeito nenhum, era uma dificuldade danada!

Eu tinha uma fama de pagar mal o pessoal que traba-lhava comigo. Era tudo muito pouco e o que eu pagava era a “duras penas”, não tinha crédito em banco, era muito difícil.

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O primeiro grande trabalho editorial, de fato, da Mazza Edições foi uma coleção, Minas e Mineiros, e digo que chegou às minhas mãos pela misericórdia divina. De Juiz de Fora, veio uma professora, pesquisadora e doutora, Núbia Pereira Magalhães Gomes, e um estagiário e aluno dela, chamado Edimilson de Almeida Pereira. Não sei como esse pessoal me encontrou, mas foram até mim pela temática do livro que fizeram Assim se benze em Minas Gerais. Eles tinham feito uma primeira edição desse livro pela Universidade Federal de Juiz de Fora, mas o resultado não tinha ficado bom, então, eles disseram que tinham pouco dinheiro, mas que poderiam conversar sobre um custo razoável para essa nova edição comigo.

Logo de cara, houve uma empatia com a Núbia e o Edimilson, e um dos motivos é porque eles trabalhavam com a comunidade dos Arturos, em Contagem. Mas o diferente é que ela era uma mulher branca, e seu aluno, negro. Não resisti e perguntei a ela como trabalhava com os Arturos se era branca? E ela me respondeu: “Sou a rainha branca, de pele, mas eu sou negra de alma, de coração”. E me ganhou com essa resposta. Foi um trabalho muito bom e esse era apenas o início de uma parceria com a coleção Minas e mineiros, que foi o grande abridor de caminhos da Mazza Edições, a grande referência da editora.

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A professora Núbia, pouco tempo depois, sofreu um acidente e faleceu. Mas o Edimilson continuou o seu trabalho, fazendo as pesquisas, e esse cara extraordinário é, hoje, antropólogo e um professor fantástico – cara simples pra danar –, e um poeta maravilhoso, que só não é reconhecido no Brasil porque é negro, mas tem prêmio até na Inglaterra, e, para ganhar prêmio de poesia lá, tem de ser muito bom. Ele ficou meu amigo de tal ordem que, atualmente, é o nosso conselheiro editorial para as obras da Mazza Edições. E construímos uma história desde essa primeira grande publicação, que é o abridor de caminhos da editora, o livro Assim se benze em Minas Gerais.

A partir daí, as oportunidades foram surgindo. A militância me ajudou e todos reconheciam o que eu fazia. Não tenho partido político, tenho uma posição política. Nunca fui de movimento nenhum, porque eu sou de todos os movimentos libertários! A minha questão é extraclasse. Mas a militância me ajudou muito também, sobretudo com os autores de maior reconhecimento, do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais, como Cuti (Luiz Silva), Nilma Lino Gomes e Edimilson de Almeida Pereira.

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Mazza em um lançamento da Mazza Edições na década de 80,com as amigas Carmelita, à esquerda, e Áurea, à direita

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A distribuição dos livros

Publicar no exterior para nós é muito difícil, ainda mais para a pequena editora, que precisa passar por um agente literário, o que não conseguimos ainda. A pequena editora, como a Mazza Edições, no sentido da distribuição, tem grande dificuldade para distribuir o seu material. O nosso catálogo era limitado, o que dificultava ainda mais na distribuição, mas hoje já está mais encorpado, e conseguimos abrir alguns espaços, chegar mais loinge com a nossa preodução.

A temática da editora só passou a ter interesse geral a partir das compras do governo, e, aí, as grandes editoras hoje passaram a ter um selo negro. Tenho autores que publicaram comigo e agora estão nessas editoras, e muitos são procurados por elas. O caminho que abrimos acabou sendo desbravador.

