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ISSN 1415-6490

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ISSN 1415-6490

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Ficha Catalográfica elaborada por Ilza Almeida de Andrade CRB 9/882

Esta revista não assume a responsabilidade das idéias emitidas nos diversos artigos,cabendo-as exclusivamento aos autores. / É permitida a reprodução total ou parcial

dos artigos desta revista desde que seja citada a fonte.

Indexada em / Indexed in: Base de Dados RVBI (Senado Federal) - LATINDEXSolicita-se Permuta / Solicitase Canje / Request Exchange / On Demande Échange / VogliamoCambio / Wir Würden Wus Über Einen Austausah Mit Ihrer Zeitschrift Freuen

REITORWilmar Sachetin Marçal

VICE-REITORCesar Caggiano Santos

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃOPró-Reitor: Prof. Dr. Alamir Aquino Corrêa

Diretora de Pós-Graduação: Prof. Dra. Vera Lúcia Tieko SuguihiroDiretor de Pesquisa: Prof. Dr. Edison Miglioranza

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOSDiretor: Prof. Anísio Ribas Bueno Neto

Vice-Diretor: Profa. Vilma Aparecida do AmaralChefe do Departamento de Direito Privado: Profa. Marília Salerno

Chefe do Departamento de Direito Público: Prof. César Bessa

CURSO DE MESTRADO EM DIREITO NEGOCIALCoordenador: Prof. Dr. Luiz Fernando Belinetti

Vice-Coordenadora: Profa. Dra. Marlene Kempfer Bassoli

Scientia Iuris : revista do curso de Mestrado em Direito Negocial da UEL / Departamento deDireito Público e Departamento de Direito Privado, Centro de Estudos Sociais Aplicados,Universidade Estadual de Londrina. – Vol. 1, N. 1 (Jul./Dez. 1997) - . –Londrina : Ed. da UEL, 1997- . v. ; 22 cm

Periodicidade anual, a partir de 1998, com designação numérica apenas de volume.Descrição baeada em: Vol. 1, N. 1 (Jul./Dez. 1997).ISSN 1415-6490

1. Direito – Periódicos. I. Universidade Estadual de Londrina. Centro de Estudos SociaisAplicados. Departamento de Direito Público. II. Universidade Estadual de Londrina. Centro deEstudos Sociais Aplicados. Departamento de Direito Privado.

34(05)

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ISSN 1415-6490

LONDRINA - PARANÁ

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SCIENTIA IURISISSN 1415-6490

COMISSÃO EDITORIAL / EDITORIAL BOARD

Editora / EditorMarlene Kempfer Bassoli

Titulares:Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira (UNIMAR)

Maria de Fátima Ribeiro (UNIMAR)Rozane da Rosa Cachapuz (UEL)Luiz Fernando Belinetti (UEL)Luiz Otávio Pimentel (UFSC)

Paulo Roberto Pereira de Souza (UEM)Ruy de Jesus Marçal Carneiro (UNIMAR)

Suplentes:Lourival José de Oliveira (UEL)

Adauto de Almeida Tomaszewiski (UEL)Sandra Aparecida Lopes Barbon Lewis (UEL)

Assessoria Técnica:Alexandre Sturion de Paula, Carolina Vieira Ribeiro de

Assis Bastos, Eder Fernandes Monica, Raquel Palegari, Samia Moda,Simone Vinhas de Oliveira, Wesley Tomaszewiski

Secretaria de Apoio: Francisco Carlos Navarro

CONSELHO CONSULTIVO / CONSULTIVE BOARD

Curso de Mestrado em Direito NegocialUniversidade Estadual de Londrina/Centro de Estudos Sociais Aplicados – CESA

Campus Universitário – CEP 86051-990 – Londrina – Paraná – BrasilFone/Fax: (43) 3371-4693 – E-mail: [email protected] page: http://www.uel.br/pos/mestradoemdireito

Clayton Reis (UFPR)Delamar José Volpato Dutra (UFSC)

Fernando Faccury Scaff (UFPA)Gustavo Jóse Mendes Tepedino (UERJ)

Jesus Castillo Vegas (Universidad de Valladolid)João Bosco Lee (PUC-PR-Curitiba)

José Alfredo de Oliveira Baracho (UFMG) José Lamego (Universidade de Coimbra)

José Ribas Vieira (UGF)

José Roberto dos Santos Bedaque (USP)Leonardo Greco (UGF e UERJ)

Luiz Edson Fachin (UFPR)Maria Francisca Carneiro (UFPR)Odete Maria de Oliveira (UFSC)

Olavo Ferreira Neto (ITE - Bauru)Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ)

Roberto Luiz Silva (UFMG)Welber Barral (UFSC)

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SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 1-308, 2007 5

S U M Á R I O / CONTENTS

Editorial ........................................................................................................................................ 7

Regulação e concorrência: Espécies do mesmo gêneroRegulation and competition: Specimens of the same genre

Carla Marshall ......................................................................................................................... 9

A proteção da capacidade contributiva tributária pelos direitos humanos internacionaisThe protection of the contributive capacity of taxes by the international human rights

Érico Hack ............................................................................................................................ 19

Regulação jurídica, políticas públicas municipais e responsabilidade social dasempresasLegal regulation, municipal public policies and Companies’ socialresponsibility

Saulo de Tarso Silvestre Sanhueza ManriquezFabiane Lopes Bueno Netto Bessa ................................................................................... 39

A cláusula geral do abuso de direito como função longa manus do Instituto daResponsabilidade CivilThe general clause of right abuse as longa manus Function of CivilResponsibility Institute

Franciel Munaro ................................................................................................................... 57

Política econômica e EstadoEconomic policy and State

Giovani Clark ........................................................................................................................ 73

O (re) clamar do princípio da proporcionalidade: acesso à justiça na constituiçãoThe claiming of the principle of proportionality: the access of justice in theconstitution

Lizana Leal LimaValéria Ribas do Nascimento ............................................................................................. 85

Tributação ambiental: o tributo extrafiscal como forma de proteção do MeioAmbienteEnvironmental taxation: protecting environment trhough extrafiscal taxing

Stefania Eugenia BarichelloLuiz Ernani Bonesso de Araújo ...................................................................................... 113

Reforma federalista e reengenharia tributária como pressupostos para a reduçãodas desigualdades regionaisFederalist reform and tax reengineering as prerequisites for the reduction ofregional inequalities

Aldimar Alves Vidal e Silva .............................................................................................. 133

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SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 1-308, 20076

Os princípios econômicos constitucionais e a positivação pela lei de falências erecuperação das empresasThe economic constitucional principals and the positivation by the law ofbankruptcies and recovery of the companies

Henrique Afonso Pipolo .................................................................................................. 145

A cláusula social na OMC: Por uma inter-relação efetiva entre OMC e OIT e orespeito aos direitos fundamentais dos trabalhadoresThe social clause in the OMC: For a permanent interrelation between OMCand OIT and the respect to the basic rights of the workers

Maria do Socorro Azevedo de Queiroz ........................................................................ 165

Imutabilidade das decisões: os limites objetivos da coisa julgadaDecision´s immutability: the objective limits of the clain preclusion

Thaís Amoroso Paschoal .................................................................................................. 185

Morosidade do poder judiciário: Prioridades para a reformaThe slowness of the judiciary: Priorities for reform

Vera Lúcia Feil Ponciano .................................................................................................. 209

A globalização e o ressurgimento da Lex MercatoriaThe globalization and the reemerging of the Lex Mercatoria

Cícero Krupp da Luz ........................................................................................................ 227

A lei de biossegurança sob a abordagem da ética discursivaThe law of biosecurity under the boarding of the discourse ethics

Valkíria Aparecida Lopes FerraroSimone Vinhas de Oliveira ............................................................................................... 243

A proteção internacional dos direitos humanos e o direito internacional domeio ambiente: considerações iniciaisThe international protection of human rights and the international right of theenvironment: initial considerations

Ana Karina Ticianelli MöllerTânia Lobo Muniz ............................................................................................................. 259

Instrumentos econômicos de proteção do meio ambiente: reflexões sobre atributação e os pagamentos por serviços ambientaisEconomic intruments of environmental protection: reflexions about thetaxation environmental and the payments for environmental services

Carolina Vieira Ribeiro de Assis Bastos ........................................................................ 279

Instruções aos Autores / Instructions for Authors ................................................... 295

Lista de Revistas Permutadas / List of Exchange Journals .................................. 301

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SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 7-8, 2007

7

E D I T O R I A L

É com grande satisfação que apresentamos o décimo-primeiro

volume da revista Scientia Iuris.

Este número conta com diversos trabalhos de docentes, discentes

e colaboradores externos ao programa, referentes a temas

relacionados às linhas de pesquisa, criteriosamente selecionados

pela comissão editorial.

A partir deste ano a revista passou a integrar o sistema RVBI

da Biblioteca do Senado Federal, demonstrando o grau de

maturidade científica e técnica alcançado pela publicação.

Todavia, é momento também de grande pesar, pois

recentemente sofremos a perda do inesquecível professor Doutor

Nely Lopes Casali, um dos grandes responsáveis pela existência

do programa de mestrado em direito na Universidade Estadual

de Londrina.

Professor de escol, notabilizado pelo rigor, seriedade e grande

conhecimento jurídico, era estimado e admirado pelos amigos e

por milhares de alunos que tiveram o privilégio de receber seus

ensinamentos. Ficará para sempre gravada em nossas mentes e

em nossos corações a figura formidável que foi o homem e o

jurista Nely Lopes Casali.

Agradecemos a todos que contribuíram para a publicação do

volume, e especialmente às Coordenações dos Cursos de

Especialização em Direito do Estado e Direito Empresarial, pelo

apoio financeiro.

Prof. Dr. Luiz Fernando BelinettiCoordenador do Programa de Mestrado em

Direito Negocial da UEL

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SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 9-18, 2007 9

Regulação e concorrência: espécies do mesmo gênero

REGULAÇÃO E CONCORRÊNCIA: ESPÉCIES DO MESMO GÊNERO

REGULATION AND COMPETITION: SPECIMENS OF THE SAME GENRE

Carla Marshall*

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo trazer algumas reflexõesacerca do estudo da regulação e da concorrência no Brasil. Em seguida,trabalha os modelos de intervenção do Estado na economia e as regrascontra o abuso do poder econômico. Por fim, estuda a ConstituiçãoEconômica de 1988 e a Lei Antitruste.

Palavras-chave: Regulação. Concorrência. Política de defesa da concorrência.

Abstract: The present work intends to bring some reflections on thestudy of economic regulation and competition in Brazil. Following itrelates patterns of the state intervention in the economy and the rulesagainst the abuse of the economic power. Finally it studies the EconomicConstitution of 1988 and the Defense of the Competition law.

Keywords: Economic regulation. Competition. Competition policy.

1 ABORDAGEM INICIAL

A Constituição de 1988 foi um marco, um divisor de águas em diversossentidos, dentre eles a atribuição da titularidade da exploração da atividadeeconômica à iniciativa privada, de acordo com o preconizado pelo art. 1º. e 170.

As temáticas da regulação e concorrência encontram-se previstas no título daOrdem Econômica e Financeira do texto constitucional vigente. Com efeito,tangenciam-se seus universos, mas não podem ser consideradas sinônimas. Ocerne desta questão reitere-se, consiste, portanto, no fato da titularidade daexploração da atividade econômica encontrar-se em mãos da iniciativa privada,cabendo, contudo, ao Estado orientar as atividades direcionadas aoaperfeiçoamento do interesse público e social.

* Doutora em Direito Econômico pela UGF; Professora Convidada do Programa deMestrado em Direito da UNINCOR; Professora Adjunta de Direito da FaculdadeEvandro Lins e Silva – IBMEC/RJ; Membro das Comissões de Direito Comercial, deDireito Administrativo e de Direito Comunitário do Instituto dos Advogados doBrasil (IAB); Membro da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/RJ;Procuradora Federal.

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10 SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 9-18, 2007

Carla Marshall

Na verdade, originariamente o Estado vinha a ser o concretizador do interessepúblico, todavia, por não dispor de recursos suficientes disponibiliza ao particulara possibilidade de investimentos no país, aperfeiçoando o princípio dasubsidiariedade e culminando na imperiosidade de elaboração de normas quedisponham sobre a disciplina relativa à concorrência e à regulação da atividadeeconômica.

Para alguns doutrinadores, especialmente de orientação econômica a naturezade ambas é comum, ou seja, são espécies do mesmo gênero.

Segundo Mario Possas (2002, p. 59) “objetivo central da regulação não éconcorrência, e sim a eficiência. Historicamente, foi o conceito de monopólionatural que fundamentou a regulação econômica nos Estados Unidos e, porextensão, em outros países”.

Na verdade, em ambos os casos, ou seja, tanto na regulação como naconcorrência, está-se falando em estabelecimento de regras que norteiam seusuniversos. Ocorre que, reitere-se, os universos peculiares se tocam.

Continuando com Possas (2002, p. 62) “a regulação stricto sensu, é uma regulaçãoativa que atua principal, mas não exclusivamente, no setor de infra-estrutura eem outros setores estratégicos, como a saúde, por exemplo.” Com efeito, estaregulação que é objetivo das agências reguladoras, que culmina em intervençãono mercado.

De outro lado, existe uma regulação denominada de reativa que atua de formamais ampla e não pontual, são intervenções mais genéricas e que, na verdade, sãoatuadas pelos órgãos de defesa da concorrência.

Segundo Ruy Santacruz (2002, p. 155):

Regular é garantir acesso ao produto de boa qualidade a preço justo. Aregulação se torna necessária quando não há concorrência e se verifica oabuso do poder econômico, abuso do poder de mercado, ou seja, a imposiçãode preços desfavoráveis ao comprador, em virtude do poder de monopóliodo vendedor. Nesse caso, cabe ao Estado restituir o equilíbrio no mercadoentre quem vende e quem compra.

A expressão “preço justo” precisa ser contextualizada, na medida em quecomporta inúmeros entendimentos. Na verdade, tal expressão melhor écompreendida com a existência de competição, daí ser imperioso que se estabeleçaa concorrência. Contudo, inolvidável o fato de que a concorrência não é perfeitae, portanto, carece de atuação do Estado, no sentido do estabelecimento de regrasque visam norteá-la, viabilizando, com isso, a condição do consumidor de ter oque escolher e cotar preços no mercado e, em conseqüência, equilibrando o mercado.

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Regulação e concorrência: espécies do mesmo gênero

A Constituição mais uma vez vem em socorro desta questão ao indicar noart. 163 que: “a lei reprimirá o abuso do poder econômico”, que, por sua vez, vê-se concretizada pela Lei n. 8.884/1994, Lei Antitruste. Donde se conclui que opoder econômico não é ilícito, mas o abuso do mesmo pelos entes empresariaisé que pode gerar desvios ao mercado, inclusive prática de atos predatórios.

2 AMBIENTE CONCORRENCIAL

Com o acirramento do processo concorrencial no país, após a aberturaeconômica na década de 90, houve verdadeira revolução das estratégias decondutas das empresas nacionais, muito embora a alta inflação houvesse retardadoo avanço empresarial.

Diante desse quadro tornou-se evidente a necessidade de efetivaimplementação de uma legislação de defesa da concorrência, uma vez que ointervencionismo já havia sido devidamente realinhado, fazendo-se fundamentala determinação das regras do jogo de mercado.

Na verdade, a política antitruste ou de defesa da concorrência não consisteem um instrumento de controle de preços, sua atuação se dá sobre as condutasempresariais consideradas anticompetitivas, ou seja, ação repressiva e sobre ocontrole das estruturas dos mercados, ou seja, ação preventiva.

Tarefa bastante complicada a atuação sobre práticas anticompetitivas, umavez que para combatê-las é necessária a identificação das formas concorrenciaisdesejáveis ou lícitas e, tal apreciação é de cunho subjetivo e específico o quedificulta sobremaneira sua interpretação.

Com efeito, há conduta anticompetitiva quando existe o poder de mercadoimpondo suas condições e preços ao cliente, pois se há muitas empresas nomercado, o consumidor tem sempre outras opções, não se consolidando o aludidopoder. Casos típicos de condutas anticompetitivas são o monopólio e a formaçãode cartel; no primeiro uma única empresa domina o mercado, sem outrasalternativas ao consumidor e no segundo dá-se a associação de empresas queacordam operar de um determinado modo, praticando preços idênticos nomercado, apesar de terem custos variáveis.

2.1 Política brasileira de defesa da concorrência

O poder de mercado quando alcançado por agentes econômicos não é, reitere-se, por si só, considerado pernicioso, inclusive pela legislação nacional, pois existemformas e formas de se chegar até ele. Há ações que podem ser consideradaslícitas, sob o aspecto concorrencial, tais como: redução de custos e preços, aumentoda qualidade do produto, diferenciação de produto e inovações tecnológicas e

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12 SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 9-18, 2007

Carla Marshall

outras tantas. Não se pode, portanto, apenar a eficiência, pois esse é o objetivodo empresariado, ou seja, produzir mais e melhor e, em conseqüência, derrubara concorrência, alcançando, quem sabe, o monopólio. Sendo assim, combatê-loquando atingido desta maneira seria reprimir o desenvolvimento e os novosprocessos econômicos.

O art. 20 da Lei n. 8.884/94 protege tal situação ao determinar que: “Aconquista de mercado resultante de processo fundado na maior eficiência deagente econômico em relação a seus competidores não caracteriza ilícito [...]”.Pode-se perceber, portanto, que o objeto da legislação não é atingir o poder demercado, mas sim o uso abusivo desse poder (MARSHALL, 2002, p. 93).

A lei adota a política de combate ao uso abusivo do poder de mercado, tendoem vista práticas anticoncorrenciais, ou seja, geradoras de desequilíbrios eineficiências contrárias ao desenvolvimento econômico. Claro está que se não hápoder de mercado, não há prática anticompetitiva. Não foi essa a preocupação daprimeira lei antitruste – Sherman Act, de 1890, nos EUA.

As linhas de ação desta lei tinham por escopo o poder dos grandes trustes,independentemente da forma como foram alcançados ou utilizados e o controledas estruturas de mercado na forma de integração vertical, conglomeração ouconcentração horizontal.

O combate à elevação do poder de mercado como objeto da política antitrustesobre a estrutura dos mercados é executado em todas as modernas legislaçõesem uso no mundo. Todavia, o mesmo não se pode dizer da atuação preventiva,pois para que se verifique é imprescindível partir-se de uma suposição de que oreforço do poder de mercado gerado pelo ato de concentração econômica seráfator de desequilíbrio no futuro, os técnicos terão que ser dotados de instrumentos,apurada sensibilidade e conhecimento do mercado específico, pois terão queconsiderar que no futuro o poder de mercado ou o seu reforço presente seránecessariamente utilizado de maneira abusiva.

Verifica-se, portanto, a importância de diferenciação da obtenção do poder demercado alcançado por estratégias empresariais consideradas competitivas e aqueleatingido por atos concentradores de mercado, por definição, prejudiciais ao bemestar econômico e social.

As práticas anticoncorrenciais, de modo geral, podem ser, dentre outras, oscartéis, que consistem em acordos comerciais entre empresas. Tais agenteseconômicos mantêm sua individualidade, mas estabelecem entre si cotas domercado, determinando preços com o intuito de suprimir a concorrência; trustes,que consistem na associação financeira que realiza a fusão de várias empresasem uma só, com o intuito de derrubar a concorrência. Pode se dar de forma

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SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 9-18, 2007 13

Regulação e concorrência: espécies do mesmo gênero

horizontal, qual seja todo um setor, por exemplo, de distribuição de um produtoou mesmo de industrialização ou fabricação do mesmo ou sob a forma vertical,que atinge todos os segmentos de um ou vários produtos.

Na verdade, o que se pretende, tanto no caso do cartel como no do truste, éimperar impondo seus preços, sem deixar alternativas ao consumidor, desta forma,o agente econômico estará exercendo o abuso do poder de mercado.

Atualmente, encontra-se em discussão, inclusive com Audiência Pública, novasregras, que visam otimizar e tornar mais célere o CADE em sua missão de orientaro ambiente concorrencial e o mercado, com vistas a torná-lo, o mais próximopossível do ideal. Trata-se do Projeto de Lei n. 5.877/2005, que visa reestruturaro Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC).

Neste sentido, a proposta atual, que tramita pelo Congresso Nacional desde2004, visa promover alterações substanciais na estrutura do SBDC e dos órgãosque lhe dão suporte. Neste sentido, o projeto identifica como órgãos o CADE ea Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), extinguindo a Secretariade Direito Econômico (SDE), passando à SEAE a competência de elaborar osPareceres, assumindo ainda a função normativa, ao examinar normas setoriaisditadas pelo governo e seus impactos na concorrência, sendo que na estrutura doCADE haverá, ainda, três órgãos, a saber: Tribunal Administrativo de Defesa daEconômica, Superintendência-Geral e Departamento de Estudos Econômicos.

Na Lei n. 8.884/94 a competência para emissão de Pareceres era atribuiçãotanto da SEAE quanto da SDE, havendo, segundo entendem alguns doutrinadores,verdadeira superposição de funções, o que, em muitos casos, retarda ainda maiso julgamento dos processos administrativos submetidos ao CADE, o que podesignificar fuga de investimentos e insegurança jurídica.

Outra novidade, em linha com a busca pela celeridade e segurança jurídicapara as empresas que pretendem incorporar ou se fusionar, é a submissão préviados atos de concentração ao CADE, ou ao novo sistema. Neste caso, analogamenteao que ocorre em países desenvolvidos, o processo é submetido ao CADE antesdo ato de concentração, o que inocorre com o sistema vigente, gerando, inclusive,prejuízo aos investidores, pois nada impede que o processo após a decisão doCADE, seja submetido à esfera judicial.

Inegavelmente algo tem que ser feito, com vistas à agilização dosprocessamentos, pois o quantitativo de atos de concentração que tem sidosubmetido ao CADE, torna inviável uma decisão célere. Em 2001, outro Projetode Lei, do mesmo modo, visando à celeridade de decisão, tinha por escopo ainclusão dos dois ambientes numa única Agência reguladora, ou seja, Defesa doConsumidor e Defesa da Concorrência; ao que tudo indica, tendo em vista a

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14 SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 9-18, 2007

Carla Marshall

especificidade das duas questões, o Projeto encontra-se parado, ou possivelmentearquivado.

3 REGULAÇÃO PROPRIAMENTE DITA

Muito se têm explanado acerca da regulação stricto sensu, cabendo, aqui comonão poderia deixar de ser, algumas considerações.

Em princípio faz-se necessário indicar que o constituinte ao elaborar os arts.174 e 175, o faz dando conta das duas atribuições do Estado, na sua novaconcepção. Contudo, antes de adentrar-se no tema urge, estabelecerem-se algumaspremissas, indispensáveis a uma compreensão mais ampla da questão.

Indiscutivelmente a função regulatória encontra-se jungida à intervenção doEstado na economia, segundo Diogo de Figueiredo (MOREIRA NETO, 2003,p. 129):

As intervenções estatais, embora apresentem inúmeras variedades doutrinárias,

podem ser classificadas em quatro tipos quanto a seu conteúdo: a regulatória,

a concorrencial, a monopolista e a sancionatória, não considerada como

modalidade de intervenção o fomento público, que não tem natureza

impositiva.

De acordo com o Prof. Diogo de Figueiredo, portanto, a regulação e aconcorrência são espécies de intervenção estatal, que, por sua vez, possui variadasclassificações.

O art. 174, caput, veio sintetizar a função regulatória do Estado, no que concerneà atividade econômica, apontando para a sua missão de exercer as funções defiscalização, incentivo e planejamento, por intermédio de lei.

Para Diogo de Figueiredo:

a) a intervenção regulatória se caracteriza pela imposição, por norma legal,

de prescrições positivas e negativas sobre o desempenho de atividades

econômicas ou sociais privadas, visando à prevalência de interesses públicos

específicos legalmente definidos. (MOREIRA NETO, 2003, p. 129).

Claro está que o Poder Público, sob o formato de agências, deverá realizar asescolhas públicas mais adequadas à realidade econômica setorial. Na verdade, ouniverso atingido pelas regras decorrentes da função regulatória do Estadoencontram-se em três vértices distintos: os ditos interesses públicos identificadospelo Estado, na modalidade agência reguladora, “os interesses individuais, coletivos

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Regulação e concorrência: espécies do mesmo gênero

e difusos dos usuários e consumidores e, no terceiro, os interesses privados dosagentes econômicos produtores de bens e serviços atinentes aos setores regulados”(MOREIRA NETO, 2003, p. 132).

A função regulatória, para além de expressar a imposição de normas, o faz deforma diversa das leis em sentido estrito. A técnica da regulação visa o equilíbriodo setor específico ao qual se destina, pois de acordo com a gênese da expressão“regular” é harmonizar o ambiente econômico, portanto, as regras elaboradasem virtude desta função não possuem o caráter geral de imposição a todos ossegmentos da sociedade, mas, tão somente daqueles que se identificam com osetor específico.

Cabe aqui um alerta no que tange à utilização da expressão regulação eregulamentação como sinônimas. Na verdade, trata-se de situações distintas, poisenquanto a regulamentação consiste numa tarefa decorrente de uma função políticado Estado, dando executoriedade às normas primárias, a regulação vem a seruma tarefa de natureza administrativa, em função do espaço concedido pela próprialei, no qual impende-se a utilização do paradigma da ponderação na elaboraçãode regras atinentes aos setores aos quais se destina.

Em seguida, o Prof. Diogo de Figueiredo apresenta a modalidade deintervenção estatal denominada concorrencial:

b) a intervenção concorrencial caracteriza-se pela imposição, por norma legal,da presença do Estado como empresário, em regime de competição emcondições igualitárias ou privilegiais com os agentes privados, no desempenhode atividades econômicas e sociais, visando à prevalência de interesses públicosespecíficos legalmente definidos. (MOREIRA NETO, 2003, p. 130).

Inegável, neste caso, a competição por parte do Estado agindo, portanto,como empresário como os demais participantes no mercado.

4 BREVE INTRODUÇÃO ÀS AGÊNCIAS REGULADORAS

As agências reguladoras surgiram, portanto, como entes dotados depersonalidade jurídica de direito público, na modalidade autarquias especiaisespecializadas nos setores sob sua competência. Contudo, muito se tem discutidoacerca de sua real natureza jurídica, especialmente no que tange a compreender-se qual seu real enquadramento, ou seja, trata-se de órgão do Estado ou órgão dasociedade. Todavia, o Prof. Diogo de Figueiredo (MOREIRA NETO, 2003, p.147) culmina indicando que suas características são próprias de “autarquiastradicionais, diferenciadas por certo reforço de sua autonomia para bem exerceremas peculiaridades da função administrativa regulatória, um fato que as mantémno âmbito científico tradicional do Direito Administrativo”.

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16 SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 9-18, 2007

Carla Marshall

O universo de atuação, contudo, irá variar e, segundo Luís Roberto Barroso(2006, p. 68):

[...] é bem de ver que a relação que se tem feito entre as agências reguladorase serviços públicos executados por particulares é apenas histórica, já quenada impede a existência de agências para regulação de atividades puramenteprivadas, como instrumento de realização da disciplina jurídica do setor.

Inicialmente admitia-se que a regulação se fizesse no setor de infra-estrutura,todavia, outras atividades que não estas estão afetas ao universo da regulação,sem maiores dificuldades de inclusão, tudo em sintonia com a harmonização eequilíbrio do mercado setorial.

No que se refere aos serviços públicos prestados, de modo direto pelo Estado,ou indireto, por intermédio de suas empresas públicas ou economias mistas, esteo fazia de forma ineficiente, razão pela qual, a par da baixa capacidade deinvestimento do Poder Público, deu-se a transferência aos entes privados, cabendoao Estado exercer o papel de fiscalizador e orientador do setor específico, surgindodaí sua função reguladora (MARSHALL, 2007, p. 208).

Segundo o Prof. Marcos Juruena (SOUTO; MARSHALL, 2002, p. 29):

O que mudou foi o enfoque a ser dado ao tema em função da necessidadede atração de investimentos, o que exigia maior segurança jurídica, viabilizadapela previsibilidade das ações estatais na condução da atividade interventivano domínio econômico. Tal segurança seria inatingível caso a intervençãofosse orientada apenas por critérios políticos, cujo ciclo de variação éincompatível com o longo período de maturação dos investimentos levadosa efeito nos segmentos regulados.

A orientação das agências reguladoras é de competência técnica e não políticapreponderando o equilíbrio nas relações entre os envolvidos, ou seja, os agenteseconômicos prestadores, a sociedade e o próprio Poder Público.

Alerte-se para o fato de que, inicialmente, por não haver uma cultura deregulação, muitos consumidores confundiam as atribuições das agências com osórgãos de defesa dos consumidores, pois ao levar ao conhecimento da agênciaresponsável pela regulação de um determinado setor, uma infração, queriam buscaro ressarcimento relativo àquela prática, o que é irreal, pois os agentes reguladoresnão possuem tal tarefa, são órgãos administrativos e não judicantes.

Continuando com Marcos Juruena (SOUTO; MARSHALL, 2002, p. 29):

A opção pelo modelo de agência, adotado no âmbito da Reforma do Estado,privilegia a competência para, com maior autonomia, fiscalizar o mercado,

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Regulação e concorrência: espécies do mesmo gênero

mas, ainda, de editar normas e de solucionar os conflitos, seja pela prevençãoou mediação, seja por meio da arbitragem, privilegiando o conhecimentotécnico sobre o segmento regulado.

A maior autonomia comporta limites, pois não equivale a dizer que suas decisõesnão possam ser submetidas à revisão judicial, do mesmo modo, não significa dizerque poderá decidir acerca do regime jurídico de seu pessoal, estas em âmbito político-administrativo, havendo também a autonomia econômico-financeira.

Sua independência está em consonância com o caráter do mandato de seusdirigentes, que é fixo.

5 A GUISA DE CONCLUSÃO

Diante do quadro traçado, no presente artigo, após o exame da natureza dosinstitutos da concorrência e da regulação, pode-se dizer que ainda se tem muitoa aprender com o mercado.

O processo de mundialização do mercado tem gerado imensas alterações naordem internacional da concorrência. Os reflexos internos de tais mudançasfizeram com que houvesse, por parte dos Estados, a criação de legislação, nosentido de prevenir e punir certas condutas tipificadas como anômalas. Nestecontexto, as anomalias ocorridas no mercado precisam ser evitadas, com o intuitode manter o equilíbrio do poder de mercado.

Obviamente que o respaldo teórico que fundamenta a nova ordemmercadológica é baseado em princípios que servem de norte às empresas queatuam no mercado.

A concentração desordenada de empresas, as formas de controle empresariale a criação de grupos monopolistas podem conduzir ao rompimento do equilíbrioestrutural do mercado, impedindo o surgimento de outros agentes no mercado.

Neste momento dá-se a necessidade de atuação do Estado, com vistas a impedireventuais “prejuízos sociais”.

Na verdade, as práticas anticoncorrenciais atingem a sociedade, como umtodo, e em última análise a proteção ao mercado tem como titular o consumidor,que é quem diretamente sofrerá as conseqüências da eliminação de concorrência.Deste modo, tem sido elaborada na maioria dos países a disciplina antitruste,com o intuito de reprimir a concorrência desleal e a regulação como instrumentode controle em setores específicos.

Com efeito, com o disciplinamento do antitruste torna-se imprescindível àsempresas procederem ao ajustes de diversas ordens, com vistas à sua manutençãono mercado em grau competitivo com os demais agentes econômicos.

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Carla Marshall

Os Administradores agentes responsáveis pela elaboração e implementaçãodas políticas públicas, precisam estar em sintonia com as inovações do mercadoe o grande fluxo e volatilidade do controle das empresas, o que, muitas vezes,finda por descaracterizar uma situação que, aparentemente, pode ter indícios deprática infracionária.

Contudo, todas estas questões ainda comportam inúmeras discussões econtrovérsias, não sendo de todo possível, explorar-se, por completo, este universodiferenciado e reformado pelo novo contexto do mercado e decorrente dosestímulos provocados pela realidade econômica insuperável.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformaçõesdo Estado e legitimidade democrática. In: BINENBOJM, Gustavo (Coord.).Agências reguladoras e democracia. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.

MARSHALL, Carla. Direito constitucional: aspectos constitucionais do DireitoEconômico. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2007.

______. Panorama geral da defesa da concorrência no Brasil. In: SARAIVA,Enrique; PECI, Alketa; BRASILICO, Edson Américo (Org.). Regulação, defesa daconcorrência e concessões. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatório. Rio de Janeiro:Renovar, 2003.

POSSAS, Mario. Regulação e incentivo à competição. In: SARAIVA, Enrique;PECI, Alketa; BRASILICO, Edson Américo (Org.). Regulação, defesa da concorrênciae concessões. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

SANTACRUZ, Ruy. As razões econômicas da regulação. In: SARAIVA, Enrique;PECI, Alketa; BRASILICO, Edson Américo (Org.). Regulação, defesa da concorrênciae concessões. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

SOUTO, Marcos Juruena Villela; MARSHALL, Carla C. Direito empresarial público.Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.

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A proteção da capacidade contributiva tributária pelos direitos humanos internacionais

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A PROTEÇÃO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA TRIBUTÁRIA PELOSDIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS

THE PROTECTION OF THE CONTRIBUTIVE CAPACITY OF TAXES BYTHE INTERNATIONAL HUMAN RIGHTS

Érico Hack*

Resumo: Este artigo analisa o princípio da capacidade contributiva quedeve reger a tributação e sua proteção pelos sistemas regionais dos direitoshumanos. Inicialmente analisa-se o princípio e seus limites, apontando osdireitos dos contribuintes que surgem dele. Após, analisa-se de que formatal princípio e os limites respectivos são protegidos pelos sistemas regionaisde proteção aos direitos humanos.

Palavras-chave: Direito Tributário. Capacidade contributiva. Direitoshumanos. Limites da tributação. Direitos do contribuinte.

Abstract: This article analyses the principle of contributive capacity appliedto the tax payment, and its protection by the regional systems of humanrights. At first, the principle is analysed, as well as the limits imposed by it,pointing the tax payer´s rights that derivate from it. Then, it show how thehuman rights conventions protect this principle and the limits to thetaxation.

Keywords: Tax law. Contributive capacity. Human rights. Taxation limits.Tax-payer rights.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho propõe-se a analisar os limites e critérios impostos àtributação pelo princípio da capacidade contributiva e a sua fundamentação nossistemas internacionais de proteção aos direitos humanos.

Os tributos são cobrados obrigatoriamente e têm como fundamento principala manutenção do Estado. Tal fundamento, entretanto, não dá ao Estado poderpara tributar o cidadão ilimitadamente. Existem limites impostos pelo ordenamentojurídico que atribuem ao poder de tributar restrições de forma que o Estadoconsiga obter os recursos necessários para suas atividades sem inviabilizar odesenvolvimento da sociedade e da atividade privada.

* Mestre e doutorando em Direito pela PUC-PR. Advogado em Curitiba-PR.

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A capacidade contributiva e os limites que ela impõe (vedação ao confisco eproteção do mínimo vital) são inerentes a qualquer ordem jurídica moderna. Oprincípio e seus limites podem ser justificados nos direitos humanos internacionais,podendo ser protegidos pelas cortes que tem a missão de garantir os tratados.

O artigo inicialmente analisa o conteúdo da capacidade contributiva e os seuslimites, assim como o seu fundamento (igualdade, propriedade, dignidade da pessoahumana e liberdade).

Os fundamentos do princípio são então identificados nos sistemasinternacionais de proteção aos direitos humanos. Possibilita-se, então, apontar deque forma o princípio da capacidade contributiva e seus limites tem fundamentoe são protegidos também internacionalmente pelos direitos humanos. Tal proteçãoimpõe aos países signatários dos respectivos tratados a adoção de tributação querespeite a capacidade contributiva. Da mesma forma, torna-se possível o recursoàs cortes internacionais de proteção aos direitos humanos quando a tributaçãodesrespeitar os limites impostos.

