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Coleção Clássicos Universais 2 a edição Nathaniel Hawthorne Adaptação de Rodrigo Espinosa Cabral A Letra Escarlate

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Page 1: Coleção Clássicos Universais A Letra Escarlate · fosse uma mulher de bem. Essa letrinha estampada não mostra nada, Essa letrinha estampada não mostra nada, tinham que ter marcado

Coleção Clássicos Universais

2a edição

Nathaniel HawthorneAdaptação de Rodrigo Espinosa Cabral

A LetraEscarlate

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CAPÍTULO 1

Uma TURBA de barbudos vestidos com roupas de cores tristes e cinzentas, misturada com várias mulheres, a

maioria com lenços na cabeça e outras sem, estava em frente à negra, alta e pesada porta de CARVALHO, reforçada pelo abraço de aperta­das cintas de ferro. Era a porta da prisão daquele pequeno povoado no NOVO MUNDO.

Os fundadores de uma nova colônia, por mais UTÓPICOS que sejam e por mais que sonhem com a moral, o bem e a felicidade humana, nunca deixaram de construir uma prisão e um cemitério nas localidades que iniciaram. É provável que os primeiros colonizadores de Boston te­nham construído a prisão e o cemitério na mesma época. No momento em que transcorre esta história, a prisão já deveria ter uns quinze ou vinte anos e já se encontrava muito marcada pelo tempo. Suas pedras, sua madeira negra e suas barras de ferro escurecido pela ferrugem davam a impressão de serem as coisas mais velhas do Novo Mundo. Talvez al­guém pudesse pensar que aquele prédio nunca tinha sido novo, já tendo nascido sombrio como são as coisas relacionadas ao crime.

Curiosamente, ao lado da porta, o mato havia crescido e dele saía uma roseira selvagem com BOJUDAS rosas vermelhas desafian­do a ROBUSTEZ da prisão. Era como se aquelas gemas vermelhas dissessem ao suspeito ou ao condenado que lá entrassem, que o coração profundo da Natureza tinha pena de seu destino, e isso era RECONFORTANTE.

No gramado em frente à prisão, muitos homens e mulheres da então pequena cidade de Boston esperavam com os olhos fixos na porta de carvalho grampeada por tiras de ferro. Eles esperavam

TURBA: multidãoCARVALHO: árvore de madeira escura e duraNOVO MUNDO: o continente americanoUTÓPICOS: que têm ou creem em utopia, projetos não realizáveisBOJUDAS: com bojo, arredondadasROBUSTEZ: força, vigorRECONFORTANTE: que conforta bastante, revigorante

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que a condenada, Hester Prynne, saísse. Enquanto isso, as mulheres conversavam. Eram puritanas como a maioria da população e estavam muito insatisfeitas:

— Nós, as mulheres de VIRTUDE desta cidade, é que devería­mos ter ditado a sentença dessa fulana, desta Hester Prynne. Seria a única forma de ela escapar dessa sentença fraca e piedosa que pegou! — dizia uma das mulheres com raiva.

— Ora, se isso é punição! Desde quando ter a letra A de adúl­tera estampada na frente do vestido é condenação? Ela pode muito bem cobrir a letra com um casaco, uma joia e andar por aí como se fosse uma mulher de bem. Essa letrinha estampada não mostra nada, tinham que ter marcado um A na testa dela, com um ferro em brasa! — sugeria outra mulher, com muita raiva.

— Calma, amiga — falou uma mulher mais jovem, segurando um bebê no colo —, não importa onde esteja marcada a letra A, a pior marca está em seu coração.

— Eu estou muito triste. Assim como o nosso pastor divino, o reverendo Dimmesdale também lamenta que esse escândalo te­nha acontecido em nossa CONGREGAÇÃO. Nossos pastores são homens bons, mas são muito piedosos — lamentava uma terceira puritana, com um lenço na cabeça.

— Toda essa vergonha espalhada em nossa comunidade! Essa mulher deveria ser enforcada ou queimada em uma fogueira! — quase gritava outra mulher com o rosto contorcido.

— Calma, minha senhora! Será que a virtude tem que ser forçada por penas severas como ferro em brasa ou a morte? Vamos ficar em silêncio, porque estão abrindo a porta da prisão. Aí vem a tão falada senhora Hester Prynne.

Os pastores e juízes iam deixando o prédio como sombras entran­do na luz do dia. A multidão os observava com olhos atentos. Até que Hester surgiu em frente à porta. Trazia um bebê de três meses no colo.

VIRTUDE: disposição para praticar o bem, qualidade moral, purezaCONGREGAÇÃO: grupo de religiosos

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Seu primeiro impulso foi usá­lo para cobrir a letra A que havia sido cos­turada em seu vestido na altura do peito. Mas isso seria como esconder uma vergonha pessoal com outra vergonha, então resolveu poupar o bebê daquela tarefa e deixou que a letra aparecesse nitidamente.

A Letra Escarlate em seu peito era muito bem bordada. Além do vermelho vivo, era bordejada com fios dourados. A arte chamava a atenção do povo ali presente. Era notável também a beleza de Hes­ter Prynne. Seus cabelos eram tão negros e abundantes e brilhavam tanto que conseguiam conter os raios de sol do entardecer em seus fios. O rosto dela era muito bonito e tinha naquele momento uma riqueza complexa de emoções que o tornava atraente. Seus olhos escuros também tinham uma vivacidade expressiva e Hester Prynne como um todo era uma mulher DESLUMBRANTE.

Muitos dos que aguardavam a sua saída talvez esperassem uma mulher CABISBAIXA, abatida, envergonhada ou deformada pelo pecado que cometera. Hester estava triste, vivia a angústia do momento, mas tinha uma tranquilidade e uma postura de LADY. A letra escarlate tão fantasticamente bordada e iluminada em seu peito parecia absorver a maior parte dos olhares e parecia retirar de Hester a condição de ser meramente humana. A letra deixava Hester isolada em uma esfera própria.

Uma das espectadoras ali presentes deixou escapar que Hester sabia usar a agulha de bordar como poucas pessoas, mas se questio­nava por que ela tinha caprichado tanto na confecção daquele sinal de punição? Por que ela tinha feito aquela letra A de adúltera de uma forma tão bonita? Ela se orgulhava de seu adultério?

— Abram caminho! Abram caminho para madame Hester Prynne! Ela subirá no palanque da praça e lá de cima, conforme sua sentença, irá mostrar a todos a sua letra escarlate. Homens, mulhe­res, crianças e velhos, todos poderão ver a letra escarlate da madame Hester Prynne! — dizia um rapaz funcionário da prisão.

DESLUMBRANTE: que deslumbra, seduz, fascinaCABISBAIXA: de cabeça baixa, curvadaLADY: senhora da nobreza, de elevada posição social e maneiras refinadas

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O povo abriu caminho e todos rumaram para a praça. Hester subiu os degraus e ficou no palanque, com seu bebê de três meses no colo. Como mandava sua sentença, ela ali permaneceu, em pé, en­quanto o povo admirava a letra A em seu vestido e fazia comentários. Aquele palanque era tão temido pela população como os franceses temiam a guilhotina. Hester sentiu uma vergonha incrível ao estar naquele palanque, sendo observada pelo peso de mil olhos. Entre eles, o governador, seus secretários, um general, religiosos, juízes, o prefeito e vários bajuladores das autoridades.

