se essa rua fosse minha

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TUNGA T .

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volume da Caixa Tunga, livro lançado pela Editora Cosac Naify, 2007

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Page 1: Se essa rua fosse minha

TUNGAT.

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P E Q U E N O M I L A G R E

Coube-me o fim de um corredor.

Decidi ali construir um muro, dividir o fluxo em relação àquele fim,

em dois. Para que se fizesse presente, deixei edificá-lo em posição oblíqua.

Embora separasse o fluxo, microfones colocados nos dois lados do

muro misturavam as vozes que se amplificavam no recinto.

Aquele fim de linha (beco) possuía outras características além de

separar em “ou”, o público.

O muro era feito de gesso.

Ao invés de tijolos, peixes frescos e pães. Ao invés de água, o gesso

fora virado com vinho.

Foram incrustados os microfones e sendo o muro constantemente

regado a vinho de garrafão, que depois vazios, eram espatifados no chão

naqueles arredores.

Todos os que ali entravam ou passavam, podiam apreciar na

putrefação de alguns peixes, a proliferação de vermes, andar sobre os

vidros e ter suas opiniões amplificadas na sala ao lado.

A intensidade forte dos odores ali misturados, o fundo de corredor,

a presença da vida proliferando nos vermes, o dito aos microfones que

a todo comentário mixava os dois lados do muro, transformava aquela

experiência num legítimo Pequeno Milagre.

***

S E E S S A R U A F O S S E M I N H A . . .

Já na segunda versão do Se Essa Rua Fosse Minha, um ano depois, uma

calçada me foi destinada. Apenas um fragmento dela poderia ser utilizado

e assim o fiz, nesta peça metonímica.

Similar procedimento com o gesso decidi adotar.

Desta vez porém, não como paredes que dividem. As calçadas

deveriam falar e por isso instalei alto-falantes por toda superfície.

Suculentos ossos ainda frescos, e ainda carregando generosas carnes,

também foram incrustados junto aos tweeter, na massa ainda pastosa

do gesso.

O som que dali era emitido formava um verdadeiro coro de latidos

caninos. Uma vez o público humano evadido do evento, coube aos

abandonados cães de rua desfrutar daquela obra que parecia um verdadeiro

inferninho... Ah! se essa rua fosse minha.

Este livro é dedicado a Gerardo Mello Mourão

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Com dezessete facadasna feira de CanabravaAmaro Sampaio Mellomorreu por mim.

Com uma ba la na testano Engenho de CanamansaFrancisco Bezerra Limamorreu por mim

Bordel de Va lpara íso :com um punha l na gargantaRaquel Medina- a morena –morreu por mim.

Com seu fuzi l já sem ba lassoldado de Ho Chi MinhCao Cih aos doze anosmorreu por mim.

Hans A lfred von Ahlenfeldcom a cabeça arrancadapor uma granada russamorreu por mim.

Um conde de Budapesteno Ponto Euxino um Ovídioem Bucareste outro Ovídiomorreu por mim.

O poeta Mandelstammnão terminou seu sonetoem sua prisão na Rússiamorreu por mim.

Landsberg era a lemãoera grego e era judeuno campo dos concentradosmorreu por mim.

Sansão sem olhos em Gazaentre as ruínas do templodestroçando os f i l isteusmorreu por mim.

L A D A I N H A D O M O R T O

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Na rua Bento Lisboacom carta de despedidaMarina bebeu venenomorreu por mim.

Iracema abriu o gásAnaLúcia abriu as veiasum tiro na boca – Marymorreu por mim.

Em Belém Mafa lda f lorda beleza pa lest inapisou na bomba entre relvasmorreu por mim.

Na Polônia na Rumâniacada Raquel cada Saramirando o fuzi l da Prússiamorreu por mim.

Em paredones de Havanao frade de São Franciscobenzendo Paco Figueresmorreu por mim.

E nas ruas de Manáguapadre Ernesto Cardena lum guerri lheiro sandinomorreu por mim.

No mesmo dia de solna rua de Pablo Cuadraum “contra”de quinze anosmorreu por mim.

O jangadeiro Jerônimonos verdes mares braviosa lagado pelas águasmorreu por mim.

Em Lavras da Mangabeirapoeta Dimas Macedoum irmão da Coronelamorreu por mim.

O poeta Kusakabeouviu o estouro da bombadeu um grito em Hiroshimamorreu por mim.

Na praça de Litt le Rockcom uma guitarra na mãoo negro Bem ba leadomorreu por mim.

Heitor nos muros de TróiaAquiles com o pé f lechadoPátroclo com sua lançamorreu por mim.

Em seu pa lácio Cleópatraa cobra mordendo o seioninho de amores e aromasmorreu por mim.

Punha l de Brutus no peitono sangue de sua togaCésar meu rei meu pontíf icemorreu por mim.

O grego e o troiano o l íbioo soldado o genera lcomo Helena e Clitemnestramorreu por mim.

E Teresa de Cepedachamada Teresa de Ávi lamorrendo por não morrermorreu por mim.

Em Paris Jorge – e no ChileBaeza Pepe e GirolaEfra ín, Napoleão,morreu por mim.

Nos campos em f lor da FrançaJacques A la in e Charlesa f lor-de-l is da esperançamorreu por mim.

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L A D A I N H A D O M O R T O

Gerardo Mello Mourão

Rio de Janeiro, 1998

Cada cabra do sertão cada matador de engenhocada jagunço da várzeamorreu por mim.

Uma noite MargaridaOlhou meu retrato tristeSa ltou a janela verdeMorreu por mim.

A afogada do Leblono enforcado de Bangua defunta do Encantadomorreu por mim.

Um negro em Camaragibeum João em Tanque d ’Arcauma cigana em Belgradomorreu por mim.

Fui pregado em duas cruzese na cruz do meio um Deusdepois de sete pa lavrasmorreu por mim.

Um por um eu os mateium por um me assassinaramfui sa lvo por cada umcada um morreu por mim.

Esta lo a l íngua na bocaa morte no céu da bocatem gosto de vinho e melvou gozando seu sabor:

por cada um vou morrendovou morrendo devagar.Amén.

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© Cosac Naify, 2007

concepcão

Tunga

direção de arte

Lilian Zaremba

projeto gráfico

nucleo i design

Irene Peixoto

Bernardo Aragão

Gabriela Horta

revisão

Camila Saraiva

fotos

Wilton Montenegro

produção gráfica

Signorini

Obras apresentadas no evento “Orlândia” no Rio de Janeiro em 2001 e 2003 organizado por Marcia X e Ricardo Ventura na ocupação de casas prestes a serem demolidas.

PEQUENO MILAGRE

nova orlândia

2001, Rio de Janeiro.

Participaram desta performance: Cabelo, Simon Lane, Marieta Dantas, Tunga e Gerardo Mello Mourão, onde foi lido o poema ladainha do morto, de Gerardo Mello Mourão.

SE ESSA RUA FOSSE MINHA...

grande orlândia

2003, Rio de Janeiro.

Participaram da performance: Tunga e Marieta Dantas.

fonte Adobe Garamond papel Alta alvura 120 g/m2

impressão Atrativa tiragem 500

Este livro faz parte das comemorações de 10 anos da editora Cosac Naify.

Ele compõe a Caixa Tunga, junto com outros cinco livros e um cartaz.

cosac naify

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