O estudo se justifica pela possibilidade de apontar limites para a tributaçãodecorrentes de normais internacionais de proteção aos direitos humanos. Namedida em que a carga tributária se eleva no Brasil, são necessários estudos quedemonstrem a existência dos limites e todas as possibilidades para sua proteção.

O princípio da capacidade contributiva no Brasil é muitas vezes ignorado, nãose observando os limites que ele impõe. Ocorrem então distorções na tributação,como uma tributação indireta monumental que atinge as pessoas que ganham umsalário mínimo, e a própria tributação média da sociedade brasileira, que acabapor atrapalhar não só o desenvolvimento da economia, como também os direitose garantias fundamentais dos cidadãos.

2 O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E SUA FUNDAMENTAÇÃO

Os diversos princípios e limites que regem a tributação derivam de princípiosgenéricos previstos no ordenamento jurídico. Geralmente observa-secorrespondência entre os institutos tipicamente tributários e princípios e garantiasconstitucionais do cidadão aplicáveis a todas as situações.

No direito tributário, tem-se o contribuinte, que é a pessoa física que participada relação jurídica tributária que tem do outro lado o Estado. Neste sentido,como forma de coibir atitudes de excesso do Estado, deve ser concedido aoscontribuintes direitos e garantias fundamentais específicas para a relação jurídico-tributária. Não há dissociação destes direitos e garantias tributários daquelesgenéricos previstos para o cidadão: pelo contrário, aqueles, mais específicos,encontram fundamento nestes.

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Neste sentido, a proteção ao contribuinte contra o poder do fisco (as limitaçõesao poder de tributar) deriva da proteção que se dá aos direitos e garantiasfundamentais do Estado Democrático de Direito.

O que se pretende demonstrar aqui são os fundamentos do princípio dacapacidade contributiva, e dos limites que dele derivam (não confisco e preservaçãodo mínimo vital), nos princípios genéricos de proteção ao cidadão. Será vistoadiante o conteúdo do princípio da capacidade contributiva e dos limites, e suarelação com direitos e garantias fundamentais.

2.1 A Capacidade Contributiva e a Igualdade

A capacidade contributiva é tida como um subprincípio do princípio daigualdade. Seria a medida, o critério de igualdade, a maneira como a igualdade éaplicada na cobrança dos tributos, conforme entende Costa (1993, p. 65) “Oprincípio da capacidade contributiva é uma derivação do princípio maior daigualdade, um subprincípio deste que corresponde a uma das expressões daisonomia no campo dos impostos”1.

O princípio constitui-se basicamente da idéia de que, quem pode mais pagamais, e quem pode menos, paga menos ou não paga. Tal idéia decorre do princípioda solidariedade, pretendendo-se atribuir a todos igualitariamente o ônus damanutenção do Estado. Tal distribuição igualitária seria de acordo com aspossibilidades de cada um, ou seja, não o ônus repartido igualmente entre todos,mas o ônus repartido conforme o impacto que o tributo tem na capacidade decontribuir de cada um. Tal impacto deve ser igual para que se alcance a corretarepartição das despesas que se pretende. Através de critérios inseridos na legislaçãotributária mensura-se, a capacidade de cada um de acordo com elementos quesejam facilmente constatáveis e que denotem a riqueza do contribuinte e a suaconseqüente capacidade de pagar o tributo.

Por exemplo: imagine-se um Estado que tivesse um custo de $ 100.000 porano. Tal Estado fictício tem uma população de 100 habitantes. A primeira vista,pode parecer que a distribuição correta do ônus de manutenção do Estado seria a

1 No mesmo sentido, GODOI, Marciano Seabra. Justiça, Igualdade e Direito Tributário.São Paulo: Dialética, 1999. p. 191 et seq.; FERRAGUT, Maria Rita. Presunções noDireito Tributário. São Paulo: Dialética, 2001. p. 95; OLIVEIRA, José MarcosDomingues de. Direito Tributário: Capacidade Contributiva. 2. ed. Rio de Janeiro:Renovar, 1999. p. 51-2; FERRAZ, Roberto. Igualdade na Tributação – Qual oCritério que Legitima Discriminações em Matéria Fiscal?. In: FERRAZ, Roberto(Coord.). Princípios e Limites da Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 476.

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divisão deste valor pelo número de habitantes, resultando em um tributo de $1.000 para cada habitante ($100.000 ÷ 100 = $1.000).

Observa-se, entretanto, que neste Estado fictício nem todos são iguais, havendoalguns indivíduos muito ricos e outros muito pobres. Um dos habitantes ricospossui uma renda anual de $ 10.000, enquanto que um dos habitantes pobres temrenda de $ 500. É justo, igualitário, cobrar de cada um destes habitantes o mesmovalor de $ 1.000? O mais rico pagará a quantia com facilidade, enquanto que omais pobre entregará todo o seu dinheiro e ainda ficará devendo. O mais rico étributado em 10% de sua renda anual, enquanto que o mais pobre é tributado em200% de sua renda.

Neste sentido, demonstra-se que igualdade no direito tributário não é repartiro ônus igualmente entre todos, mas é cobrar de cada um a quantia proporcional,de forma que o impacto da cobrança seja semelhante. No exemplo visto acima, sefor cobrado de ambos $ 1.000, o mais rico sentirá um impacto pequeno do tributo,enquanto que o mais pobre experimentará um impacto devastador, que além delhe tomar todo o dinheiro ainda faz com que ele se torne devedor do Estado.

O princípio é entendido por Costa (1993, p. 101) “[...] como a aptidão, dapessoa colocada na posição de destinatário legal tributário, para suportar a cargatributária, sem o perecimento da riqueza lastreadora da tributação.”

Com esta colocação verifica-se que a capacidade contributiva faz com que aarrecadação não seja uma mera conta aritmética, em que se divide o valor precisoentre o número de pessoas. Ela impõe que existam alguns limites ao tributo.

No exemplo visto acima, aplicando-se o princípio da capacidade contributivaao Estado fictício, o habitante mais pobre provavelmente seria isento de tributo,uma vez que qualquer cobrança afetaria sua subsistência. O mais rico poderia sertributado em mais que $ 1.000, conforme fosse sua disponibilidade. Todavia, nãoseria possível a cobrança demasiada do mais rico, de forma a destruir todo seupatrimônio, tornando-se o tributo confiscatório.

Da capacidade contributiva, então, derivam os dois limites acima vistos: isençãodo mínimo vital e proibição do confisco. Os mesmos serão adiante melhorestudados, pois possuem fundamentos próprios que interessam a este trabalho.

Do acima exposto, verifica-se que no direito tributário a igualdade materializa-se não pela aplicação idêntica do ônus tributário a todos os cidadãos, mas pela suaincidência proporcional, de acordo com as possibilidades de cada um. Trata-se deimpor que a tributação tenha um impacto igual no patrimônio de cada indivíduotributado, e isto não significa cobrar a mesma coisa de todos. Além dos limitesacima vistos, é necessário um critério que possibilite que o ônus tributário sejaproporcional, e este geralmente se dá pela progressividade das alíquotas de acordocom a base de cálculo.

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Novamente ao exemplo: no Estado fictício, o habitante que tem renda anualde $500 é isento do tributo; já o que tem renda de $1.000 é tributado em 10% detal renda; o que ganha $3.000 é tributado em 20%. A progressividade impõe esteaumento de alíquotas até o momento em que se considere que o tributo se tornaconfiscatório, limite também imposto pela capacidade contributiva.

2.2 Preservação do Mínimo Vital e a Dignidade da Pessoa Humana

Conforme visto acima, a capacidade contributiva impõe à tributação umlimite mínimo, que é a preservação do mínimo vital. Este é considerado o valormínimo necessário para subsistência digna do contribuinte e de sua família. Otributo deve incidir apenas sobre o que exceder o tal mínimo. Segundo Costa(1993, p. 65): “Isto porque a capacidade contributiva só pode se reputar existentequando aferir-se alguma riqueza acima do mínimo vital”. Para esta autora, omínimo vital (ou indispensável) seria o limite mínimo da capacidade contributiva,ou seja, esta começa quando o mínimo termina. Abaixo do mínimo indispensávelinexistiria a capacidade contributiva.

Segundo Russo (2005, p. 399):

Os recursos que não revelam capacidade para contribuir, e por isso não são destináveisà realização da prestação tributária porque indispensáveis ao atendimento dasnecessidades fundamentais do sujeito passivo, não podem ser submetidos à tributação.É o caso do assim chamado mínimo vital, com cuja expressão se costuma designaraquela faixa de riqueza que não pode ser atingida pela arrecadação sem comprometera própria sobrevivência do contribuinte e, portanto, sem arranhar a tutela dos direitosinvioláveis proclamada pelo art. 2º, parágrafo 1º da Constituição.

Segundo Godói (1999, p. 198), o fundamento do mínimo existencial está noart. 1º, III2, da Constituição Federal, que garante a dignidade da pessoa humana.No mesmo sentido, ensina Torres (2003, p. 436)

A tributação também não pode incidir sobre o mínimo necessário à sobrevivência docidadão e de sua família em condições compatíveis com a dignidade da pessoa humana.Nada tem que ver com o problema da capacidade contributiva, mas com os direitosda liberdade.

2 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dosEstados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democráticode Direito e tem como fundamentos:III - a dignidade da pessoa humana; [...].

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Segundo Becker (1972, p. 455), um dos alcances da eficácia jurídica do princípioé a obrigatoriedade do legislador criar isenções tributárias que preservem o mínimoexistencial3. Segundo o autor:

Esta criação das isenções tributárias em correlação simultânea ao estabelecimento dotributo cria, o conceito jurídico de mínimo indispensável em relação àqueledeterminado fato signo presuntivo de uma espécie de renda ou de uma espécie decapital.

Assim, uma norma que crie o tributo sem observar a isenção do mínimoindispensável é inconstitucional4.

Verifica-se que o princípio da capacidade contributiva possui reflexos não sóna obrigatoriedade de atribuir a quem pode mais um ônus tributário maior. Tambémcoloca a exigência que se respeite um limite mínimo que não pode ser tributado,sob pena de atingir os meios de subsistência do contribuinte. Assim, não é todamanifestação de riqueza que é tributada, mas apenas aquela que excede o mínimoindispensável, aquela que começa a ser uma disponibilidade para o contribuinte.Ainda sob a influência do princípio da capacidade contributiva, aquele que temriqueza um pouco maior do que aquela considerada como mínimo existencialdeverá ser menos tributado que aquele que possui riqueza bem acima do mínimo.

No caso do imposto de renda, existe uma faixa de isenção até determinadovalor de rendimento mensal, que corresponde ao mínimo existencial. Acima destevalor, já se considera que existe renda, mas é tributada a uma alíquota de 15%.Em um patamar maior, a disponibilidade é maior então, tributa-se a renda em27,5%. Em outros sistemas tributários existem mais faixas, aumentando a alíquotaà medida que aumentam os rendimentos tributários.

3 Parece que tal obrigatoriedade está mais presente naqueles tributos que tem comohipótese de incidência fatos que o contribuinte é obrigado a praticar, como nocaso das taxas. Já no IPVA, por exemplo, o contribuinte não é obrigado a ter carro,podendo ou vender o veículo ou trocar por outro menos valioso caso não possaarcar com o tributo. Seria um caso de inexistência do mínimo existencial, pois apropriedade do veículo não é vital para a subsistência do contribuinte.

4 Ainda segundo Becker, não é possível ao juiz afastar a incidência de um tributocom base na capacidade contributiva subjetiva do contribuinte, pois aí estariacriando nova norma. Todavia, conforme visto nesta passagem, é possível o controlejudicial quanto a verificação de ter sido ou não aplicado o princípio da capacidadecontributiva, assim como verificar se essa aplicação se deu dentro dos limitesmínimo e máximo inerentes ao princípio.

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A preservação do mínimo vital liga-se à dignidade da pessoa humana, deforma a garantir que a tributação não pode afetar à subsistência do contribuinte ede sua família. Existe a supremacia do interesse público sobre o privado, todaviatal interesse não pode afetar a sobrevivência digna dos habitantes. Por maioresque sejam as necessidades financeiras do Estado, nada pode atingir a subsistênciamínima do contribuinte.

2.3 Vedação ao Tributo com Efeito de Confisco e a Preservação do Direitoà Propriedade

Conforme visto, as alíquotas do tributo podem aumentar na medida em queaumenta a capacidade contributiva do contribuinte. Todavia, vê-se a necessidadede um limite máximo para o tributo, que parece encontrar-se na vedação doconfisco. Godoi (1999, p.198) assim entende “[...] o princípio da capacidadecontributiva implica, por si só, o respeito ao mínimo vital, individual e familiar, eno respeito aos limites além dos quais o tributo passa a ter efeito confiscatório.”.Carrazza (2006, p. 99) também entende que a Vedação ao tributo com efeito deconfisco deriva da capacidade contributiva: “Estamos convencidos de que oprincípio da não-confiscatoriedade [...] deriva do princípio da capacidadecontributiva.”.

A vedação ao tributo com efeito de confisco é expressamente vedada pelaConstituição Federal: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas aocontribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:[...] IV - utilizar tributo com efeito de confisco;”.

Ainda que a vedação seja expressamente prevista, resta a dificuldade em saberquando acontece confisco, uma vez que não existe um critério objetivo que odefina. A doutrina tenta esclarecer seu alcance, como a definição de Costa (1993,p. 75) “O confisco, em definição singela, é a absorção total ou substancial dapropriedade privada, pelo Poder Público, sem a correspondente indenização.”.Ou seja, o confisco ocorre quando o tributo é tão excessivo que toma a propriedadedo contribuinte sem o pagamento da respectiva indenização.

No direito administrativo existem hipóteses em que a Administração Públicapode confiscar o patrimônio do cidadão para atendimento do interesse público.Ocorre que, nestas hipóteses, sempre cabe indenização ao cidadão, de forma areparar seu patrimônio pelo bem tomado.

O tributo ser tão excessivo a ponto de tomar bens do contribuinte sem aindenização corresponde e sem a observância do devido processo legal. Seria oexemplo do IPTU cobrado em alíquota de 50% do valor de um imóvel. Ou seja,o contribuinte teria que vender o imóvel para pagar o tributo. Ou, caso desejasse

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pagar o tributo com dinheiro de outras fontes, teria redução do seu patrimôniocorresponde ao valor da casa no espaço de dois anos. O confisco então ocorrequando o tributo destrói a riqueza que deu origem à sua incidência.

Quando o tributo incide com efeito de confisco há clara ofensa ao direito depropriedade do contribuinte, pois os bens lhe são tomados, aniquilando com ariqueza e patrimônio. Desta forma, a capacidade contributiva impõe que o tributonão pode ter tal efeito. Carrazza (2006, p. 99) entende que a vedação ao confiscoreforça o direito de propriedade:

Estamos confirmando, destarte, que a norma constitucional que impede que os tributossejam utilizados “com efeitos de confisco”, além de criar um limite explícito àsdiscriminações arbitrárias de contribuintes, reforça o direito de propriedade.

Este limite é o oposto da preservação do mínimo vital, que impõe a isenção paraos contribuintes possuírem meios de subsistência. Aqui, proibi-se o excesso natributação daqueles que podem pagar, de forma a preservar seu patrimônio. Umtributo confiscatório acabaria com o patrimônio privado e travaria o desenvolvimentoeconômico, pois toda a atividade privada seria transferida para o Estado.

3 OS FUNDAMENTOS DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA NOS SISTEMASINTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

No presente capítulo, pretende-se apontar a proteção aos direitos à igualdade,dignidade da pessoa humana e propriedade presentes nos sistemas internacionaisde proteção aos direitos humanos.

Pretende-se realizar análise comparativa entre as previsões encontradas nossistemas regionais americano, africano e europeu, bem como a previsão daDeclaração Universal dos Direitos Humanos. Tal análise visa apontar quaisconvenções tutelam cada um desses direitos, e comparar como se dá a proteçãoem cada um deles.

Ao mesmo tempo, que se identificará a proteção concedida a cada um dosfundamentos, pretende-se aqui apontar de que forma a capacidade contributiva eseus limites podem ser tutelados pelos sistemas internacionais de proteção aosdireitos humanos.

Conforme visto acima a capacidade contributiva e os limites que dela decorremtem fundamentos em direitos genéricos da personalidade. Aqui será estudadoque tais direitos genéricos são amplamente tutelados pelos direitos humanosinternacionais, havendo uma plena proteção da capacidade contributiva e seuslimites nos direitos humanos.

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Por derradeiro, será feita análise breve sobre a relação do direito tributário,apontando a necessidade de proteger o contribuinte de tributos também combase nos direitos humanos consagrados nos sistemas de proteção estudados.

3.1 Direito à Igualdade e Capacidade Contributiva

O direito à igualdade é assegurado por quase todos os sistemas de proteçãoaos direitos humanos. Está previsto na Declaração Universal dos DireitosHumanos5:

Artigo1Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados derazão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito defraternidade.Artigo7Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual proteçãoda lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole apresente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

No sistema Americano, encontram-se disposições na Declaração Americanados Direitos e Deveres do Homem:

PREÂMBULOTodos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, como são dotadospela natureza de razão e consciência, devem proceder fraternalmente uns para comos outros.Artigo II - Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm os direitos e deveresconsagrados nesta Declaração, sem distinção de raça, língua, crença ou qualqueroutra.

E na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San José):

Artigo 24º - Igualdade perante a leiTodas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, semdiscriminação, a igual proteção da lei.

O sistema Africano é digno de nota no sentido em que a Carta Africana dosDireitos Humanos e dos Povos afirma a igualdade em diversas passagens. A

5 Ainda que a Declaração Universal de 1948 não tenha forma de tratado internacional,parece que possui força vinculante, na forma da posição de PIOVESAN, Flávia.Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed. rev., ampl. e atual. SãoPaulo: Saraiva, 2006. p. 140.

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igualdade afirmada não é só entre os indivíduos, mas também entre os diversospovos6:

Artigo 3º1.Todas as pessoas beneficiam-se de uma total igualdade perante a lei.2.Todas as pessoas têm direito a uma igual proteção da lei.Artigo 19ºTodos os povos são iguais, gozam da mesma dignidade e têm os mesmos direitos.Nada pode justificar a dominação de um povo por outro.

Vê-se acima que nos sistemas estudados afirma-se não só a igualdade perantea lei, mas também a igualdade da proteção fornecida pela lei. Quando os sistemastratam de proteção igual fornecida pela lei, verifica-se que não se trata apenas doEstado tratar todos igualmente, mas de promover a proteção igualitária de todos.

Tal significação faz muita diferença, uma vez que uma coisa é o tratamentoigual a todos, outra é a promoção de igual proteção a todos. Quando se trata deproteção, significa que para alguns a atuação do Estado deve ser maior, no sentidode oferecer proteção suficiente, que outros por si só já gozam. Por exemplo, umapessoa de boa capacidade financeira não precisa recorrer ao sistema público desaúde, pois pode arcar com seu tratamento. Para que o Estado iguale a proteção àsaúde de todos, deve trabalhar no sentido de fornecer mais serviços de saúde àspessoas menos favorecidas que não possam arcar com tal serviço. A atuação doEstado não será igual para todos os cidadãos, pois os mais carentes receberãomais serviço público que os mais abastados.

A menção expressa de igual proteção a todos demonstra que a igualdade, queos dispositivos citados quer, não é uma igualdade de tratamento, mas uma atuaçãoestatal no sentido que todos tenham os seus direitos garantidos e protegidos demaneira igualitária.

Por outro lado, a igualdade também impõe a proibição de privilégios efavorecimentos excessivos a alguns. Maior atuação no sentido de aumentar aproteção ao direito do mais carente não significa privilégio, mas apenas a promoçãoda igualdade entre todos. A ofensa à igualdade ocorre quando a atuação dirige-se

6 O sistema africano possui diferenças importantes, em razão das peculiaridades daregião. Conforme explica Flávia Piovesan “A recente história do sistema regionalafricano revela, sobretudo, a singularidade e a complexidade do continente africano,a luta pelo processo de descolonização, pelo direito de autodeterminação dos povose pelo respeito às diversidades culturais. Revela, ainda, o desafio de enfrentargraves e sistemáticas violações aos direitos humanos.” (PIOVESAN, Flávia. DireitosHumanos e justiça internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 119).

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a quem não precisaria dela, apenas com o intuito de auferir vantagem. Não setrata em atuação para igualar, mas em atuação para tornar alguns superiores aosdemais.

O sistema africano trabalha com a idéia de igualdade entre os povos, tratandode peculiaridade regional. O Estado, por este sistema, deve igualar os povos,etnias e grupos existentes dentro do seu território, tratando a todos igualmente.Novamente parece que aqui há a necessidade de igual proteção aos povos, devendoesta ser promovida pelo Estado.

A igualdade e a igual proteção vista acima são as bases da capacidadecontributiva no direito tributário. A igualdade na tributação se dá pela maiorcobrança de quem pode pagar mais, e menor cobrança ou isenção daqueles quepodem pagar menos. Aqui se verifica que a capacidade contributiva encontrarespaldo na idéia de igual proteção que a lei deve fornecer.

Desta forma, há nos sistemas de proteção aos direitos humanos, respaldo paraque o princípio da capacidade contributiva seja aplicado na tributação dos paísessignatários dos tratados. A igualdade de proteção deve se estender também aoscontribuintes menos favorecidos. A tributação deve ser graduada de acordo coma capacidade econômica do contribuinte, devendo o maior ônus recair sobre quemtem mais capacidade.

3.2 Dignidade da Pessoa Humana e a Preservação do Mínimo Existencial

A dignidade da pessoa humana é também protegida pelos sistemasinternacionais. Piovesan (2006, p. 27) aponta para a relevância da dignidade dapessoa humana na Constituição Brasileira: “Nesse sentido, o valor da dignidadeda pessoa humana impõe-se como núcleo básico de todo o ordenamento jurídico,como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensãodo sistema constitucional.”.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem as seguintes disposições:

Preâmbulo. CONSIDERANDO que o reconhecimento da dignidade inerente a todosos membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamentoda liberdade, da justiça e da paz no mundo,Artigo 1Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados derazão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito defraternidade.Artigo 22Todo o homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e àrealização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a

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organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturaisindipensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.Artigo 23III) Todo o homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória,que lhe assegure, assim como a sua família, uma existência compatível com a dignidadehumana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.

Note-se que a dignidade da pessoa humana é mencionada constantemente naDeclaração Universal, havendo inclusive proteção à segurança social e do trabalhocomo forma de proteção à dignidade. Importa especialmente para o presenteestudo a disposição do artigo 23, III, que assegura que a remuneração pelo trabalhodeve garantir a existência digna ao trabalhador e sua família.

No sistema americano, as previsões da Convenção Americana Sobre DireitosHumanos – Pacto de San José:

Artigo 11º - Proteção da honra e da dignidade1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de suadignidade.2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada,na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensasilegais à sua honra ou reputação.3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.

Nesta disposição verifica-se a proteção à dignidade e o repúdio à atuações quea ataquem. O artigo avança e protege a vida privada de ingerências arbitrárias ouabusivas. Aqui, verifica-se também uma proibição no excesso de atuação do Estado,que é limitada pela dignidade da pessoa humana.

O sistema africano, na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos,traz a seguinte disposição:

Artigo 5ºTodo indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e aoreconhecimento da sua personalidade jurídica. Todas as formas de exploração e deaviltamento do homem, nomeadamente a escravatura, o tráfico de pessoas, a torturafísica ou moral e as penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes sãoproibidos.

Este dispositivo dá especial atenção à escravidão, tráfico de pessoas e tortura,em razão das peculiaridades da região do tratado.

Nota-se nos dispositivos estudados a proteção da dignidade da pessoa humana,havendo uma maior ênfase no sistema americano para a proteção contra abusosdo Estado. Por sua vez, na declaração universal, aponta-se para a necessidade de

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observância de remuneração que mantenha a dignidade do trabalhador e de suafamília.

Esta disposição da declaração universal é muito importante para a justificativada isenção do mínimo vital que decorre da capacidade contributiva. Se o Estadodeve assegurar que o trabalhador receba o suficiente para manter a si e sua famíliadignamente, fica claro que se o valor recebido é baixo, sobre ele não deve incidirtributo. A tributação sobre um salário baixo seria o equivalente ao Estado retirandodo cidadão valor necessário a uma existência digna. Tal atuação seria fortementecontrária à disposição estudada, pois o Estado não só não estaria assegurando odireito do cidadão, como estaria prejudicando tal direito.

Vê-se aqui clara indicação à isenção que deve ser concedida para manutençãodo mínimo existencial. O Estado não pode tributar aquilo que já é pouco, sobpena de conduzir o trabalhador a uma condição de indignidade.

As demais disposições demonstram que o Estado não pode interferir na vidado indivíduo a ponto de lhe afetar a dignidade. Tal atuação não se resume amanutenção da privacidade, mas também impõe um limite aos tributos. Atributação, mesmo não querendo tal resultado, acaba por afetar a vida privada docontribuinte. Na maioria dos casos não é o que se pretende, pois a tributação tema finalidade principal de obter recursos para a manutenção do Estado. Ocorreque é inegável que a tributação causa efeitos na economia e nos indivíduostributados.

Tais efeitos não podem afetar a dignidade da pessoa humana. O financiamentodo Estado não justifica afetar o atendimento das necessidades mais básicas doindivíduo. Neste sentido, o mínimo existencial deve ser preservado como formade promover a dignidade, garantindo o mínimo necessário para a subsistênciados indivíduos.

3.3 Direito de Propriedade e a Vedação ao Tributo com Efeito de Confisco

Conforme visto, a vedação à tributação com efeito de confisco tem comofundamento o direito de propriedade. Este direito é também garantido pelossistemas de proteção dos direitos humanos estudados.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe assim sobre o assunto:

Artigo 17I) Todo o homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.II)Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

Note-se que há a vedação de privação arbitrária da propriedade, o que secoaduna com a idéia de vedação ao confisco. A tributação não pode ser excessivaa ponto de tomar a propriedade privada sem a indenização correspondente.

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O sistema americano vai pelo mesmo sentido, sendo ainda mais explícitoquanto à fundamentação da vedação ao confisco, conforme se infere da leiturada Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – Pacto de San José:

Artigo 21º - Direito à propriedade privada1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode subordinaresse uso e gozo ao interesse social.2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento deindenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casose na forma estabelecidos pela lei.

O sistema americano, além de garantir a propriedade privada, veda a privaçãodos bens, mas abre a hipótese de indenização quando decorrer de utilidade públicaou interesse social. Novamente nota-se a idéia da vedação ao confisco: o tributonão pode tomar a propriedade sem indenização dos bens tomados.

O sistema americano coloca a idéia de interesse social da propriedade, sendoum pouco mais abrangente que a declaração universal. O direito a propriedadeaqui não é absoluto, pois havendo interesse social ou utilidade pública e medianteindenização pode-se privar alguém de seus bens.

O sistema africano segue no mesmo sentido do americano, garantindo o direitoà propriedade, excetuando o caso de necessidade pública ou interesse geral dacoletividade. É o que dispõe a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos:

Artigo 14ºO direito de propriedade é garantido, só podendo ser afetado por necessidade públicaou no interesse geral da coletividade, em conformidade com as disposições de normaslegais apropriadas.

A mesma linha se nota também no sistema europeu, que prevê a propriedadeno Protocolo adicional à Convenção de Proteção dos Direitos do Homem e dasLiberdades Fundamentais:

Artigo 1° Proteção da propriedadeQualquer pessoa singular ou coletiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguémpode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nascondições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional.As condições precedentes entendem - se sem prejuízo do direito que os Estadospossuem de pôr em vigor as leis que julguem necessárias para a regulamentação douso dos bens, de acordo com o interesse geral, ou para assegurar o pagamento deimpostos ou outras contribuições ou de multas.

Vê-se aqui uma disposição tributária, pois possibilita a utilização dos benspara assegurar o pagamento de impostos e outras contribuições. A exceção que se

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faz não afeta a vedação ao tributo com efeito de confisco, pois dirige-se a garantiro pagamento do tributo. O tributo em si não pode afetar o direito de propriedade,todavia um tributo regularmente cobrado que não foi pago pode ensejar a utilizaçãodos bens para seu pagamento. É o que ocorre no Brasil com as execuções fiscais,quando se penhora bens do devedor em garantia da dívida.

Os sistemas de proteção aos direitos humanos, ao assegurar o direito depropriedade, protegem o contribuinte contra a cobrança de tributo com efeito deconfisco. O direito de propriedade não é mais absoluto, impondo a observânciade utilização racional e interesse social para o seu exercício. Ocorre que quandohá abusos ao direito de propriedade, não cabe ao tributo sancionar o proprietáriolhe tomando a propriedade7.

A sanção ao abuso do direito de propriedade pede processo administrativopróprio, geralmente ocorrendo uma desapropriação. Neste processo, oportuniza-se a defesa e fixa-se uma indenização ao prejudicado. Desta forma, respeitam-seas garantias do proprietário. O que é vedado é a arbitrariedade, o confisco sem odevido processo legal e sem a devida indenização. O tributo, então, não pode serexcessivo a ponto de confiscar a propriedade, sancionando o contribuinte.

Os sistemas de proteção dos direitos humanos, não têm o direito de propriedadecomo absoluto, todavia fornecem a ele proteção suficiente para justificar a vedaçãoao tributo com efeito de confisco.

3.4 Direitos Humanos e Direito Tributário

Os estudos a respeito do direito tributário brasileiro, em sua maioria, verificama norma jurídica tributária, sua incidência, os elementos que a compõe. O maiornúmero de estudos trata destes aspectos mais técnicos, ligados com a estrutura eincidência da norma jurídica.

Poucos estudos visualizam o direito tributário pelo prisma da finalidade e dosefeitos que ele causa na sociedade. Os limites aos tributos são dados pelos

7 Está no próprio conceito de tributo trazido pelo Código Tributário Nacional adeterminação que ele não deve ser usado como sanção de ato ilícito: “Art. 3ºTributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela sepossa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobradamediante atividade administrativa plenamente vinculada.”Entende-se que a prestação pecuniária cobrada pelo Estado decorrente de atoilícito são as multas. Um tributo, então, não pode ser utilizado no sentido desancionar o contribuinte por um comportamento indesejado, sendo admitido nomáximo que o tributo induza o contribuinte a determinados comportamentos,sem configurar punição pela sua prática.

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elementos mais estudados, analisando-se a norma, as regras de competência eoutros limites decorrentes destes estudos.

Por isso, os limites da capacidade contributiva são pouco aplicados no Brasil.E em menor quantidade ainda, são os estudos que tratam do amparo fornecidopelos direitos humanos aos limites tributários8.

Conforme estudado aqui, verifica-se que a dimensão da dignidade da pessoahumana possui muita força no âmbito dos direitos humanos, sendo tal idéiaplenamente aplicável como limite para a tributação. A partir do momento que umtributo incide sobre bens destinados à subsistência de uma pessoa que recebe umsalário mínimo, parece claro que se está dificultando a sobrevivência desta pessoa.A incidência dos tributos, nesta hipótese, parece ser clara violação à dignidade dapessoa humana, uma vez que o tributo diminui a quantidade de gêneros de primeiranecessidade que a pessoa pode adquirir.

A utilização de critérios dos direitos humanos e de valores constitucionaiscomo a dignidade da pessoa humana são necessários para conferir à tributaçãomaior justiça. Os tributos atualmente cobrados são considerados válidos peladoutrina atual, todavia o sentimento de injustiça é grande, demonstrando quealgo está errado. Valores constitucionais devem ser utilizados como forma delimitar a tributação a patamares que tragam menos insatisfação ao contribuinte.

Neste sentido, é válido também o cotejo entre os direitos humanos protegidospelos sistemas internacionais e os direitos do contribuinte. No sistema jurídicobrasileiro os tratados de proteção dos direitos humanos têm significativa

8 Alguns dos estudos pesquisados sobre o assunto: SCAFF, Fernando Facury.Contribuições de Intervenção e Direitos Humanos de Segunda Dimensão. In:MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Contribuições de Intervenção no DomínioEconômico. São Paulo: RT, 2002. (Pesquisas Tributárias – Nova série n. 8);GIACOVONI, Josiane de Campos Silva. Direito Tributário e Direitos Humanos –O Princípio da Legalidade Tributária com o Código de Defesa do Contribuinte –Projeto de Lei Complementar do Senado Federal 646, de 25 de Novembro de1999. In: RIBEIRO, Maria de Fátima; MAZZUOLI, Valério de Oliveira (Coord.).Direito Internacional dos Direitos Humanos – Estudos em Homenagem à Professora FláviaPiovesan . Curitiba: Juruá, 2004.; NAKAYAMA, Juliana Kiyosen. DireitosFundamentais e a Tributação sobre o Consumo e os Serviços no Mercosul, Os. In:RIBEIRO, Maria de Fátima; MAZZUOLI, Valério de Oliveira (Coord.). DireitoInternacional dos Direitos Humanos – Estudos em Homenagem à Professora Flávia Piovesan.Curitiba: Juruá, 2004; SOUZA, Leandro Marins de. Direito Internacional dosDireitos Humanos e Tributação: Breve Abordagem Teórica. In: PIOVESAN, Flávia(Coord.). Direitos Humanos. Curitiba: Juruá, 2006. v. 1.

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importância, devendo ser amplamente aplicados. Desta forma, há a possibilidadede levar direitos e garantias constitucionais do contribuinte, às cortes competentesde proteção dos direitos humanos, sempre que os direitos aqui explicitados foremviolados.

4 CONCLUSÕES

1. O princípio da capacidade contributiva é um princípio que rege o sistematributário. É derivado do princípio genérico da igualdade, sendo oresponsável por concretizar a igualdade na tributação.

2. Na tributação, a igualdade não corresponde a distribuir o ônus demanutenção do Estado igualmente entre todos os contribuintes. A igualdadedeve ser do impacto da tributação para cada contribuinte. Desta forma,quem tem mais riqueza paga mais tributo, e quem tem menos paga menosou não paga.

3. Do princípio da capacidade contributiva derivam dois limites para atributação: a preservação do mínimo vital e a vedação de tributo com efeitode confisco.

4. A preservação do mínimo vital determina que o tributo, não pode incidirsobre o mínimo necessário para a existência digna da pessoa. As pessoasque ganham valores inferiores ao mínimo necessário não possuemcapacidade contributiva. Este é o limite inferior da tributação, que determinaque a tributação, não pode por em risco a subsistência das pessoas,determinando o limite mínimo para a incidência do tributo. Este limitederiva da dignidade da pessoa humana.

5. A vedação do tributo com efeito de confisco determina que a tributação,não pode incidir tão pesadamente a ponto de confiscar patrimônio docontribuinte. Este limite fundamenta-se no direito de propriedade e é olimite máximo da tributação, determinando até onde a incidência do tributopode ir.

6. Os fundamentos da capacidade contributiva e seus limites são tuteladospela Declaração Universal dos Direitos Humanos, e pelos sistemas regionaisde proteção aos direitos humanos.

7. A capacidade contributiva encontra previsão na igualdade. Nota-se que ossistemas, em geral, não protegem a igualdade simplesmente, mas sim aigual proteção da lei. Tal igual proteção da lei impõe não um tratamentoigual a todos, mas a atuação do Estado no sentido de equiparar todas aspessoas em oportunidades e acesso a serviços que garantam os direitosbásicos.

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8. A dignidade da pessoa humana é bastante protegida pelos direitos humanose pelo direito brasileiro. Fundamenta-se aí a preservação do mínimo vitalcomo limite a tributação. Se ao Estado é imposto a preservação da dignidade,não pode ele atuar no sentido de tributar valores mínimos necessários àsubsistência das pessoas.