Ela mantinha um olhar amargo e DESDENHOSO em relação à multidão, mas por dentro queria encher os pulmões de ar e gritar e depois sair correndo dali para enlouquecer sozinha em algum canto isolado. Para não perder o controle, ela tentava olhar para um ponto fixo, distante e por alguns momentos sua visão parecia tremer e ela via uma massa de ESPECTROS imperfeitos. Eram suas lembranças. Lembrou­se se sua infância, num pequeno vilarejo da velha Inglaterra. Viu o rosto de amor de seus pais na velha e pobre casa de pedra onde tinha crescido. Viu um homem bem mais velho do que ela e, com ele, ela pôde vislumbrar uma nova vida, num novo mundo cheio de esperança. Por fim, viu a praça como ela era, cheia de olhos que olhavam para a sua letra escarlate. Tocou no bordado e seus dedos sentiram a textura de sua vergonha. Apertou o bebê contra o peito com firmeza, a ponto de a criança chorar. Era verdade, a letra e sua filha eram reais, tão reais quanto sua vergonha.

CAPÍTULO 2

E nquanto lutava com a situação de ser alvo do olhar de toda aquela gente, Hester percebeu, com um CALAFRIO

na barriga, que havia uma pessoa bem conhecida na multidão. Ao ver aquele homem de cabelos brancos ao lado de um índio,

DESDENHOSO: que desdenha, menosprezaESPECTROS: figuras vistas em pensamentoCALAFRIO: contração involuntária de músculos, seguida de sensação de frio

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novamente ela apertou seu bebê contra o ventre e novamente a criança gritou.

O homem de cabelos brancos se vestia de um modo diferen­te, com roupas civilizadas e alguns ADEREÇOS indígenas. Já tinha a idade avançada e apertava os olhos, concentrando­se como uma cobra, para melhor identificar a mulher em cima do palanque. Ao reconhecê­la, seu rosto estremeceu em horror e o homem levou alguns segundos para se controlar e voltar a ficar calmo. Quando os olhos dela encontraram os seus, ele colocou o indicador na frente da boca, pedindo que ela se mantivesse em silêncio e depois perguntou a um dos puritanos que assistia ao evento:

— Meu bom senhor, eu lhe peço que me conte, quem é esta mulher aí no palanque? Por que ela está passando por esta vergonha toda na frente do povo?

— Você deve ser um estrangeiro para não saber quem é essa mulher e o que ela fez! — disse o puritano, olhando com desconfiança para o velho e seu amigo índio.

— Sim, sou um estrangeiro. Passei por muitas dificuldades. Enfrentei o mar e a floresta. Sobrevivi a um naufrágio e atravessei vales e montanhas contra a minha vontade até chegar a esta cidade, trazido por este meu amigo índio.

O morador de Boston olhou para os dois ainda com descon­fiança e contou que a mulher era responsável pelo maior escândalo da igreja do pastor Dimmesdale. A senhora Hester Prynne, agora exposta no palanque, tinha chegado a Boston havia dois anos. Ela era casada, mas o marido (um homem culto, habilidoso com as leis, a ciência e a medicina) tinha ficado na Europa resolvendo alguns negócios e mandou a mulher antes.

— Supostamente ele deveria chegar em breve — explicava o puritano —, mas já se passaram dois anos e ainda não chegou. É possível que tenha morrido em um naufrágio. Pela nossa lei, se o marido estivesse presente, a senhora Hester poderia ser condenada

ADEREÇOS: adornos, enfeites

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à morte, mas, na ausência dele, os juízes foram MISERICORDIO­SOS e a condenaram a passar três horas exposta neste palanque da vergonha e depois o resto da vida vestindo a marca da vergonha, a letra A de adúltera, sobre o seu peito.

— Foi uma decisão sábia! Assim ela vai ser um sermão vivo contra o pecado! No entanto, ela não pecou sozinha. Quem é o pai da criança? Quem é o pai daquele bebê que ela sustenta no colo? — quis saber o velho. — Fico revoltado em ver que ele não está no palanque com ela!

— Isso ninguém sabe! A senhora Hester se recusa a dizer o nome dele, mesmo com toda pressão que os juízes fizeram. O que eu acho mais esquisito é que o pai daquela criança certamente está aqui na praça e nesse momento olha para a mulher que sofre no palanque. Ele se esconde na multidão, mas se esquece que Deus o está vendo.

— Ele será conhecido. Ah, ele será conhecido por todos. Tenho certeza disso. Se ele estiver vivo, ele vai ser desmascarado. Ah, vai! — disse o velho.

Depois se despediu do puritano e, na companhia de seu amigo índio, abriu caminho por entre a multidão. Lá do alto, Hester Prynne observava incrédula e com o coração acelerado todos os passos do homem de cabeça branca e do índio que o acompanhava.

Mais tarde, as pernas de Hester já doíam pelo cansaço de estar em pé, segurando seu bebê e sendo alvo dos comentários da cidade inteira. Mas seu SUPLÍCIO estava longe do fim. Ao lado do palanque, no balcão da sede do governo, estavam reunidas várias autoridades. John Wilson, o CLÉRIGO mais antigo de Boston, falava, enquanto a multidão ouvia em silêncio absoluto:

— Senhora Hester Prynne, agora há pouco, conversei com o jovem pastor Dimmesdale. Sugeri a ele que fale com a senhora e que lhe peça que revele o nome de seu parceiro neste pecado lamentável.

MISERICORDIOSOS: que têm misericórdia, compaixãoSUPLÍCIO: execução de uma pena, sofrimento, afliçãoCLÉRIGO: sacerdote cristão

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Porém, o pastor Dimmesdale acha injusto com a natureza feminina fazer que a mulher revele seus segredos em plena luz do dia.

O PÁLIDO pastor Arthur Dimmesdale olhava para o rosto enrugado de John Wilson com preocupação, enquanto o velho clérigo prosseguia:

— Nossa congregação precisa da verdade. Se pecar é uma vergonha, esconder o pecado dentro de nós é uma vergonha ainda maior, você concorda comigo, irmão Dimmesdale?

Na multidão as pessoas murmuravam. Todos os olhares mi­ravam o jovem e querido pastor da comunidade. Com uma voz autoritária, porém respeitosa, o governador Bellingham disse:

— Caro pastor Dimmesdale, a responsabilidade pela alma des­ta mulher é sua. Então cabe a você EXORTÁ­LA a falar a verdade. Vamos lá, eu lhe peço que encoraje esta mulher a falar a verdade e a livrar­se de seu pecado!

Por um momento, o silêncio preencheu todos os milímetros da praça e os olhos do povo miraram a figura do reverendo Arthur Dimmesdale.

— Fale com esta mulher, meu irmão — pediu o reverendo Wilson.