O nosso distribuidor na Bahia está interessado em nosso material, porque lá tem um mercado específico. Mas, em São Paulo, custei a achar distribuidor, eles só aceitaram depois de perceber que tinha demanda para essa temática. Eu gostaria de ter distribuidores em algumas praças, mas tem o problema da credibilidade. Às vezes querem nosso material, compram, mas não pagam. Eu tenho um distribuidor no Acre que compra, por exemplo, dois mil reais na minha mão e não paga. E, para eu receber, protestar, não adianta, já que para ir ao Acre, tentar receber dois mil reais, não vale a pena, fica mais caro, é melhor perder os livros. Ainda temos que pagar o direito autoral do

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livro que saiu do estoque. Então, não é fácil para pequena editora, porque, se tivesse uma política de distribuição para as bibliotecas do país todo, por exemplo, seria diferente.

A compra do governo é importantíssima para a editora, atualmente, porque existe uma distribuição para todo o Brasil. Uma vez, estava em uma cidade na Chapada Gaúcha e encontrei livros da Mazza Edições com selo do MEC, os livros sendo adotados nas escolas e o pessoal gostando muito.

O nome Penninha foi uma homenagem à minha mãe, custamos achar um nome, até que acabou chegando na Penninha. A minha mãe se chamava Amarilis Penna, era uma mulher pequena, magrinha, e o pessoal a chamava de Dona Penninha.

Com relação à criação do selo Penninha, entra a questão de precisar, de ir mais longe, mas também a chance de colocarmos mais livros no mercado para vendas ao governo. Essa venda institucional, tanto do Governo Federal quanto das prefeituras, é uma “faca de dois gumes” para qualquer editora. Hoje, no Brasil, se você não vender para o governo, editorialmente falando, encontra muita dificuldade, porque o governo é o grande comprador, e o grande pagador. São

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vendas institucionais importantes, os descontos são altos, mas a compra, o quantitativo é que possibilita a editora caminhar.

Quando fazemos a inscrição nos programas de governo, tem um número limitado de títulos que podemos inscrever. Por exemplo, podemos enviar quinze títulos, mas, às vezes, desses quinze, um, dois, ou até mesmo nenhum é escolhido. O pensamento, então, com relação à criação do selo Penninha, é de dobrar a quantidade de títulos para fazer mais inscrições. Desses quinze, podemos passar para trinta com a criação desse novo selo. Tanto que se for escolhido só um da Penninha ou só um da Mazza já está bom.

A Mazza Edições tem uma linha editorial essencialmente ligada às temáticas raciais, o que a diferencia da Penninha, que está aberta para qualquer temática, mas claro, numa escolha que fazemos, com uma seleção da linha infantojuvenil. Esse selo, portanto, não tem essa conotação temática, e sentimos que isso é importante, às vezes. Tem pareceristas desses programas de governo que não gostam dessa posição temática e se manifestam mesmo, dizendo que é militância. E, como queremos ampliar nossa chance, o novo selo seria essa oportunidade. Nós ainda estamos no começo, não vendemos nenhum título, mas temos chance. O principal livro da Penninha, o primeiro, é o livro O craque, com uma proposta em que o texto traz a questão do craque infantojuvenil, dos meninos querendo ser craques, mas são engolidos e destruídos

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pelo crack. Então, não é a temática que está centrada somente na questão do negro, mas de questões sociais.

Quadro em homenagem à mãe, Dona Amarilis

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A questão de venda para as prefeituras é restrita. No Governo do Estado, é ainda pior. Já são quase treze anos sem compra de livros em Minas Gerais. Em compensação, a Prefeitura de Belo Horizonte compra todo ano e tem programa específico. Então, dificilmente, deixamos de ter um título escolhido pela Prefeitura. E são vendas significativas, que nos ajudam a caminhar.

Dentro dessa linha étnico-racial, surgiu a Lei nº 10.639. A Mazza Edições só conseguiu tomar pé depois de 2003, quando o presidente Lula sancionou a Lei 10.639, que determina a inclusão da História e Cultura Africana e Afro-brasileira no ensino médio e fundamental, o que provocou uma correria muito grande de diversas editoras para lançar livros sobre a temática no mercado. Sendo otimista, se dez estados brasileiros levarem a sério essa política, será muito favorável para nós. Mas se chegar o momento em que essa política cair por terra, não só as pequenas editoras, mas as de médio porte, conseguirão sobreviver?

A venda comum, em livraria, para editora pequena inexiste. Para conseguirmos chegar nas escolas, nas bibliotecas, precisamos desse canal, mas temos de estar preparados.