9. A vedação ao tributo com efeito de confisco decorre da proteção ao direitode propriedade, que é previsto também pelos direitos humanosinternacionais. A proteção fornecida não garante o direito absoluto àpropriedade, mas impõe que esta deve observar o interesse social. Atributação não pode ser excessiva a ponto de confiscar a propriedade nemsancionar o contribuinte.

10.Os limites, quando desrespeitados, ensejam o acesso às cortes internacionaisde proteção aos direitos humanos. Verifica-se que é possível ao contribuintea fundamentação de causas tributárias nestas cortes, quando os Estadosdesrespeitarem os limites da tributação impostos pela capacidadecontributiva.

REFERÊNCIAS

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Regulação jurídica, políticas públicas municipais e responsabilidade social das empresas

REGULAÇÃO JURÍDICA, POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS ERESPONSABILIDADE SOCIAL DAS EMPRESAS

LEGAL REGULATION, MUNICIPAL PUBLIC POLICIES ANDCOMPANIES’ SOCIAL RESPONSIBILITY

Saulo de Tarso Silvestre Sanhueza Manriquez *

Fabiane Lopes Bueno Netto Bessa* *

Resumo: Estudo que se propõe a analisar as interações entre a regulaçãojurídica (como forma de atuação do Estado que enfatiza a indução decomportamentos), a responsabilidade social das empresas (comomovimento que propõe a discussão do papel das empresas na atualidade,e de desenvolvimento de instrumentos de auto-regulação do mercado,voltados à mudança dos atuais modelos de produção e consumo) e acidade como primeiro espaço de pertencimento cívico e, por isso mesmo,como local privilegiado para a integração de políticas públicas e iniciativasda sociedade e do mercado em direção a uma sociedade mais sustentável.

Palavras-chave: Desenvolvimento sustentável. Regulação jurídica.Políticas públicas. Responsabilidade social das empresas. Cidades.

Abstract: This study aims at analyzing the interactions between legalregulation (as a way of State performance that emphasizes the inductionof behaviors), the companies’ social responsibility (as a movement thatproposes the discussion of the companies’ current role, and developmentof self-regulatory instruments of the market aimed at changing the presentproduction and consumption model) and the city as the first space ofcivic belonging and, therefore, as a privileged place for the integration

*Bolsista PIBIC/CNPq do Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica doParaná, integrante do projeto de pesquisa Desenvolvimento Sustentável,Responsabilidade Social das Empresas e Cidades. email: [email protected]

**Doutora em Direito das Relações Sociais (UFPR), Mestre em Direito Público (UFPR),professora do Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Socioambientalda PUC-Paraná, professora convidada do ISAE-FGV, coordenadora do projeto depesquisa Desenvolvimento Sustentável, Responsabilidade Social das Empresas eCidades, procuradora licenciada e ex-diretora da Escola Superior da Procuradoriada Fazenda Nacional no Paraná. email: [email protected].

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Saulo de Tarso Silvestre Sanhueza Manriquez; Fabiane Lopes Bueno Netto Bessa

between public policies and initiatives by the society and the markettowards a more sustainable society.

Keywords: Sustainable development. Legal regulation. Public policies.Companies’ social responsibility. Cities.

1 INTRODUÇÃO

A cidade é o primeiro núcleo de pertencimento político e social, em torno doqual orbitam as atividades industriais, comerciais, financeiras e de prestação deserviços – tornando-se local privilegiado de crescimento econômico, deconcentração de serviços públicos (hospitais, universidades, etc.) e, em algunscasos, conseqüentemente, forte núcleo de atração migratória. É nela que se exercemos direitos e se cumprem os deveres: onde se constrói a cidadania.

Alertando sobre a crescente importância das questões urbanas, como tópicoessencial na abordagem do desenvolvimento humano em termos globais, eregistrando que, em 1990, das trinta maiores metrópoles mundiais vinte estavamem países subdesenvolvidos (entre os quais, a Índia, China, Paquistão, Brasil eMéxico) a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre os AssentamentosHumanos, (Habitat II – Istambul) ocorrida em 1996, e o Relatório sobre oDesenvolvimento Humano elaborado no mesmo ano pelo Programa das NaçõesUnidas para o Desenvolvimento (PNUD) - estimaram que em 2025, o percentualde habitantes em assentamentos humanos urbanos (que em 1975 era de 37,73%da população mundial) ultrapassaria os 61,07%. A projeção para o Brasil, segundoeste estudo, é de que em 2020, 88,94% da população viverá em centros urbanos.

Assim, os impactos ambientais (poluição do ar, sonora, visual), sociais(violência urbana, déficit habitacional, alta concentração de desempregados e dedemandas por serviços e equipamentos públicos) e econômicos (concorrênciaentre cidades, guerras fiscais, influência do poder econômico nas políticas públicas)que hoje são realidades do meio urbano, poderão se estender a 61% da populaçãomundial e quase 90% da população brasileira – como conseqüências das políticaspúblicas, da regulação econômica e da articulação (ou desarticulação) dos esforçosvoltados ao desenvolvimento sustentável, por parte dos governos, do mercado eda sociedade civil.

A abordagem dessas questões vem ganhando força nas últimas décadas, emvirtude do aumento prodigioso da população urbana, bem como pela crise domodelo econômico baseado no uso de matrizes energéticas não renováveis e nodesrespeito ao meio ambiente e à dignidade da pessoa humana, por parte de uma

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Regulação jurídica, políticas públicas municipais e responsabilidade social das empresas

parcela significativa de agentes econômicos e mesmo do Poder Público1 –justificando-se, assim, o estudo e a reflexão sobre as relações entre a atuaçãoempresarial e as políticas públicas municipais na promoção do desenvolvimentosustentável.

A questão ambiental, que começou a ser discutida internacionalmente dadécada de 70 do século que há pouco se encerrou, teve como um de seus principaismarcos a Conferência ocorrida em 1992 no Rio de Janeiro, cujo tema central foio desenvolvimento sustentável e que teve como um de seus principais documentosa Agenda 21. Esta foi o ponto de partida para a formulação das Agendas 212

nacionais, estaduais e municipais. No caso do Brasil, a questão do desenvolvimentosustentável pensado sob o ponto de vista das cidades foi um entre os 6 temas daAgenda 21 Brasileira: Cidades Sustentáveis – que traduz, inclusive, a perspectivamundial de enfrentamento da questão: “pensar globalmente, agir localmente”3.

Entre as premissas definidas para o desenvolvimento deste tema estão: diálogoentre a Agenda 21 brasileira e as atuais opções de desenvolvimento, gestãointegrada e participativa, foco na ação local, mudança do enfoque das políticasde desenvolvimento e preservação ambiental (substituição gradual de instrumentosde caráter punitivo por instrumentos de incentivo e auto-regulação dos agentessociais e econômicos) e informação para a tomada de decisão.

Considerando que a própria idéia de desenvolvimento sustentável vincula-se,conforme mais adiante será analisado, ao atendimento a pelo menos três aspectos– o econômico, o social e o ambiental – sua promoção pressupõe a atuaçãointegrada entre C, e sua abordagem deve ser multidisciplinar, pois, com bemobserva Lopes (2001, p. 15): “Nenhum dos problemas concretos que na vida realse imponham é de ordem estritamente disciplinar; apenas por razões de arrumaçãoe de simplificação, o conhecimento tem sido academicamente compartimentado.”

1 Uma vez que, a exemplo das grandes hidrelétricas (e não obstante os aspectos positivosque também apresentam), muitos dos grandes projetos de forte impacto social eambiental são desenvolvidos pelo Poder Público.

2 Documento aprovado pela Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente eDesenvolvimento – também denominada Eco/92 que traduz o compromisso das naçõespara mudança do padrão de desenvolvimento no século XXI. Por sua vez, cada paísdesenvolveu suas agendas nacionais e, no caso de estados federais – como o Brasil – aproposta é de que cada Estado-membro e cada Município desenvolva sua própriaAgenda 21.

3 Segundo Ana Luiza Camargo (2003) a expressão é atribuída a Hazel Handerson,economista que desenvolve estudos do futuro e autora de diversos livros entre osquais “Além da Globalização” e “Transcendendo a Economia”.

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Portanto, a construção de um Direito dinâmico e harmônico com a evoluçãosocial, deve necessariamente beber em fontes outras que não a própria, sob penado ordenamento jurídico se ver esvaziado em sua retórica, distanciando-se cadavez mais da realidade social.

2 REGULAÇÃO JURÍDICA, POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS EDESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Identificar os pontos comuns ou complementares entre a atuação do Estado,das empresas e da sociedade num esforço de coordenado de promoção dodesenvolvimento sustentável é o ponto central deste estudo.

Para tanto, faz-se necessária a prévia estruturação das bases conceituais quepermeiam tal reflexão, razão porque se mostra essencial o entendimento dostemas que lhe dão suporte: desenvolvimento sustentável, regulação jurídica,políticas públicas, competência municipal e responsabilidade social das empresas– os quais serão objeto de estudo no desenvolvimento deste trabalho.

2.1 desenvolvimento, sustentabilidade, desenvolvimento sustentável

Existem várias teorias que visam estabelecer um marco conceitual sobre otermo desenvolvimento.

Veiga (2005) observa que dentre elas, destacam-se as que consideram odesenvolvimento uma ilusão, uma quimera. Uma das expressões desse pensamentoé o sociólogo italiano Giovani Arrighi, que vê com bastante ceticismo apossibilidade de mobilidade ascendente na rígida economia capitalista,considerando irrisórias as chances dos países periféricos (pobres) elevarem-se aonível dos países semiperiféricos (emergentes) e estes ao nível dos países centrais(ricos). Outro autor que adota entendimento semelhante é Celso Furtado na suaobra “O mito do desenvolvimento econômico”, cujo cerne, segundo Veiga (2005,p. 28) é a irrefutabilidade de “que as economias periféricas nunca serãodesenvolvidas, no sentido de similares às economias que formam o centro dosistema capitalista”.

A maneira mais comum e antiga de entender o desenvolvimento é aquela queo associa ao crescimento econômico, ou que simplesmente trata ambos comosinônimos. Nesse sentido, observa Veiga (2005, p. 19):

Até o início dos anos 1960, não se sentiu muito a necessidade de distinguirdesenvolvimento de crescimento econômico, pois as poucas nações desenvolvidaseram as que se haviam tornado ricas pela industrialização. De outro lado, os paísesque haviam permanecido no subdesenvolvimento eram os pobres, nos quais oprocesso de industrialização era incipiente ou nem havia começado. Todavia, foram

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Regulação jurídica, políticas públicas municipais e responsabilidade social das empresas

surgindo evidências de que o intenso crescimento econômico, ocorrido durante adécada de 1950 em diversos países semi-industrializados (entre os quais o Brasil),não se traduziu necessariamente em maior acesso de populações pobres a bensmateriais e culturais, como ocorrera nos países considerados desenvolvidos. Acomeçar pelo acesso à saúde e à educação. Foi assim que surgiu o intenso debateinternacional sobre o sentido do vocábulo desenvolvimento. Uma controvérsia queainda não terminou, mas que sofreu um óbvio abalo esclarecedor, desde que aONU passou a divulgar anualmente um índice de desenvolvimento que não se resumeà renda per capita ou à renda por trabalhador.

O advento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), em 1990, significouuma ruptura nos critérios de aferição de desenvolvimento, haja vista que odescaracteriza como sinônimo de crescimento econômico, na medida em queavalia três critérios, a saber: educação, renda e longevidade, passando com isso ocrescimento econômico, a ser entendido por muitos estudiosos do tema, comoum meio de serventia ao desenvolvimento.

Pode-se dizer que o IDH traz no seu bojo a idéia de crescimento, postoque o critério “renda”, é calculado com base no PIB per capita, mas, na medidaem que avalia os critérios da educação4 e da longevidade5, impede que ocrescimento seja tomado por sinônimo de desenvolvimento.

O crescimento deve vir acompanhado de um aumento na esperança devida da população, de um baixo índice de mortalidade infantil e de bons níveis desaúde e salubridade para todo o corpo social avaliado6 pois, como bem observaAmartya Sen (2000, p. 29): “o crescimento econômico não pode sensatamenteser considerado um fim em si mesmo”.

Essa concepção não é nova: riqueza, relações comerciais e dinheiro, sempreforam objetos de ponderação ao longo da história da humanidade. Um exemplodisso é o pensamento aristotélico que entende que “[...] a riqueza não é,obviamente, o bem que procuramos: trata-se de uma coisa útil, nada mais, edesejada no interesse de outra coisa” (ARISTÓTELES, 2002, p. 22).

O que seria, então, o desenvolvimento? Entendendo que o desenvolvimentodeve estar associado à ampliação das liberdades individuais substantivas7, Sen

4 No critério educação é avaliada a taxa de alfabetização, bem como o somatório depessoas que freqüentam cursos de nível fundamental, médio, superior, cursos supletivose pós-graduação.

5 Nesse critério é avaliada a expectativa de vida da população observada, as condiçõesde saúde e salubridade do local e taxa de mortalidade infantil.

6 Diz-se corpo social avaliado pois o IDH pode ser avaliado no âmbito nacional, estadualou municipal.

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frisa que a privação de liberdade que uma pessoa pode sofrer não se resume aocerceamento das liberdades políticas e direitos políticos (tais como a liberdade deexpressão, liberdade de culto, direito ao sufrágio, direito ao devido processo legalcom ampla defesa e contraditório), mas se estende a todo um corpo de necessidadesbásicas dos seres humanos, as quais, quando não atendidas redundam em privaçãode liberdade.

Assim, em sintonia com o pensamento de Sen, pode-se considerar que odesenvolvimento implica fazer correr concomitantemente com o crescimentoeconômico um projeto de promoção da melhoria da qualidade de vida de todauma sociedade, aplacando a miséria, tutelando e promovendo os direitos humanos,ampliando as liberdades humanas substantivas, aprimorando o sistemademocrático e todas as suas instituições.

Feitas essas observações acerca do desenvolvimento, passa-se à abordagemde seu elemento complementar (e portanto, não antinômico): a sustentabilidade.

A idéia de sustentabilidade implica segundo Veiga (2005, p. 171), no “duploimperativo ético de solidariedade sincrônica com a geração atual e de solidariedadediacrônica com as gerações futuras.”

Os objetivos da sustentabilidade, de acordo com o autor, seriam:

1) preservação do potencial da natureza para a produção de recursos renováveis; 2)limitação do uso dos recursos não renováveis; respeito e realce para a capacidade deautodepuração dos ecossistemas naturais. [...]Ela impele ainda a buscar soluções triplamente vencedoras (Isto é, em termos sociais,econômicos e ecológicos), eliminando o crescimento selvagem obtido ao custo deelevadas externalidades negativas, tanto sociais quanto ambientais (VEIGA, 2005, p.171-2).

O desenvolvimento sustentável por sua vez, pressupõe o equilíbrio harmônicoentre o desenvolvimento (entendido sob o prisma de Amartya Sen) e asustentabilidade (a partir da postura moderada de José Eli da Veiga) – e traduz aperspectiva trazida pelo Relatório Bruntland8 o qual propõe que a sustentabilidadeecológica e o desenvolvimento econômico são desejáveis e possíveis, não havendo,portanto, contradição entre eles (ALTVATER, 1999).

7 É de observar que o pensamento de Sen tangencia em vários aspectos o conteúdoavaliatório do IDH, até porque ele é um dos seus idealizadores.

8 Documento que resultou da primeira conferência da ONU tratando sobre meioambiente, ocorrida em 1972 na Cidade de Estocolmo, e que levou este nome emhomenagem à primeira Ministra da Suécia Gros Bruntland que teve participaçãofundamental nos trabalhos.

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Regulação jurídica, políticas públicas municipais e responsabilidade social das empresas

A idéia de desenvolvimento sustentável traz no seu bojo o reconhecimentodas empresas como atoras fundamentais – haja vista que a mudança nos modelosde produção e consumo atuais está no cerne das questões envolvendo o tema.Tem início, então, uma outra discussão, agora quanto à Responsabilidade Socialdas Empresas (RSE), e a necessidade de uma interação entre políticas públicas,mecanismos regulatórios do Estado e instrumentos auto-regulatórios de mercado,como forma de catalisar esforços em direção ao desenvolvimento sustentável.

2.2 Desenvolvimento sustentável e atividade empresarial

Se as organizações representam instrumentos de geração de trabalho, renda,bem-estar social, desenvolvimento e até mesmo felicidade, elas podem por outrolado, “[...] acarretar danos reais e diretos, de natureza física, social e mental àsociedade” (HALL, 2004, p. 12), o que, inexoravelmente às conduzem a umdesvio de sua finalidade social.

Os danos a que as organizações privadas podem dar causa se dão, entre outrosmotivos, por desconhecimento de suas ações (falta de informações e/ouorientações técnicas); pela omissão; pela má-fé que a conduz a práticas dolosasem prol de ganhos imediatos; ou pelas relações promíscuas que mantêm com opoder público.

Nesse sentido tem-se a sempre atual afirmação do filósofo Mário Ferreirados Santos (1962, p. 28-9):

Se alguns apenas se satisfazem em ganhar seus lucros, e deles tirar o melhor proveito,outros desejam dominar, superar, vencer os adversários e concorrentes, liquidando-os, humilhando-os, ou ainda, pretendem assegurar lucros pelos meios mais seguros,como sejam os que podem propiciar o monopólio concedido pelo governo, edefendido e amparado pela força do Estado.

Fica subentendida no pensamento acima exposto, a figura do empresário, dogestor. Nesta toada, os danos causados ao meio ambiente (a poluição, a eliminaçãode lixo tóxico, a destruição de ecossistemas, etc.), às relações de trabalho (comopor exemplo, a sujeição do trabalhador a ambientes de trabalho insalubres ou aconstantes riscos de acidentes), à livre concorrência (tais como dumping ouprivilégios obtidos sob aliciamento de membros do poder público), não são emsi atos econômicos, mas atos antiéticos que se dão no campo da economia, e são,portanto de origem extra-econômica. Assim, dizem respeito, também, àmentalidade das pessoas que conduzem a atividade empresarial, muito emboraseja a pessoa jurídica (a sociedade empresária), convencionalmente, a responsávelpor suas ações e omissões.

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Entretanto, o fundo motor de uma atividade lesiva pode ser de ordememinentemente econômica, uma vez que as empresas estão inseridasinevitavelmente no mercado, no qual lutam por seus interesses – e até por suasobrevivência. É o que acontece quando muitas organizações vêem-se obrigadas,em virtude da dinâmica das relações mercadológicas, a tomarem medidas drásticaspara manterem-se competitivas, como é o caso das ondas recentes de“enxugamento” (downsizing)9, as quais ocasionam impactos na sociedade que terãoefeitos imprevisíveis durante muito tempo.

As organizações têm o poder de mexer com a cultura, os valores e o modo devida de indivíduos e até mesmo de povos (BESSA, 2006), e quanto maior oempreendimento, maior o impacto que ele produz. Elas são núcleos de poder, e,por exemplo, em virtude do lobby praticado por algumas delas, já há quem diga,como é o caso de Hall (2004, p. 12) que elas podem “[...] ser consideradas comouma fonte de leis”.

Assim, a responsabilidade social a partir das empresas passa pelaindividualidade dos gestores e pela soma destas mesmas individualidadestraduzidas em linguagem auto-regulatória do mercado.

Da individualidade do gestor empresarial e de cada membro que compõem acúpula decisória de uma empresa forma-se a cultura organizacional. A influênciadesta sobre outras organizações, pode levar concentricamente, à um modelo deatuação que passa a ser exigido de todos os que atuam em determinado mercadoe este fenômeno é de sensível importância no âmbito da Responsabilidade Socialdas Empresas.

Um exemplo disso é o fato de já existirem, hoje, algumas empresas brasileirasque se responsabilizam, espontaneamente, por todo o ciclo de seu produto, oque consiste numa expressão natural de responsabilidade social, haja vista queno Brasil não há exigência legal, nesse sentido. Diante disso, o mercado,absorvendo esses tipos de cultura, as traduz, de modo gradativo, em exigênciacomum a todos os agentes econômicos privados. Nesse sentido, a responsabilidadesocial empresarial passa a abranger toda a cadeia de relacionamentos, abrangendoos trabalhadores, os consumidores, os fornecedores, o Estado, os acionistas, omeio ambiente, os concorrentes e a sociedade tomada como um todo: é o chamadostakeholder capitalism.

A conscientização empresarial acerca da sustentabilidade vem se ampliandopaulatinamente, mas como sua evolução natural depende de mentalidades, não é

9 Infelizmente essa não é para muitas empresas a medida última de saneamento financeiro,ou seja: o primeiro corte de custos é o corte de pessoal.

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Regulação jurídica, políticas públicas municipais e responsabilidade social das empresas

suficiente esperar que todo o meio empresarial torne-se consciente de seu papele atue no sentido de colaborar para o desenvolvimento sustentável, o que revelaa necessidade de intervenção do Estado no domínio econômico, conforme seráanalisado no tópico que segue.

2.3 Direito econômico e regulação jurídica

Washington Peluso Albino de Souza (1999, p. 27) define Direito Econômicocomo sendo:

[...] o ramo do Direito que tem por objeto a juridicização, ou seja, o tratamentojurídico da política econômica e, por sujeito, o agente que dela participe. Como tal,é um conjunto de normas de conteúdo econômico que assegura a defesa e harmoniados interesses individuais e coletivos, de acordo com a ideologia adotada na ordemjurídica.

O conceito descrito aponta para uma visão moderna do Direito Econômico,que o encara como um ramo autônomo do Direito, com regras, princípios, normase objeto próprios.

O Direito Econômico dita o “dever-ser” para as atividades econômicas, sejamelas estatais ou privadas e regula a política econômica de produção e circulaçãode bens e o consumo (CLARK, 2001, p. 7).

A intervenção estatal no domínio econômico, hodiernamente, pode serjustificada em virtude da contenção de crises, ou para evitá-las; para fomentar oavanço de setores estratégicos; para solucionar problemas de desempregoestrutural; para combater as disparidades regionais; bem como, para promover odesenvolvimento sustentável.

Diversas são as modalidades de intervenção do Estado na economia, a saber:1) orientadora, quando Estado orienta os agentes privados a atuarem de certamaneira, para que alcancem objetivos específicos, sem a presença de comandosnormativos coatores ou proibitivos, mas sim incentivando a iniciativa privada,por exemplo, com prêmios e isenções tributárias. 2) dirigida, na qual, há porparte do Estado a edição de normas que proíbem ou determinam uma condutaativa ou negativa (omissão) aos particulares e aos atores econômicos estatais; 3)combinada, na qual o Estado ao lado dos particulares – empresários,trabalhadores, consumidores, profissionais liberais, ambientalistas –, mediadospor suas entidades representativas estabelecem diretrizes às atuações conjuntasou individuais; 4) contratual, na qual o Estado e os particulares celebram contratospara a concretização dos objetivos da intervenção. Aqui os particulares buscam,pela via contratual, vantagens e facilidades em troca ajudarem o Estado napromoção do bem-estar social (CLARK, 2001, p. 31-2).

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Vale destacar ainda, que pela clássica divisão de Bernard Chenot do DireitoEconômico em Direito Regulamentar Econômico e Direito InstitucionalEconômico, a intervenção pode ainda ser classificada, como “direta”, “indireta”e “mista”. A direta, dá-se com a criação de empresas estatais (empresas públicase sociedades de economia mista) pelo Estado, para atuarem no domínio econômico,ou como agentes no âmbito da livre concorrência com os particulares, ou demodo monopolístico; ou ainda, quando o Estado cria as agências reguladoraspara regularem e fiscalizarem serviços e atividades econômicas. A intervençãoindireta ou Direito Regulamentar Econômico, dá-se pela expedição de normasjurídicas (leis, medidas provisórias, portarias, circulares, resoluções, instruçõesnormativas), advindas dos Poderes Legislativo e Executivo (CLARK, 2001, p. 33).

Ao Município é possível intervir em qualquer uma das modalidades deintervenção acima referidas, como a seguir será explicitado.

2.4 Regulação jurídica e políticas públicas no âmbito municipal

O Brasil, a despeito de ser um Estado Federal, ainda possui uma inegáveltendência ao centralismo, que acaba sobrecarregando a sociedade brasileira comum pesado fardo: o déficit democrático, em virtude de ser na Comuna10 que amaior parte das demandas da cidadania podem ser atendidas, ao ponto de Clark(2001, p. 149-150) atribuir ao federalismo brasileiro um caráter perverso, “bemperto de um Estado unitário centralizador”.

Entretanto, não se pode negar os avanços ocorridos, particularmente nasúltimas décadas, com o advento da Constituição Federal promulgada em 05 deoutubro de 1988. Nesse sentido, Bonavides (2006, p.344) observa que: “Asprescrições do novo estatuto fundamental de 1988 a respeito da autonomiamunicipal configuram indubitavelmente o mais considerável avanço de proteçãoe abrangência já recebido por esse instituto em todas as épocas constitucionaisde nossa história.”

A Carta Magna de 1988 elevou o Município à qualidade de ente integrante11

da Federação, dotado de autonomia política, administrativa e financeira, conformeprevisto nos artigos 29, 30, 31, 156, 158 e 159, mas manteve a perspectiva decooperação entre os integrantes da Federação. O critério de repartição decompetências utilizado pela Carta Magna, conforme aduz Jair Eduardo Santana

10 O termo Comuna é sinônimo de Município e é comumente usado pelos municipalistas.11 Vale ressaltar que há autores, como é o caso de Alexandre de Moraes (2006, p. 206)

que consideram o município como sendo entidade federativa e não apenas enteintegrante da federação.

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Regulação jurídica, políticas públicas municipais e responsabilidade social das empresas

(1998, p. 46), é de que “Competem ao poder central os poderes enumerados pelaprópria Constituição, aos Estados-Membros tocam os poderes residuais e, aosMunicípios, aqueles poderes inerentes a sua autonomia para dispor sobre tudoque diga respeito ao seu interesse local”.

O interesse local, disposto no art. 30, I da Constituição de 88, é corolário dasatribuições que compõem a sua autonomia, e, segundo Meirelles (2003, p. 134),“[...] se caracteriza pela predominância (e não pela exclusividade) do interesse doMunicípio em relação ao Estado e à União”.

Assim, a Constituição de 88 deu ao município competências próprias emalgumas matérias (art.30) e comuns com a União, os Estados e o Distrito Federalem outras (art.23).

Há, no entanto, quem entenda – como é caso de Jair Santana (1998, p. 136) –que há no âmbito municipal as competências ditas concorrentes, mesmo a despeitode não constar o município no rol do art. 24 da Carta Magna. Esse entendimentosó é possível a partir de uma interpretação extensiva do art. 30, II da Constituição,que diz “que cabe ao Município suplementar a legislação federal e a estadual noque couber”. Essa competência concorrente não seria apenas administrativa-regulamentar, estando, portanto, os municípios autorizados a legislarsuplementarmente, ou seja, suprindo a falta da legislação federal ou estadual atéo advento das leis editadas pelas respectivas esferas, e complementando a leiexistente para que melhor sejam atendidas as especificidades locais.

A repartição de competências apresenta reflexos, igualmente, na formulaçãode políticas públicas municipais. Estas, nas palavras de Bucci (2002, p. 241) são“programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposiçãodo Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmenterelevantes e politicamente determinados”.

As diretrizes de uma política pública, via de regra, são elaboradas pelo PoderLegislativo e executadas pelo Poder Executivo.

Na promoção da responsabilidade social das empresas, e em harmonia com aCarta Magna, dois modelos de atuação do Estado podem ser adotados: o propulsor(centrado nos programas finalísticos) e o incitador (que instiga, combinandonormas e persuasão), os quais, segundo Clark, também se aplicam no âmbitomunicipal, de modo que, como explica o autor:

As normas de Direito Econômico editadas no âmbito municipal nem sempre precisamser proibitivas (vedar determinado comportamento econômico) ou imperativas(ordenar certo comportamento econômico), mas podem ser, de acordo com aspeculiaridades das normas do referido ramo, programáticas (orientam paradeterminado fim a ser atingido), premiais (estabelecem prêmios, incentivos, estímulos

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para aqueles que a aderirem, não prevendo qualquer sanção para os agentes queoptem por outro comportamento) ou objetivas (estabelecem objetivos quantitativospara se cumprirem as metas traçadas). No âmbito local, todos esses tipos de normaspodem ser confeccionadas, independentemente das normas estaduais e federais,para regulamentar as políticas econômicas dos seus agentes (CLARK, 2001, p. 11).

Acerca do Estado propulsor, sob o prisma municipal, destaca Meirelles (2003,p. 486), que o poder de propulsão:

[...] é a faculdade de que dispõe o Município para impulsionar o desenvolvimentolocal, através de medidas governamentais de sua alçada. É, pois, toda açãoincentivadora de atividades particulares lícitas e convenientes à coletividade. Fomentaro desenvolvimento econômico, cultural e social dos munícipes é missão tão relevantequanto à contenção de atividades nocivas à coletividade.

Para atuar de modo propulsor, o Município pode fazer uso de diferentesinstrumentos, tais como as isenções. Se o Município, dentro do que lhe confere oart. 156 da Constituição Federal, possui aptidão para tributar, possui ele tambéma faculdade de isentar, ambas sujeitas ao princípio da legalidade (artigos 5º, II, e150, I, da Constituição Federal).

As isenções podem ser condicionais ou incondicionais. As isençõescondicionais figuram entre os instrumentos a disposição do Município para apromoção da responsabilidade social das empresas afinal, segundo Carraza (2006,p. 846): “[...] para serem fruídas, exigem uma contraprestação do beneficiário.Ele é que deve decidir se vale, ou não, a pena fruir desta vantagem. Bastará, paratanto, que preencha, ou não, os requisitos apontados na norma isentiva.” Asisenções condicionais, não implicam portanto, em renúncia fiscal.

Além das isenções, tem-se ainda, como exemplo de política pública propulsora,a Lei Complementar 40 do Município de Curitiba, que dispõe sobre os tributosmunicipais, em especial o artigo 39, que prevê uma alíquota premial referente aoimposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) em função dautilização do imóvel, ou seja, em razão do cumprimento da função social dapropriedade, e, conseqüentemente, da responsabilidade social das empresas.

2.5 Regulação Jurídica e a Responsabilidade Social das Empresas

Maria Dallari Bucci (2002, p. 66) observa que a “regulação diz respeito atodas as formas de intervenção ou interferência do Estado na vida dos cidadãose das empresas”, não se restringindo, portanto, a aspectos econômicos.

Sendo a empresa “um núcleo de múltiplas manifestações do direito depropriedade” (BESSA, 2006, p. 101) ela está sujeita aos contornos constitucionaisda função social da propriedade (art. 5º, XXIII, da Constituição Federal) e, por

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Regulação jurídica, políticas públicas municipais e responsabilidade social das empresas

assim ser, deve atuar buscando o equilíbrio entre seus interesses e os anseiossociais: a responsabilidade social das empresas.

São inúmeras as formas de regulação jurídica que delineiam a responsabilidadesocial das empresas. Nesse sentido tem-se como exemplo de regulação jurídicavoltada à estruturação do direito de vizinhança. O Estatuto da Cidade (Lei10.257 de 10 de julho de 2001), em seus artigos 36 a 38 prevê o estudo deimpacto de vizinhança, que é um “[...] instrumento para que se possa fazer amediação entre os interesses privados dos empreendedores e o direito à qualidadeurbana daqueles que moram ou transitam no seu entorno” (BRASIL, 2002, p.198), haja vista que o zoneamento não é suficiente para solucionar todos osproblemas de vizinhança.

O estudo de impacto de vizinhança tem por desiderato “[...] democratizar osistema de tomada de decisões sobre os grandes empreendimentos a seremutilizados na cidade, dando voz a bairros e comunidades que estejam expostosaos impactos dos grandes empreendimentos” (BRASIL, 2002, p. 199).

Instrumentos análogos ao Estudo de Impacto de vizinhança são os estudosde impacto ambiental e a regulamentação de pólos geradores de tráfego.

Outro instrumento importante de regulação, embora ainda não exigido porlei (exceção feita ao Município de Porto Alegre), é o balanço social, o qual segundoBessa (2006, p.197):

[...] constitui uma maneira de a empresa prestar contas aos seus diferentesinterlocutores (clientes, fornecedores, empregados, governos, comunidade local,acionistas etc.) da utilização de recursos colocados à disposição da empresa – e quebasicamente não lhe pertencem: os custos sociais, os fatores que a sociedade colocouao serviço da empresa, recursos naturais etc.

A abordagem da regulação jurídica não pode prescindir da noção de poder depolícia, que, segundo Meirelles (2003, p. 448) “[...] não é um poder político,privativo dos órgãos constitucionais do Estado, mas sim um poder administrativodifundido entre toda a Administração Pública, na medida das necessidades desuas funções.” A polícia administrativa, deve atuar preferencialmente de formapreventiva, mediante ordens, proibições, ou por normas limitadoras econdicionadoras da conduta daqueles que utilizam bens ou exercem atividadesque possam afetar a coletividade (MEIRELLES, 2003, p. 457).

No âmbito da competência municipal, merece atenção o poder de políciarelacionado às obras civis, implicando na necessidade do alvará de construção(que é uma autorização para construir de acordo com o projeto aprovado), opoder de polícia sanitária local (visando a higiene da cidade e ao abastecimento

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de sua população – CF, art. 30, VII); o poder de polícia das águas (comum àUnião e aos Estados-membros, cabendo a cada um, dentro de suas competênciasestabelecer medidas sanitárias adequadas a manter as condições de uso da água).Dentro desse poder insere-se a repressão à poluição da água, traduzindo o zelopela saúde e bem-estar da coletividade local e o poder de polícia do ar, que visapreservar o estado do ar respirável. Nesse sentido, o Decreto no 76.389, de 3/10/1975, que regulamentou o Decreto-lei no 1.413 de 1975, reafirmou (art.4º) acompetência municipal para controlar a poluição industrial, “respeitados oscritérios, normas e padrões fixados pelo governo federal” (MEIRELLES , 2003,p. 470-1).

As sanções do poder polícia devem estar estabelecidas em lei ou regulamento.Elas servem como elemento de coação e intimidação e podem consistir em umasimples multa ou em penalidades mais severas como a interdição de atividade, ademolição de construção, o embargo administrativo de obra, a proibição defabricação e/ou circulação de certos produtos, a vedação de localização deindústrias ou de comércio em determinadas zonas (MEIRELLES , 2003, p. 459).

A integração entre instrumentos regulatórios, instrumentos de auto-regulaçãodo mercado (como certificações ambientais ou balanços sociais espontaneamentepublicados pelas empresas) e o estímulo à participação da sociedade na formulaçãoe controle de políticas públicas (através, por exemplo dos conselho municipaisde políticas públicas) é de fundamental importância para a promoção dademocracia participativa e, igualmente do desenvolvimento sustentável.

3 CONCLUSÃO

Evidenciados os fundamentos teóricos e as distinções existentes entrecrescimento econômico, desenvolvimento, sustentabilidade e desenvolvimentosustentável, fica patente que este último é dotado de um maior juízo deplausibilidade, na medida em que a separação entre o desenvolvimento e asustentabilidade ou gera melhoria da condição de vida da população às expensasdo meio ambiente, o que, a longo prazo, anula a própria possibilidade dedesenvolvimento pela não-renovação dos recursos naturais, ou gera a preservaçãoda natureza às expensas da humanidade.

A promoção do desenvolvimento sustentável, em virtude da influência eabrangência das atividades das organizações privadas na contemporaneidade,passa necessariamente pela responsabilidade social das empresas.

A responsabilidade social das empresas insere-se necessariamente nos marcosregulatórios do Estado referentes à atividade empresarial. Em virtude disso, numprimeiro momento, ela pode ser delineada simplesmente pelo respeito ao que o

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Regulação jurídica, políticas públicas municipais e responsabilidade social das empresas

ordenamento jurídico impõe, mas é evidente que o seu conteúdo teleológico vaimuito adiante, passando da esfera normativa, para a esfera axiológica que informaconcepção de empresa de um determinado gestor ou de uma determinada culturaorganizacional.