Dimmesdale baixou sua cabeça, como se fizesse uma prece si­lenciosa e depois, olhando nos olhos da moça no palanque, disse:

— Hester Prynne, tu ouviste o que estes bons homens disseram e viste a responsabilidade que eu tenho. Não fiques em silêncio. Pela paz da tua alma, pela tua salvação eu te ROGO que digas o nome dele. Dize bem alto o nome de teu companheiro de pecado e de so­frimento. Não tenhas pena dele, não o protejas por carinho ou por outro sentimento enganado. Dessa forma teu coração vai se aliviar e tu não carregarás mais essa culpa por toda a vida.

A voz do pastor saía trêmula, doce, rica, profunda e quebrada. Ela

PÁLIDO: branco, sem corEXORTÁ-LA: incitá-la, estimulá-la, persuadi-laROGO: suplico, peço com insistência

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carregava mais sentimentos do que o real significado das palavras e todos ali presentes, até o bebê no colo de Hester, sentiam a emoção do pastor.

Por um momento, a população teve certeza de que a mulher no palanque falaria, gritaria o nome de seu amante ou então que o próprio homem se revelaria. Mas ela apenas balançou a cabeça negativamente.

— Mulher! Teu pecado vai além da misericórdia do céu. Fala o nome do pecador e teu arrependimento pode tirar a letra escarlate de teu peito! — gritou o reverendo John Wilson.

— Nunca! — ela disse olhando diretamente para Dimmesdale e não para John Wilson. — A letra está muito marcada dentro de mim, o senhor não conseguiria tirá­la. Eu queria poder suportar a agonia dele assim como suporto a minha.

— Fale, mulher — disse uma voz vinda da multidão. — Fale e dê um pai para a sua filha!

— Não vou falar — gritou Hester com o rosto muito branco. — Meu bebê vai ter apenas um Pai no céu, mas nenhum pai na terra.

Com seu coração generoso e notável, ela não falou. Mesmo quando o reverendo Wilson deu um longo sermão sobre o adultério e o inferno, Hester continuou firme no palco, segurando seu bebê com carinho e firmeza. Quando o evento terminou, Hester e a criança foram novamente encaminhadas para a prisão municipal.

CAPÍTULO 3

Na prisão, Hester Prynne não se sentiu bem. Estava cons­tantemente nervosa e estressada. A criança também

precisava de cuidados e o carcereiro mandou chamar um médico recém­chegado a Boston, seu nome era Roger Chillingworth. Era o mesmo homem de FEIÇÕES envelhecidas e cabelo branco e longo que a observava da multidão, só que agora ele se apresen­tava sem seu amigo índio.

FEIÇÕES: contornos do rosto

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Ao ver a figura daquele homem entrando em sua cela, Hes­ter congelou como se estivesse morta, mas sua filhinha continuou chorando. O homem pediu ao carcereiro para ficar a sós com a paciente. O carcereiro concordou, pois queria que a criança parasse de berrar e que a mãe também se acalmasse para que ele voltasse a ter paz em seu trabalho.

O médico fez um carinho na criança e a observou bem com os olhos atentos. Hester continuava quieta, com uma expressão de espanto no rosto, quando Roger falou:

— Olá, Hester.Controlando a voz para não chorar, ela disse baixinho:— Pensei que você estivesse morto... Cheguei a desejar isso, a

orar por isso, se é que eu posso orar por alguma coisa.— Beba isso aqui, Hester — disse o médico, oferecendo um

líquido retirado de sua maleta.Enquanto falava, o médico apontava o dedo para a letra A estam­

pada no peito, como se quisesse passar o indicador nela, para verificar se era real. O vermelho era tão vivo que parecia estar em brasas. Ela secou o copo e sentou na cama da prisão, onde o bebê agora começava a dormir. Roger estava sentado na única cadeira da cela e falava:

— Hester, não vou nem lhe perguntar quando você se envolveu com outro homem ou como ou por que isso ocorreu. Foi um erro meu deixar você sair da Inglaterra antes de mim e foi uma fraqueza tua deixar que o resto acontecesse. Mas era algo previsível, não? Você é muito linda e jovem. Da Inglaterra era como se eu conseguisse ver essa letra escarlate queimando em seu peito aqui na América.

— Eu errei muito contigo, mas você sabia que eu não lhe amava quando nos casamos. Eu fui FRANCA com você — ela disse.

— Nós dois erramos, mas o homem que nos prejudicou está livre. Quem é ele?

— Não me pergunte isso. Você nunca saberá o nome dele.— Ah, não? Nunca? Saiba que, quando um homem realmente

FRANCA: sincera, verdadeira

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quer uma coisa, ele a consegue. Você pode ter escondido a verdade do povão lá na praça. Pode ter escondido a verdade do governador, do pastor, mas não vai esconder de mim. Eu vou procurar esse homem, assim como procurei a verdade nos livros e o ouro na ALQUIMIA. Não vou matá­lo, nem acabar com sua carreira, mas ele será meu.

Hester pensava que o marido, agora disfarçado de médico mu­nicipal, estava mentindo. Suas palavras eram bondosas, ele assumia parte da culpa, mas seus olhos tinham certo brilho de ódio e a sua voz vinha carregada com raiva.

— Muito bem, Hester, então você não vai falar. Certo. Mas saiba que, enquanto você está aqui presa e com a letra da vergonha bordada no vestido, ele está lá fora livre e sem nenhuma letra costurada na roupa. Mas eu sei que ele tem uma marca profunda por dentro de seu coração e eu vou descobrir quem é ele. Na condição de seu ex­ ­marido, eu tenho esse direito. Só lhe peço uma coisa: assim como você protege o seu amante, peço que me proteja também e que não diga meu verdadeiro nome para ninguém. Posso confiar em você? Jure que não vai revelar minha identidade para ninguém.

— Eu juro. Guardarei o seu segredo como guardo o dele.Alguns dias depois, Hester foi libertada. Seus primeiros passos a

faziam pensar que a luz do sol só existia para que as pessoas pudessem olhar melhor para a letra da vergonha em seu peito. Foram difíceis os primeiros passos e os primeiros dias. Hester era vista e comentada pelo povo. Por isso resolveu se mudar. Foi morar em uma pequena cabana na periferia da cidade, onde já iniciava a ZONA RURAL. Sua cabana tinha sido construída por um antigo colonizador que abandonou a moradia porque as terras eram duras demais para serem cultivadas. Hester não tinha vizinhos naquele endereço.

Ela não fugiu de sua cidade nem de sua punição. Resolveu encarar o desafio de criar uma filha sozinha em uma comunidade

ALQUIMIA: práticas e conhecimentos químicos usados na Idade Média para conseguir a panaceia (remédio para todas as doenças) e a pedra filosofal (fórmula para transformar chumbo em ouro)ZONA RURAL: zona agrícola, campo

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que a tinha condenado. Tirava seu sustento de sua agulha, pois era excelente BORDADEIRA. Contudo, as roupas de Hester eram feias e feitas de tecidos grosseiros e pesados, com cores tristes. A única coisa que se destacava em suas roupas era a letra A.

Mas para sua filha, em contraste, Hester sempre confeccionava roupas lindas, criativas e coloridas que deixavam o bebê e depois a menina cada vez mais graciosa. Hester deu o nome de PEARL para a filha, pois a menina tinha grande valor, e tinha sido “comprada” em troca de tudo que Hester tinha. Ela era o maior tesouro de sua mãe.