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Com toda essa nova parafernália, mesmo informatizados, nós ainda estamos em um país de Terceiro Mundo – querendo o Brasil ou não –, nós estamos em um país em que pelo menos 50% são analfabetos, mesmo que seja um analfabeto funcional.

Países de primeiro mundo já têm dificuldades com toda essa parafernália. Li que, na França, agora é obrigatório ter pessoas responsáveis por atender especialmente idosos na rede bancária. E o Brasil é um país que caminha para ter muito idoso, que tem dificuldade com a tecnologia, então é preciso ter gente para poder ajudar e se preocupar.

Com relação ao livro digital, acredito que ainda deve demorar muito tempo. Editorialmente, não tenho essa preocupação. Vi outro dia uma palestra, que o governo está querendo investir em livros especiais, mas existe uma preocupação do acesso, das pessoas que conseguem lidar com essas tecnologias, e ainda temos uma grande caminhada pela frente. Tem muito dinheiro jogado fora pelo próprio governo, eles mesmos admitem. Esse negócio, editorialmente falando, é caro e ainda incipiente no Brasil.

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Ser um bom editor é muito relativo nos tempos de hoje. Eu penso o que é ser um bom editor dentro da ótica de vinte anos para trás, depois, as coisas se alteraram muito, ainda mais com a questão da informática, das novas tecnologias. Mas, de todo jeito, um bom editor é aquele que primeiro gosta de livro, de ler, e precisa ter o feeling. O bom editor, além de gostar de tudo isso, tem de ter um compromisso, eu diria que é quase uma missão. Por exemplo, professor não gosta de quando falamos que ser professor é uma missão, mas é. Você tem de ter a visão, o compromisso, pensar no outro. O bom editor não publica qualquer coisa. Ele acerta e erra. Não temos bola de cristal, mas temos de pensar no outro, pensar no público, olhar para fora. Inclusive, a questão comercial pode ser um risco, então, o dinheiro, na verdade, não pode estar em primeiro plano. Publicar apenas para vender não é meu objetivo.

Primeiro, temos de nos preocupar com a questão da leitura e aí entramos na questão da educação. Se não tiver leitor, não estimular a leitura, e a criança não pegar no livro, fica complicado. Vira e mexe, eu pergunto pra quem passa lá em casa, por exemplo, faxineira que tem filho, se ele gosta de ler, ou se ela coloca livros em sua mão. Pelo país todo a mesma situação. Se o menino não começa lendo, ou pegando no livro e gostando de ler... tem de haver um estímulo. A escritora Paula Pimenta, por exemplo, está vendendo muito porque tem

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leitor. Eles investem nesses jovens, por isso, vão ter interesse de pegar no livro, de comprar o livro.

O problema fica cada vez mais difícil se não investir nessa questão da leitura. É preciso ler, gostar de livro. Preocupamo-nos em fazer um livro bem cuidado, para atrair o leitor. E o editor tem de entender do processo editorial e, de alguma maneira, tem de ser parceiro da escola, da educação, porque, sem isso, não adianta fazer livro se não existe leitor. Sem ser parceiro, sem ter essa preocupação com o leitor, e, de preferência, com o leitor que está começando lá no “principinho”, as coisas não acontecem.

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Mazza na comemoração dos 33 anos da editora, 2014

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Fotografia tirada em 1971 para o passaporte

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Mazza na década de 70

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Mazza e professor Otávio Dulcci, Paris, 1980

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Mazza no Palácio de Schönbrunn, Viena, 1971

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Mazza em Montmartre, França, 1971, primeira viagem a Europa

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Mazza e Paulo Bernardo, França, década de 80

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Paulo Bernardo, Guichoz – amigo espanhol – e Mazza, Bordeaux, década de 80

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Mazza na região de Heildelberg, década de 80

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As irmãs: Ana, Amarilles e Mazza, 2015

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Este livro foi composto em tipologias Charter BT e Mind Blue e impresso em papel Pólen 90g/m2 (miolo) e papel Cartão 250g/m2 (capa), no inverno de dois mil e quinze.

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