A responsabilidade social das empresas pode nascer espontaneamente nopróprio seio da atividade empresarial pela influência de uma determinada empresanum determinado mercado, de maneira tal que esta acaba por induzir os demaisagentes privados a atuarem do mesmo modo, ou seja, fazendo com que o mercadotraduza essa influência em linguagem auto-regulatória. Entretanto, na ausênciada espontaneidade empresarial e/ou da auto-regulação voltada à promoção daresponsabilidade social das empresas, ou mesmo concomitantemente, pode oEstado, pela intervenção no domínio econômico, exercer seu poder propulsor ouincitador mediante a criação de políticas públicas que conduzam e premiem aboa gestão.

Entretanto, seja na regulação ou na propulsão, o Poder Público, enfatizando-se aqui o municipal, deve atuar em conformidade com os fundamentos, princípiose fins da ordem econômica brasileira (art. 170 da CF), de maneira tal que respeitea livre iniciativa, valorize o trabalho humano pelo combate ao desemprego e aosubemprego, defenda os consumidores e tutele o meio ambiente.

É de suma importância o conhecimento das realidades locais para oestabelecimento de políticas públicas, voltadas à promoção da responsabilidadesocial das empresas e do desenvolvimento sustentável, afinal “se os benefíciosdo desenvolvimento econômico-social devem ser para os indivíduos - todos osindivíduos – a localização deles é fator que não deve ser dispensado na análise ena adoção de políticas [...]” (LOPES, 2001, p. 4).

Este papel cabe à administração pública municipal e não a um corpo técnicoda burocracia central da República, nem tampouco à ONGs internacionais ou aorganismos internacionais que encaminham “pacotes de ações” a seremexecutadas, sem a devida transparência, pela Comuna. Cabe ao gestor municipale aos vereadores de modo transparente e através de amplos diálogos com apopulação, estabelecer políticas públicas que estimulem ou premiem aresponsabilidade social das empresas, a qual, inexoravelmente, deve compor todae qualquer construção de modelos de desenvolvimento sustentável.

As políticas públicas voltadas à promoção da responsabilidade social dasempresas podem e devem ser propostas pelo Poder Público Municipal, dentro dasua esfera de competência, através da adoção orquestrada de diferentesmecanismos típicos de Estado e a estimulação de mecanismos auto-regulatóriosdo mercado.

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Muitos são os exemplos possíveis: arranjos de cooperação com empresas esociedade civil que não detém um caráter predominantemente econômico, masde uso de suas respectivas formas de atuação para promover a educação para odesenvolvimento sustentável no âmbito interno das entidades dos três setores;criação de prêmios (de natureza não financeira), que estimulem as empresas aapresentarem balanços sociais – como já fazem vários municípios brasileiros;especificação, em suas licitações, de produtos ambientalmente adequados, alémdo uso de mecanismos regulatórios tradicionais, como as isenções condicionais,dentro dos limites do art. 156 da CF 88, ou o estabelecimento de alíquotas premiaiscomo é caso do artigo 39 da Lei Complementar 40 do Município de Curitiba.

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A Cláusula Geral do Abuso de Direito como Função Longa Manus do Instituto da Responsabilidade Civil

A CLÁUSULA GERAL DO ABUSO DE DIREITO COMO FUNÇÃOLONGA MANUS DO INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

THE GENERAL CLAUSE OF RIGHT ABUSE AS LONGA MANUSFUNCTION OF CIVIL RESPONSIBILITY INSTITUTE

Franciel Munaro*

Resumo: O Novo Código Civil traz o instituto do abuso de direito erigidoa uma cláusula geral. Esta, através de seus elementos estruturais, como aboa-fé, os bons costumes e os fins econômicos e sociais, determinará aresponsabilidade do agente em indenizar outrem caso este ultrapassar oslimites do permitido. O instituto do abuso de direito, contudo, extravasaà ordem civil, bem como ao instituto da responsabilidade, permeandopor outros campos do direito, fato pelo qual abrange uma vasta gama desituações e probabilidades jurídicas, devendo ser trabalhado como umprincípio de direito.

Palavras-chave: Direito Civil. Cláusulas Gerais. Responsabilidade Civil.Abuso de Direito. Princípio de Direito.

Abstract: The new Civil Code brings the institute of right abuse as ageneral clause. This clause, through its structural elements, as good-faith,good-customs and the social and economical aims, will find theresponsibility of the agent into compensate another person who hasovertook the limits of the law. The right abuse institute, however, goesfurther one to the civil order and the responsibility institute, comingaround another fields of the law as well the institute of civil responsibility,matching with another law fields, reason that include a great situationsand law probabilities, should be worked as a law principle.

Keywords: Civil Law. General Clauses. Civil Responsibility. Right Abuse.Law Principle.

* Especialista em Direito Privado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos(UNISINOS). Advogado e professor titular da cátedra de Direito das Obrigações naUniversidade do Contestado (UNC) Afiliação: Universidade do Contestado, UNC,Campus Concórdia – SC.. Professor titular da cátedra de Direito das Obrigações daUNC. email: [email protected]

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1 INTRODUÇÃO

Dentre muitas inovações trazidas pela Lei n° 10.406 de 10 de janeiro de 2002(Código Civil), aparece aquela que foi considerada por muitos como sendo amais importante de todas, qual seja, a cláusula geral consubstanciada no artigo187 deste inovador compêndio legislativo, isto é, o instituto do abuso de direito(STOCO, 2002, p. 14).

Importa salientarmos que esse dispositivo não estava presente no velho Códigode 1916, muito embora tenha sido aplicado pela jurisprudência brasileira duranteo período de vigência do mesmo, isto em virtude da interpretação indireta doartigo 160, I do compêndio civilista (COSTA, 2002, p. 39-65).

Nosso Código Civil atual conceitua o abuso de direito através de apenas umúnico artigo, localizado no Título III (Dos Atos Ilícitos), Livro III (Dos FatosJurídicos), da Parte Geral do Estatuto Civil. Salienta essa previsão legislativa:“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Inserto no capítulo da Responsabilidade Civil, matéria esta que regula oslimites subjetivos da liberdade humana e ao mesmo tempo busca imputar aresponsabilidade de um dano ao seu causador, obrigando-o a indenizar o lesado,o abuso de direito mostra-se como mais uma alternativa hábil para apurar aculpabilidade do agente lesante em casos de manifesto excesso no exercício deum direito legal, fundamentando assim, o dever de indenizar.

Destarte, além da inovadora cláusula trazida pelo nosso ordenamento civil,verifica-se também, como parte do conteúdo do artigo 187, a introdução denovos elementos conceituais os quais servirão in tese, para definir, através dainterpretação feita pelo operador do direito, da ocorrência ou não de um atoabusivo.

Nossa intenção é desenvolver o estudo do abuso do direito dentro do capítuloda responsabilidade civil, definindo, através de interpretação legal, o alcance destedispositivo, bem como a sua aplicação no âmbito do direito civil. Para isso, importaadentrarmos no conceito de abuso de direito, estudarmos sua natureza, origem eaplicação no ramo da responsabilidade civil.

2 CONCEITO DE ABUSO DE DIREITO

O Código Civil de 1916 não mencionou expressamente sobre o abuso dedireito. Não obstante, o mesmo começou a ser aplicado pela doutrina através dainterpretação à contrário sensu, do artigo 160, I do compêndio civilista, que fezmenção indireta sobre este instituto jurídico.

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Já o Código Civil de 2002, em seu artigo 187, conceitua plenamente o que éabuso de direito, salientando ser o mesmo uma espécie de ato ilícito.

O conceito, bastante vago e impreciso, propositalmente elaborado para conternele uma cláusula geral, abarca inúmeras alternativas que podem ocorrer no bojode nossa sociedade, incitando assim, a imaginação do julgador a fim de buscar asolução do caso.

Data vênia, muitas são as conceituações que bem definem o que é o abuso dedireito, fato pelo qual transcreveremos algumas que entendemos ser as maisadequadas, bem como a que traduz nossa própria idéia do que seja um ato abusivo.

Aguiar Dias (1994, p. 459) define o abuso de direito como sendo todo o atoque, “autorizado em princípio, legalmente, se não conforma, ou em si mesmo oupelo modo empregado, a essa limitação”. Na concepção de Sílvio Rodrigues(2002, p. 46), o abuso de direito “é ato que ocorre quando o agente, atuandodentro das prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe concede, deixa deconsiderar a finalidade social do direito subjetivo e, ao utilizá-lodesconsideradamente, causa dano a outrem”.

Para Eduardo Viana Pinto (2002 p. 33), o abuso de direito é o exercícioanormal de um direito, revelada a intenção, por parte de seu detentor, de prejudicar,de lesar outrem.

Dos conceitos acima expostos, podemos retirar elementos em comum a todoseles, os quais parecem compor a essência do instituto do abuso de direito. Háunanimidade, nestes casos, que o abuso de direito parte de um direito legítimo dapessoa que o exerce e geralmente está eivado de uma finalidade precípua. Quandoesta finalidade extrapola sua função social, seja com conteúdo emulativo ou nãodo agente, adentra na esfera do ilícito, prejudicando terceiros.

Neste sentido, faz-se patente que importa considerar como sendo abuso dedireito todo ato jurídico de natureza inicial lícita que maculado pelo excesso,extrapola os limites legais do direito, invadindo a esfera jurídica alheia eingressando, contudo, na esfera do ilícito, praticado por uma pessoa física oujurídica detentora de um direito legal.

Assim, aquele que exorbita no exercício de seu direito, causando prejuízo aoutrem, pratica ato ilícito, ficando obrigado a reparar. Ele não viola os limitesobjetivos da lei, mas, embora lhe obedeça, desvia-se dos fins sociais a que estanorma se destina. E bem como afirma Venosa (2004, p. 604), no abuso de direito,sob a máscara de um ato legítimo, esconde-se uma ilegalidade.

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3 SURGIMENTO DO INSTITUTO

O abuso de direito como instituto jurídico foi lentamente tomando formadesde o Império Romano, que o desenvolveu, principalmente, para solucionarconflitos quanto ao direito de propriedade.

Muitas são as evidências que apontam para esse entendimento, entre elaspodemos citar a teoria da aemulatio, a Lei das Partidas e a existência da actioinjuriarum (AMERICANO, 1932, p. 11).

A teoria da aemulatio buscava a responsabilização do agente que porventuraviesse a praticar algum ato com a intenção maligna de lesar outrem, agindo,portanto, sem uma finalidade específica. A lei das Partidas surgiu logo após, pararegular a forma pela qual a aemulatio era proibida; e a actio injuriarum tornou-se oinstrumento de defesa do lesado contra a atitude prejudicial de terceiro lesante.

Muito embora haja provas consistentes do surgimento do instituto do abusodo direito durante o período romano, alguns doutrinadores acreditam que este sótomou forma realmente, no período pós-revolução francesa. As primeirasaplicações dessa teoria ocorreram em período anterior ao Código Civil francêsde 1804, principalmente na relação entre proprietários, nos direitos de vizinhança(AMERICANO, 1932, p. 11).1 Importa lembrarmos que esta construção só foipossível pelo desenvolvimento dos trabalhos doutrinários e jurisprudenciais decatedráticos e do Poder Judiciário francês.2

Muito conhecidos são os exemplos usados pela doutrina nacional e estrangeirapara embasar o que alguns consideram como sendo um dos primeiros fatos queocasionaram a construção do instituto do abuso de direito. Ambos os casosocorreram na França. Num deles, datado de 1853, um proprietário de terras,tendo se desentendido com o vizinho, construiu uma falsa chaminé em seu terreno,com a finalidade única de vedar a luz solar sobre o lote da casa de seu desafeto.Outro caso relatado ocorreu em 1913, quando um proprietário de um terrenoconstruiu em sua propriedade uma torre de madeira repleta de ferros pontiagudos,a fim de causar perigo aos dirigíveis de propriedade de seu vizinho, forçando-o acomprar seu terreno (COSTA, 2002, p. 52).

1 Afirma Jorge Americano que a noção de abuso de direito já existia no Direito Romanoatravés de pequenos dispositivos esparsos que regulavam o direito de propriedade, dasfontes de água e do direito de vizinhança.

2 Salienta Pedro Baptista Martins (1941) que a Revolução Francesa, impregnada pelas doutrinasfilosóficas de J.J. Rousseau foi instrumento importante para o desenvolvimento daautonomia da vontade e da liberdade das convenções, proibindo a intervenção estatal nasrelações entre os contratantes, trazendo à tona normas individualistas de conduta social.

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Ambos esses casos foram considerados abusivos pelos tribunais franceses esão considerados como o leading case do abuso de direito.3

Com isso, começou-se a dar uma nova conotação aos direito subjetivos, fazendocom que os mesmos perdessem aquele cunho nitidamente egoísta, uma vez quelimitações mais ou menos extensas lhes foram impostas em nome do interessecoletivo.

O Direito alemão, a partir de 1900, também sofreu grandes modificações porcausa do entendimento jurisprudencial da época. Segundo Franz Wieacker (1967,p. 544), a jurisprudência utilizou-se das “cláusulas gerais da parte geral (§§ 138,I e II), originalmente destinadas apenas à preservação da moral geral e da lealdadedas regras do jogo, para a transformação da moral econômico-liberal, numa outraadequada às déias de estado social.” Formou-se assim, os princípios de abuso dedireito na Alemanha.4

No Brasil, o Código Civil de 1916 não dispôs diretamente sobre o abuso dedireito. Contudo, o Código Civil de 2002 trouxe-o no artigo 187, localizado naparte geral como um princípio de Direito.

Portanto, o abuso de direito, sem dúvida alguma, teve suas raízes fixadas noDireito Romano, e muito embora tenha ficado um pouco esquecido por causa dapolítica individualista de Roma, voltou ao cenário jurídico mundial no períodopós-revolução francesa, pelas mãos dos juízes, que pela jurisprudência formaramum novo instituto jurídico.

4 A CLÁUSULA GERAL DO ABUSO DE DIREITO E SEUS ELEMENTOSSIGNIFICATIVOS

Procedendo-se à leitura do artigo 187 do Código Civil de 2002, salta-nos aosolhos a enorme vagueza do dispositivo, no entanto, trata-se de uma estratégialegislativa que permite ao intérprete uma maleável interpretação de seu conteúdolegal (MARTINS-COSTA, 2000, p. 274).

Denota-se que o abuso de direito está regulado por uma cláusula geral, frutoda filosofia do Código Civil de 2002 e decorrente do princípio basilar daOperabilidade (REALE, 1986, p. 14).

As cláusulas gerais são normas enunciadas pelo legislador com conteúdopropositalmente indeterminado e que têm o intuito de propiciar uma adaptação

3 No direito francês, a cláusula do abuso de direito é encontrada no direito de propriedade,artigos 526, 584, 585 e 641 do Código Civil francês.

4 Atualmente a cláusula geral do abuso de direito está inserida no § 226 do Código CivilAlemão.

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entre o sistema legislativo e a realidade fática, proporcionando respostas maiságeis na solução de conflitos sociais.

Permitem, do mesmo modo, o ingresso no ordenamento jurídico de princípiosvalorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de Standards, máximasde conduta, arquétipos exemplares de comportamentos, de princípiosconstitucionais e de preceitos econômicos, sociais e políticos, viabilizando a suasistematização no ordenamento jurídico brasileiro, buscando, por fim, a formulaçãoda hipótese legal mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significadosintencionalmente imprecisos e abertos (MARTINS-COSTA, 2000, p. 274).

Ainda, segundo Judith Martins-Costa (2000, p. 29), a interpretação das cláusulasgerais evidencia a função do juiz ao proferir a decisão no caso concreto e põe emrelevo o papel do precedente, da jurisprudência, que confere a resposta da atividadejurisdicional a cada um e a todos os casos que são postos para a apreciação dosTribunais.

O artigo 187 do Código Civil de 2002 é uma cláusula geral, de modo que trazalguns elementos que permitem essa abertura semântica do instituto do abusodo direito. Tais elementos estão consubstanciados nas expressões “boa-fé, fimeconômico social e bons costumes”.

Mas pergunta-se: o que define estes elementos? Como devem ser interpretadospelo juiz? E como será sua aplicação prática?

Sílvio Rodrigues (2002, p. 52) destaca a dificuldade com que o juiz, sendo oartigo 187 uma cláusula geral, terá em verificar se um ato praticado foi ou nãoabusivo. Por este motivo, antes de mais nada, há que se analisar seus elementos,sopesando-os e aplicando-os ao caso concreto.

Na hipótese do artigo 187, a boa-fé representa o padrão ético de confiança elealdade indispensável para a convivência social. As partes devem agir comconfiança e lealdade recíprocas. Assim, considera-se violado o princípio da boa-fé quando o titular de um direito, ao exercê-lo, não atua com lealdade e confiançaesperáveis.

A boa-fé, neste caso, é a objetiva, que se preocupa com o comportamento daspartes no desenvolvimento da relação social ou das etapas de realização contratual.Desta forma a mesma servirá como princípio vetor para a análise da ilegalidadedo ato, que será, com isso, considerado abusivo ou não.

Já para construir a idéia de fim-econômico e social, os doutrinadores buscarama construção científica do abuso de direito no próprio direito subjetivo do cidadão,procurando identificá-lo como sendo resultado de uma contradição com um doselementos valorativos do direito.

Desta forma, o fim econômico a que se refere o Código é o proveito material

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ou a vantagem que o exercício do direito trará a seu titular, ou pela perda que omesmo suportará pelo seu não exercício. E o fim social é tudo aquilo que asociedade pretende atingir, como a paz, a ordem, a harmonia, a solidariedade, obem comum, etc, o que também deverá ser sopesado pelo juiz, quando dojulgamento final (CAVALIERI FILHO, 2003, p. 376).

E por fim, os costumes, que são práticas reiteradas de certos comportamentosbaseados na crença e na tradição, por um período indeterminado e dentro deuma certa localidade, que os faz com que se tornem obrigatórios.

Os bons costumes compreendem as concepções ético-jurídicas dominantesna sociedade; o conjunto de regras de sobrevivência que, num dado ambiente eem certo momento, as pessoas honestas e corretas praticam. Haverá abuso nesteponto, quando o agir do titular de direito contrariar a ética dominante, atentarcontra os hábitos aprovados pela sociedade, aferido por critérios objetivos aceitospelo homem médio.

Verifica-se, através desta breve análise normativa, a vagueza do texto que trazo instituto do abuso de direito no novo Código Civil, relegando-se o trabalho deinterpretá-las a todos os operadores do direito, uma vez que os valores sociais,culturais e os costumes, sopesarão sobre a análise de cada caso, determinandopela configuração ou não de um ato ilícito da parte.

Portanto, o operador do direito, ao interpretar a cláusula geral do abuso dodireito, exteriorizada no artigo 187 do Código Civil, deverá analisar, porpressuposto, os elementos acima mencionados, para então decidir se há ou nãoum ato abusivo praticado por uma das partes da relação jurídica travada.

5 TEORIA OBJETIVA E SUBJETIVA DO ABUSO DE DIREITO

Sendo, portanto o exercício regular ou normal de um direito reconhecidomodalidade de excludente da ilicitude, não se sujeitando seu exercício a qualquerresponsabilidade, para que haja efetivamente um abuso de direito, é necessário,em primeiro lugar, que o agente atue em exercício irregular de direito.

Essa forma de atuar do agente, portanto, deve ser analisada com cuidado,uma vez que predominam posicionamentos diversos sobre o conteúdo do “agirhumano”.

Data vênia, duas importantes teorias definem a abrangência e a aplicação doinstituto do abuso de direito: a objetiva e a subjetiva.

Pela teoria subjetiva do abuso de direito, só são considerados abusivos osatos inspirados na mera intenção de prejudicar terceiros, sem que haja finalidadeou utilidade alguma a seu praticante. Aqui, leva-se em consideração a condutaculposa do agente.5

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Essa alegada culpa deve ser provada para que haja a configuração de umato abusivo.

Já pela teoria objetiva, certamente a mais difundida entre os autores jurídicos,o ato abusivo é aquele praticado com anormalidade, contrário à finalidadeeconômica e social do direito, pois é atitude sem conteúdo jurídico, que secontrapõe às regras normais de conduta. Pelo critério objetivista não se questionaa intenção do agente em praticar o ato, mas sim, apenas analisa-se o seu conteúdoemulativo.6

A teoria subjetiva, neste caso, parece delimitar o campo de atuação do abusode direito, ficando o instituto restrito à prova da culpa. Ao contrário disso, ateoria objetiva procura expandir os limites da norma, abrindo caminho para queo juiz, dispensando a prova da culpa, aplique a lei atendendo aos seus fins sociaise às exigências do bem comum, ou seja, coibindo a prática de atos que desatendamessas características e que são exclusivamente egoístas, colocando-os, novamente,nos trilhos do direito e em acordo com sua finalidade social.

O nosso Código Civil de 2002, genericamente, parece ter adotado a teoriaobjetiva, quando se refere ao art. 187, pois não fala da culpa para a concretizaçãode um ato abusivo. Ademais, pela interpretação de grandes juristas, que se reuniramlogo após a entrada em vigor do novo Código, especialmente para interpretá-lo,decidiu-se que a teoria mais adequada a ser trabalhada é realmente a objetiva.Com base neste entendimento surgiu o Enunciado n° 37, o qual adota esteposicionamento.7

5 Cláudio Antônio Soares Levada salienta que uma ramificação desta teoria diz que oagente deve agir, obrigatoriamente com dolo, pois até mesmo o dolo eventual é afastadopara a caracterização da abusividade (LEVADA, 2002, p. 70).Rui Stoco (2002, p. 126), em posicionamento contrário, admite que a culpa, aqui, é alato sensu, que inclui o dolo e a culpa, de modo que a simples conduta culposa já bastapara configurar o abuso de direito.

6 Pablo Gagliano e Rodolfo Pamplona Fillho Stolze (2003, p. 119), advertem que poresta teoria o reconhecimento da culpa não é fator imprescindível à responsabilização,sendo desnecessário que o agente praticante do ato tenha a intenção de prejudicarterceiro, pois basta tão somente a contrariedade manifesta aos limites impostos pelafinalidade econômica ou social do direito, pela boa-fé e pelos bons costumes.

7 ENUNCIADO n° 37 da CJF: A responsabilidade civil decorrente do abuso de direitoindepende de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.

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A Cláusula Geral do Abuso de Direito como Função Longa Manus do Instituto da Responsabilidade Civil

6 A APLICAÇÃO DO INSTITUTO DO ABUSO DE DIREITO COMO LONGAMANUS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

A regra básica da responsabilidade civil é a que impõe àquele que, agindoculposamente causar dano a outrem, a obrigação de reparar este dano(RODRIGUES, 2002, p. 43).

Pergunta-se, contudo, se é possível emergir uma obrigação de reparar danosque surjam, porventura, da prática de um ato considerado lícito, pelo simplesfato de ter ocasionado prejuízo a outrem?

Roberto Gonçalves (2003, p. 57) mostra que a lei admite, em alguns casos,que alguém cause dano a outrem, sem a obrigação de repará-lo, porém, é precisoque o autor do dano esteja autorizado por um interesse jurídico-social proeminente,tal como é o caso da legítima defesa e do exercício regular de direito. Aqui,mesmo existindo dano, por motivo legítimo estabelecido em lei, este não acarretao dever de indenizar, porque a própria norma jurídica lhe retira a qualificação deilícito (DINIZ, 2000, p. 477).

De outro modo, quando algum ato considerado lícito pelo ordenamentojurídico, é praticado em excesso de poder, extrapolando a órbita da legalidade ecausando dano a outrem, passa a ser de inopino, considerado como irregular.Sendo o termo “regular” valorado pelo legislador como algo “lícito”,conseqüentemente a expressão “irregular”, será tido como algo “ilícito” (LUNA,1959, p. 106). Assim, será ilícito o ato jurídico que transcender ao âmbito danorma legal permissiva ou proibitiva.

Sendo o exercício regular ou normal de um direito reconhecido modalidadede excludente da ilicitude, não se sujeitando seu exercício a qualquerresponsabilidade, para que haja efetivamente um abuso de direito é necessário,em primeiro lugar, que o agente atue em exercício irregular de direito (DINIZ,2000, p. 477).

A jurisprudência e a doutrina, bem definem o que pode ser consideradoexercício irregular de um direito.9 A título de exemplo, consideram-se abusivas as

8 APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE CANCELAMENTO DE PROTESTO C/CPERDAS E DANOS E DANOS MORAIS.

Cheques prescritos. Protesto desnecessário. Indenização por dano material e moralindevida. Em que pese ser incontroversa a inadimplência do autor, tratando-se decheques prescritos, não se mostra necessário o aponte dos títulos para protesto,configurando tal proceder abuso de direito por configurar meio coercitivo de cobrança.Pedido de cancelamento do protesto acolhido. De outra parte, não merece acolhida opleito de indenização por danos materiais e morais, tendo em vista que os primeiros

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seguintes condutas: a) matar o gado alheio que pasta no campo; b) requerer ocredor arresto de bens que saiba não pertencer ao devedor; c) requerer busca eapreensão sem necessidade; d) requerer falência de alguém quando ascircunstâncias e as relações entre ele e o requerente não o autorizam; e) provocarprejuízos que excedam os incômodos ordinários de vizinhança; f) requerer buscae apreensão preliminar de queixa-crime; por suposta contrafação de patente; g)revogação, pelo mandante, de procuração sem nenhuma razão plausível; h) esgotaro proprietário as fontes em seu terreno, por mera emulação e em detrimento dosvizinhos; i) o exercício egoístico, anormal do direito, sem motivos legítimos; j)reiteradas purgações de mora nas ações de despejo por falta de pagamento; l)oferecer queixa-crime ou delatio criminis contra pessoa sabidamente inocente, etc(STOCO, 2002, p. 424).

E quanto ao dano? É necessário que sobrevenha um dano para que surja odireito de indenizar ou basta um exercício anormal de direito? Sendo o exercícioirregular de direito um ato ilícito, é sim necessário o elemento “dano” para que odever de indenizar esteja completo e assim gere responsabilidades, seja de ordemmaterial ou moral, pois é elemento essencial para que o agente responda pelo ato.

não foram sequer elencados e os danos morais, mesmo que sejam in re ipsa, sendodespicienda sua comprovação, no caso concreto não são devidos, visto que o devedorinadimplente contribuiu com o aponte dos títulos ao descumprir a obrigação. Apeloprovido em parte.BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Ação de cancelamentode protesto cumulado com perdas e danos. Relator: Victor Luiz Barcellos Lima. 21 dedezembro de 2004. (Décima Nona Câmara Cível. Apelação Cível n° 70006047732.Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud/rpesq.php>).CANCELAMENTO DE REGISTRO EM BANCO DE DADOS. TUTELAANTECIPADA. TENDO EM VISTA QUE A PARTE POSSUI 90(NOVENTA). Anotações no banco de dados, resta caracterizado o abuso de direito,não sendo caso de cancelamento em sede de tutela antecipada.BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Cancelamento deregistro em banco de dados. Relator: José Francisco Pellegrini. 21 de dezembro de2004. (Décima Nona Câmara Cível. Agravo de Instrumento n° 70009994823.Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud/rpesq.phd>).APELAÇÃO CÍVEL. POSSE E PROPRIEDADE DE BENS MÓVEIS.DECLARATÓRIA1. Comprador com boa-fé. Manutenção do domínio do bem. Incidente, no caso emtela, a cláusula geral de boa-fé objetiva, no sentido de conferir proteção aos contratantesdiante de manobras maliciosas da outra parte ou de terceiros, como também coibircondutas desleais praticadas pelos contratantes. Consoante esse paradigma, não se

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Everaldo da Cunha Luna (1959, p. 71), manifesta-se nestes termos, salientandoque deve existir um dano material para que fique caracterizado o abuso de direito,pois “se o conteúdo da norma jurídica é a proteção do interesse, proteção que setransforma em bem jurídico, o conteúdo da ilicitude é a violação do bem jurídico,violação esta que se chama dano. O dano é, pois, o conteúdo, a matéria, o aspectomaterial, enfim, da ilicitude”. Orlando Gomes (1999, p. 135) possui o mesmoentendimento, quando afirma que o “exercício de direito que não cause dano,ainda que moral, abusivo não é”.

Ao contrário disso, manifesta-se Rui Stoco (2002), acrescentando que tão sóa violação do direito basta para que haja um ilícito, independente de ocorrerqualquer tipo de dano.

Por outro lado, afirma Lúcio Flávio de Vasconcelos Naves (1999, p. 229) queo abuso de direito pode subsistir com dano ou sem dano, afirmando que o mesmonão se descaracteriza pelo fato de não ter resultado num dano indenizável. Paraque ele exista basta tão somente que haja uma pretensão abusiva por parte de umagente.

E a culpa? Será necessária? Não vamos nos ater a este aspecto, pois como jávimos acima, isso irá depender do posicionamento adotado pelo intérprete danorma. Para aqueles que adotam a teoria subjetiva, sim; para os que adotam ateoria objetiva, não.

E quais serão os efeitos legais quanto ao ofensor, portanto, em caso de ficarprovado o manifesto abuso de direito? O nosso Direito Civil, numa reação contrao exercício irregular de direitos subjetivos, segundo a doutrina, comina para oagente que causou o ato ilícito, as seguintes obrigações: a) obrigação de ressarciros danos causados por outrem; b) anulabilidade do negócio jurídico se constituina ameaça do exercício anormal de um direito para extorquir do ameaçado certadeclaração de vontade (art. 153 e 171, II); c) consideração da condição como

podem admitir intervenções na relação contratual no sentido de prejudicar a boaconclusão dos negócios jurídicos. Incumbia ao demandante, a despeito da condutamaliciosa de terceiro, colaborar para o resultado útil da avença. 2. Exercício irregularde Direito. Indenização. Não tendo o recorrente certificado-se junto ao terceiro deque os cheques com contra-ordem foram emitidos ou entregues pelo autor, obroucom imprudência e até má-fé, causando danos a quem sofreu com a privação do bemdurante boa parte do processo. APELO DESPROVIDO. BRASIL. Tribunal deJustiça do Estado do Rio Grande do Sul. Posse e Propriedade de bens imóveis. Relator:José Francisco Pellegrini. 14 de dezembro de 2004. (Décima Terceira Câmara Cível.Apelação Cível n° 70006047732. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud/rpesq.php>).

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verificada se o abuso consistir no impedimento malicioso da condiçãodesfavorável ou consideração da condição preenchida como não verificada se oabuso consistiu na provocação maliciosa da condição favorável (art. 129); d)inoponibilidade da menoridade e convalidação de um negócio que, normalmente,seria anulável se o abuso resultasse do fato de o menor com mais de 16 anosinvocar sua incapacidade para anular negócio, depois de se ter feito passar,dolosamente, como maior (art. 180); e) demolição de obra construída se esta fornociva à propriedade vizinha, caso em que se terá uma restauração natural dasituação anterior (1.312), (DINIZ, 2000, p. 480).

Apesar desses casos expressamente previstos na norma, as demais sançõesaplicáveis a outros casos de abuso de direito terão idênticas conseqüências àquelesaplicáveis aos atos ilícitos em geral: o dever de indenizar (CARPENA, 2001, p. 64).

O ato abusivo, nessas situações, ensejará responsabilidade civil nas mesmascondições que o ato ilícito, submetendo-os aos requisitos e pressupostos do deverde indenizar, segundo a própria teoria do abuso (CARPENA, 2001, p. 65). Assim,o pagamento da reparação será, por conseqüência, resultado do ato abusivo quecausar um dano material ou moral reparável, se a lei não cominar outra pena.

Entretanto, uma característica do abuso de direito escapa à órbita daresponsabilidade civil e faz com que o mesmo se prolongue para outros camposdo direito, campeando plenamente pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Podemos chamar tal característica como sendo um longa manus daresponsabilidade civil, capaz de buscar em outros campos do direito, o dever dereparar.

Para Cavalieri Filho (2007, p. 144), o abuso de direito não se restringe apenasà responsabilidade civil. Muito embora esteja alocado no Código Civil Brasileiro,dentro do capítulo destinado à responsabilidade civil, o mesmo extrapola a estaesfera, saudando outros institutos de direito.

Dessa forma, salienta o nobre doutrinador:

A terceira conclusão que se tira da redação do artigo 187 é a de que o abuso dedireito, que não era estranho ao Código de 1916, foi agora erigido a princípio geral,podendo ocorrer em todas as áreas do direito (obrigações, contratos, propriedade,família), pois a expressão “o titular de um direito” abrange todo e qualquer direitocujos limites foram excedidos (CALVALIERI FILHO, 2007, p. 144).

Importante lembrar, portanto, que a teoria do abuso de direito também temse infiltrado por outros diplomas legais, sendo utilizado principalmente parafundamentar a desconsideração da personalidade jurídica das empresas na esferatributária, trabalhista, do consumidor e ambiental.

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Assim, o abuso de direito configurado na cláusula geral do artigo 189, é uminstituto que volta às origens do Código Civil, confirmando seus princípioscriadores, da eticidade, operabilidade e sociabilidade, mas que, como um longamanus da responsabilidade civil, resta presente por todo o sistema jurídico brasileiro.

É de importante valia, contudo, não esquecermos de proceder à análise doselementos exigidos pelo artigo 187 do Código Civil, verificando se restou ou nãoconfigurado o abuso de direito, procedendo-se a verificação da boa-fé, dos bonscostumes e os limites impostos pelo seu fim econômico ou social. Nestes termos,não há dúvidas de que devemos considerar o abuso de direito como sendo umato ilícito, pois pelo menos será como conseqüência para a reparação do dano.

7 CONCLUSÃO

A responsabilidade civil, como instituto do direito privado que se presta àapuração da responsabilidade do indivíduo por dano ao patrimônio alheio,certamente continuará sendo campo de profundas inquietações. Doutrinadores,juristas e profissionais do direito em geral, sempre questionarão os métodosempregados para definir quem é o responsável pelo desequilíbrio da esferapatrimonial alheia, isso, certamente, com o intuito de melhorá-los.

O abuso de direito é um instituto que adveio ao Código Civil em virtudedessa contínua preocupação dos operadores do direito em evoluir os institutosde direito civil.

Essa tendência evolutiva é irreversível e o abuso de direito faz parte dela.Trazendo uma norma que se caracteriza como sendo uma cláusula geral e

que fomenta a interpretação do jurista para gerar capacidade de entendimentoentre o fato e o valor protegido pela norma, principalmente pela maleabilidadedos elementos genéricos da boa-fé, bons costumes e dos fins econômicos e sociais,o abuso de direito é mais uma ferramenta à disposição do Direito para sanarconflitos subjetivos.

Por fim, inserto o instituto do abuso de direito na parte concernente àresponsabilidade civil, não podemos nos esquecer de que o mesmo extravasa ocampo da mesma, como um longa manus, atuando também em outros ramos dodireito.

Assim, nos parece que o artigo 187 do Código Civil de 2002 veio para trazermais harmonia social à coletividade, sendo um elemento que ajudará o aplicadorda lei a decidir conflitos reais entre indivíduos em sociedade.

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Política econômica e Estado

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POLÍTICA ECONÔMICA E ESTADO

ECONOMIC POLICY AND STATE

Giovani Clark*

Resumo: O artigo enfoca, pela ótica do Direito Econômico, as influênciasdas políticas econômicas privadas (basicamente do capital transnacional)e dos entes internacionais sobre as políticas econômicas públicas,principalmente as realizadas pelos Estados em desenvolvimento. Enfatizaa mutação do Neoliberalismo de Regulamentação para o de Regulaçãocomo exigência dos poderes econômicos privados, identificando entreos seus resultados: o enfraquecimento do Estado e a descrença naDemocracia. E ainda, defende a existência de espaços para a execução deações econômicas endógenas por parte dos Estados nacionais, a fim deviabilizar a eficácia de suas Constituições Econômicas e suprir as carênciasde seus povos.