As duas se uniram muito e cresceram juntas, isoladas da socie­dade. A criança era linda, viva e forte, e o seu sorriso alegrava Hester Prynne. Quando já tinha idade para conversar e ter uma vida social com as crianças de sua idade, Pearl começou a sofrer muito, devido ao passado da mãe. Quando ia à cidade, Hester sempre levava Pearl. A menina olhava com intensidade as crianças puritanas brincando, dando cascudos nas crianças QUACRES, fingindo arrancar o ESCALPO umas das outras ou assustando umas as outras com imitações de bruxaria, mas nunca parava para fazer amizade com os pequenos puritanos.

Várias vezes as crianças puritanas se aproximavam para zombar da pequena Pearl, que se vestia de forma diferente da moda puritana. Pearl respondia às ofensas À ALTURA, com outros insultos, e não raro com pedras. Excluídas da sociedade humana, mãe e filha se uniram.

Pearl era uma criança que tinha se acostumado a ter pouquíssimos amigos e por isso gostava de imaginar muito, conversava com os objetos, os passarinhos e as flores. Os antigos pinheiros negros que cercavam a propriedade eram como velhos puritanos a vigiar e limitar o comporta­mento da família, enquanto Pearl arrancava com raiva as ervas mais feias do jardim, fingindo serem as criancinhas puritanas, suas inimigas.

BORDADEIRA: mulher que faz bordadosPEARL: pérola em inglêsQUACRES: do inglês quaker. Membros de uma seita religiosa protestanteESCALPO: cabeleira quando arrancada com a pele da cabeça. Arrancar o escalpo era um troféu de guerra para várias tribos indígenas da América do NorteÀ ALTURA: de acordo com a situação

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Quando a garota parecia endiabrada, brincando sozinha, pulan­do, rindo, cantando e correndo, como fazem muitas crianças, Hester se perguntava, com o bordado no joelho:

— Quem é essa menina? Será que ela é filha de algum feitiço, como dizem os puritanos? Não pode ser.

Um dia, angustiada e irritada com a bagunça que a filha fazia, Hester falou:

— Deus do céu, quem é essa menina?— Sou a sua perolazinha, mamãe! — ela disse sem parar

de correr e dançar.— Mas de onde você veio, menina? Quem lhe enviou aqui?

— quis saber a mãe, muito nervosa com o comportamento da filha.— Isso quem quer saber sou eu. Quem é meu pai, mamãe?— Teu pai é o Pai CELESTIAL. O Papai do Céu. Ele que te man­

dou para cá — disse Hester, apontando para cima.— Não é não. Eu não tenho Papai do Céu nenhum! Meu pai

mora aqui na Terra. Diz quem é ele, mamãe. Diz!!!!— Todos nós estamos aqui porque o Papai do Céu nos en­

viou, filha.— Mas e o papai da Terra, quem é?Mas Hester não falou, enquanto lembrava de alguns purita­

nos MALEDICENTES que espalhavam pela cidade que a criança era filha do demônio.

CAPÍTULO 4

A situação piorou quando Hester soube que o gover­nador e as autoridades estavam querendo retirar a

criança de sua GUARDA. Em uma audiência, no prédio do go­verno, Hester ouvia o governador Bellingham:

CELESTIAL: do céuMALEDICENTES: que falam mal dos outrosGUARDA: custódia, proteção, cuidado

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— Minha cara Hester Prynne, nossa sociedade tem questionado muito a situação desta criança. Será que fazemos a coisa certa em confiar a criação e a educação de uma menina a alguém que já errou tanto na vida? Será que a senhora tem condições de criar esta criança de uma forma elevada? Será que a pequena não vai aprender coisas erradas a partir do mau exemplo da mãe? Pensamos que, para evitar isso, devemos afastá­la de você e encaminhá­la para um local onde ela possa aprender as verdades do céu e da terra.

Sentindo o coração tremer em seu peito, Hester falou ao go­vernador:

— Senhor governador, eu posso criar minha filha com todo o amor do mundo. Posso ensiná­la, e o meu passado, o meu exemplo vão mantê­la afastada do que é errado.

— Mas a MÁCULA desta letra em seu peito, Hester, impede que ela possa crescer de forma normal.

Além do governador, estavam presentes na audiência o pastor Dimmesdale, o ex­marido de Hester (o médico Roger Chillingworth), o pastor John Wilson e outras autoridades.

O pastor Wilson se abaixou e seu rosto ficou na altura do rosto de Pearl. Então, com uma voz doce ele perguntou para a criança quem era o pai dela, quem a havia feito. Com a leveza de seus três anos de idade, Pearl disse que não tinha pai, que sua mãe a havia encontrado ao lado de uma bela roseira que existe em frente à porta da prisão.

O governador então disse que o fato de a criança não saber quem era o seu pai e atribuir sua origem a um arbusto era um sinal da “escuridão de sua alma”. Talvez se Pearl tivesse dito que seu pai era o Papai do Céu as autoridades tivessem se contentado, mas com a origem não cristã, o governador tomou a palavra:

— Para mim, o caso está encerrado. Vamos separar esta menina de sua mãe.

— Não! — gritou Hester se abraçando à menina, e prosseguiu

MÁCULA: mancha

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com uma voz ESTRIDENTE: — Deus me deu esta criança, vocês não podem retirá­la de mim! Ela é minha tortura e a minha felicidade.

— Minha pobre mulher... — começou a dizer o pastor Dim­mesdale.

— Eu não vou desistir dela! — Hester tinha os olhos úmidos. — Pastor Dimmesdale, o senhor foi o meu pastor quando eu pertencia à comunidade. Por favor, fale por mim. A minha alma já esteve sob a sua proteção, pastor. O senhor conhece o meu coração e sabe dos direitos que uma mãe tem em permanecer com a sua filha! Ainda mais quando esta filha é tudo que lhe restou, juntamente com a letra escarlate. Cuide disso, pastor! Eu não vou perder minha filha! Cuide disso.

Era um apelo selvagem, de uma intensidade viva e sincera. O pastor não podia ficar indiferente às palavras de Hester.

— Há verdade no que ela diz — começou Dimmesdale com a voz doce, trêmula e no entanto poderosa. — Há verdade no que Hester diz e no que sente. Deus deu a criança a ela. Esta criança nasceu da culpa de seu pai e da vergonha de sua mãe, mas nasceu das mãos de Deus. Hester reconhece o milagre de Deus e que Ele assim deve ter feito para preservá­la das trevas mais profundas do pecado.

— O senhor fala com um ARDOR estranho... — comentou o velho Roger Chillingworth com um sorriso.

— Sim, e de uma maneira convincente. Vamos deixar esta si­tuação como está. A criança fica com a mãe, a não ser que haja um novo evento — sentenciou o reverendo Wilson com a aprovação do governador.