Palavras-chave: Política Econômica Estatal. Neoliberalismo deRegulamentação. Neoliberalismo de Regulação. Constituição Econômica.Poder Econômico Privado Transnacionais. Entes Internacionais.

Abstract: This paper deal with, by Economical Law view, the effects ofprivate economic policy, essentially of foreign capital, and the internationalorganizations above the public economic policy, mainly that politicsperformed by the development nations. Lay emphasis on the mutationof the regulatory New Liberalism to the regulation as demand of privateeconomic powers, recongnized enter their results: The decline of theState and the unbelief of democracy. Defends existence of spaces forthe execution of endogenous economic actions by part of National States,for the purpose of execute effectiveness of their economical constitutionand supply the shortage of their people.

Keywords: State Economic policy. Regulamentation New Liberalism.Regulation of New Liberalism, Economical Constitution. Foreign privateeconomical power. International organizations.

* Professor dos Cursos de Graduação e Mestrado da PUC Minas, Doutor em Direito/UFMG, Membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico e autor do livro “OMunicípio em Face do Direito Econômico”. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. email:[email protected].

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1 INTRODUÇÃO

As políticas econômicas ditadas pelo aparelho estatal possuem seus fins,objetivos e princípios esculpidos pelos Textos Constitucionais em geral, inclusivepela Carta Magna brasileira de 1988, por intermédio da consagrada,doutrinariamente, Constituição Econômica. Ensina o eminente jurista mineiroWashington Peluso Albino de Souza a respeito daquela:

A presença de temas econômicos, quer esparsos em artigos isolados por todo otexto das constituições, quer localizados em um de seus “títulos” ou “capítulos”,vem sendo denominado “Constituição Econômica”.Significa, portanto, que o assuntoeconômico assume sentido jurídico, ou se “juridiciza”, em grau constitucional. (2005,p. 209).

As políticas econômicas podem ser desenvolvidas tanto pelos poderes públicos,quanto pela iniciativa privada. Invariavelmente elas se interpenetram e se sujeitamaos planos. No caso das efetuadas pelo Estado, são ações coordenadas, ditadaspor normas jurídicas, onde os órgãos públicos atuam na vida econômica presentee futura, e automaticamente nas relações sociais, em busca, hipoteticamente, daefetivação dos comandos da Constituição Econômica. Em síntese, políticaeconômica estatal é um conjunto de decisões públicas dirigidas a satisfazer asnecessidades sociais e individuais, com um menor esforço, diante de um quadrode carência de meios. É, ainda, uma das espécies do gênero políticas públicas.

Definindo-se, políticas públicas é um conjunto de ações coordenadas pelos entesestatais, em grande parte por eles realizadas, destinadas a alterar as relações sociaisexistentes. Como prática estatal surge e se cristaliza por norma jurídica. A políticapública é composta de ações estatais e decisões administrativas competentes(DERANI, 2004, p. 22).

Inúmeras podem ser as ações tomadas pelo poderes públicos na órbitaeconômica, dentre elas: compra e venda de moeda estrangeira; elevação ou reduçãodos tributos; ampliação do volume da moeda nacional na economia; edição denormas legais de remessa de lucros ao exterior, de repressão ao poder econômicoe de defesa do consumidor; emissão de títulos públicos no sistema financeiroque conseqüentemente influenciarão nos juros a serem pagos pelo Estado.

E ainda, podem significar: concessão de créditos subsidiados a setoreseconômicos; cessão de terras públicas ou redução de exigências burocráticas afim incentivar o turismo; realização de obras governamentais em prol docrescimento modernizante; estatização ou nacionalização de atividadeseconômicas; criação de agências reguladoras produtoras de marcos legais para o

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Política econômica e Estado

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mercado; abertura de empresas estatais fabricantes de bens e prestadoras deserviços, voltadas ao desenvolvimento sustentável, etc.

Logicamente, as políticas econômicas estatais não podem ser analisadasisoladamente, fora de um contexto internacional, porque se sujeitam às influênciasdo poder econômico transnacional, dos Estados Desenvolvidos e Comunitários,Entes Internacionais (Organização Mundial do Comércio, Fundo MonetárioInternacional, Banco Mundial), sem excluir, contudo, a interdependência daquelascom as políticas econômicas do capital privado nacional. Inclusive, as democraciascontemporâneas vêm sofrendo abalos pelos desvirtuamentos das atuaçõeseconômicas estatais, diante do poderio do setor privado.

A profunda crise que as nossas democracias liberais atravessam, marcadanomeadamente pela perda de confiança das populações no mundo político e oenfraquecimento dos poderes públicos face aos poderes privados, em geralmultinacionais, conduziram a um receio do interesse geral face aos interessesparticulares (REMICHE, 1999, p. 284).

2 A REGULAMENTAÇÃO E A REGULAÇÃO

Durante a guerra fria, no século passado (1945 a 1990), imperou na economiade mercado às políticas econômicas neoliberais de regulamentação, onde o EstadoNacional transfigurou-se em Social, realizando a sua atuação no domínioeconômico diretamente, via empresa pública, sociedade de economia mista efundações; e indiretamente, através das normas legais de direito. Tudo em nomedo desenvolvimento ou do crescimento.

Naqueles tempos de regulamentação, os capitais privados eram investidosinternacionalmente na indústria de consumo, mas também na rendosa indústriaarmamentícia. Assim sendo, o poder econômico privado nacional e internacionalprecisava da ação estatal em setores de baixa lucratividade, ou de riscos financeirosou então carentes de investimentos tecnológicos, como ás áreas de infra-estrutura(energia, estradas, água potável, telefonia) e social (educação, saúde, previdência),a fim de possibilitar o progresso da economia de mercado, refrear os movimentossociais reivindicativos (dos trabalhadores, por exemplo) e remover o fantasma dosocialismo. Dessa forma, se norteavam as ações econômicas públicas reservandoa iniciativa privada ampliação de seus ganhos.

No fim do século XX e no início do século XXI, as políticas neoliberais deregulamentação passaram a restringir a expansão e a mobilidade do capital. Onovo ambiente mundial de fim da guerra fria, queda do socialismo real e de altaevolução tecnológica resulta em pressões por outras políticas econômicas ao

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gosto dos donos do capital. Os Estados nacionais passam a executar oneoliberalismo de regulação transferindo serviços e atividades á iniciativa privada(via privatização e desestatização), agora, atraentes ao capital, em face da “redução”dos ganhos com a indústria bélica da guerra fria e dos avanços científicos. Atecnologia tornou lucrativos setores que anteriormente tinham baixa lucratividade,ou não tinham, e estavam nas mãos do Estado.

Com a regulação, usada como único remédio salvador do mundo e protegidade grandes contestações pela mídia dos “donos do poder” (FAORO, 2000), oEstado passou a adotar uma nova técnica de ação na vida econômica, ou seja, oneoliberalismo de regulação. O poder estatal continuou a intervir indiretamenteno domínio econômico, através das normas legais (leis, decretos, portaria); assimcomo de forma intermediária, via agências de regulação. Todavia, diferentementedas empresas estatais, as agências não produzem bens nem prestam serviços àpopulação, mas somente fiscalizam e regulam o mercado ditando “comandostécnicos” de expansão, qualidade, índices de reajuste de preços, etc.

Porém, é prudente frisar, que a técnica intervencionista de regulação permitea existência de algumas empresas estatais (intervenção direta), em menor número,atuando no âmbito do mercado. Contudo, sem desempenhar o papel anterior epossuindo uma reduzida capacidade de ingerência na vida econômica.

Diante das discussões alimentadas por defensores de uma “regulação”, comoforma de “modernidade” (traduzindo as predominâncias mais acentuadamenteliberais) do Neoliberalismo, ante a figura da regulamentação (que seriacomprometido com as técnicas intervencionistas menos acentuadas naquelesentido), deparamos com um panorama de oscilações próprio dessa ideologiamista. Por considerá-las como forma de “ação”, admitiremos, no máximo, que sediferenciam pelo grau assumido na relação Estado-sociedade, ou nas formas deEstado Máximo e Estado Mínimo. A menos que se trate de Estado Zero,absolutamente absenteísta (já desviado para a ideologia do Anarquismo), osinstrumentos jurídicos utilizados por ambos afastam-se da hipótese dofuncionamento auto-regulador do mercado. Em caso de opção pelo livrefuncionamento das forças do mercado, contra a “regulamentação” ou a“regulação” que as direcionaria, o fundamento haverá de ser baseado na “ordemnatural” (introduzida na doutrina econômica dos Fisiocratas), que leva à “forçajurígena do fato”. Mesmo assim, o “fato” dela decorrente deveria ser “juridificado”para legitimar os “efeitos jurídicos da abstenção”, ou seja, da “omissão”.

Em caso contrário, deixaria de produzir efeitos indispensáveis ao seureconhecimento nas relações sociais, mesmo em termos de direitos das partesem negociação nos mercados.

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Os “objetivos” da “regulação”, portanto, enquadram-se no mesmo sistemaoperacional da “intervenção”. De certo modo, a Regulação afasta-se da formadensamente intervencionista do Estado Bem-Estar, ou das atuações diretas doEstado-Empresário. Orienta-se no sentido do absenteísmo, sem jamais atingi-locompletamente, sob pena de negar a sua existência, por ser, ela própria, umaforma de “ação” do Estado [...] (SOUZA, 2005, p. 331).

Mais uma vez, as políticas econômicas públicas são modificadas pelasinfluências do capital privado. O próprio Estado nacional sofre mutações em seupoder de influenciar e gerir a vida social e econômica dos povos com a passagemdo neoliberalismo de regulamentação para o de regulação. Os poderes públicosminimizaram suas forças naquelas áreas e o regramento socioeconômico passou,parcialmente, para os Estados Comunitários, Entes Internacionais e empresastransnacionais.

Todavia, dentro de um pensamento dialético e ciente que as Cartas Magnasforam alteradas em nome da regulação, no plano nacional as políticas econômicasestatais contemporâneas devem seguir, também, os ditames da Constituição afim de possibilitar sua eficácia. Assim sendo, a participação dos movimentosconsumeristas, dos sindicatos de trabalhadores, das associações ambientalistas ede entidades empresariais na elaboração, execução e contestação das normas depolítica econômica são primordiais na construção do Estado e da Democracia.

3 AS POLÍTICAS ECONÔMICAS E A DEMOCRACIA

As complexidades sociais, os antagonismos de interesses e os ventosdemocráticos, dentro da sociedade pós-moderna, não permitem mais a produçãode normais jurídicas estatais, principalmente às de Direito Econômico, formuladasunilateralmente pelos governantes e seus estafes burocráticos, sempre sujeitos asinfluências de “invisíveis” grupos de pressões. Porém, em relação à democracianão podemos esquecer-nos de seus limites na atualidade.

Naturalmente, a presença de elites no poder não elimina a diferença entre regimesdemocráticos e regimes autocráticos. Sabia disso inclusive Mosca, um conservadorque se declarava liberal, mas não democrático e que imaginou uma complexa tipologiade formas de governo com o objetivo de mostrar que, apesar de não eliminaremjamais as oligarquias no poder, as diversas formas governo distinguem com base nasua diversa formação e organização. Mas desde que partir de uma definiçãopredominantemente procedimental de democracia, não se pode esquecer que umdos impulsionadores desta interpretação, Joseph Schumpeter, acertou em cheioquando sustentou que a característica de um governo democrático não é a ausênciade elites mas a presenças de muitas elites em concorrência entre si para a conquistado voto popular [...] (BOBBIO, 2004, p. 39).

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Não existe democracia participativa se os segmentos sociais organizados, eaté mesmos os desorganizados, não construírem coletivamente os parâmetroslegais das políticas econômicas ditadas pelo Direito Econômico. É nesse, ramodo Direito que viabilizamos o desenvolvimento sustentável, ou apenas, ocrescimento modernizante das Nações; ou então, optamos pelo incremento domercado exportador em detrimento do nacional; ou ainda, abraçamos os desafiosde equalizar a distribuição de renda, frente à sua histórica concentração,principalmente nos Estados em fase de desenvolvimento. Enfim, é o DireitoEconômico que possibilita a efetivação dos direitos sociais, culturais e econômicosno tecido social, essenciais dentro de um real Estado Democrático de Direito oude qualquer outro tipo de Estado.

O Direito Econômico dita o “dever-ser” para as atividades econômicas, já que impõenormas jurídicas de comportamento para os agentes econômicos que atuam nessaórbita, motivados pelo imperioso interesse de estancar suas múltiplas necessidades/carências, individuais e coletivas, diante da raridade de recursos. Por certo, o DireitoEconômico tem como objeto a regulamentação das políticas econômicas dos agenteseconômicos (empresas, Estados, indivíduos, organizações não governamentais) nointuito de que todos, ou pelo menos a maioria, possam suprir suas necessidades [...](CLARK, 2001, p. 7).

Apesar do poderio do capital privado e de sua influência forte na engrenagemprodutiva e nos mercados de consumo dos Estados nacionais, devido à“globalização”, existe a possibilidade da formulação de políticas econômicasendógenas por parte daqueles Estados, distintas das engendradas pelo podereconômico internacional, a serem construídas pelos atores sociais nacionais, dentrodos diversos espaços internos de poder (parlamentos, conselhos, fóruns, câmarassetoriais, judiciário), e afirmadas no plano internacional, a fim de que as ditaspolíticas econômicas estatais não se afastem dos comandos das ConstituiçõesEconômicas e das carências socioeconômicas dos povos.

Globalização é um mito que exagera o peso e o alcance das forças econômicas deâmbito internacional. Os Estados nacionais, sobretudo nos países bem-sucedidos,não estão indefesos diante de processos econômicos “globais” incontroláveis ouirresistíveis.Ao contrário do que sugere o fatalismo associado à ideologia da globalização, odesempenho das economias e o raio de manobra dos governos continuam a dependercrucialmente de escolhas nacionais.O fascínio da “globalização “é revelador do estado de prostração mental edesarmamento intelectual em que encontram países como o Brasil. Para superá-lo,poderíamos começar por uma reavaliação do quadro externo e do papel dos Estados

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nacionais, desenvolvendo, sem inibições, a nossa própria concepção dos rumos quedevem tomar as relações internacionais da economia brasileira (BATISTA JR., 2005,p. 52).

4 A SIMBIOSE ESTADO E ECONOMIA DE MERCADO

O capitalismo e Estado sempre foram interdependentes. Aliás, como ensinaHuberman (1986) o Estado atual foi formatado para possibilitar o incrementodas atividades comerciais nascente, em síntese do capitalismo, sobretudo no velhocontinente europeu.

O mais rico é quem mais preocupa-se com o número de guardas que há emseu quarteirão. Os que se utilizam das estradas para enviar suas mercadorias oudinheiro a outros lugares são os que mais reclamam proteção contra assaltos e isençãode taxas de pedágios. A confusão e a insegurança não são boas para os negócios. Aclasse média queria ordem e segurança.Para quem se poderia voltar? Quem, na organização feudal, lhe poderia garantir aordem e a segurança? No passado, a proteção era proporcionada pela nobreza, pelossenhores feudais. Mas fora contra as extorsões desses mesmos senhores que as cidadeshaviam lutado. Eram os exércitos feudais que pilhavam, destruíam e roubavam. Ossoldados dos nobres, não recebendo pagamento regular pelos seus serviços,saqueavam cidades e roubavam tudo o que podiam levar. As lutas entre os senhoresguerreiros freqüentemente representavam desgraça para a população local, qualquerque fosse o vencedor. Era a presença de senhores diferentes em diferentes lugaresao longo das estradas comerciais que tornava os negócios tão difíceis. Necessitava-se de uma autoridade central, um Estado nacional. Um poder supremo que pudessecolocar em ordem o caos feudal. Os velhos senhores já não podiam preencher suafunção social. Sua época passara. Era chegado o momento oportuno para um podercentral forte (HUBERMAN, 1986, p. 70-1).

Assim sendo, existe uma simbiose entre Estado e economia de mercado. Nãoexiste esta última sem o primeiro. Por intermédio de inúmeras ações realizadasatravés dos tempos, o Estado ora dilata sua intervenção no domínio econômicocomo no período das políticas econômicas mercantilistas, patrocinadas pelosEstados absolutistas do século XVII, ou então, a restringe como nas políticaseconômicas liberais construídas pelos Estados de Direito do século XIX.

Atualmente, o Estado Democrático de Direito do século XXI age “contidamente”na vida econômica, por intermédio da política econômica de regulação, diferentedos tempos do Estado Social do século XX onde aquela era chamada deregulamentação e a atuação pública foi mais aguda. Contudo, historicamente, oEstado sempre agiu na vida econômica de diferentes formas e intensidade.

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No Brasil, logicamente, a realidade não foi distinta. A construção do modeloeconômico exportador dependente é implementado pelo Estado, em conjuntocom as elites e o poder econômico internacional, desde os idos do Brasil imperial,como ensina o saudoso Faoro (2000). Todavia tal modelo, incluindo suas políticaseconômicas, fora arquitetado e também executado em nosso período colonial.

Em discurso pronunciado na comemoração dos dez anos do Instituto de Estudospara o Desenvolvimento Industrial – IEDI, o empresário José Ermírio de MoresFilho contou que estava sendo leiloado o original do célebre alvará emitido em 1785pela rainha portuguesa D. Maria I, que restringiu severamente a instalação de indústriano Brasil. Por essa decisão, ficaram proibidas todas as manufaturas de fios, panos ebordados na colônia, com a única execeção de fazendas grossas de algodão queserviam para vestuário dos escravos ou para empregar em sacaria.D. Maria I acabou entrando para a história com a Rainha Louca. Em 1785, contudo,ainda estava em plena forma, defendendo a ferro e fogo a aplicação do sistemacolonial. O famoso decreto era uma reação ao desenvolvimento incipiente de algumasfábricas no Brasil. Ao substituir importações, essas fábricas brasileiras acarretavamprejuízos às indústrias de Portugal e às receitas do governo metropolitano, queauferia direitos alfandegários sobre a entrada no Brasil de produtos têxteis daInglaterra e de outros países. (BATISTA JR., 2005, p. 103).

A intervenção do Estado brasileiro no domínio econômico sempre perdurouatravés dos tempos, independentemente de possuirmos uma economiaeminentemente agrícola ou industrial como demonstra o Prof. Alberto VenancioFilho (1998), em sua clássica obra “A Intervenção do Estado no DomínioEconômico”. Infelizmente, o referido intervencionismo sempre teve como marcaregistrada, já em suas raízes históricas, a supremacia dos interesses privados sobreos sociais e os públicos.

Considerando ainda que durante a vida colonial e todo império podemos perceberuma predominância do poder privado sobre o poder público teremos, então, o quadrodas características do Estado brasileiro como moldura do exame da intervenção nodomínio econômico (VENANCIO FILHO, 1998, p. 38).

5 A CONSTITUIÇÃO E A POLÍTICA ECONÔMICA ESTATAL

Não tardou muito para o tema da ação do aparelho estatal na vida econômicae outros chegarem de forma clara e articulada nas Cartas Magnas. Era o nascimentoformal da consagrada Constituição Econômica, que fixa o dever-ser para a vidaeconômica, ou seja, estabelecendo os parâmetros constitucionais para as políticaseconômicas do Estado e dos particulares.

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Todavia, apesar dos Textos Constitucionais anteriores tratarem de formafragmentada do tema econômico, até o início do século XX, isto não significou ainexistência de legislação infraconstitucional sobre aquele. Aliás, pelo contrario,a partir da revolução industrial, versar sobre política econômica passou a ser umaconstância. Inclusive, as próprias Cartas Magnas liberais possuíam suasConstituições Econômicas.

[...] A Constituição Econômica não é uma inovação do “constitucionalismo social”do século XX, mas está presente em todas as Constituições, inclusive nas liberaisdos séculos XVIII e XIX.Durante o liberalismo, a visão predominante era da existência de uma ordemeconômica natural, fora das esferas jurídicas e políticas, que, em tese, não precisariaser garantida pela Constituição. No entanto, todas as Constituições liberais possuíamdisposições econômicas em seus textos. A Constituição Econômica liberal existiapara sancionar o existente, garantindo os fundamentos do sistema econômico liberal,ao prever dispositivos que preservavam a liberdade de comércio, a liberdade deindústria, a liberdade contratual e, fundamentalmente, o direito de propriedade.(BERCOVICI, 2005, p. 32).

As primeiras Cartas Políticas a possuírem uma Constituição Econômicaarticulada foram a Mexicana de 1917 e a Alemã de Weimar em 1919, seguindo osventos dos Estados Sociais, com suas políticas econômicas neoliberais deregulamentação.

O primeiro Texto Constitucional brasileiro a marchar naquela linha foi o de1934, por intermédio do título da Ordem Econômica e Social, continuada comas demais Cartas Políticas, inclusive a de 1988, através do capítulo da OrdemEconômica e Financeira (Arts. 170 a 192 da CF). A partir de 1995 a nossa atualConstituição Econômica, como algumas Cartas Magnas do mundo ocidental(Portugal e Argentina, por exemplo), teve o seu conteúdo normativo alterado,vias Emendas, para admitir o uso da técnica intervencionista de regulação.

Contudo, nesses tempos atuais são explícitos os contornos constitucionais dapolítica econômica, sejam dos poderes públicos ou privados, com fins, princípiose objetivos a serem efetivados. Assim sendo, é um poder-dever para os legisladoresordinário, membros do executivo e do judiciário, bem como para a sociedadecivil retirar a Constituição Econômica do universo imaginário do dever-ser eimplantá-la na difícil e complexa realidade do ser.

Versar sobre as políticas econômicas públicas pelo viés da obediência da CartaMagna é de fundamental importância nesses tempos atuais, onde se questiona opapel do Estado na economia, se valoriza a participação social, e se descobre àmagnitude do poder econômico privado, por vezes, bem superior ao público.

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Um “governo paralelo” que passa por cima da sociedade civil é estabelecido pelasinstituições financeiras internacionais (IFIs). Os países que não aceitam as “metasde desempenho” são colocados na lista negra.Embora adotado em nome da “democracia” e do chamado “bom governo”, o PAErequer o esforço do aparato de segurança interna: a repressão política – em conluiocom as elites do Terceiro Mundo – apóia um processo paralelo de “repressãoeconômica”.O “bom governo” e a manutenção de eleições multilpartidárias são condiçõesadicionais impostas pelos doadores e credores. Todavia a própria natureza da reformaseconômicas impede uma genuína democratização – isto é, sua implementação requer(contrariando o espírito do liberalismo anglo-saxão) invariavelmente o apoio doExército e Estado autoritário. O ajuste estrutural promove instituições falsas e umademocracia parlamentar fictícia [...]Em todo o Terceiro Mundo, a situação é de desespero social e falta de perspectivapara uma população empobrecida pelo jogo imperativo das forças do mercado.(DINIZ, 2005, p. 43).

No Brasil, Nação em desenvolvimento, as políticas econômicas públicas sãoproduzidas prevalentemente pela União, grande responsável constitucional poraquelas, e realizadas em nome da coletividade, com o minguado dinheiro denossos sacrificados contribuintes. Isso no intuito de efetivar, no cenário darealidade social, as imposições da atual Carta Magna de democracia participativa,justiça distributiva e soberania nacional. Infelizmente, as citadas imposições nãosão alcançadas por diversos motivos, dentre outros, a concentração dos poderesde legislar nas mãos da esfera central de poder.

A Constituição de 1988, apesar de ter ampliado as competências e os poderes dosMunicípios e dos Estados-membros, em face da Constituição de 1967 e da EmendaConstitucional n. 1 de 1969, com o seu “federalismo nominal” (SILVA, 1999), nãoo fez de modo suficiente para possibilitar a real autonomia daqueles em relação aoPoder Central.A autonomia fica limitada, sobretudo, devido à dependência econômica dos Estados-membros e Municípios em relação à União, em virtude das parcas receitas tributárias,pelas práticas demagógicas e antidemocráticas nas relações entre as instâncias depoder territorial e os governados, pelas políticas econômicas da União que destroemas finanças e a capacidade de execução de políticas públicas próprias por parte dosMunicípios e Estados-membros, pela efetiva falta de participação dos cidadãos nasdecisões, devido à inexistência de instâncias alternativas de poder, e ainda, pelasrestritas competências legislativas. (CLARK, 2001, p. 87).

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5 CONCLUSÃO

Na verdade, o Brasil e os Estados em desenvolvimento possuem uma realidadesocioeconômica caótica e perversa à maioria do tecido social, promovidas pelaspolíticas econômicas genocidas, orquestradas pelas elites nacionais e estrangeiras,em nome da ditadura do mercado e da democracia do dinheiro. As políticaseconômicas de regulação são distanciadas dos compromissos sociais e econômicosditados pelas Constituições Econômicas, além de reforçarem, em bases pós-modernas, o antigo colonialismo.

Aquelas são esculpidas e impingidas, a ferro e a fogo, pelos donos do capital,multiplicando seus lucros, em uma disputa desigual entre as classes nos variadosespaços sociais de poder. Contudo, a organização das forças sociais e oplanejamento democrático, poderão nos ajudar a engendrar caminhos para aextinção dos ciclos viciosos de ilegalidades, explorações e mortes.

REFERÊNCIAS

BATISTA JR. Paulo Nogueira. A economia como ela é... 3. ed. São Paulo: BoitempoEditorial, 2005.

BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros,2005.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. 9. ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. 207 p.

CLARK, Giovani. O município em face do Direito Econômico. Belo Horizonte: DelRey, 2001. 266 p.

_______. O genocídio econômico. Revista do Tribunal Regional Federal: 1º Região,Brasília, ano 16, n. 1, p. 45-49, jan. 2004.

DERANI, Cristiane. Política pública e a norma política. Revista da UniversidadeFederal do Paraná, Curitiba, n. 41, p. 19-28, jul. 2004.

DINIZ, Arthur José Almeida. Direito Internacional Público em Crise. Revista daFaculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 46, p. 38-53, jan./jun. 2005.

FAORO, Raimundo. Os donos do poder. 10. ed. São Paulo: Globo/Publifolha, 2000.2v.

HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Trad. Waltensir Dutra. 21. ed.Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

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REMICHE, Bernard et al. Direito económico, mercado e interesse geral.Trad. Jorge Pinheiro. In. FILOSOFIA do Direito e Direito Económico. Lisboa:Instituto Piaget, 1999. p. 281-8.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16. ed. São Paulo:Malheiros, 1999.

SOUZA, Washington Peluso Albino. Primeiras linhas de direito econômico. 6. ed. SãoPaulo: LTr, 2005.

VENANCIO FILHO, Alberto. A Intervenção do estado no domínio econômico. Rio deJaneiro: Renovar, 1998.

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O (re) clamar do princípio da proporcionalidade: acesso à justiça na Constituição

O (RE) CLAMAR DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE:ACESSO À JUSTIÇA NA CONSTITUIÇÃO

THE CLAIMING OF THE PRINCIPLE OF PROPORTIONALITY: THEACCESS OF JUSTICE IN THE CONSTITUTION

Lizana Leal Lima*

Valéria Ribas do Nascimento**

Resumo: Os princípios constitucionais possuem ação determinante naefetivação de todo o ordenamento jurídico. Eles atuam como ponto departida para a interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais.Dentre os princípios que integram o Direito Constitucional, ganha cadavez mais destaque, inclusive na jurisprudência do Supremo TribunalFederal, o princípio da proporcionalidade. Este princípio não é consagradoexplicitamente pela Carta Constitucional, mas existe no mundo jurídicoatravés do processo hermenêutico. Por isso a necessidade de se verificara efetividade desse princípio e sua relação com os direitos fundamentais,através do estudo da Constituição e da jurisprudência do Supremo TribunalFederal. Assim, o presente tema é de grande relevância, tendo em vista ofato de proporcionar uma maior reflexão a respeito da solução de“conflitos” atinentes a direitos fundamentais, bem como ao acesso à justiçana Constituição. Atua, portanto na proteção de direitos consideradosrelevantes para o indivíduo e, conseqüentemente, para a sociedade. Ditoisso, observa-se a importância deste princípio, diretamente relacionado àefetividade das garantias da pessoa humana e às promessas do EstadoDemocrático brasileiro. A metodologia utilizada é a dialética, a qual parteda contraposição de idéias entre diferentes autores.

Palavras-chave: Princípios. Regras. Proporcionalidade. Constituição eSupremo Tribunal Federal.

* Aluna do curso de pós-graduação Especialização em Direito Público da Faculdade deDireito de Santa Maria (FADISMA). Graduada em Direito pelo Centro UniversitárioFranciscano (UNIFRA). Advogada. e-mail: [email protected].

** Doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos(UNISINOS). Mestre em Direito Público pela Universidade de Santa Cruz do Sul(UNISC). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).Professora de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Santa Maria(FADISMA) e UNISINOS. Advogada. e-mail: [email protected].

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Lizana Leal Lima; Valéria Ribas do Nascimento

Abstract: The constitutional principles possess determinative action inthe effectiveness of all legal system. They act as the starting point for theinterpretation of the constitutional and infraconstitutional rules. Amongstthe principles that integrate the Constitutional Law, the principle of theproportionality receives more prominence, also in the jurisprudence ofthe Supreme Federal Court. This principle is not approved explicitly bythe Constitution, but it exists in the legal world through hermeneuticprocess. Therefore is the necessity of verifying the effectiveness of thisprinciple and its relation with the basic rights, through the study of theConstitution and the jurisprudence of the Supreme Federal Court. Thus,the present subject is of great relevance, so that, it approaches, regardingthe solution of conflicts referent to the basic rights, as well as the accessto justice in the Constitution. It acts, therefore in the protection of rightsconsidered relevant for individuals and, consequently for the society. Beingthis afore stated, the importance of this principle is observed, directlyrelated to the effectiveness of the guarantees of the individuals and tothe promises of the Brazilian Democratic State. The used methodologyis the dialectic that starts from the contraposition of ideas betweendifferent authors.

Keywords: Principles. Rules. Proportionality. Constitution. SupremeFederal Tribunal.

Interpretar é iluminar as condições sobre as quais se compreende.

(Gadamer)

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda o princípio da proporcionalidade sob o prisma daConstituição Federal. O tema justifica-se pelo fato do mesmo não estar expressona Constituição Federal, suscitando o questionamento do reconhecimento desua aplicabilidade e sua fundamentação normativo-constitucional, uma vez queseu objetivo é o de assegurar uma melhor efetividade e aplicabilidade dos direitosfundamentais para que sejam sopesados e empregados na proporção adequada.

Cabe, desde já, ressaltar que o princípio da proporcionalidade é de difícildefinição. Devido à ausência de forma expressa na Constituição, muitas vezes éconfundido com o princípio da razoabilidade. Logo, pretende-se esclarecer adiferença existente entre os dois princípios, fazendo com que se compreenda oprincípio da proporcionalidade ao invés de tentar defini-lo. Vale consignar que atemática, do ponto de vista histórico, será abordada superficialmente.

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O (re) clamar do princípio da proporcionalidade: acesso à justiça na Constituição

O presente tema atende a linha de pesquisa “Acesso à Justiça: solução deconflitos atinentes a Direitos Individuais e Transindividuais”, tendo em vistaque a finalidade do princípio em tela é de tentar solucionar “conflitos” e protegerdireitos considerados relevantes para o indivíduo. Isso é reforçado pelo fato de otema escolhido ter como base a teoria hermenêutica, a qual busca, através doprincípio da proporcionalidade, uma maneira de atender as peculiaridades docaso concreto, limitando o poder do Estado e proporcionado uma melhor aplicaçãodos direitos fundamentais.

Em decorrência disso, trata-se primeiramente da diferença entre regras eprincípios e o estudo da “colisão entre princípios”. Será empreendida uma análisesobre a teoria dos princípios como espécies normativas, bem como a discussãoacerca da resolução das “colisões” entre princípios a partir da aplicação doprincípio da proporcionalidade. Em um segundo momento, estuda-seespecificamente o princípio da proporcionalidade, sua recepção pela ConstituiçãoFederal e, também, sua aplicabilidade no Supremo Tribunal Federal.

Não há a pretensão de exaurir a complexidade da matéria, pretende-se com opresente estudo proporcionar uma reflexão à comunidade acadêmica e aosoperadores do direito, orientada a satisfazer as necessidades de uma novasociedade, por força do Estado Democrático de Direito, pela consagração de umrol de direitos fundamentais e princípios jurídicos, em especial o princípio daproporcionalidade. Busca-se dessa forma, demonstrar que este mecanismo deinterpretação não necessita vir expresso na lei para ser contemplado pelosoperadores do direito, a fim de que se obtenham medidas proporcionalmenteeficazes, que contribuam para a evolução social.

2 REGRAS E PRINCÍPIOS: ESPELHO DA CONSTITUIÇÃO?

O estudo sobre os princípios demonstrou, no decorrer do século XX, umgrande avanço no conteúdo do Direito como um todo, e de cada área do Direitoem específico. Isso possibilitou uma melhor interpretação das normasconstitucionais na tentativa de acompanhar as mudanças sociais.

A palavra princípio, deriva do latim principium, que significa início, começo,origem de algo (SANTOS, 2001, p. 192). A filosofia entende que princípio éa origem de uma ação ou de um conhecimento, proposição posta no início deuma dedução (LALANDE, 1999, p. 860). No campo da ciência jurídica,significa a regra maior pela qual se guiam todas as regras. É a estrutura básicae fundamental da qual derivam todas as demais regras jurídicas (SANTOS,2001, p. 192).

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Existem princípios que não fazem parte do contexto legal, maspermanecem no mundo jurídico através de um processo hermenêutico, sejapor estarem implícitos na norma positiva, como acontece com o princípio daproporcionalidade, seja pela busca de soluções jurídicas, tendo por base odireito comparado, ou ainda através de textos doutrinários.

É importante ressaltar, que os princípios não precisam estar expressosnum determinado diploma jurídico para ter força vinculante. Portanto, não épor não ser expresso que o princípio deixará de ser norma jurídica. Reconhece-se, assim, normatividade não só aos princípios que são explícitos,contemplados no âmago da ordem jurídica, mas também aos que, defluentesde seu sistema, anunciados pela doutrina e descobertos no ato de aplicar odireito (LIMA, 2005).

Crisafulli (1952 apud BONAVIDES, 2001, p. 230), foi o primeiro a afirmara normatividade dos princípios:

Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada comodeterminante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem,desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares(menos gerais), das quais determinam e, portanto, resumem, potencialmente, oconteúdo: sejam [...] estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveisdo respectivo princípio geral que as contêm.

Acerca da normatividade dos princípios jurídicos destaca-se ainda oseguinte entendimento:

Os princípios gerais são, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas dosistema, as normas mais gerais. O nome de princípios induz em engano, tanto que évelha questão entre juristas se os princípios são ou não são normas. Para mim nãohá dúvidas: os princípios gerais são normas como todas as demais. E esta é a tesesustentada também pelo estudioso que mais amplamente se ocupou da problemática,ou seja, Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentosvêm a ser dois e ambos válidos: antes de tudo, se não são normas aquelas das quaisos princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalizaçãosucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio dasespécies animais, obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundolugar, a função para a qual são abstraídos e adotados é aquela mesma que é cumpridapor todas as normas, isto é, a função de regular um caso. Para regular umcomportamento não regulado, é claro: mas agora servem ao mesmo fim para quesirvam as normas expressas (BOBBIO, 1999, p. 158).

Portanto, pode-se afirmar que os princípios constitucionais são normas dotadasde substancialidade e aplicabilidade. Desse modo, a idéia de princípio está

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intimamente ligada à noção de fundamento, base, pressuposto teórico com afinalidade de orientar o sistema jurídico (CRISTÓVAM, 2007).

Superada a questão da normatividade dos princípios, em geral faz-se necessárioanalisar as diferenças existentes entre dois tipos de normas: as regras e osprincípios. Estabelecendo-se essa diferenciação, tem-se um ponto de partida parao estudo do princípio da proporcionalidade, sendo este princípio um dos pilaresdos direitos fundamentais.