Ao terminar sua fala, Dimmesdale, que regulava em idade com Hester, foi para perto da janela, onde o pôr do sol banhava o seu rosto ainda CORADO pela VEEMÊNCIA do discurso. Pearl, que até então, aos olhos de todos, não passava de um pequeno ELFO sel­

ESTRIDENTE: muito agudaARDOR: entusiasmo, paixãoCORADO: com cor, com o rosto vermelhoVEEMÊNCIA: energia, intensidade, impulsoELFO: ser fantástico da mitologia escandinava, inquieto e capaz de voar

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vagem e briguento, caminhou suavemente até o pastor e com suas duas mãozinhas pegou a mão do pastor e encostou sua bochecha nela, num gesto carinhoso.

Ao ver a cena, Hester pensou: “esta é a minha filha?”, tão acos­tumada que estava com o comportamento hiperativo da menina. Por um instante o pastor ficou sem saber o que fazer, depois fez um carinho na cabeça da menina e beijou a sua FRONTE. Então a criança “voltou ao normal”. Soltando uma risada, voltou correndo para onde estava a sua mãe. Era tão rápida que o reverendo Wilson se perguntava se a menina tocava os pés no chão enquanto corria.

No caminho de volta até sua casa, Hester e Pearl estavam felizes. A noite nascia cheia de estrelas e mãe e filha iam pela estradinha de chão de mãos dadas. Quando ouviram um chamado vindo da mata:

— Psiu! Psiu!Pararam. O rosto da senhora Hibbins apareceu entre as árvores.

Ela era a irmã e a vergonha do governador e, alguns anos depois, foi EXECUTADA como bruxa.

— Venha com a gente. Vamos ter companhia na floresta e eu prometi ao HOMEM NEGRO que traria a bela Hester Prynne.

— Peço desculpas, mas não posso ir. Tenho que cuidar da mi­nha filha. Se a justiça a tivesse levado de mim eu iria de boa vontade para a floresta com vocês e assinaria meu nome no livro do Homem Negro com meu próprio sangue.

— Bem, ainda a veremos por lá — disse a bruxa Hibbins, en­trando na mata.

Hester e Pearl continuaram sua caminhada. Mais uma vez o argumento do pastor Dimmesdale era confirmado: Pearl havia im­pedido que sua mãe pecasse ainda mais.

Roger Chillingworth rapidamente ganhou fama de bom médico. Na verdade a saúde da cidade precisava muito de mais profissionais,

FRONTE: testaEXECUTADA: morta HOMEM NEGRO: o demônio

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pois havia apenas um velho BOTICÁRIO e o barbeiro, que também atuava como cirurgião.

Os anos foram passando e a saúde do pastor Arthur Dim­mesdale começou a dar sinais de fraqueza. Para muitos, seu estado de saúde era decorrente de grandes VIGÍLIAS e jejuns. O pastor era sempre visto andando meio curvado, com a mão sobre o peito, em sinal de tristeza. Preocupados, seus colegas de igreja o aconselharam a visitar o doutor Roger.

Aos poucos o misterioso médico FORASTEIRO foi ficando amigo do pastor. Passavam muito tempo juntos, pois o médico dizia que era fundamental conhecer bem seus pacientes para poder tratar melhor suas enfermidades. Principalmente quando se trata de pacientes inteligentes e com bom coração. Em longas caminhas, o médico e o pastor iam conversando e aos poucos Roger conseguia aprofundar­se no íntimo de seu paciente, como se fosse um caçador de tesouros se EMBRENHANDO numa caverna escura.

Mais tarde Roger sugeriu que seria melhor para o tratamento se ele pudesse morar com o pastor por alguns meses, assim teria acesso à rotinha do sacerdote e poderia desvendar o mistério da fonte de suas angústias. Dimmesdale aceitou a companhia de Roger e os segredos do pastor começaram a ser sugados aos poucos pela habilidade e PERSPICÁCIA do ex­marido de Hester, que todos pensavam que pudesse ter morrido em um naufrágio. Com a intimidade, Roger logo concluiu que o pastor guardava um segredo muito grande que o oprimia e tentava induzir o pastor a revelá­lo:

— Estamos progredindo no tratamento, mas sinto que algo ain­da lhe angustia muito, meu jovem. Você sabe que muitas doenças do corpo são sinais de que há algum problema espiritual? De todos os homens que conheci, você é o que tem o corpo mais ligado ao espírito.

BOTICÁRIO: farmacêutico, dono de uma botica (farmácia)VIGÍLIAS: falta de sono, passar a noite acordado orando ou cuidando de algoFORASTEIRO: estrangeiroEMBRENHANDO: entrando (principalmente no mato), se escondendoPERSPICÁCIA: qualidade de quem é perspicaz (observador e inteligente)

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Se você deseja ser curado, é melhor que você fale para mim que sou seu médico qual é esse problema que tanto atormenta a sua alma!

— Não. Não é um médico humano que vai resolver o meu problema! Quem é você para ousar se colocar entre Deus e um sofredor? — disse Arthur Dimmesdale e em seguida saiu apressado de casa.

Coçando a cabeça, o velho Roger pensava que não havia dú­vidas, algo muito grave atormentava aquele rapaz e ele estava deci­dido a saber o que era. Por isso, naquela noite ele foi até o quarto do pastor e o encontrou dormindo, num sono tão profundo que Roger pôde se aproximar do sacerdote e pôde puxar o cobertor que cobria seu peito e ver, no tórax do rapaz, o milagre horripilante. Sentindo uma presença maligna no quarto, o pastor se mexeu, mas continuou dormindo. O médico alquimista se afastou com uma expressão de selvagem espanto na cara. Alegria e horror dançavam em seu rosto com uma animação terrível.

Após aquela visita secreta, a relação entre os dois continuou aparentemente como antes, mas agora Roger tinha sua vítima numa armadilha, era preciso apenas colocar a peça final, a mola do alçapão, e o médico sabia muito bem como proceder.

Enquanto aumentava sua dor e sua angústia, o pastor Dim­mesdale aumentava também o sucesso entre os fiéis. Seus sermões atraíam muitas pessoas, a igreja estava sempre lotada, as pessoas o cumprimentavam na rua. Mas ele não gostava dessa VENERAÇÃO, não se sentia digno dela. Em casa ele se IMOLAVA e se batia com um chicote, para redimir sua culpa. Passava as noites em claro, sofrendo e se privando de bons momentos.

Numa dessas noites, o pastor saiu de casa como se caminhasse à sombra de um sonho, como se estivesse sob a influência de algum tipo de SONAMBULISMO. Caminhou até o local onde sete anos antes

VENERAÇÃO: admiração profunda, devoçãoIMOLAVA: se torturava, se feria, se sacrificavaSONAMBULISMO: doença do sonâmbulo, pessoa que fala, levanta e anda durante o sono

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Hester Prynne havia sido exposta como adúltera para a cidade inteira. Era o mesmo palanque, feito da negra madeira do carvalho, marcado pelo tempo, pela chuva, pelo sol, pela neve e pelos ventos.

O MINISTRO subiu os degraus do palanque, com a mão co­locada sobre o coração, como se sentisse dor no fundo do peito. Era uma noite sombria de maio, primavera em Boston. Todos dormiam na cidade, menos aquele homem que já tinha escutado os açoites do pastor e que o vigiava constantemente. Dimmesdale estava em cima do palanque. O remorso o tinha levado até ali num impulso. Mas o remorso é irmão da covardia, e a covardia o tinha feito desistir várias vezes. Ele queria muito que a cidade inteira soubesse da verdade. Lá no palanque, ajoelhado na solidão da noite, ele sentia como se o universo inteiro visse a marca escarlate em seu peito nu. Embora vestido, o pastor se sentia nu e, assim, naquele local da verdade, ele gritou muito alto, um grito que atravessou a noite, batendo de casa em casa e RETUMBANDO nas colinas ao longe.

— Pronto! — disse o sacerdote bem baixinho. — A cidade inteira acordou com meu grito e está vindo para cá agora.

Mas ninguém veio. Continuaram dormindo, talvez sonhando com bruxas ou acontecimentos terríveis. Até que, na PENUMBRA, Dimmesdale ouviu uma risada infantil e depois viu a criança e a mãe se aproximando dele.

— Pearl? Hester? Hester Prynne! Mas... o que vocês estão fa­zendo aqui uma hora dessas?

— Nós estávamos na casa do governador Winthrop, ele está em seu LEITO DE MORTE e eu tive que ir até lá tirar suas medidas para a roupa de seu funeral e agora estou voltando para casa. E o senhor, o que faz em cima desse palanque? — Hester tinha o coração acelerado enquanto conversava com seu ex­pastor.

MINISTRO: sinônimo de pastor em igrejas protestantesRETUMBANDO: ressoando, ecoando, repetindo o som com estrondoPENUMBRA: escuro, meia-luzLEITO DE MORTE: cama onde um doente em estado terminal aguarda a morte

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— Eu... Vocês duas já estiveram aqui em cima antes, sete anos atrás, mas eu não estava aqui. Então, se vocês subirem agora, mais uma vez, nós três podemos ficar juntos, Hester! — disse o pastor Dimmesdale com emoção na voz.

Silenciosamente, Hester deu um passo no degrau que levava até o palanque. Levava a menina pela mão. Quando subiram, Dim­mesdale pegou na outra mão da menina e houve ali a avalanche de uma nova vida se esparramando como um rio selvagem no coração do pastor, correndo por todas as suas veias, como se mãe e filha se comunicassem com ele a partir de um calor vital que tocava o seu corpo. Ali no palanque da vergonha, enquanto a cidade dormia, os três formavam uma corrente elétrica.

— Reverendo Dimmesdale — chamou Pearl, quebrando o silên­cio dos três. — Quando nós três vamos ficar juntos na luz do dia?

— Não sei, perolazinha. Mas um dia ficaremos juntos.— Mas quando? — insistiu a garota.— No DIA DO JUÍZO FINAL, nós, você, sua mãe e eu, ficare­

mos juntos. Mas a luz deste mundo não vai ver nosso encontro... — ia respondendo o religioso quando algo muito INSÓLITO aconteceu.

Uma luz brilhou ao longe por todo o céu amortecido de nu­vens. Era um desses meteoros que cruzam o céu noturno de vez em quando, mas sua luz era tão radiante cruzando o horizonte que o esplendor daquela luminosidade súbita parecia querer revelar todos os segredos e unir todos os que pertencem um ao outro.

Mas aquele clarão também revelou a figura de certo velho de cabelos brancos que espiava o trio sobre o palanque. Ao ver seu médico por menos de um segundo, Dimmesdale sentiu um calafrio. Perguntou para Hester se ela o conhecia, mas ela nada falou, pois tinha jurado não revelar a identidade do marido, assim como não tinha revelado a identidade de Dimmesdale, o seu amante.

DIA DO JUÍZO FINAL: segundo a Igreja é o dia em que, no fim do mundo, Deus irá julgar as pessoasINSÓLITO: incomum, extraordinário

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CAPÍTULO 5

N os dias seguintes Hester ficou muito preocupada com a saúde de Dimmesdale. Ele estava emocionalmente

fragilizado, atormentado demais. Todos os anos de culpa haviam sido agravados pela amizade com Roger. Seu ex­marido estava ma­nipulando o pastor e Hester sabia disso e tinha medo dos planos do médico.

Por isso resolveu ir falar com ele. Queria resolver a situação da melhor forma possível. Quando tinha conversado com o ex­marido, sete anos antes, logo após toda a humilhação do palanque, ela estava muito fraca e nervosa. Mas agora era uma mulher mais forte e tinha aprendido a viver com a sua marca de adúltera.

Quando chegou perto do ex­marido foi gritante a diferença. O homem estava muito mudado. O rosto, antes de um homem sereno e intelectual, agora estava transformado. Roger virara um homem ansioso, com a cara fechada e o aspecto cruel. Quando sorria, era um riso falso e seu olho tinha um brilho amargurado, como se sua alma estivesse em chamas.

Hester disse que estava cumprindo a sua promessa, nunca falou para ninguém quem era realmente o médico. Mas Roger não estava se comportando de forma digna, pois seu contato com Dimmesdale deixava o pastor atormentado, nervoso, o matava aos poucos quase que diariamente. Roger disse que tinha que fazer o que fez, para dar uma lição no religioso que roubou a sua esposa.

— O ódio transformou um homem sábio em um demônio! — ela disse com franqueza. — Será que você já não o torturou o bastante?

— Não cabe a mim perdoar ninguém — ele respondeu de forma amarga. — Agora, vá embora e faça o que quiser!

Ao recordar dos primeiros anos de seu casamento, quando ainda vivia na Inglaterra, Hester chegou à conclusão de que aqueles momentos que antes pareciam ter sido felizes foram na verdade uma

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grande enganação. Ela era apenas uma menina e foi LUDIBRIADA por um homem culto, vivido e décadas mais velho do que ela. Hester concluiu que ele a havia traído com o casamento e com a decisão de mandá­la sozinha para Massachusetts.

À medida que Pearl crescia, Hester ia vendo nela uma amiga, além de uma filha. Mas a garota cada vez mais fazia perguntas e queria entender a situação. Hester dizia que usava a letra escarlate porque o fio dourado que contornava o A vermelho era banhado a ouro. A menina não se dava por satisfeita e queria saber por que um A, mas Hester nunca era capaz de dar a resposta correta.

Um dia a garota brincava no sol, quando a mãe viu Arthur Dimmesdale se aproximar. Hester pediu à filha que voltasse para casa e ficou espiando o pastor. Quando se viram, chegaram a pensar que um fosse o fantasma do outro, mas eram reais e estavam juntos, no bosque. Ficaram em silêncio por algum tempo, depois falaram sobre o tempo, a saúde e então entraram no assunto que remoía o fundo de seus corações.

Dimmesdale falou para Hester que era insuportável a pressão que sentia. Era amado pela comunidade que via nele e em seus ser­mões a luz do céu, enquanto, por dentro, ele estava soterrado pelas trevas da amargura e da agonia. Ele aparentava uma coisa e era outra e isso tirava toda a sua paz.

Hester disse que ele poderia contar com ela para desabafar, sempre que precisasse, mas que deveria ter cuidado com os falsos amigos.

— Que falsos amigos? — quis saber o pastor.— Esse médico que agora mora com você e que as pessoas

chamam de Roger Chillingworth. Ele era o meu marido!Dimmesdale se agarrou a uma árvore para não cair ao ouvir

a verdade. Hester contou da promessa e pediu perdão por não ter contado antes.