A partir de um sentido amplo e abrangente, podem-se distinguir regras eprincípios da seguinte maneira:

Cabe agora introduzir nosso tema no contexto da diferença entre normas que são“regras” daquelas que são “princípios”, sendo entre essas ultimas que se situam asnormas de direitos fundamentais. As regras trazem a descrição de estado-decoisaformada por um fato ou certo número deles, enquanto nos princípios há umareferencia direta de valores. Daí se dizer que as regras se fundamentam nos princípios,os quais não fundamentariam diretamente nenhuma ação, dependendo para isso daintermediação de uma regra concretizadora. Princípios, portanto, têm um grauincomparavelmente mais alto de generalidade (referente à classe de indivíduos aque a norma se aplica) e abstração (referente à espécie de fato a que a norma seaplica) do que a mais geral a abstrata das regras (GUERRA FILHO, 1991 apudREZEK NETO, 2004, p. 44).

Sobre essa questão, Robert Alexy tenta demonstrar que a diferença existenteentre princípios e regras não é quantitativa, mas qualitativa, ou seja, na teoriatradicional (quantitativa, Bobbio), a quantidade ou o grau de generalidade deuma norma é que estabelece a diferença entre princípio e regra. A tese defendidapor Alexy denominada “tese forte da separação” (qualitativa) preocupa-se maiscom a melhor realização de determinada norma (ALEXY, 1997, p. 81-7).

Sustenta esse autor que os princípios são normas que ordenam que algo sejarealizado na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas,são mandados de otimização. As regras são normas que podem ou não sercumpridas. Se uma regra é válida, então se deve fazer exatamente o que ela exige,nem mais nem menos. Portanto, as regras contêm determinações no âmbito dofático e no juridicamente possível. Isso significa que a diferença que reside entreregras e princípios é qualitativa e não de grau de generalidade (ALEXY, 1997, p.81-7).

Observa-se ainda a seguinte distinção:

Los principios, no contienen mandatos definitivos sino solo prima facie. Del hecho deque un principio valga para un caso no se infiere que lo que el principio exige paraeste caso valga como resultado definitivo. Los principios presentan razones que

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pueden ser desplazadas por otras razones opuestas. El principio no determina comoha de resolverse la relación entre una razón y su opuesta. Por ello, los principioscarecen de contenido de determinación con respecto a los principios contrapuestosy las posibilidades facticas. Totalmente distinto es el caso de las reglas. Como lasreglas exigen que se haga exactamente lo que en ellas se ordena, contienen unadeterminación en el ámbito de las posibilidades jurídicas e facticas. Esta determinaciónpuede fracasar por imposibilidades jurídicas e facticas, lo que puede conducir a suinvalidez, pero, si tal no es el caso, vale entonces definitivamente lo que la regla dice(ALEXY, 1997, p. 99).

Paralela à idéia de Alexy, Streck, ressalta que as regras estão “subsumidas”nos princípios, ou seja, elas apenas encobrem os princípios. Estes são elementosinstituidores, seriam os elementos que existencializam as regras que elesinstituíram, sendo impossível isolar regras e princípios. Admite existir umaessencial diferença que se dá por via da relação sujeito-objeto, pela teoria doconhecimento, mas não há separação entre regras e princípios. Discorda tambémque os princípios seriam “mandatos de otimização”, pois se trataria dedescaracterizar a noção de princípio, abstraindo a regra e afastando a razão práticaínsita aos princípios (STRECK, 2006, p. 145, 167).

Assim, infere-se da idéia deste doutrinador que na era do pós-positivismonão se deve entender que as regras estariam ligadas à subsunção, pois se estariavoltando à era do positivismo. Como também não se podem associar princípiosàs teorias argumentativas, e nem os compreender como um subterfúgio paracobrir lacunas por insuficiência de previsão legal. Com isso haveria a possibilidadede um retorno à discricionariedade positivista, dando uma grande margeminterpretativa aos juízes (STRECK, 2006).

Uma outra forma de distinguir regras e princípios é a sustentada por RonaldDworkin. Para ele as regras são aplicáveis no campo do tudo ou nada, ou sãocompletamente aplicáveis ou não possuem aplicação nenhuma. Já os princípiosconstituem-se em razões para decidir, não são aplicáveis automaticamente, mesmoque satisfeitas todas as condições de aplicabilidade, mas, possuem a qualidade decritério que se deve levar em conta numa decisão judicial (DWORKIN, 2001apud CRISTÓVAM, 2007).

Muito embora se admita o conceito de princípios como sendo mandamentosde otimização, isso não representa um mecanismo infalível para distinguir regrasde princípios. Entretanto, verifica-se essa influencia dentro do modelo pós-positivista, sua aplicação vem demonstrada nas decisões judiciais comoinstrumento para solução de “conflitos” e é, também, muito utilizada na teoriados direitos fundamentais.

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A Constituição é um sistema de normas jurídicas. Ela não é um simplesagrupamento de regras que se justapõem ou que se superpõem. A idéia de sistemafunda-se na de harmonia, de partes que convivem sem atritos. Em toda a ordemjurídica existem valores superiores e diretrizes fundamentais que “costuram”suas diferentes partes. Os princípios constitucionais consubstanciam as premissasbásicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo sistema. Eles indicamo ponto de partida e os caminhos a serem percorridos (BARROSO, 2000).

Canotilho (1998, p. 172) considera princípios jurídicos fundamentais aqueles“historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciênciajurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no textoconstitucional”. Leciona ainda que os princípios jurídicos “pertencem à ordemjurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação,integração, conhecimento e aplicação do direito positivo”. Nas palavras deBonavides (2001, p. 231), “os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazema chave de todo o sistema normativo”.

Das reflexões até aqui estudadas, importante se torna assinalar oquestionamento feito por Tribe e Dorf: “será que a Constituição é simplesmenteum espelho por meio do qual é possível enxergar aquilo que se tem vontade?”(TRIBE; DORF, 2007, p. 3). Estes autores explicam que a autoridade daConstituição, sua exigência por obediência, e o poder que lhe é dado para atuarsobre as leis, poderia perder legitimidade se a Carta Maior fosse vista como umespelho onde se refletem as idéias e ideais de quem a lê. Acrescenta ainda que:“temos que encontrar princípios de interpretação que possam ancorar aConstituição em uma realidade externa mais segura e determinada. E essa tarefanão é simples” (TRIBE; DORF, 2007, p. 11).

Fica claro, portanto, que os princípios jurídicos, principalmente no âmbito dodireito constitucional, são normas que sustentam todo ordenamento jurídico,podendo vir expressos por enunciados normativos ou figurar implicitamente notexto constitucional. Partindo dessas considerações, no próximo item, analisa-sea importância e função dos princípios, em especial dos princípios constitucionais.

2.1 Importância e funções dos princípios

É a existência de regras e princípios que permite, na concepção de Canotilho,a compreensão do direito constitucional como um sistema aberto. Se o modelojurídico estivesse formado apenas por regras estaria restrito a um sistema fechado,com uma disciplina legal exaustiva de todas as situações, alcançando a segurança,mas impedindo que novas situações fossem abarcadas pelo sistema. Por outrolado, somente a adoção de princípios seria impossível, pois diante de tal

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indeterminação, sem a existência de regras precisas, o sistema mostrar-se-ia falhode segurança jurídica e surgiria uma tendência à incapacidade de reduzir acomplexidade do próprio sistema. Diante da impossibilidade de se construir umsistema, formulado apenas com regras ou com princípios, é que se propõe osistema formado por princípios e regras (CANOTILHO, 1998).

Por outro lado, Streck (2006, p. 212), entende que os princípios não abrem oprocesso interpretativo, e sim proporcionam um fechamento da interpretação, istoé, servem como blindagem contra a livre atribuição de sentidos. Para ele, são osprincípios que, ao introduzirem o mundo prático, garantem uma espécie deobjetividade na interpretação.

Estabelecer o direito constitucional com base em princípios, além de possibilitara solução de certas questões metódicas, permite maior abertura, legitimidade deenraizamento e possibilidade de concretização do próprio sistema, seja o textoconstitucional garantista ou pragmático (CANOTILHO, 1993).

Os princípios possuem basicamente duas funções: função normogenética quesignifica que os princípios são pré-determinantes do regramento jurídico são osvetores que devem direcionar a elaboração, o alcance e o controle das normasjurídicas. E possuem a função sistêmica, na qual o exame dos princípios deforma globalizada permite a visão unitária do texto constitucional. Mas o rol defunções não se resume a elas (CANOTILHO, 1993).

Existe, também, a função orientadora. Significa dizer que os princípiosconstitucionais servem de norte à criação legislativa e à aplicação de todas asnormas jurídicas, constitucionais e infraconstitucionais. A função vinculante querdizer que todas as regras do sistema jurídico estão presas aos princípiosconstitucionais que as inspiraram. Na função interpretativa, que caminha juntocom os valores éticos, sociais e políticos, tem-se por base respeitar a harmoniaentre o conteúdo das regras jurídicas e os princípios. E, por fim, a função supletiva,que tem por finalidade suprir a aplicação do direito a situações fáticas que aindanão foram objeto de regulamentação.

Os princípios possuem uma importância vital nos ordenamentos jurídicos, issose torna cada vez mais evidente, sobretudo no corpo das Constituições, onde, nosdias atuais, se convertem em fundamento de toda a ordem jurídica, na qualidade deprincípios constitucionais. “Os princípios são, por conseguinte, enquanto valores1,a pedra de toque ou o critério com que se aferem os conteúdos constitucionais emsua dimensão normativa mais elevada” (BONAVIDES, 2001, p. 260).

1 Aqui não é relevante discutir acerca da diferença entre princípios e valores, questãoque não é abordada no estudo.

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Assim, por função dos princípios deve-se compreender o objetivo ou finalidadeperseguida pelo operador do direito quando aplica um princípio, no sentido deexplicação do ordenamento, permitindo interpretá-lo ou integrá-lo. Nota-se queos princípios possuem várias funções e estas é que os tornam tão importantes noordenamento jurídico, em especial ao direito constitucional. São os princípiosque, junto com as regras formam um sistema mais justo e eficaz.

2.2 “Colisão” entre Princípios Constitucionais

É comum aos operadores do direito, se depararem com princípios colidentes.É o que se denomina colisão de princípios ou antinomias jurídicas. Antinomiasestas que precisam ser solucionadas, de tal forma que uma norma deve cederdiante de outra, ou de um princípio, conforme o caso, desde que se faça necessáriaa unidade e se estabeleça a relação interna do sistema (BARROS; BARROS,2006).

A doutrina estrangeira, no pensamento de Dworkin, compreende que o juizdeve garantir os direitos institucionais das partes, ou seja, aqueles que existemalém dos direitos criados por uma decisão judicial ou prática social expressa.Deverá lançar mão de certos princípios, oriundos da norma jurídica, quefuncionarão por meio de um juízo de ponderação. Assim, propõe uma teoria dosdireitos pragmática, entendendo existir somente uma resposta correta para cadacaso concreto apresentado ao juiz. Esta resposta correta a ser empregada noshard case2 (casos difíceis), deverá estar fundada em princípios individuais, devendoo juiz estabelecer o conteúdo moral de sua decisão, e não apenas aplicar a lei deforma mecânica à hipótese de fato, ou ainda ter a liberdade para selecionar asolução que julgar mais certa dentre as diversas soluções ofertadas peloordenamento jurídico (COUTINHO, 2007).

2 Sobre hard cases, Streck defende a tese que a distinção ou cisão entre easy cases e hard casesé metafísica. Explica esse autor: “não estou excluindo a dimensão da causalidade etampouco a possibilidade de que os assim denominados casos simples ocorram de formaobjetiva. O que procuro questionar, com base no paradigma hermeneutico (fenomenologiahermenêutica), é que – em relação à distinção easy-hard cases – a dimensão da causalidadenão pode esconder a explicação de sua origem essencial. Ao fazer a distinção entre asoperações causais-explicativas (deducionismo) destinadas a resolver os casos simples eas “ponderações” calcadas em procedimentos que hierarquizam cânones e princípios(ou postulados hermenêuticos) para resolver os casos complexos, reduz-se o elementoessencial da interpretação a uma relação sujeito-objeto. Ele não nega que possam existircasos simples; o problema está no fato de que é impossível uma institucionlização decasos simples e casos difíceis” (STRECK, 2006, p. 197).

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Alexy estabelece que uma colisão entre princípios existe quando aplicadosseparadamente. Os princípios que se encontram em conflito conduzem aresultados contraditórios, ou seja, dois juízos de dever-ser jurídico incompatíveis.Daí diferencia-se a solução dos conflitos dos princípios da solução dos conflitosdas regras. É que as últimas têm solução no plano do abstrato, enquanto que osprincípios têm solução no caso concreto e no plano fático e jurídico. Duas regrasem conflito não podem ser ao mesmo tempo válidas; os conflitos entre princípios,ao contrário, são ambos válidos apesar de conflituosos (ALEXY, 1997).

Ainda nesse sentido:

Cuando dos principios entran en colisión – tal como es el caso cuando según unprincipio algo está prohibido y, según otro principio, está permitido – uno del losdos principios tiene que ceder ante el otro. Pero, esto no significa declarar inválidoal principio desplazado ni que en el principio desplazado haya que introducir unacláusula de excepción. Más bien lo que sucede es que, bajo otras circunstancias, lacuestión de la precedencia puede ser solucionada de manera inversa. Esto es lo quese quiere decir cuando se afirma que en los casos concretos los principios tienendiferente peso y que prima el principio con mayor peso (ALEXY, 1997, p. 89).

Dessa forma, assinala esse jurista que o conflito de regras se dá na dimensãoda validade, e o conflito de princípios na dimensão do peso. Esta idéia de pesosignifica que a colisão existente entre princípios será resolvida com umaponderação destes. Portanto, em determinada circunstância concreta, ocorrerá àprevalência de um princípio em função do outro.

Canotilho também tratando dessa questão, preconiza que:

Daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismos entre os vários princípiose a necessidade, atrás exposta, de aceitar que os princípios não obedecem, em casode conflito, a uma “lógica do tudo ou nada”, antes podem ser objecto de ponderaçãoe concordância prática, consoante o seu “peso” e as circunstancias do caso(CANOTILHO, 1993, p. 1056).

Doutrinadores como Willis Santiago Guerra Filho e Chade Rezek Netosolucionam a colisão de princípios com a aplicação do “princípio ordenador dodireito”, o “princípio dos princípios”, intitulado de princípio da proporcionalidade,tendo por finalidade um maior respeito, em determinada situação, a um dosprincípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo possível o outroprincípio, e jamais lhe faltando totalmente o respeito (REZEK NETO, 2004).

Germano Schwartz traz a proposta de Ost que classifica mitologicamente osjuízes em três grupos, onde cada um deles utiliza-se das normas e dos princípiosem suas decisões de forma diferente. O primeiro é o juiz Júpiter, baseado no

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modelo piramidal Kelseniano representante do modelo clássico dos juristas. Nessemodelo o juiz é um escravo da lei, isto é, as normas sempre vêm impostas. Ooutro modelo de juiz é comparado à figura trágica do Deus Hércules que avocapara si o trabalho de julgar e de, por intermédio de seus braços, transformar arealidade social, que se origina de sua culpa. Desloca-se assim, o centro do Direitopara o juiz que passa a se tornar um semideus. O juiz herculiano, é, portanto, umhomem que se torna engenheiro social, ao contrário do juiz jupiteriano, servodas normas. E, por fim, o juiz Hermes seria o modelo de magistrado propostopor Ost para a sociedade contemporânea. Hermes é o Deus da comunicação e dacirculação, seria o juiz da intermediação, não se preocupa com hierarquias, massim com a constante evolução da dinâmica social (SCHWARTZ, 2006).

Dessa classificação mitológica se faz necessário ressaltar que Dworkin na jácitada teoria da única resposta correta, estabelece como modelo ideal de julgadoro juiz Hércules. Este juiz, tido como onisciente e sobre-humano, sabe que nãopossui legitimidade para criar normas, sabe também que as partes em conflitobuscam uma resposta baseada na lei. Sua tarefa é achar a melhor resposta jurídica,explicando e justificando o direito explícito. Para ele, só existem dois caminhos:reconhecer o direito de uma ou de outra parte. Assim, para este autor, no modeloideal do juiz Hércules não existe uma resposta intermediária ou uma terceira via(CRISTÓVAM, 2007).

De tudo que foi dito, entende-se por certo que não se está discutindo “colisão”entre princípios constitucionais absolutamente contraditórios capazes de abalaro sistema constitucional, entretanto inclina-se a discussão em torno de princípiosopostos que não se combinam na solução de determinado caso, mas não acarretamriscos de ruptura da ordem jurídica constitucional. Portanto, primeiro deve ocorrerà verificação da existência ou não, de norma regulamentadora do caso concreto.Se esta existir, não há que se falar em ponderação, evitando assim adiscricionariedade do poder judiciário nas suas decisões. De modo diverso, casonão exista lei que regule determinada situação e, ocorrendo “conflito” entredireitos, utiliza-se o princípio da proporcionalidade. As questões até entãoestudadas são básicas e essenciais para a compreensão do princípio daproporcionalidade, sua origem e aplicabilidade nos Tribunais brasileiros. Dessaforma, aborda-se a seguir o princípio da proporcionalidade.

3 O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: RESGATE PELO SENTIDOMATERIAL DA CONSTITUIÇÃO

A evolução do princípio da proporcionalidade, na história, faz com que sereporte aos ensinamentos de Aristóteles, nos quais a proporcionalidade fazia

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parte do próprio conceito de justiça. Revelou Aristóteles3 (1999) que “a justiça éuma espécie de meio-termo, porém não no mesmo sentido que as outras virtudes,e sim porque se relaciona com uma quantidade intermediária, enquanto a injustiçase relaciona com os extremos” (p. 101). Disse ainda que “a justiça distributiva éuma mediação proporcional entre duas desigualdades e esta mediação é o igual”(ARISTÓTELES, 1999, p. 101).

Aristóteles utilizava a expressão princípio da justiça, o qual consistia em umarelação proporcional, que é definida como uma proporção geométrica. Essefilósofo já anunciava a importância da proporcionalidade no estudo do conceitode justiça.

A origem do princípio em tela situa-se, mais especificamente, aos séculosXVII e XVIII, estando ligada à evolução dos direitos e garantias individuais dapessoa humana, a partir do nascimento do Estado de Direito burguês na Europa.Foi na Inglaterra que surgiram as teorias jusnaturalistas que defendiam a idéia deo homem ter direitos imanentes a sua natureza e anteriores ao aparecimento doEstado e, conclamando ter o soberano o dever de respeitá-los. Pode-se afirmarque foi durante a passagem do Estado Absolutista (no qual o governante tinhapoderes ilimitados) para o Estado de Direito que pela primeira vez se empregouo princípio da proporcionalidade, com o objetivo de limitar o poder de atuaçãodo monarca face aos súditos (BARROS, 2003).

Inicialmente, o princípio da proporcionalidade teve origem no âmbito doDireito Administrativo. Aquele criou mecanismos para controlar o PoderExecutivo no exercício das suas funções, de modo a evitar o arbítrio e o abuso depoder e, só posteriormente, foi considerado como princípio constitucional(PINHO, 2005).

Importante consignar que a vinculação do princípio da proporcionalidade aoDireito Constitucional deu-se através dos direitos fundamentais. É nessa matériaque ele ganha extrema importância e prestígio (BONAVIDES, 2001).

Há que se dizer que, ainda hoje, existe certa controvérsia com a terminologiado princípio da proporcionalidade, nem todos os doutrinadores chegaram à mesmaconclusão com referência ao termo a ser usado para identificar esse princípio.

O termo mais usual para se designar o princípio da proporcionalidade, emsentido amplo, é de proibição de excesso (ubermassverbot). Hirschbberg (1981 apud

3 O sistema de pensamento proposto por Aristóteles concebe um papel secundário àlinguagem. A linguagem não manifesta, mas significa as coisas. A palavra é (somenteum) símbolo, e sua relação com a coisa não é por semelhança ou por imitação, mas(apenas) por significação. É a essência das coisas que confere às palavras a possibilidadede sentido (STRECK, 2003, p. 117).

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BONAVIDES, 2001) traz alguns sinônimos referentes também ao princípio daproporcionalidade em sentido estrito, o da proporcionalidade (proprtionalität), oda conformidade (angemessenheit) e, até mesmo como já citado, o da proibição deexcesso. Este autor adota uma posição cautelosa com relação à terminologia doprincípio da proporcionalidade:

Tocante ao princípio da proporcionalidade há sempre – conforme ele assevera – orisco de graves mal-entendidos ou ambigüidades derivadas de linguagem nem sempreclara, uniforme ou inequívoca relativamente à definição do conteúdo do princípio,isto é, ao reconhecimento de suas partes constitutivas e das respectivas designaçõesde que tem sido objeto e até mesmo com referencia ao “princípio geral”(gesamtgrundsatz), ou seja, à proporcionalidade numa ação lata. (HIRSCHBERG, 1981apud BONAVIDES, 2001, p. 369).

Todavia, a expressão mais usual, tanto nos trabalhos dos alemães, como suíços,austríacos, franceses e espanhóis é proporcionalidade, que também é adotadaneste trabalho.

Vários autores tentam conceituar o princípio da proporcionalidade, mas édifícil fazer uma definição exata do conceito do princípio em estudo. Isso ocorrepela complexidade do princípio e as diversificadas terminologias, todavia essafalta de um conceito rígido não impede de se ter uma noção ou idéia geral dasubstância ou essência do princípio em comento. Em suma, entende-se que:“princípios se oferecem mais à compreensão do que à definição” (PILIPPE,1990 apud BONAVIDES, 2001, p. 356).

A expressão proporcionalidade dá a idéia de equilíbrio entre duas grandezas,ou seja, relação harmônica entre dois pólos opostos. Mas proporcionalidade émais do que isso, pois envolve outras questões como a adequação entre meios efins, e a utilidade de um ato para proteção de um direito. Para isso, deve-sediferenciar princípio da proporcionalidade em sentido estrito, assunto que éabordado no próximo tópico, de proporcionalidade em sentido lato, que nomeiao princípio constitucional (BARROS; BARROS, 2006).

A definição do mencionado princípio em sentido amplo é, basicamente, amaior satisfação da pretensão de um direito através da menor restrição possívelde outro, onde o ônus deve ser até a medida do necessário, para que hajaponderação dos valores envolvidos com o objetivo de harmonizar os direitosque se confrontam.

Ainda, na ótica da definição do princípio da proporcionalidade, em sentidoamplo, infere-se que: “o princípio da proporcionalidade é a regra fundamental aque devem obedecer tanto os que exercem quanto os que padecem o poder”(BONAVIDES, 2001, p. 357).

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Nelson Nery Júnior (2000, p. 161), estabelece que:

O princípio da proporcionalidade também denominado de “lei da ponderação”,na interpretação de determinada norma jurídica, constitucional ouinfraconstitucional, devem ser sopesados os interesses e direitos em jogo, de modoa dar-se a solução concreta mais justa. Assim, o desatendimento de um preceito nãopode ser mais forte e nem ir além do que indica a finalidade da medida a sertomada contra o preceito a ser sacrificado.

O princípio da proporcionalidade, independentemente das variaçõesconceituais, serve precipuamente para a averiguação da constitucionalidade deleis que possam interferir no âmbito da liberdade humana. Se, ao contrário,desrespeitarem a esfera dos direitos de maneira mais intensa que a exigida parasua efetividade serão declaradas inconstitucionais.

Resta ainda trazer a definição de Suzana de Toledo Barros, que entende ser oprincípio da proporcionalidade um meio de controlar a atividade legislativa,sujeitando-a a um parâmetro de razoabilidade, cuja função controladora elimitadora é evidenciada pela expressão proibição do excesso, a qual também éconhecida na Alemanha (BARROS, 2003).

O princípio da razoabilidade é uma das contribuições da cultura norte-americana, muito invocado pela literatura brasileira, tem fundamento no due processof law. A própria idéia de liberdade, adotada pelos americanos, contempla umanoção de exercício razoável do poder. Ou seja, a submissão do poder àrazoabilidade, mesmo que não expresso em um texto, faz parte da cultura daquelepaís, que reconhece direitos inatos ao homem e impede que o Estado os viole(BARROS; BARROS, 2006, p. 45).

Importante observar que, por vezes ocorre uma confusão entre princípio daproporcionalidade e razoabilidade, devido à semelhança terminológica e tambémpelo fato de não se encontrarem expressos na Constituição Federal, contudo sepode auferi-los do histórico de sua elaboração, bem como implicitamente dealguns dispositivos constitucionais.

Na ordem jurídica brasileira, pode-se extrair do art 5°, LIV da ConstituiçãoFederal o princípio da razoabilidade que disciplina o devido processo legal:“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processolegal”. Estando ele previsto neste dispositivo constitucional, está protegido peloart. 60, § 4°, inc.IV da Constituição, que veda a abolição ou emenda em matériade direitos e garantias fundamentais.

Afirmam doutrinadores, como Luís Roberto Barroso (2006) e José dos SantosCarvalho Filho (2001 apud ROLIM, 2006), não haver distinção essencial entre

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os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Esses autores entendemque esses princípios, em linhas gerais, são fungíveis.

Razoabilidade enseja uma idéia de adequação, idoneidade, aceitabilidade,logicidade, eqüidade, bom senso e moderação, revelando tudo àquilo que não forabsurdo, o admissível (BARROS, 2003).

Apesar de serem princípios distintos, não se pode negar que existe umatendência a considerar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade oraequivalentes, ora um incluso no outro, mas o legislador infraconstitucional parececonceber esses dois princípios como coisas distintas. É o que se pode perceberno enunciado do art. 2º da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999:

A administração Pública obedecerá dentre outros, aos princípios da legalidade,finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa,contraditório, segurança jurídica, interesse publico e eficiência.4

Assim como na legislação supracitada, para Guerra Filho, os princípios nãose confundem:

[...] a desobediência ao princípio da razoabilidade significa ultrapassarirremediavelmente os limites do que as pessoas em geral, de plano, considerariamaceitável, em termos jurídicos. É um princípio com função negativa. Já o princípioda proporcionalidade tem uma função positiva a exercer, na medida em que pretendedemarcar aqueles limites, indicando como nos mantermos dentro deles – mesmoquando não pareça, a [sic] primeira vista, irrazoável ir além (GUERRA FILHO1999 apud STEINMETZ, 2001, p. 186).

O princípio da proporcionalidade encontra-se previsto em diversas normasconstitucionais. Em relação aos direitos e garantias individuais, encontra-se noinciso V, do art. 5°, que constitucionaliza o direito de resposta proporcional aoagravo. Também estando protegido por cláusula pétrea, em virtude do dispostono art. 5° § 2°, quando assegura que: os direitos e garantias expressos nestaConstituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por elaadotados, ou dos tratados internacionais em que a Republica Federativa do Brasilseja parte”. Em matéria de Direito Penal, ao garantir a individualização das penas(art. 5°, inciso XLVI), está implicitamente garantindo que estas serão proporcionais

4 A Lei n. 9. 784, de 29 de janeiro de 1999 regulam o processo administrativo no âmbitoda Administração Pública Federal. Ela foi publicada no Diário Oficial da União em 01de fev. 1999, seção 1.

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ao delito cometido. Em muitos outros ramos do direito como administrativo,tributário, trabalhista, também se pode encontrar implicitamente o princípio daproporcionalidade (PINHO, 2005, p. 252).

Humberto Ávila esclarece a diferença existente entre os dois princípios,argumentando que se aplica o princípio da proporcionalidade nos casos em quese estrutura uma relação meio-fim, ou seja, meios adequados, necessários eproporcionais, princípio da proporcionalidade em sentido estrito. A aplicação daproporcionalidade exige a relação de causalidade entre meio e fim. De outromodo, a razoabilidade não faz referência a uma relação de causalidade entremeio e fim. Acrescenta ainda, que existe uma diferença de método na aplicaçãodos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, ou seja, enquanto naproporcionalidade, o método consiste num juízo com referência a bens jurídicosligados a fins, a razoabilidade traduz um juízo com referência à pessoa atingida(ÁVILA, 2004).

De tudo que foi exposto, entende-se que a distinção entre princípio daproporcionalidade e da razoabilidade existe, não se tratando de um único princípio.Distinguem-se eles, pelo fato da proporcionalidade sopesar, qual a medida ounorma mais adequada, e a razoabilidade examinar se a medida escolhida e sopesadapor aquele princípio é razoável para o indivíduo, que se sujeitará à medida. Deoutra sorte, também é o princípio da proporcionalidade que solucionará a colisãode direitos fundamentais, por se tratar de uma relação meio-fim.

Finalmente, é de ressaltar que com a introdução do princípio da proporcionalidadena esfera constitucional, evoluiu-se para um direito constitucional material voltadopara o real, o fático, deixando de lado o constitucionalismo demasiadamente formal.Este princípio torna o legislador um funcionário da Constituição, estreitando,portanto seu espaço de intervenção. Assim, “A consciência da garantia e efetivaçãoda liberdade provém muito menos da lei do que da Constituição. Se o velho Estadode Direito do liberalismo fazia o culto da lei, o novo Estado de Direito de nossotempo faz o culto da Constituição” (BONAVIDES, 2001, p. 386).

Portanto, o princípio da proporcionalidade é de suma importância no DireitoConstitucional brasileiro. Tornou-se, no campo dos direitos fundamentais,principalmente nas hipóteses de restrição legislativa e concretização de limites,um princípio de máxima importância que ao longo da história vem ocupandolugar de destaque no âmbito Constitucional.

3.1 Elementos conformadores do Princípio da Proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade possui três elementos estruturais, tambémdenominados princípios parciais ou de sub-princípios. São eles: a adequação dosmeios, a exigibilidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

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Essa decomposição tornou operacional a compreensão e a aplicação doprincípio da proporcionalidade, dando densidade concretizadora a um princípioque, à primeira vista, parecia impreciso.

O primeiro deles, o princípio da adequação, significa que a medida adotadapara a realização do interesse público deve ser apropriada para a persecução do fimou fins que visa alcançar. Trata-se, pois, de investigar se o ato do Poder Públicocondiz com o fim adotado para sua execução (BONAVIDES, 2001, p. 386).

Nesse sentido Ávila, afirma que:

Um meio é adequado quando promove minimamente o fim. Na hipótese de atosjurídicos gerais, a adequação deve ser analisada do ponto de vista abstrato, geral eprévio. Na hipótese de atos jurídicos individuais a adequação deve ser analisada noplano concreto, individual e prévio. O controle da adequação deve limitar-se, emrazão do princípio da separação dos Poderes, à anulação de meios manifestamenteinadequados (ÁVILA, 2004, p. 121).

Assim, para que uma norma seja considerada constitucional e válida deveestar adequada ao fim pretendido.

O sub-princípio da necessidade ou exigibilidade, corresponde à medida quenão pode exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que sepretenda alcançar. Vale dizer, a medida só pode ser admitida quando for necessária,sendo associada à busca do “meio mais suave” e ao “direito à menor desvantagempossível”. Segundo Canotilho (1993), o sub-princípio da necessidade dá a idéiade que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível. Para se identificar oprincípio da necessidade deve-se perguntar se o legislador poderia ter adotadooutro meio igualmente eficaz e menos desvantajoso para os cidadãos.

Importante observar que existe uma relação entre os princípios da adequaçãoe da necessidade, pois só se pode falar em exigibilidade se o meio empregadotambém for adequado. Em suma, entende-se que “apenas o que é adequadopode ser necessário, mas o que é necessário não pode ser inadequado” (MENDES,1994 apud BARROS, 2003, p. 83).

E, por fim, o sub-princípio da proporcionalidade em sentido estrito estárelacionado à constatação de que o resultado obtido com o ato estatal é proporcionalà “carga coactiva”, ou seja, importa na correspondência entre meio-fim, o querequer o exame de como se estabeleceu a relação entre um ato e outro, com osopesamento de sua recíproca apropriação, colocando, de um lado, o interesse dobem-estar da comunidade, de outro, as garantias dos indivíduos que a integram, afim de evitar o beneficiamento demasiado de um em detrimento do outro.

Em outras palavras, quando já se verificou a adequação e a necessidade doato do Poder Público, deve-se perguntar se aquele ato, obtido com a intervenção,

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é proporcional à carga coativa da mesma. O princípio da proporcionalidade emsentido estrito, nada mais é do que um balanceamento de possibilidades jurídicas(BARROS; BARROS, 2006).

O princípio da proporcionalidade serve precipuamente para a averiguação daconstitucionalidade de leis que possam interferir no âmbito da liberdade humana.Se, ao contrário, desrespeitarem a esfera dos direitos de maneira mais intensa quea exigida, para sua efetividade serão declaradas inconstitucionais.

3.2 O Princípio da Proporcionalidade frente à jurisprudência do STF

Na vigência da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal,tem adotado como pressuposto interpretativo da teoria hermenêutica o princípioda proporcionalidade. Este vem sendo reconhecido gradativamente,principalmente em acórdãos, proferido em sede de controle da constitucionalidade.

O Supremo Tribunal Federal, em 1993, considerou que uma lei estadual queobrigava a pesagem de botijões de gás à vista do consumidor no ato da comprae venda constituía “violação ao princípio de proporcionalidade e razoabilidadedas leis restritivas de direitos”. Esse acórdão apresenta a seguinte ementa:

Gás liquefeito de petróleo: lei estadual que determina a pesagem de botijões entreguesou recebidos para substituição à vista do consumidor, com pagamento imediato deeventual diferença a menor: argüição de inconstitucionalidade fundada nos arts. 22,IV e VI (energia e metrologia), 24 e §§, 25, § 2º, e 238, além de violação ao princípioda proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direitos: plausabilidadejurídica da arguição que aconselha a suspensão cautelar da lei impugnada, a fim deevitar danos irreparáveis à economia do setor, no caso de vir a declarar-se ainconstitucionalidade: liminar deferida.5

A petição inicial desta Adin foi acompanhada de manifestação do InstitutoNacional de Metrologia, Normatização e Qualidade Industrial (INMETRO), doMinistério da Justiça e, considerada de múltipla relevância para o julgamentoliminar. Os esclarecimentos do órgão técnico, segundo o Relator MinistroSepúlveda Pertence, serviram não só para lastrear o questionamento daproporcionalidade ou da razoabilidade da disciplina legal impugnada, mas tambémpara indicar a conveniência de sustar. Ao menos provisoriamente, as inovaçõesimpostas pela referida lei, as quais onerosas e de duvidosos efeitos úteisacarretariam danos de incerta reparação para a economia do setor. Entendeu oSupremo Tribunal Federal que, dadas as contingências técnicas a que tem de se

5 Medida Cautelar em ADI 855-2/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgada pelo TribunalPleno do Supremo Tribunal Federal em 01.07.1993 DJU 01.10.1993.

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submeter, o mecanismo de distribuição de gás liquefeito, até então submetido aum regramento uniforme em todo o país, não pode admitir variações regionais, etambém porque a proteção ao consumidor poderia ser feita de outra forma menosrestritiva ao setor. Neste caso, a lei estadual foi declarada inconstitucional usando-se do argumento da proporcionalidade na questão referente ao “prejuízo” aoconsumidor e ainda argumentou-se que é competência da União legislar em matériade venda e revenda de combustíveis de petróleo conforme arts. 22, IV, VI e 238da Constituição Federal.

Em outra decisão da Corte Constitucional, na discussão relativa à altura mínimapara a participação em concurso público para o cargo de agente de polícia,observou-se, neste caso, que existe uma Lei Complementar do Estado do MatoGrosso do Sul 38/89 que entende por certo a restrição de altura mínima de1,60m aos candidatos do concurso como pré-requisito, argumentou-se que essaexigência guardava relação com a função a ser desempenhada pelo agente público.O STF assim decidiu:

Concurso Publico. Agente de Policia. Altura Mínima. Viabilidade. Em se tratandode concurso publico para agente de policia, mostra-se razoável a exigência de que ocandidato tenha altura mínima de 1,60m. Previsto o requisito não só na lei de regência,como também no edital de concurso, não concorre à primeira condição do mandadode segurança, que é a existência de direito líquido e certo.6

A restrição imposta se deve ao fato de o legislador entender que pessoas debaixa estatura não teriam a força intimidatória que, para o cargo, se faz necessária.Da mesma forma, o Ministro Marco Aurélio expõe verbis: Enquanto, por exemplo,o cargo de escrivão não exige, em si, estampa que se mostre até mesmointimidadora, no caso de agente, tem-se justamente o contrário, em face a umaatuação que pressupõe, à primeira vista, respeito aos cidadãos em geral”.

Neste caso, observa-se da decisão do STF que, muito embora existam doisprincípios contraditórios sobre essa matéria, o direito do cidadão em concorrer acargos públicos e o dever de eficiência do Estado, a discussão não gira em tornodeles, pelo fato de existir uma lei infraconstitucional regulando a matéria, assimnão se faz necessário o uso da ponderação. Esta decisão vem a demonstrar nocaso concreto o que se pretendeu esclarecer no item 2.2 “Colisão” entre princípiosconstitucionais, quando se defendeu o uso do princípio da proporcionalidade nafalta de lei especifica, procurando-se assim limitar o poder discricionário dojudiciário.

6 RE 148.095-5/MS, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado pela Segunda Turma do SupremoTribunal federal em 03.02.1998, DJU 03.04.1998.

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Ressalte-se que o princípio da proporcionalidade vem sendo utilizado najurisprudência do Supremo Tribunal Federal como instrumento para solução de“colisão” entre direitos fundamentais. Uma das decisões do STF, que teve granderepercussão em matéria de direitos fundamentais, com aplicação do princípio daproporcionalidade, deu-se em sede do HC 71.373-4/RS, quando se discutiu odireito do filho conhecer seu pai biológico e o direito de suposto pai em não serobrigado a fornecer sangue para a realização do exame hematológico, conformedecisão abaixo:

Investigação de Paternidade – Exame DNA – Condução do Réu “Debaixo de Vara”.Discrepa a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explicitas –preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano,do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer –provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, impliquedeterminação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, “debaixo de vara”,para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-seno plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e jurisprudência,no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos.7

A jurisprudência supracitada trata acerca de duas crianças gêmeas quepleiteavam o direito de verem reconhecida a paternidade do suposto pai biológico.O juiz da comarca de Porto Alegre decidiu pela realização do exame, na intençãode solucionar a controvérsia; da mesma forma, o Tribunal de Justiça do Estadodo Rio Grande do Sul confirmou a sentença do juízo a quo. O caso acabou porser analisado pelo STF, onde se decidiu pela inconstitucionalidade da decisãoque determinou a colheita de sangue do suposto pai, contra sua vontade, porafronta aos princípios da dignidade humana, da intimidade e da intangibilidadedo corpo, princípios que prevalecem segundo o STF, sobre o direito das criançasconhecerem o pai biológico.

Anos mais tarde, o STF se depara com questão parecida com a enfrentada doHC 71.373/RS, agora em sede de HC 76.060-4/SC, onde o pai presumido dacriança nascida durante o casamento estava sendo compelido a fazer o exame depaternidade por uma terceira pessoa que se dizia pai biológico do menor. Oconstrangimento do pai presumido em fazer o exame foi amparado por despachodo juízo a quo e confirmado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina. No HCimpetrado, o STF deferiu por unanimidade, negando a produção de provas quanto

7 HC 71.373-4/RS, Rel. Min. Francisco Rezek, julgado pelo Tribunal do Pleno doSupremo Tribunal Federal em 10.11.1994, Relator para acórdão Ministro Marco Aurélio,DJU 22.11.1996.

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à paternidade, conforme ementário, verbis:

DNA: submissão compulsória ao fornecimento de sangue para a pesquisa do DNA:estado da questão no direito comparado: precedente do STF que libera doconstrangimento o réu em ação de investigação de paternidade (HC 71.373) e odissenso dos votos vencidos: deferimento, não obstante, do HC na espécie, em quese cuida de situação atípica na qual se pretende - de resto, apenas para obter provade reforço - submeter ao exame o pai presumido, em processo que tem por objetoa pretensão de terceiro de ver-se declarado o pai biológico da criança nascida naconstância do casamento do paciente: hipótese na qual, à luz do princípio daproporcionalidade ou da razoabilidade, se impõe evitar a afronta à dignidade pessoalque, nas circunstâncias, a sua participação na perícia substantivaria.8

No voto do Ministro Relator, Sepúlveda Pertence, traz o seguinte entendimento:

Cuida-se aqui, como visto, de hipótese atípica, em que o processo tem por objeto apretensão de um terceiro de ver-se declarado pai da criança gerada na constância docasamento do paciente, que assim tem por si a presunção legal da paternidade econtra quem, por isso, se dirige a ação. Não discuto aqui a questão civil daadmissibilidade da demanda. O que, entretanto, não parece resistir que mais nãoseja ao confronto do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade – defundamental importância para o deslinde constitucional da colisão de direitosfundamentais – é que se pretenda constranger fisicamente o pai presumido aofornecimento de uma prova de reforço contra a presunção de que é titular. É desublinhar que efetivamente se cuidaria de simples prova de reforço de um fato que,de outro modo, se pode comprovar. Com efeito. A revolução, na área da investigaçãoda paternidade, da descoberta do código genético individual, em relação ao velhocotejo dos tipos sangüíneos dos envolvidos, está em que o resultado deste, se prestavaapenas e eventualmente à exclusão da filiação questionada, ao passo que o DNAleva sabidamente a resultados positivos de índices probabilísticos tendentes à certeza.Segue-se daí a prescindibilidade, em regra, de ordenada coação do paciente ao examehematológico, à busca de exclusão da sua paternidade presumida, quando a evidênciapositiva da alegada paternidade genética do autor da demanda pode ser investigadasem a participação do réu (é expressivo, aliás, que os autos já contenham laudoparticular de análise do DNA do autor, do menor e de sua mãe.

Tem-se aqui, notoriamente, a utilização da proporcionalidade como “regra deponderação” entre os direitos em conflito, acentuando-se a existência de outrosmeios de prova igualmente idôneos e menos invasivos ou constrangedores.

Em decisão mais recente, publicada no Informativo STF nº 257, em 2002,referente ao caso da cantora mexicana Glória Tréve, que ganhou destaque na

8 HC 76060-4/SC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado pela Primeira Turma doSupremo Tribunal Federal em 31.03.1998, DJU 15.05.1998.

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imprensa, torna-se possível reconhecer um caso de colisão de direitos. EsseColendo Tribunal julgou procedente reclamação para deferir a realização do examede DNA com a utilização do material biológico da placenta retirada daextraditanda.9

Infere-se, dos fundamentos da decisão, que o STF, “fazendo a ponderaçãodos valores constitucionais contrapostos” e utilizando o princípio daproporcionalidade, considerou a possibilidade de uma lesão mais grave ao direitoà honra e à imagem dos servidores e da Polícia Federal, atingidos pela declaraçãode a extraditanda haver sido vítima de estupro carcerário, divulgada pelos meiosde comunicação, do que ao direito à intimidade e à vida privada da extraditanda,visto que o exame de DNA pode ser realizado sem invasão da integridade físicada extraditanda ou de seu filho. Conforme ementário abaixo:

Reclamação. Reclamante submetida ao processo de Extradição n.º 783, à disposiçãodo STF. 2. Coleta de material biológico da placenta, com propósito de se fazerexame de DNA, para averiguação de paternidade do nascituro, embora a oposiçãoda extraditanda. 3. Invocação dos incisos X e XLIX do art. 5º, da CF/88. 4. Ofíciodo Secretário de Saúde do DF sobre comunicação do Juiz Federal da 10ª Vara daSeção Judiciária do DF ao Diretor do Hospital Regional da Asa Norte – HRAN,autorizando a coleta e entrega de placenta para fins de exame de DNA e fornecimentode cópia do prontuário médico da parturiente. 5. Extraditanda à disposição destaCorte, nos termos da Lei n.º 6.815/80. Competência do STF, para processar e julgareventual pedido de autorização de coleta e exame de material genético, para os finspretendidos pela Polícia Federal. 6. Decisão do Juiz Federal da 10ª Vara do DistritoFederal, no ponto em que autoriza a entrega da placenta, para fins de realização deexame de DNA, suspensa, em parte, na liminar concedida na Reclamação. Mantidaa determinação ao Diretor do Hospital Regional da Asa Norte, quanto à realizaçãoda coleta da placenta do filho da extraditanda. Suspenso também o despacho do JuizFederal da 10ª Vara, na parte relativa ao fornecimento de cópia integral do prontuáriomédico da parturiente. 7. Bens jurídicos constitucionais como “moralidadeadministrativa”, “persecução penal pública” e “segurança pública” que se acrescem,– como bens da comunidade, na expressão de Canotilho, – ao direito fundamental àhonra (CF, art. 5°, X), bem assim direito à honra e à imagem de policiais federaisacusados de estupro da extraditanda, nas dependências da Polícia Federal, e direitoà imagem da própria instituição, em confronto com o alegado direito da reclamanteà intimidade e a preservar a identidade do pai de seu filho. 8. Pedido conhecidocomo reclamação e julgado procedente para avocar o julgamento do pleito do

9 Informativo n. 257 do Supremo Tribunal Federal do dia 18 a 22 de fevereiro de2002.

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Ministério Público Federal, feito perante o Juízo Federal da 10ª Vara do DistritoFederal. 9. Mérito do pedido do Ministério Público Federal julgado, desde logo, edeferido, em parte, para autorizar a realização do exame de DNA do filho dareclamante, com a utilização da placenta recolhida, sendo, entretanto, indeferida asúplica de entrega à Polícia Federal do “prontuário médico” da reclamante.10

Em que pese à gradual sistematização, conforme demonstra a jurisprudênciacolacionada, o Supremo Tribunal Federal vêm exarando decisões importantíssimaspara o deslinde das questões que envolvam os “conflitos” de princípios e garantiasfundamentais. Utilizando-se do princípio da proporcionalidade, nota-se que oSupremo Tribunal Federal por vezes não analisa em suas decisões os elementosconformadores do principio da proporcionalidade para sua aplicabilidade. Cabeaos pesquisadores-doutrinadores, comprometidos com o Estado Democráticode Direito, com a defesa de uma ordem constitucional viva e garantidora dosdireitos dos cidadãos, fornecerem aos tribunais os subsídios teóricos necessáriosà aplicação do princípio da proporcionalidade.

Diante do que foi exposto, é possível reconhecer a existência do princípio daproporcionalidade em nosso ordenamento constitucional, constituindo instrumentoimportante para a proteção dos direitos fundamentais, na medida em que, combase nele, torna-se viável a realização do controle de constitucionalidade da lei edos atos decorrentes do exercício das funções executivas ou jurisdicionais.

4 CONCLUSÃO

Buscou-se no presente trabalho verificar como a doutrina e a jurisprudência,em especial do STF, estão aplicando o princípio da proporcionalidade. Observou-se os aspectos sistemáticos que a doutrina vem lhe atribuindo, sobretudo seussub-princípios e a diferença existente entre proporcionalidade e razoabilidade.

Inicialmente, como base para o estudo da proporcionalidade, foi necessária acompreensão de algumas noções gerais de princípios e regras, bem como o estudodas soluções apontadas pela doutrina no caso de princípios “colidentes” e aimportância dos princípios no ordenamento jurídico.

Constata-se que as regras descrevem uma situação jurídica, vinculam fatoshipotéticos específicos, que exigem, proíbem ou permitem algo em termosdefinitivos, sem qualquer exceção. Diferente são os princípios, que expressamum valor ou uma diretriz, mas não descrevem uma situação jurídica específicanem se reportam a um fato em particular, exigindo uma contínua atividade

10 RCL 2040/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, 21.2.2002.

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interpretativa. Quanto à “colisão de princípios”, pode-se utilizar o princípio daproporcionalidade como forma de atingir a resposta hermeneuticamente adequadaao caso concreto.

Após as noções gerais de princípios, por conseguinte, entende-se que oprincípio da proporcionalidade em sentido lato, também chamado princípio daproibição dos excessos, denominação oriunda da doutrina alemã, é um instrumentopara maior satisfação da pretensão de um direito, através da menor restriçãopossível de outro. O ônus deve ser até a medida do necessário, para se chegar àresposta adequada ao problema jurídico em discussão.

Ainda na ótica da definição, verificou-se que, por vezes, o princípio daproporcionalidade é confundido com o princípio da razoabilidade. Constatou-seque se trata de institutos diferentes, porquanto o último enseja a idéia de moderaçãoe justeza do fim, o admissível, ou seja, a proporcionalidade vai sopesar qual amedida ou norma mais adequada, e a razoabilidade vai examinar se a medidaescolhida e sopesada por aquele princípio é razoável.

O princípio da proporcionalidade pressupõe a verificação de três elementosou sub-princípios, indispensáveis para sua correta aplicação: o ato deve seradequado, necessário e proporcional em sentido estrito. O legislador ou juristaque pretenda aplicar o princípio da proporcionalidade deverá sempre observar seas medidas limitativas de direitos, a serem aplicadas são idôneas, necessárias eproporcionais em relação à consecução de fins constitucionalmente legítimos.

Analisando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, foram transcritosalguns arrestos proferidos por esse Tribunal, nos quais se verificou a utilizaçãodo princípio da proporcionalidade como fundamentação das decisões. Sem dúvida,há um gradual reconhecimento jurisprudencial acerca da aplicação do princípio,mas tais decisões demonstram, cabalmente, que ainda há muito para se desenvolverna pesquisa do verdadeiro sentido do princípio em questão. Mais do que aplicaro princípio da proporcionalidade deve-se fundamentar a decisão. É preciso justificaro que foi fundamentado, nas palavras de Gadamer: “interpretar é iluminar as condiçõessobre as quais se compreende” (GADAMER, 1998 apud STRECK, 2006, p. 223).

Assim é necessário sistematizar o uso do princípio da proporcionalidade,definindo melhor seu significado e sua adequada utilização no contexto do casoconcreto, já que de forma implícita é considerado como uma garantia aos direitosfundamentais, consagrado hoje, principalmente na jurisprudência constitucional,como instrumento de decisão capaz de promover o equilíbrio quando se têm emtensão bens, direitos, ou interesses protegidos e atingidos pelo poder estatal.

Diante do exposto, infere-se que o princípio da proporcionalidade não podeser entendido como um princípio que leve a discricionariedades e arbitrariedades

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O (re) clamar do princípio da proporcionalidade: acesso à justiça na Constituição

do Poder Judiciário, mas sim o fio condutor do processo hermenêutico. Ahermenêutica filosófica é incompatível com discricionariedades e decisionismos.É por isso que esse novo quadro deve trazer a intensificação dos estudos sobre ainterpretação das normas. Para que o arbítrio não tome o lugar da hermenêutica.

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Tributação ambiental: o tributo extrafiscal como forma de proteção do meio ambiente

TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL: O TRIBUTO EXTRAFISCALCOMO FORMA DE PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE

ENVIRONMENTAL TAXATION: PROTECTING ENVIRONMENTTRHOUGH EXTRAFISCAL TAXING

Stefania Eugenia Barichello*

Luiz Ernani Bonesso de Araújo**

Resumo: A atuação do Estado na preservação do meio ambiente tem serevelado imprescindível, pois mediante sua intervenção nas atividadeseconômicas ele pode estabelecer regras mínimas a serem observadas pelasociedade. Dentre os instrumentos econômicos usados pelo Estadomoderno para a preservação do meio ambiente está o tributo, que constituifonte de receita pública empregada na atividade financeira e pode serutilizado tanto em seu aspecto fiscal quanto em seu aspecto extrafiscal.Diante deste contexto, o estudo contempla uma reflexão sobre aTributação Ambiental, tendo como delimitação o tributo extrafiscal comoforma de proteção do meio ambiente.

Palavras-chave: Tributação ambiental. Tributo extrafiscal. Proteçãoambiental.

Abstract: The role of State in preserving the environment has revealedto be essential, seen that by interfering in economic activities it can establishthe minimal regulation to be observed by society. Among the economicinstruments employed by the modern State to protect environment it isthe establishment of taxing, which constitutes source of profit from publicmeans used in the financial activity and that can be employed either in itsfiscal and extrafiscal aspect. Thus, the study contemplates a reflectionupon Environmental taxation, delimitating in the ways of a form toprotecting environment.

Keywords: Environmental taxing. Extrafiscal taxing. Environmentalprotection.

* Mestranda em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Mariapossui especialização em Direito Empresarial pela Universidade Federal do Rio Grandedo Sul e aperfeiçoamento em Análisis Económico del Derecho pela Universidad Nacional deBuenos Aires, Argentina. email: [email protected]

** Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina Professor daUniversidade Federal de Santa Maria, da Universidade de Santa Cruz do Sul e doCentro Universitário Franciscano e Vice-coordenador do Mestrado em IntegraçãoLatino-americana da UFSM. email: [email protected]

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Stefania Eugenia Barichello; Luiz Ernani Bonesso de Araújo

1 INTRODUÇÃO

A preocupação com a preservação do meio ambiente tem motivado aelaboração de diversos documentos internacionais, nos quais está presente a noçãode sustentabilidade. A atuação do Estado na preservação do meio ambiente temse revelado imprescindível, pois, através da intervenção nas atividades econômicas,o Estado pode estabelecer regras mínimas a serem observadas pela sociedade.

Dentre os instrumentos econômicos usados pelo Estado moderno para apreservação do meio ambiente está o tributo. Esse instrumento, que constituifonte de receita pública empregada pelo Estado na atividade financeira, pode serutilizado tanto em seu aspecto fiscal quanto em seu aspecto extrafiscal. O tributoconfigura-se, dessa forma, em um eficaz instrumento na preservação ambiental,sobretudo quando empregado como veículo indutor de comportamentos nossujeitos passivos, caracterizando a sua natureza extrafiscal.

Em se tratando o Direito Ambiental de um Direito “horizontal” que cobre osdiferentes ramos do direito: privado, público e internacional e um Direito de“integração”, que tende a penetrar em todos os setores do direito para nelesintroduzir a idéia ambiental, compreende-se a sua ligação com o Direito Tributário(LENZ, 2005).

E considerando que a proteção do meio ambiente e a promoção da qualidadede vida da sociedade são princípios essenciais da dignidade da pessoa humana,reconhecidos constitucionalmente no ordenamento jurídico brasileiro, insurge-se a possibilidade de utilizar-se do sistema tributário nacional como mecanismopara a sua concretização.

Igualmente Oliveira (1995), acredita na possibilidade da utilização do sistematributário como “eficiente instrumento de transformação econômica e social e,pois, deve estar a serviço da preservação dos recursos ‘ambientais’, através domanejo adequado da tributação: a ‘tributação ambiental’, isto é, a tributação voltadapara a defesa do meio ambiente” (p. 43).

Os interesses individuais evidenciados na necessidade momentânea doconsumo massificado acabam distorcendo a necessidade de se proteger o meioambiente. Ao lado de tais interesses existem, no entanto, interesses transindividuais,como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o direito à sadiaqualidade de vida, nos quais o Estado tem papel fundamental de intervir mediantea regulamentação de instrumentos que protejam o meio ambiente.

Com tal propósito, o Estado possui dois tipos de instrumentos, os instrumentoseconômicos (indução), e os de comando e controle (direção). Os instrumentosde direção caracterizam-se pela imposição de normas permissivas ou proibitivas,definidoras de instrumentos de comando e controle de emissões ou limitação de

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Tributação ambiental: o tributo extrafiscal como forma de proteção do meio ambiente

recursos, fiscalização e aplicação de sanções e a imposição do poluidor de repararo dano causado. Por outro lado, os instrumentos de indução, o Estado manipulaos instrumentos de intervenção econômica de acordo com as leis que regem ofuncionamento do mercado, induzindo os produtores de externalidades negativasa se adequarem aos padrões estabelecidos.

2 TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL CONCEITOS FUNDAMENTAIS

A Tributação Ambiental pode ser conceituada como “o emprego deinstrumentos tributários para orientar o comportamento dos contribuintes aprotesto do meio ambiente, bem como para gerar recursos necessários à prestaçãode serviços públicos de natureza ambiental” (COSTA, 1998, p. 297).

Conforme Modé, a tributação ambiental diferencia-se do caráter sancionatóriopor “não se aplicar a atividades ilícitas. A tributação ambiental aplica-se tãosomente a atividades lícitas, assim consideradas pelo legislador porque necessárias,em que pese o impacto causado ao meio ambiente” (2003, p. 123).

O tributo ambiental é um instrumento de intervenção na atividade econômica doqual o Estado pode se valer para a construção da sustentabilidade. “Tem uma funçãomuito importante no processo de reforma social não só como fonte de receita, mas,sobretudo, como forma de conscientização das pessoas acerca da importância enecessidade de preservação do meio ambiente” (ALMEIDA, 2003, p. 103).

Carneiro (2003, p. 80) aborda as modalidades de tributação ambiental,“enquanto instrumentos de viabilização de políticas públicas de meio ambienteque permitem uma razoável integração das variáveis da política ambiental à políticaeconômica”, apresentando suas vantagens em termos de gestão de recursosambientais. Segundo ele, esses tributos podem proporcionar primeiramente,incentivos aos produtores e aos consumidores finais, resultando em umareadequação de seus processos, comportamentos e hábitos com vistas a umautilização mais eficiente e equilibrada dos insumos naturais e dos produtos delesoriundos. Em segundo lugar, os tributos podem originar as receitas necessáriasaos investimentos públicos em projetos de melhoria da qualidade ambiental,permitindo, ainda, a desoneração progressiva dos encargos incidentes sobre otrabalho e sobre o capital. E, em terceiro lugar, podem constituir mecanismoseficientes para o controle da proliferação de fontes não estacionárias ou difusasde poluição.

Nesse sentido, Oliveira percebe que o sistema tributário “pode atuarcomplementarmente ao sistema administrativo de licenças ambientais, que éindispensável à preservação e ao combate da poluição; também se revela útil na

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preservação dos recursos ambientais, adequando as espécies tributárias à tributaçãoambiental” (1995, p. 27)1.

Na doutrina espanhola, os tributos ambientais são caracterizados por Molinacomo ‘tributos de ordenamento’ e ‘tributos pelo uso dos bens ambientais’, valendotranscrever seus ensinamentos:

Os autênticos tributos ambientais [...] são aqueles que constituem um incentivo aocuidado com o meio ambiente (tributos de ordenamento). O que sucede [...] é quetal incentivo pode consistir precisamente na cobrança de uma quantidade pelo usode bens ambientais que equivalha ao custo de evitar a contaminação (tributos pelouso dos bens ambientais) (MOLINA, 2000, p. 58, tradução nossa).2

De acordo com Almeida (2003), a tributação ambiental consiste em uminstrumento de que o Estado pode se valer para intervir no domínio econômico,de forma a incentivar ou desincentivar comportamentos e induzir os agenteseconômicos na adoção de condutas ambientalmente sustentáveis. A aplicação dotributo ambiental não visa punir o descumprimento de um comando normativo,visa sim, diante de uma atividade econômica que possa trazer algum dano aomeio ambiente, proceder a um ajuste buscando a sua realização de forma menosdanosa possível.

2.1 Função do tributo

A tributação ambiental pode ser utilizada tanto em seu aspecto arrecadatório,através do investimento do numerário arrecadado, quanto em seu aspectoextrafiscal, induzindo os contribuintes à adoção de condutas ambientalmentecorretas.

Conforme Modé,

Verificam-se duas finalidades nos tributos ambientais. A primeira delas, denominadafiscal, redistributiva, e a segunda, extrafiscal. A primeira finalidade visa à obtençãode receitas que serão aplicadas em ações que promovam a defesa do meio ambiente.A segunda finalidade, por sua vez, tem por objetivo introduzir comportamentos,que, na visão do estado, sejam ambientalmente desejáveis ou de menor poder ofensivoao meio ambiente (2003, p. 72).

Cabe ressaltar o que Oliveira ensina acerca do princípio do poluidor-pagador,quando pondera que

mesclando os sentidos impositivo (fiscal) e seletivo (extrafiscal) do princípio ambientaldo poluidor-pagador, a lei tributária tem condições de proceder a um discrimen legítimoentre poluidores e não-poluidores, de forma a “premiar”, estes últimos, que,

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Tributação ambiental: o tributo extrafiscal como forma de proteção do meio ambiente

satisfazendo o espírito constitucional, orientado para promoção de equilíbrioecológico (art. 225 da Constituição), colaboram para a preservação ambiental (1995,p. 28).

Por conseguinte, se por um lado o Estado cobra do poluidor, sob a forma detributo, uma quantia devido à sua atividade predatória ao meio ambiente, poroutro, pode incentivar atividades ambientalmente corretas, estimulando outrasempresas a implementarem tecnologias não poluidoras em seus processosprodutivos.

Conforme pode se observar acima, os tributos ambientais podem servir tantopara coibir comportamentos lesivos ao meio ambiente, como para estimular,através de incentivos fiscais ou isenções, condutas empresariais ou individuaisambientalmente corretas, as quais visem não degradar o meio.

2.1.1 A prevalência do caráter extrafiscal na tributação ambiental

Como já se viu anteriormente, dentre os instrumentos econômicos que oEstado pode empregar na ação interventiva sobre o domínio econômico, tem-seo tributo. O tributo ambiental poderá surgir

com a finalidade fiscal objetivando corrigir comportamentos atentatórios ao meioambiente, através do provimento de receita pública que para tal fim seja empregada.Entretanto, sua característica extrafiscal revela-se como mais eficaz na consecuçãoda sustentabilidade ambiental. Tal fato constata-se em função de que por meio daextrafiscalidade é possível induzir condutas que se identifiquem com a proteção,preservação e promoção do meio ambiente (ALMEIDA, 2003, p. 159).

No que pertine à extrafiscalidade, faz-se necessário rememorar os ensinamentosde Molina quando percebe que os tributos podem ser distinguidos por suafinalidade extrafiscal e pelos seus efeitos extrafiscais, isto é, aquele tributo que sedestina primordialmente a um fim distinto do arrecadatório, trata-se de um tributoextrafiscal (MOLINA, 2000). Todavia, se tiver como finalidade principal aarrecadação, porém produzindo efeitos extrafiscais, dirá respeito a um tributofiscal com efeitos extrafiscais.

Analisando o exposto acima, pode-se concluir que, no tributo ambiental comfunção extrafiscal, coexistirão ambas as funções: a fiscal e a extrafiscal, comprevalência, entretanto, da função extrafiscal, na medida em que a fiscal ficarelegada a um plano secundário, de tal sorte que há tributos extrafiscais cujafinalidade é deixar de render e nada arrecadar para o fisco (BECKER, 1998).

Percebe-se ainda, que mesmo os tributos de caráter arrecadatório, retributivoou contraprestacional, portanto, com finalidade fiscal, podem vislumbrar uma

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característica diretiva das reações dos contribuintes, de modo a estimular oudesestimular o comportamento de pessoas em benefício do interesse coletivo, dobem comum, intervindo no campo econômico e social, o que mostra que mesmonos tributos fiscais serão encontrados efeitos extrafiscais.

Portanto, no tributo ambiental sempre se encontrará o caráter extrafiscal, sejacomo finalidade principal ou como efeito extrafiscal dentro dos denominadostributos fiscais. Oliveira, ainda, pondera:

Quer quando se cria incidências novas, quer quando gradua diferentemente a cargatributária privilegiando atividades ‘limpas’ ou onerando produções de consumospoluentes, o que está em causa não é apenas, ou propriamente, a arrecadação fiscal,mas a ‘finalidade’ de promover a ‘defesa do meio ambiente’ (1995, p. 39).

A tributação ambiental é, portanto, de caráter extrafiscal, uma vez que sedestina fundamentalmente a orientar a atuação do contribuinte, o que é evidenteno caso dos impostos. Mesmo nos tributos ambientais, de caráter retributivo oucontraprestacional, pode-se vislumbrar uma finalidade diretiva das reações doscontribuintes.

3 TRIBUTO AMBIENTAL E AS ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS

Determinados impostos, devido à sua natureza, possuem potencial extrafiscalcapaz de alterar o comportamento do contribuinte de modo a direcioná-lo naopção menos nociva ao meio ambiente; as taxas podem ser exigidas em funçãoda atividade de fiscalização de cunho ambiental bem como através da prestaçãoobrigatória de serviços que tenham escopo ambiental; a contribuição de melhoriapode ser instituída dada à valorização de imóveis próximos à criação de parquese áreas de preservação ambiental; os empréstimos compulsórios não se ajustamao objetivo desta pesquisa, dada a falta de prevenção na proteção ambiental nasua instituição; a contribuição de intervenção no domínio econômico é o tributocom maior potencial no que se relaciona à preservação do meio ambiente.

3.1 Imposto

O imposto é uma espécie tributária do tipo não vinculado já que o fato geradornão enseja uma contraprestação específica do Estado. Tanto no conceito de tributocomo também no da espécie tributária imposto, não se faz nenhuma referênciaacerca da finalidade do mesmo. Dessa forma, num primeiro momento, constata-se ser o imposto a receita pública com fim fiscal. Todavia, devido à sua natureza,verifica-se que o imposto pode assumir, além de sua forma fiscal, um potencialextrafiscal capaz de alterar o comportamento do contribuinte de modo a direcioná-lo na opção menos nociva ao meio ambiente.

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Tributação ambiental: o tributo extrafiscal como forma de proteção do meio ambiente

Luz (1998, p. 80) leciona que os impostos podem ser “amplamente utilizadoscomo instrumentos de tributação ambiental, através de um sistema de isenções erestituições, conforme a natureza dos produtos ou mercadorias estimulando asatividades não poluidoras e desestimulando aquelas poluidoras”. Um exemplodisso é o que ocorre nos Estados Unidos, onde o imposto é amplamenteempregado na tributação ambiental, como é o caso da incidência de impostossobre a produção e o consumo de certos produtos poluidores, com isenção parcialou total a outros não poluidores ou recicláveis ou reciclados, de que é exemplo arestituição de imposto sobre vasilhames, quando da devolução dos recipientes(OLIVEIRA, 1995). No Brasil, tem-se como exemplo de imposto ambiental oICMS ecológico, que será estudado posteriormente.

3.2 Taxas

A taxa é uma espécie tributária do tipo vinculado, uma vez que, ocorrendoum dos fatos geradores que a ensejam, haverá uma contraprestação específica doEstado. Segundo Baleeiro (1999), cria-se, por um lado, uma taxa fiscal para custearserviços com essa finalidade, ou de outro lado, institui-se uma taxa extrafiscalquando o objetivo for impedir ou restringir atividades que ameacem o interesseda comunidade.

Conforme leciona Regina Costa, podemos encontrar

taxas de serviço pela prestação ou colocação à disposição do contribuinte de serviçopúblico de natureza ambiental e taxas de polícia, cuja exigência, ensejada medianteo exercício de atividade de fiscalização e controle da atividade particular,especialmente relevantes por ocasião da expedição de licenças ambientais (COSTA,1998, p. 306).

Oliveira salienta que, devido ao fato de os serviços ambientais terem altocusto, elevando assim o valor do tributo correspondente, a simples instituiçãodas taxas ambientais, apesar do seu caráter contraprestacional, “produz efeitopsicológico, extrafiscal, imediato, induzindo o poluidor a buscar alternativas decomportamento não-poluidor para furtar-se a ser identificado como contribuinte,ou pelo menos para diminuir o montante da taxa que lhe cabe pagar” (1995, p.36). Portanto, mesmo nas taxas que têm como finalidade principal a fiscal, podem-se vislumbrar efeitos extrafiscais.

Igualmente na doutrina espanhola, Molina defende que

a estrutura mista da taxa – limitação de sua quantia à cobertura do custo do serviço– parece prestar-se mal ao estabelecimento de elementos extrafiscais. No entanto,na medida que a proteção do meio ambiente tenha por fim implantar novos serviços

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obrigatórios de elevado custo, que sejam financiados por taxas, o sujeito contaminanteperceberá os custos ambientais de sua conduta e receberá um incentivo a modificá-la. Isto dará a taxa uma finalidade extrafiscal ou de ordenamento (MOLINA, 2000,p. 78, tradução nossa).

No mesmo sentido, Araújo et al ressaltam que as taxas ambientais devem sergraduadas de acordo com o princípio da capacidade econômica do contribuinte,

bem como de acordo com o tipo de estabelecimento, instalações, atividades, comotambém ao volume de emissões, despejos ou produção de resíduos poluidoresemitidos. Todavia, apesar da taxa ter finalidade de contraprestação, poderá tambémter finalidade coercitiva. A taxa poderá produzir um efeito inibidor no poluidor, ouseja, o mesmo buscará alternativas de comportamento mais benéficas ao meioambiente, para, com essas atitudes, evitar ou atenuar a incidência da taxa (ARAÚJOet al, 2004, p. 271).

Como exemplo de taxa de serviço, tem-se a taxa de preservação ambientalexigida no arquipélago de Fernando de Noronha, Distrito Estadual dePernambuco, nos termos art. 84, da Lei 10.403/89, cujo fato gerador é “autilização, efetiva ou potencial, por parte das pessoas visitantes, da infra-estruturafísica implantada no Distrito Estadual e do acesso e fruição ao patrimônio naturale histórico do Arquipélago de Fernando de Noronha”. Tal taxa caracteriza umtributo fiscal com efeitos extrafiscais, na medida em que tem como fim primeiroa arrecadação, mesmo que para preservação ambiental, o que caracteriza efeitosextrafiscais.

Como já foi abordado no segundo capítulo, a extrafiscalidade poderá sercaracterizada por um induzimento positivo ou negativo, sendo que o primeiro sedaria mediante o asseveramento das alíquotas e o segundo com a redução ou atémesmo exclusão da carga tributária. No caso das taxas, Silva adverte sobre a suaaplicação extrafiscal, na medida em que a extrafiscalidade negativa torna-se cabível,mediante a anulação ou redução do valor da taxa; porém a sua aplicação positivanão seria legal, de maneira que,

pela sua natureza ressarcitória, a extrafiscalidade onerosa não seria legal, dado que,assim ocorrendo, sendo seu valor maior que o despendido (custo), estariadescaracterizada a taxa. O tributo deixaria de ter essa natureza e viciada estaria adiscriminação constitucional de rendas por, na verdade, haver criado um novoimposto. Além disso, o poder teria recebido quantia indevida, por inexistir a causajurídica que lhe daria suporte (SILVA, 1997, p. 355).

Conclui-se, portanto, que, na cobrança das taxas, encontra-se a necessidadedo interesse público tutelado sob a forma de fiscalização ou de obrigatóriaprestação de serviço. Por tais características, as taxas se prestam perfeitamente à

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tarefa de proteção ambiental, podendo ser exigidas em função da atividade defiscalização ambiental como pela prestação obrigatória de serviços que tenhamcaráter ambiental.

3.3 Contribuição de melhoria

A contribuição de melhoria consiste na realização de obra pública que lhevalorize imóvel. É um tributo que, a par de seu potencial arrecadador (fiscal),pode transformar-se num elemento de grandes obras de profundo sentidoambiental (extrafiscal). “Além de seu caráter utilitário, tais obras contribuem paraa educação do povo, sendo que a ignorância tem íntima conexão com a destruiçãodo meio ambiente, por isso que a ‘educação ambiental’ é tema de relevo noscolóquios sobre o meio ambiente” (OLIVEIRA, 1995, p. 38).