— Eu não lhe perdoo, Hester! Você é responsável por meu coração doente e culpado estar exposto.

LUDIBRIADA: enganada

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— Arthur, você vai me perdoar, sim — gritou Hester. — Deixe que Deus me puna, mas você vai me perdoar.

O pastor estava ajoelhado e Hester correu em desespero para abraçá­lo e pousou sua cabeça em seu ombro. Ela só o soltaria quando ele a olhasse. Após alguns segundos sentindo a respiração e o calor terno dela, ele disse:

— Hester, eu te perdoo e tomara que Deus possa perdoar a nós dois. Acredito que o nosso pecado não seja pior do que o pecado daquele velho que tenta se vingar da gente. Ele violou a santidade do coração humano e nós nunca fizemos isso.

— Nunca — disse Hester, com a segurança de uma mulher que havia enfrentado o preconceito do mundo e aprendido com ele a viver de forma mais firme.

— Mas agora temo um problema maior, Hester. Se ele sabe quem eu sou e se você não vai mais guardar o segredo sobre a iden­tidade dele, será que ele não vai me denunciar?

— Eu não sei, mas ele deve ter um plano horrível para nós — ela disse, enquanto conversavam sentados na mata.

Dimmesdale sugeriu que Hester voltasse para a Europa, assim ficaria longe da pressão social puritana e poderia recomeçar sua vida. Mas ela disse que a vergonha já estava com ela e que por isso não valeria a pena fugir, porém sugeriu que ele viajasse, que partisse.

— Mas eu não tenho forças nem coragem para enfrentar o mundo sozinho. Não consigo ir sozinho, Hester.

— Você não irá sozinho! — ela disse num sussurro profundo.O reverendo Dimmesdale em seus sonhos queria muito partir

com Hester, mas não sabia como dizer. Mas ela era TALHADA pelos sete anos em que suas professoras foram a Vergonha, o Desespero e a Solidão. Ela tinha amadurecido muito com a maternidade e parecia que estava pronta para propor a fuga há muito tempo.

Ela o ajudou a não pensar no passado e, para incentivá­lo e para simbolizar a virada em suas vidas, arrancou a letra escarlate do

TALHADA: preparada

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vestido e a jogou longe, no mato. O ESTIGMA tinha sido arrancado e Hester sentia um delicioso alívio na alma. Ela não tinha se dado conta do peso daquela letra bordada, até se livrar dela.

Depois, chamou a menina para que visse o pastor. Não falou que ele era seu pai, mas disse que em breve morariam juntos os três em uma casa com lareira e que seriam muito felizes. Pediu que a menina buscasse a letra caída no chão, mas a menina se recusou. Hester a pegou de volta e depois a recolocou no peito, pois ainda tinha alguns dias a cumprir antes da fuga.

A bordadeira e o pastor combinaram tudo. Partiriam num na­vio que em quatro dias iria para Bristol, na Inglaterra. Em três dias o ministro encerraria sua carreira no sermão do dia das eleições e já apontaria um substituto. No dia seguinte partiria com a sua família para uma nova vida.

Arthur Dimmesdale se animou muito com a nova perspectiva que sua vida ganhava. Agora olhava para a cidade e para sua própria casa e suas coisas com bom humor e com a energia de estar vivo. Mas essa sensação que num primeiro momento foi benévola, num segundo momento fez que ele voltasse a se apegar às coisas da cidade, à sua vida antiga, à sua comunidade.

— Será que eu fui tentado pelo demônio naquela floresta? Que tentação é essa que me faz largar minha igreja por um sonho de felicidade que nada mais é do que um pecado mortal? — pensava o pastor muito indeciso sobre o que fazer de sua vida.

Quando entrou em casa, confuso, mas de certa forma contente por estar resistindo à tentação, Dimmesdale tomou um enorme susto:

— Olá, seja bem­vindo. Você parece pálido, pastor Dimmesda­le. Quero falar com você. Como o sermão da eleição se aproxima, é importante que o pastor esteja forte para aguentar mais um ano como ministro da comunidade — disse Roger Chillingworth com seu olhar MORDAZ.

ESTIGMA: sinal, marcaMORDAZ: destrutivo

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— Não preciso mais que você more aqui comigo nem que me visite como médico e muito menos de seus remédios, doutor. Já me sinto bem e em breve não vou mais me preocupar com os fiéis. Agradeço sua ajuda, mas preciso retomar a minha vida sozinho.

Roger foi embora intrigado. Sozinho, o pastor começou a es­crever as páginas de seu sermão final. Escreveu tudo de um fluxo só, e a noite voou empurrando a pena que ele usava para redigir, até que o sol raiou sobre sua escrivaninha e o encontrou com um enorme texto sob as mãos.

Um dia antes do embarque, Hester foi ao mercado. Quando passou em frente à prisão, reparou que a roseira selvagem ainda es­tava lá ao lado da porta. Era um símbolo da paixão que permanecia. A cidade estava toda agitada com a posse do novo governador. Pela manhã ela reservou as passagens no barco, mas à tarde, de longe o capitão do navio que os levaria acenou para ela e informou que, di­zendo­se amigo dos dois, o médico Roger também havia comprado uma passagem para a mesma CABINA.

Era o mesmo dia do sermão de Arthur Dimmesdale, que entrou triunfante na igreja, com o passo firme e sem a mão no coração, como há anos fazia. Hester viu o pastor entrar na igreja e ficou espantada com a transformação. Antes um ser AMORFO, agora o pastor era todo energia e vitalidade. Seus pensamentos foram desfeitos quando a senhora Hibbins, a bruxa, a cutucou e falou:

— O que você fez com esse homem lá na floresta, hein? Nunca vi tamanha transformação!

Hester alegou que não sabia do que a bruxa falava, mas ela insistiu dizendo que conhece muito bem a floresta e que tinha visto os dois por lá. A bruxa disse que Dimmesdale não escaparia de seu pecado e foi embora. A igreja estava cheia e com as portas abertas. Hester ouvia o sermão do lado de fora, perto do palanque. Havia

CABINA: quarto em um navioAMORFO: sem forma, sem energia

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EXTASIADA: arrebatada, absorta, elevadaNOVA INGLATERRA: como eram chamadas as primeiras colônias britânicas nos EUAOFÍCIO: profissão

muitas pessoas também do lado de fora, que a olhavam e comenta­vam sobre a letra em seu peito.

Dentro da igreja ecoava a voz triunfal e poderosa de Arthur Dimmesdale, embora houvesse um fundo de angústia em todas as suas palavras. A multidão parecia EXTASIADA com o sermão. Era o grande momento de Dimmesdale como clérigo. Sua eloquência evo cava os valores da mais pura santidade na NOVA INGLATERRA.

Quando acabou o sermão, o pastor saiu determinado da igreja. Estava esgotado, tinha dado tudo de si e falado quase tudo o que sentia. Muitos lembrariam aquele sermão como um dos melhores da história e as pessoas deixavam a igreja muito contentes. Mas Arthur Dimmesdale saía do templo com uma pressa inexplicável, procurando por sua mulher.

— Hester — o pastor chamou, no meio da multidão.Ela olhou sem saber o que fazer enquanto ele se aproximava

dela e da menina.— Hester Prynne e Pearl! — disse sorrindo. — Venha aqui,

minha perolazinha.O velho Roger tentou impedi­lo, chegando junto dele e o pu­

xando pelo braço:— Pare com isso. Você vai arruinar a sua fama e difamar o seu

santo OFÍCIO.— Saia daqui, Roger. Você chegou tarde demais e sua palavra

não mais me influencia. Vou fazer o que precisa ser feito — disse o pastor se desvencilhando do médico.

A multidão olhava curiosa aquela movimentação incomum na saída da igreja, enquanto Dimmesdale pegava na mão de sua amada e subia no palanque da vergonha.

— Hester, minha doce Hester Prynne. Estou fazendo agora o que deveria ter feito sete anos atrás, por falta de coragem.

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Ela olhou para ele incrédula, enquanto a multidão aguardava em silêncio. O pastor falou:

— Povo da Nova Inglaterra, eu sou um pecador! Estou aqui, no palanque da vergonha, como pecador, no local onde eu deveria ter subido sete anos atrás, para acompanhar esta mulher. A letra escarlate no peito dela, que tanto incomodou a vocês é a mesma letra que eu carrego em meu coração. Hester teve que mostrar sua vergonha durante todos esses anos, enquanto eu ocultava de todos vocês a verdade de meu pecado. Mas Deus estava vendo e o demônio também, enquanto me tentava e me angustiava. Mas agora eu criei coragem e quero que vocês todos da minha comunidade sejam testemunhas disso!

O reverendo Arthur Dimmesdale abriu sua camisa e expôs para o público inteiro uma grande cicatriz na forma de uma letra A marcada em seu peito. Com o rosto vermelho, o ministro ficou expondo seu peito marcado enquanto a multidão olhava ATÔNITA, até que, sem forças, Dimmesdale caiu no piso duro do palanque.

Pearl se aproximou e beijou o rosto de seu pai e depois se retirou, enquanto ele morria nos braços de Hester, dizendo que Deus havia sido misericordioso com ele. Porque havia permitido que o pastor se redimisse e pagasse seus pecados em vida, através do sofrimento, da tortura mental imposta pelo médico e da exibição pública de seu pecado. E morreu nos braços de Hester, enquanto o povo murmu­rava seus comentários sem acreditar no que via.

EPÍLOGO

A pós a morte do pastor, muitas versões sobre o aconte­cimento foram surgindo na cidade. Uns diziam que o

pastor havia feito a cicatriz em si mesmo para se FLAGELAR devido à sua culpa. Outros afirmavam que Roger Chillingworth era um bruxo

ATÔNITA: pasma, admiradaEPÍLOGO: conclusão de um texto literárioFLAGELAR: castigar, açoitar

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e que seus remédios e seus feitiços tinham feito que a letra escarlate surgisse no peito do clérigo. Para outros a marca tinha sido produzida pelos dentes do remorso localizados no coração de Dimmesdale.

O que havia de certo era que, com o falecimento do ministro, Roger viu suas forças e o resto de sua energia abandonar seu corpo, como se fosse a vingança a única coisa que o mantivesse vivo. Faleceu poucos meses após a partida de Dimmesdale, mas deixou uma con­siderável herança em terras e propriedades para a pequena Pearl.

Hester e sua filha se mudaram e desapareceram de Boston. Mas, anos depois, Hester voltou sozinha e voltou a usar o símbolo no vestido e nunca mais o retirou de seu peito. Só que sua devoção era tanta, que a letra A mudou de significado para aquela população que tinha acompanhado o drama de Hester. Agora a letra significava Apoio ou Auxílio e não mais Adúltera, pois Hester ajudava a todos na cidade, como se sua vocação fosse proteger o próximo.

E após muitos anos um novo túmulo foi construído no cemi­tério da cidade, ao lado de um velho túmulo. O espaço entre eles era pequeno, permitindo que o pó dos dois que ali descansavam pudesse se misturar e, na superfície da terra, uma só lápide servia para os dois corpos. Na pedra simples dava para ler:

“Num campo SABLE, a letra A GOLES”

SABLE: a cor preta, lutoGOLES: a cor vermelha

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ROTEIRO DE LEITURA

Onde e quando se passa a história?O narrador é um personagem da história ou é um observador oculto?Qual grupo religioso é retratado na história?Por que Hester Prynne foi presa e condenada a ficar três horas no palanque da praça?Qual era a letra escarlate e o que ela significava?Com quem Hester Prynne era casada?Por que o marido de Hester a mandou sozinha para a América?Quem era o pai de Pearl?Após ter saído da cadeia, onde Hester foi morar e como ela sus-tentava sua filha?Por que Pearl era chamada de elfo por sua mãe?Por que o governador queria separar Pearl de Hester?Quando perguntada sobre quem era o seu pai, o que Pearl disse para as autoridades?Você concorda com o tratamento dado a Hester no começo da história? Se você fosse a autoridade de Boston na época da história, o que faria?No lugar de Hester Prynne, você teria confessado quem era o pai do bebê? Por quê?E no lugar de Roger Chillingworth, o que você faria?Os costumes e as leis mostradas neste livro realmente eram apli-cados nos EUA cerca de 350 anos atrás. Você gostaria de viver naquela época? Por quê?Atualmente em alguns países como a Nigéria mulheres adúlteras podem ser apedrejadas em praça pública. Qual sua opinião a res-peito disso?De que parte da história você mais gostou? Por quê?E a parte que menos gostou, qual foi? Por que você não gostou?Forme um trio e escolha um trecho do livro para ser apresentado ao resto da turma. Se quiser, você pode fazer modificações no texto original.

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A Letra Escarlate Nathaniel Hawthorne

BIOGRAFIA DO AUTOR

Nathaniel Hawthorne nasceu na cidade de Salem, no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos, em 4 de julho de 1804. Seus antepassados eram puritanos e faziam parte dos primeiros imi -grantes que começaram a colonizar os EUA. Um parente dele, John Hawthorne, fez parte do tribunal que condenou as chamadas bru-xas de Salem em 1692.

O pai de Hawthorne morreu em um naufrágio em 1808 e sua mãe o criou de forma superprotetora e isolada. Em sua infância, Nathaniel leu muito. Os livros eram os grandes amigos dele e aju-daram a formar o grande escritor que ele foi.

A Letra Escarlate foi publicado em 1850, sendo desde o início um grande sucesso editorial. A história se passa no século XVII, durante as primeiras décadas da colonização dos Estados Unidos. O texto retrata o drama de pessoas que viviam em uma sociedade que tentava abolir o pecado do adultério. Desejo, vergonha, culpa, moralidade e vio-lência fazem parte dos acontecimentos que exibem formas não tão frequentes de dignidade humana. Após terminar de ler o romance para sua esposa, Hawthorne escreveu:

— Parti seu coração e a mandei para a cama com uma tremen-da dor de cabeça, o que eu vejo como sinal de um grande sucesso.

Hawthorne faleceu no dia 19 de maio de 1864, mas sua prota-gonista, Hester Prynne, permaneceu e é hoje uma figura clássica na literatura mundial.

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