A contribuição de melhoria, outrossim, pode prestar-se à proteção ambiental.De acordo com Costa, trata-se de um “pressuposto necessário para a sua exigência,a realização de sua obra pública que venha provocar valorização imobiliáriaparticular. Assim, a obra pública volta-se à preservação ambiental, como porexemplo, pela construção de um parque pode-se exigir uma contribuição demelhoria ‘verde’” (COSTA, 1998, p. 306).

Esse tributo, além de possuir caráter arrecadatório, pode transformar-se emum elemento estimulador da consciência ambiental, atuando tanto com finalidadeextrafiscal quanto, com efeito, extrafiscal. Araújo et al citam como exemplo decontribuição de melhoria, a Lei Municipal nº 1364/88, do Município do Rio deJaneiro, a qual estabelece o pagamento da contribuição de melhoria porproprietários de certos imóveis valorizados por obras públicas “tais comoarborização de ruas e praças, construção ou ampliação de parques, proteção contraa erosão, aterros, e outras obras de embelezamento, como também a hipótese deprojeto de tratamento paisagístico” (ARAÚJO, 2004, p. 272.).

Nesse momento faz-se imprescindível citar o que diz Ferraz quanto à corretautilização da contribuição de melhoria que, segundo ele,

levaria a uma equação muito diferente, e justa, na criação de parques e áreas depreservação ambiental. O Poder Público ao decidir criar áreas de preservaçãoambiental, como praças, parques e reservas, particularmente junto a aglomeraçõesurbanas: a) avaliaria a área e suas redondezas, como manda a lei relativa à contribuiçãode melhoria; b) exigiria a contribuição correspondente à valorização dos imóveiscircunvizinhos à área de preservação (obra pública); c) indenizaria o proprietário doimóvel sobre o qual recai a preservação obrigatória, pelo valor real do imóvel, comos recursos advindos dessa arrecadação; d) teria condições de arcar com novasdesapropriações semelhantes. Também a utilização da contribuição de melhoria como

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tributo ambientalmente orientado traz possibilidades infindáveis. Não se trata aquide induzir comportamentos, mas de viabilizar economicamente, e com justiça fiscal,a efetivação de políticas públicas ambientais (FERRAZ, 2004, p. 675).

Portando, tal tributo pode ser um bom instrumento protetivo, considerando-se que as obras públicas destinadas à preservação ambiental como praças, parques,arborização de logradouros, entre outras, podem levar a uma valorizaçãoimobiliária de imóveis próximos a esses espaços públicos ensejando, assim, acobrança de contribuição de melhoria do Estado ao proprietário do imóvelbeneficiado por essas obras públicas destinadas à preservação ambiental.

3.4 Empréstimos compulsórios

Os empréstimos compulsórios, por poderem ser instituídos em função decalamidade pública, a qual pode ser de natureza ambiental, bem como pararealização de investimento público de caráter urgente e de relevante interessenacional, que também pode ser de natureza ambiental, tendo em vista que aaplicação dos recursos arrecadados nessas finalidades (FERRAZ, 2003), podemser interessantes instrumentos para viabilizar políticas públicas ambientais, porémnão servirão como instrumento de prevenção e proteção do meio ambiente comose verá a seguir.

O inciso II, do art. 148, da Constituição Federal, dispõe que os empréstimoscompulsórios poderão ser instituídos “no caso de investimento público de caráterurgente e de relevante interesse nacional, observando o disposto no art. 150, III,b”, por se tratar unicamente de espécie de antecipação de receita, além de estarenvolto num caráter não-emergencial, estando os mesmo adstritos ao cumprimentodo princípio da anterioridade, diferentemente do inciso I, do mesmo artigo.

Em se realizando um empréstimo compulsório, como a própria nomenclaturasugere, exige-se a sua restituição. Ou seja, o dinheiro emprestado deve serdevolvido. Caso contrário configura-se hipótese de confisco constitucionalmenteprevisto no artigo 150, IV.

Não se descarta a possibilidade de, existindo interesse difuso1, a viabilidadede observado o pressuposto constitucional de realizar despesas extraordináriasdecorrentes de calamidade, exigir-se empréstimo compulsório. De forma que,em caso de relevante dano ambiental de forma calamitosa e em casos extremosem que o Estado não tenha recursos, a União possa, atendendo as exigências doart. 148, da Constituição Federal e vinculando tal exigência ao que a fundamentou,possa-se exigir tal espécie tributária.

1 Interesse ligado à nação como um todo e não a sujeitos específicos.

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Ou seja, não obstante a possibilidade da ocorrência de um fato de proporçõesestrondosas, existindo uma política bem estruturada e de atuação preocupada emmanter e desenvolver o meio ambiente e a economia, tal exigência tributáriapreferivelmente que fique somente no campo das possibilidades. Pois casohouvesse a necessidade da instituição de um empréstimo compulsório, tal tributonão estaria servindo como meio de proteger o meio ambiente e sim como meiode viabilizar a arrecadação para despesas extraordinárias decorrentes decalamidade.

3.5 Contribuição social

As contribuições sociais podem ser subdivididas em três tipos. Entretanto,as contribuições sociais e as contribuições corporativas têm um fim específico acumprir. Sendo assim, não podem ser adaptadas ao objeto deste estudo que é atributação ambiental. Por outro lado, as contribuições interventivas, caracterizadaspela intervenção do Estado no domínio econômico, têm a sua receita empregadano setor que o Estado pretende beneficiar, de acordo com a política fiscal, o quecaracteriza a extrafiscalidade. “Dessa forma, é possível a utilização dascontribuições interventivas como instrumentos tributários extrafiscais ouregulatórios da atividade econômica” (ALMEIDA, 2003, p. 91).

Regina Costa salienta que é possível a instituição de contribuição deintervenção no domínio econômico como instrumento de atuação da Uniãonessa área. Prega, ainda, que a defesa do meio ambiente é um dos princípiosgerais da atividade econômica (art.170, VI) e, desse modo “a União pode lançarmão desse tributo para gerar recursos voltados à preservação ambiental. Porexemplo, uma contribuição exigida das empresas do setor madeireiro, para financiarprograma de reflorestamento” (1998, p. 306).

Portanto, as contribuições de intervenção no domínio econômico são aplicáveistanto no que atina aos seus respectivos usos como instrumentos de controle daatividade econômica, bem como ao objetivo de garantir direito a todos a ummeio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.Em resumo, é perfeitamente lícito, no Brasil, o emprego de contribuições deintervenção no domínio econômico com finalidade ambiental (NUNES, 2005).

Ferraz sintetiza a questão relativa à contribuição de intervenção no domínioeconômico quando expõe que esta

tem por característica própria a exigibilidade somente em determinado âmbitoeconômico, sem ofensa aos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, oque a torna particularmente adequada à tributação ambientalmente orientada,especialmente aquela com finalidade re-orientadora de comportamentos através da

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‘internalização’ de custos ambientais. Relativamente a essa figura do direitotributário brasileiro não cabem as objeções que se fazem apontando no tributoambientalmente orientado uma violação ao princípio da igualdade concretizadoem matéria fiscal no critério de capacidade contributiva (2004, p. 675).

Como exemplo de contribuição social de intervenção no domínio econômico,interessante figura tributária foi formada pelo texto constitucional, com o §4º, doart. 177, da CF2, conforme a redação introduzida pela EC 33, de 11.12.2001, aqual dá os requisitos para a lei que instituir contribuição de intervenção no domínioeconômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo eseus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível (FERRAZ,2003.).

Ainda segundo Ferraz, essa previsão de alíquotas diferenciadas na contribuiçãode intervenção no domínio econômico relativa às atividades supra citadas “não écontrária ao princípio da isonomia, não consiste uma exceção a esse princípio;pelo contrário, é direta aplicação da igualdade, devidamente contextualizada”(2003, p. 171.)

Conclui-se, portanto, que as contribuições podem ser a espécie tributáriamais adequada para o exercício da tributação ambiental, pois se encaixam naconfiguração de instrumento de efetivação do princípio do poluidor-pagador eainda se alinham com os fundamentos do mercado, uma vez que visamcorrigir externalidades negativas da produção.

3 A EFICÁCIA DA TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL

Como foi visto anteriormente, a intervenção do Estado, com o intuito daproteção e preservação ambiental é realizada através do emprego de instrumentosnormativos e também de instrumentos econômicos. Dentre os instrumentoseconômicos, o tributo tem apresentado resultados bastante eficazes em diversos

7 §4º. A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa àsatividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás naturale seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos:I – a alíquota de contribuição poderá ser: a) diferenciada por produto ou uso; b)reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o dispostono art. 150, III, b;II – os recursos arrecadados serão destinados: a) ao pagamento de subsídios a preçosou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo;b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleoe do gás; c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes”.

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países, sobretudo na união européia. O tributo configura, dessa forma, eficaz instrumentona preservação ambiental, sobretudo quando empregado com veículo indutor decomportamentos nos sujeitos passivos, caracterizando a sua natureza extrafiscal.

Um assunto bastante em voga hodiernamente é a reforma tributária, em setratando de meio ambiente, fala-se de reforma tributária sustentável. Constatadoque o controle da poluição assim como o incentivo para políticas ambientalmentecorretas podem ser obtidas por meio da tributação, conclui-se que o Brasilnecessitaria de uma reestruturação tributária com especial atenção a esse assunto,com objetivos de: melhor inserirem-se no mercado mundial, observando-se aautonomia federativa, responsabilidades fiscal e social, desenvolver a economiainterna e ter soberania total sobre as suas riquezas naturais (LENZ, 2005).

Rosembuj fala da possibilidade de um sistema fiscal ambiental, trazendo comoexemplo o modelo da Suécia, quando ensina que

o sistema fiscal ambiental não pode ser uma superposição de novos tributos ou umacatarata de novas cargas fiscais. O modelo de Suécia e sua eficaz implantação propõemque a orientação ambiental do sistema tributário deve ser acompanhada da diminuiçãode alguns impostos vigentes, sua extinção ou reforma, de modo que a pressão fiscalglobal não aumente (ROSEMBUJ, 1995, p. 252, tradução nossa).

Jane Elizabeth Nunes pontua as diretrizes que deveriam ser tomadas caso seoptasse por uma reforma tributária com finalidades ambientas, quais sejam:

1) eliminar os benefícios de atividades com efeitos ecológicos negativos; 2) incentivaratravés de linhas de crédito oficiais atividades e produtos ambientalmente corretos(produção limpa); 3) incorporar ao sistema tributário vigente em cada país, deduções,amortizações, para investimentos em tecnologias verdes, sem instituir novasimposições fiscais; e, 4) aproveitar os tributos existentes e fortalecê-los com alíquotasprogressivas (mais possibilidades de condensações) e direcioná-los para a preservaçãodos recursos não renováveis (2000, p. 165).

Salienta, ainda, que essas ponderações precisam levar em conta os ritmosprogressivos na taxação, pois os tributos ambientais não devem ter efeito dechoque econômico, senão terminariam tento efeito contrário ao esperado, umavez que a atual carga tributária brasileira já é bastante elevada (NUNES, 2000).

No mesmo sentido, Modé destaca que a Organização para a Cooperação e oDesenvolvimento Econômico (OCDE) tem publicado estudos nos quais vemanalisando aspectos relevantes para a implementação de uma política de tributaçãoambiental, na qual considera que tal implementação deve ser feita de maneiraque “a carga fiscal global sobre determinada economia não se altere, ou seja, nãoobstante o limite individual caracterizado pela capacidade contributiva, a tributação

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ambiental no contexto macroeconômico deve ser aplicada de maneira a não geraruma pressão fiscal adicional” (MODÉ, 2003, p. 100).

Dressler destaca que a Tributação Ambiental

pode ser um importante fator de conscientização, de educação da população parauma conduta ecologicamente correta. Pode reverter o uso predatório de nossosrecursos naturais naturalmente, sem imposições de penas e multas sobre oscontribuintes. Sem aumentar a carga tributária, já tão grande nos ombros dosbrasileiros. Com incentivos fiscais, imunidades, isenções, alíquotas diferenciadas,diminuições nas bases de cálculos, enfim, Prêmios aos comportamentosecologicamente corretos (2002, p. 258).

Importante enfatizar que, por meio de tributo extrafiscal, a tributação ambientalnão representa uma elevação da carga tributária, devido ao fato de aquele ter porfim estimular condutas não poluidoras e desestimular as poluidoras, através deincentivos fiscais, conhecidos por benefícios ou estímulos fiscais, que semanifestam sob forma de imunidade ou de isenções tributárias. “É preciso quehaja uma redistribuição da carga tributária de modo a estimular atividadeseconômicas compatíveis com o meio ambiente. Essa postura busca promoveruma visão e coerente atuação mais afinada com o social e menos individualista”(LEÃO, 2005, p. 42).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O crescimento econômico sem limites e a idéia de abundância e deinesgotabilidade dos recursos naturais não suscitava nenhuma preocupação coma proteção do meio ambiente. Porém, a sociedade e o Estado vêm tomandoconsciência da importância de compatibilizar o crescimento econômico com aquestão ambiental, o que pode ser visto com a emergência de ações que têmcomo fim a preservação e a recuperação ambiental, de que o desenvolvimentoeconômico está sujeito a contingências ambientais, ou seja, de que de nada adiantaproduzir sem limites se essa produção não estiver inserida no conceito dedesenvolvimento em parceria com respeito ambiental, conjugando desenvolvimentosocial, econômico, cultural e ambiental.

Na Constituição Federal de 1988, o direito ao meio ambiente ecologicamenteequilibrado entra deliberadamente como direito fundamental da pessoa humana.Em seu artigo 225, a CF declara o meio ambiente ecologicamente equilibradocomo bem de uso comum de todos e impõe tanto ao poder público quanto àcoletividade o dever de zelar pela proteção do meio ambiente. Ainda, o art. 170estabelece os princípios da ordem econômica, no qual, em seu inciso VI, preconiza

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Tributação ambiental: o tributo extrafiscal como forma de proteção do meio ambiente

que esta deverá regrar-se pelos ditames da justiça social, respeitando o princípioda defesa do meio ambiente, confirmando a premissa de que a proteção do meioambiente está intimamente ligada à esfera econômica de uma sociedade.

Nesse sentido, o Estado desenvolve um relevante papel uma vez que, atravésde sua intervenção no desenvolvimento das atividades econômicas, estabelececomo regra o respeito ao meio ambiente. O Estado pode empregar para a proteçãodo meio ambiente dois tipos de instrumentos. O primeiro grupo preocupa-secom as medidas ressarcitórias ou indenizatórias, através das quais se pretendeindenizar os danos causados para proceder à restauração ambiental. O segundogrupo atenta aos instrumentos preventivos em que, mais que reparar os danoscausados, se pretende “desincentivar” aquelas condutas danosas ao meio ambiente.Nesse segundo grupo, o tributo é adotado como instrumento preventivo.

Verificou-seque os tributos podem ser distinguidos por sua finalidadeextrafiscal e pelos seus efeitos extrafiscais, ao passo que aquele tributo queprimordialmente visa a um fim distinto do arrecadatório, é um tributo extrafiscal.Todavia, se tiver como finalidade principal a arrecadação, porém produzir efeitosextrafiscais, será considerado um tributo fiscal com efeitos extrafiscais. Devido aisso, em um tributo ambiental sempre se encontrará o caráter extrafiscal, sejacomo finalidade principal ou como efeito extrafiscal, dentro dos denominadostributos fiscais. A tributação ambiental será, fundamentalmente, de naturezaextrafiscal, uma vez que se destina fundamentalmente a orientar a atuação docontribuinte. Pois, mesmo nos tributos ambientais de caráter retributivo oucontraprestacional (com finalidade principal fiscal), pode-se vislumbrar umafinalidade diretiva das reações dos contribuintes, portanto efeitos extrafiscais.

Quanto às espécies tributárias, chega-se à conclusão de que determinadosimpostos, devido à sua natureza, possuem potencial extrafiscal capaz de alterar ocomportamento do contribuinte de modo a direcioná-lo na opção menos nocivaao meio ambiente e podem ser amplamente utilizados como instrumentos detributação ambiental, através de um sistema de isenções e restituições, conformea natureza dos produtos ou mercadorias, estimulando as atividades não poluidorase desestimulando aquelas poluidoras.

Já as taxas podem ser exigidas em função da atividade de fiscalização decunho ambiental bem como através da prestação obrigatória de serviços quetenham escopo ambiental, produzindo a indução do poluidor a buscar alternativasde comportamento não-poluidor ou pelo menos para diminuir o montante dataxa que lhe cabe pagar. Portanto, mesmo nas taxas que têm como finalidadeprincipal a fiscal, pode-se vislumbrar efeitos extrafiscais, conforme já foi salientadoanteriormente.

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A contribuição de melhoria pode ser instituída em virtude de realização deobra pública que lhe valorize imóvel. Portando, tal tributo pode ser um bominstrumento protetivo, considerando-se que as obras públicas destinadas àpreservação ambiental podem levar a uma valorização imobiliária de imóveispróximos a esses espaços públicos ensejando, assim, a cobrança de contribuiçãode melhoria do Estado ao proprietário do imóvel beneficiado por essas obraspúblicas destinadas à preservação ambiental.

Os empréstimos compulsórios devem ser instituídos em função de calamidadepública, bem como para realização de investimento público de caráter urgente ede relevante interesse nacional. Podem ser interessantes instrumentos paraviabilizar políticas públicas ambientais, porém não servem como instrumento deproteção ambiental e sim, como meio de viabilizar a arrecadação para despesasextraordinárias decorrentes de calamidade.

As contribuições de intervenção no domínio econômico são aplicáveis nosetor que o Estado pretende beneficiar, de acordo com a política fiscal, o quecaracteriza a extrafiscalidade. Isso, conforme o art.170, da Constituição Federalde 1988, que estabelece, entre os princípios a serem observados, a defesa domeio ambiente.

Conclui-se com este trabalho que a Tributação ambiental pode ser umimportante fator de educação ambiental, na medida em que pode conscientizar apopulação para uma conduta ecologicamente correta e reverter o uso predatóriode recursos naturalmente, sem imposições de penas e multas sobre os contribuintes.O tributo extrafiscal não representaria uma elevação da carga tributária, já quetem por fim estimular condutas não poluidoras e desestimular as poluidoras,através de incentivos fiscais conhecidos por benefícios ou estímulos fiscais quese manifestam sob forma de imunidade ou de isenções tributárias.

Importa ressaltar, também, que os possíveis impactos arrecadatórios causadospelos impostos ambientais podem ser quase sempre suplantados pelos benefíciospor eles trazidos, tanto no que diz respeito à melhoria na qualidade de vidaglobal, quando à diminuição dos gastos públicos com a reparação dos danoscausados ao meio e à própria saúde da população.

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Tributação ambiental: o tributo extrafiscal como forma de proteção do meio ambiente

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Reforma federalista e reengenharia tributária como pressupostos para a redução...

REFORMA FEDERALISTA E REENGENHARIA TRIBUTÁRIA COMOPRESSUPOSTOS PARA A REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES REGIONAIS

FEDERALIST REFORM AND TAX REENGINEERING ASPREREQUISITES FOR THE REDUCTION OF REGIONAL INEQUALITIES

Aldimar Alves Vidal e Silva *

Resumo: Observa o cenário nacional em dupla perspectiva: o fiscalismoe as suas relações com a federação e o fiscalismo federativo em relaçãoao projeto sócio-constitucional. Analisa o fiscalismo nacional, tributaçãoe partilha de receitas pela fonte e pelo produto; identifica algumasincorreções na distribuição do produto das receitas arrecadadas e algunsparadoxos federativos, seja na concentração de receitas em poder da União,na insuficiência de gerir os repasses ou na capacidade de coordenar osinteresses locais em face dos nacionais.

Palavras-chaves: Federalismo. Cooperativismo. Desigualdade.Regionalismo. Tributação.

Abstract: This study observes the national scenery from two perspectives:the fiscalism and its relations with the federation and the federativefiscalism in relation to the socio-constitutional project. It analyzes thenational fiscalism, taxation and revenue sharing by the source and theproduct; it identifies some incorrections in the distribution of the productof revenues collected and some federative paradoxes, not only in theconcentration of revenues in the Union’s hands, but also in the inabilityto manage transfers or to coordinate local interests in relation to thenational ones.

Keywords: Federalism. Cooperativism. Inequality. Regionalism. Taxation.

* In memorian. Mestrando do curso de Direito Negocial da Universidade Estadual deLondrina (UEL).

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1 INTRODUÇÃO

A redução das desigualdades regionais foi positivada em nível de normaprincipiológica passando a integrar o regime jurídico-econômico nacional.Constata-se que, efetivamente, tais desigualdades existem e reconhecidas em nívelconstitucional, também, em 1988. A busca pela efetivação jurídica do princípioou a perseguição da redução em si, por mais que possam parecer à mesma coisa,são dotadas de antologias distintas; o que podem possuir em comum é a utilizaçãodo direito como instrumento dirigido a fins.

Para dar efetividade ao princípio deve-se buscar conhecê-lo para garantireficácia jurídica e social desejável no sistema em que se insere. O locus original doprincípio da redução das desigualdades regionais é o das normas de nívelconstitucional, especificamente o da Constituição Econômica e Social.

A partir desta perspectiva pode-se pensar na conquista da eficiência social doprincípio por meio de ações estatais indutoras de comportamento no âmbitofiscal, por exemplo. Ao se conjugar normas de direito tributário com normas dedireito econômico valer-se-ia de soluções extrafiscais para atingir o fim “reduçãodas desigualdades regionais”.

Por outro lado, quando se abstrai da conformação principiológicaconstitucional da problemática concreta, ou mesmo, não se vislumbra instrumentalbastante ou adequado para gerar a correção das desigualdades regionais em faceda estrutura vigente, há de se por o problema a dialogar com a própria estrutura.

O foco da observação proposta é atinente ao modelo da Federação brasileira,especificamente no setor do federalismo fiscal brasileiro; perquirir se a açõesdesenvolvidas pelo Estado no combate às desigualdades regionais não encontramem si mesmo um entrave, ou seja, se a sua própria conformação estrutural nãocontribui para a manutenção das desigualdades. Sendo assim é preciso promovero resgate da democracia como ideologia renovada pelo cenário científico dashumanidades, que enseja e determina a reanálise de conceitos e institutos atéentão dogmatizados.

2 A FEDERAÇÃO BRASILEIRA E ALGUNS REFLEXOS FISCAISDECORRENTES

O Brasil nasceu inteiro em toda a extensão de seu território, foi povoado pormuitas nações e seu povo é dotado de múltiplas identidades, dispersas e integradasmais por fatores econômicos do que por proximidade sociológica1.

A cisão político-territorial do Brasil se deu de modo técnico aristocrático eeste ambiente político criado em cada ente federativo permanece. Pode ser indicado

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como a pedra de toque da federação. Grande parte da energia gasta pelos entesfederados se concentra na busca da sua força representativa em face da União.

A luta renitente é no sentido de abrir espaço para a força local, já que aconstrução da federação brasileira não se construiu a partir de uma vivência deautonomia dos entes federados e sim de uma semi-autonomia. Houve umaatribuição de função-poder aos entes federados2, ressaltando-se que não se tratade distribuição, já que a realidade econômica de cada região determina faticamentea sua força. Também no âmbito institucional a isonomia formal é prejudicial aoseconomicamente mais fracos.

A semi-autonomia precisa ser conquistada em algumas regiões. E isso precisaser iniciado com a possibilidade do desenvolvimento considerando-se umaidentidade econômica para o povo local.

Pode-se alargar a afirmação de Paulo Bonavides “que nunca tivemos autênticoe genuíno federalismo, nem na doutrina, nem nas instituições, e sempre nosvolvemos para o alargamento progressivo das atribuições cometidas às autoridadesdepositárias do poder central” (1996, p. 395), no sentido de que a tecnologia dafederação brasileira não padece de deficiências apenas na centralização de poder,mas principalmente na deficiência de distribuição de poder entre os entesfederados3. A igualdade formal dos entes federados não se compagina com as

1 Ao discorrer sobre “o vício do Executivo forte” Paulo Bonavides atribui “à naturezade nossa formação histórica e ao sentido em que evolvemos como organização política,na qual se fez o Estado predecessor da Nação e bem cedo se converteu no centrocapital da unidade e promoção da nossa existência como povo (BONAVIDES, 1996,p. 394).

2 A Federação construída no Brasil é falsa, reiteremos, é falsa, e já se deve buscardesesperadamente outro modelo federativo, pois o que aí se concretizou configurauma contradição profunda com as velhas aspirações descentralizadoras. (BONAVIDES,1996, p. 339).

3 José Afonso da Silva defende que “não podemos, porém, iludir-nos, pretendendoinstituir um Executivo fraco. [...] O equilíbrio de poderes não estará no enfraquecimentodo Executivo, retirando dele o que só a ele deve corresponder. Estará no aparelhamentodo Legislativo para o exercício de suas funções com eficiência e presteza, nesse tipode Estado em transformação. (SILVA, 2002, p. 25). Lourival Vilanova, noartigo“Proteção jurisdicional dos direitos numa sociedade em desenvolvimento”promove um estudo profícuo e multidisciplinar sobre o Direito e sua tarefa ativa nasociedade em desenvolvimento não gradual. Desenvolve a idéia de que em um Estadoem processo de desenvolvimento acelerado a participação ativa do Executivo éfundamental (2003).

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desigualdades econômicas regionais. À autonomia política não corresponde àautonomia financeira, não por vícios internos ou formais do pacto federativo,mas por diferenças econômicas e arrecadatórias dos membros.

Mesmo que a discriminação de rendas pela fonte, questão de competênciatributária, entre os entes autônomos da federação se mantenha como fundamentopolítico maior da preservação da estrutura federal do Estado4 este problemapossui mais interesse formal-aristocrático do que a problemática empírica denota.Isso porque para manter a forma federal o Estado precisou lançar mão deinstrumentos tipicamente unitaristas5. Considerando, portanto, que a partilha dacompetência tributária impositiva seria insuficiente para conferir autonomiafinanceira aos entes o legislador constituinte determinou a partilha de algumasreceitas tributárias6, conforme está nos artigos 157 a 162 da CF.

Essa forma de distribuição de receitas pela fonte e pelo produto tem duplafunção: na primeira privilegia a ontologia do federalismo formal clássico7 e nasegunda visa corrigir as distorções financeiras causadas pelo primeiro. Dessatécnica fiscal se origina na Constituição Federal de 1988 o federalismo decooperação.

4 Não devemos confundir o Estado Federal com o Estado Unitário Descentralizado,embora em ambos coexistam, num mesmo território, sobre o mesmo povo, duas esferasde governo: a geral e a local (CARRAZA, 2005, p. 125).

5 Mas triste condição, essa, do sistema federal em nosso País: ele já nasceu enfermo eraquítico, eivado de contradições e impurezas centralizadoras que lhe desfiguraram aimagem; um federalismo açoitado de ameaças autocráticas e unitaristas geradoras deinjustiças e ressentimentos.Esse quadro só se tem ampliado até os nossos dias e, ao meu ver, encontra unicamenteseu corretivo na adoção do federalismo das Regiões (BONAVIDES, 1996, p. 342,grifo nosso).

6 Pode-se pensar, em face das desigualdades regionais econômicas e concretas, que JoséAfonso da Silva foi mal interpretado quando escrevia ao Constituinte de 1988: “quenão existe Federação sem eqüitativa discriminação constitucional de rendas tributárias,que assegure a cada entidade autônoma (União. Estados e Municípios) meios financeirosadequados à prestação dos serviços de sua competência” (SILVA, 2002, p.25).

7 Formalmente, a partir da Constituição Federal “cada pessoa política, no Brasil, tem odireito de decidir quais os problemas que deverão ser solvidos preferencialmente eque destino dar a seus recursos financeiros” (CARRAZA, 2005, p. 131). A partilhatributária pelo produto, receitas, é exceção constitucional a essa assertiva. Mesmo quese justifique a teleologia do preceito, a questão de fundo permanece com vezoscentralizantes.

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Essa cooperação financeira utilizada pelo Estado é uma forma estruturantede correção das desigualdades regionais no federalismo brasileiro. As demaistécnicas corretivas, como a extrafiscalidade, por exemplo, também buscamremediar as deficiências causadas pelo federalismo formal brasileiro. Mas, existeuma enorme diferença entre a conformação mesma do Estado e técnicas desegunda ordem, utilizáveis subsidiariamente. Poder-se-ia afirmar que a questãodo cooperativismo fiscal federativo visa à correção das desigualdades regionaispela base e em uma perspectiva macro, e que as demais técnicas de direitoeconômico fiscal visam a correções pontuais, especializadas, setorizadas.

Mesmo com essa forma atualizada de federação e com as normasconstitucionais de direito econômico fiscal as deficiências econômico-sociais dasregiões periféricas permanecem inalteradas. Fábio Brum Goldschmidt em discursopré-centralismo atribui parte dessa estagnação ao fato de que nada a União sofreucom a reestruturação tributária de 1988 quer pelas definições das competênciastributárias quer pela distribuição de receitas. Neste caso positivando um modelofortemente cooperativista, ou seja, na distribuição de receitas, pelo produto. Seriaa instituição de mais um paradoxo ao já inautêntico federalismo brasileiro(GOLDSCHMIDT, 2000, p. 76).

3 EFICÁCIA CONSTITUCIONAL DO DIREITO ECONÔMICO FISCALBRASILEIRO

A existência complexa do Estado Federativo determina, no plano prático, aobservação de diversas organizações administrativas, normativas ou estruturaispara permitir a análise de qualquer questão de cunho social e econômico. Todosestes mecanismos devem estar afinados de modo a possibilitar soluções quegarantam a eficácia do equilíbrio federativo que deve ser.

Ao selecionar os valores sociais a serem vivenciados na comunidade federal aConstituição restringiu enormemente a possibilidade de se discutir quais são oscaminhos econômico-sociais trilháveis pelo Estado brasileiro. Especificamentena Constituição Econômica, Art. 170 e seguintes da CF/88, estão traçados osparâmetros, dirigidos às políticas governamentais, sociais e econômicos da açãodo Estado. Nenhum discurso ideológico é capaz de negar o que está postoconstitucionalmente, pode no máximo representar pretensão reformadora.

O princípio da “redução das desigualdades regionais” traz ínsito a necessidadede políticas governamentais para alcançar tal objetivo. Extrai-se daí o dever estatalde agir de acordo com a formatação principiológica. A tarefa que se põe é a dapartida direta em busca das organizações administrativas, normativas ou estruturaiscapazes de viabilizar a redução das desigualdades regionais.

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Considerando então, ainda que superficialmente, que a existência do Estadosó se justifica na sua prestabilidade para com o povo que o sustém, a dinâmicafuncional do Estado, através dos governos, deve alcançar e satisfazer os interessesheterogêneos de toda a sociedade (DABIN, 1946 apud BECKER, 1998, p. 156).Exemplificativamente, representar os interesses sociais e respeitar as necessidadesdo desenvolvimento econômico, harmonizando-os. Para satisfazer o primeirogrupo o Estado mantém, por exemplo, serviços públicos, projetos sociais,programas assistenciais. Para o segundo grupo o interesse é de que o Estadointerfira apenas o necessário para a manutenção dos serviços, projetos e programasgovernamentais.

A sustentação econômico-financeira do Estado para o cumprimento de suasatribuições se faz por meio da tributação. Os critérios para a tributação estão naConstituição Federal. Eles positivam o modelo republicano de governo, ofederalista de organização político-administrativa, o sistema democrático.Desempenhar o dever de instituir, arrecadar e fiscalizar tributos é atuar no planoda fiscalidade. Da mesma forma que a tributação fiscal a tributação extrafiscaldeve buscar harmonizar os interesses heterogêneos. A tributação extrafiscal édotada de forte expressão política, econômica e social no que concerne àconjugação dos dois interesses supramencionados8.

Questão relevante a ser observada é a de que os instrumentos econômicosaplicados à fiscalidade são ofuscados ou padecem de operacionalidade no ambienteconturbado da estruturação fiscal do federalismo cooperativo brasileiro, cujofuncionamento se dá por meio dos Municípios, dos Estados-Membros e da UniãoFederal, todos dotados de competência tributária.

Toda a produção normativa, tanto quando se trata da questão fiscal, comoquando se trata da questão extrafiscal dos tributos, a perspectiva de observaçãopressupõe o Estado funcionando a partir dessa estrutura. Sendo a estrutura falha,deficiente, complexa, artificiosa, ou, seus pressupostos formais ou normativosdestoam demasiadamente da realidade factual a teleologia do objeto se consomena manutenção da própria estrutura. O fim buscado, redução das desigualdadesregionais, para poder ser instrumentalizado através de políticas econômico-fiscais,pressupõe primariamente a correção macro-fiscal ou federativa.

Portanto, reivindicar eficácia social das normas de direito econômico fiscalpara corrigir problemas gerados e mantidos em outra escala é desconsiderar a

8 Os impostos extrafiscais e os incentivos fiscais não são medidas exclusivamenteextrafiscais, mas apenas predominantemente, movendo-se o legislador fiscal também(embora secundariamente) por objetivos reditícios (NABAIS, 1998, p. 575).

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proporção das coisas. Questões como a partilha de competência tributária dosentes federados e a distribuição de receitas dos mais ricos para os mais pobresprecisam ser privilegiadas para se poder fazer uso útil daqueles instrumentos.

Ressalta-se que essa estratégia de conjugar competência tributária com deverde repasse financeiro, adotada no federalismo nacional, tem contribuído para oavanço das distorções formais do sistema e pouco contribuído para o propósitodo cooperativismo que seria a redução das desigualdades regionais.

4 CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA E GASTOS PÚBLICOS

A ontologia socializante da Constituição Democrática é o fundamento para aredução das desigualdades regionais e o Federalismo Cooperativo vem sendoutilizado como forma atualizada do federalismo dualista na busca desse intento(BONAVIDES, 1996, p. 398).

A redução das desigualdades regionais, ainda que implicitamente, exige aimplementação de um regime jurídico próprio. O direito tributário e o direitofinanceiro, mais do que funcionarem nas duas frentes, têm apresentado dinâmicade intersecção constante nas relações verticais dos entes federados9.

Refletindo sobre a seguinte assertiva de que “não há como escapar que só ocrescimento, com redistribuição, poderá ter real eficácia na superação do nossoquadro de pobreza e desigualdade” (NOGUEIRA, 2004, p. 263), e, associando-a aos dados arrecadatórios do Estado brasileiro nos últimos cinco anos constata-se que a eficiência tributária ou tributante é insuficiente ao desiderato posto se oEstado não possuir critérios adequados de alocação das receitas.

Ressalvadas as perdas de receitas com as guerras fiscais e deficiênciasfiscalizatórias, entre outras questões logísticas, os montantes arrecadados poderiamproporcionar não só a redução das desigualdades regionais, mas, também, asdesigualdades locais, metropolitanas, nos centros economicamente desenvolvidos.A partícula condicional se deve em virtude de problemas gerenciais das despesas,como a eleição dos direitos acobertados pela estrutura estatal10.

9 A autonomia (no sentido de independência relativa) de qualquer ramo do direitopositivo é sempre e unicamente didática para, investigando-se os efeitos jurídicosresultantes da incidência de determinado número de regras jurídicas, descobrir aconcatenação lógica que as reúne num grupo orgânico e que une este grupo à totalidadedo sistema jurídico (BECKER, 1998, p. 31).

10 Gato social do Governo Central 2001/2002. Referido trabalho é uma nítida radiografiada pior distorção do Estado brasileiro: a de gastar mais com os ricos. O próprioestudo reconhece, por meio de fartos dados, números e gráficos, que em outros

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Outra questão que releva em dimensão, na implementação de valores sociais,é aquela que, localizada nos limiares das políticas públicas fiscais ou extrafiscais,prescindem de maturidade democrática. Nesse sentido Victor Ukmar esclareceque:

a discriminação entre escopos públicos e privados está, freqüentemente, repleta dedificuldades [...] tem sido objetado que, mediante tais formas de intervenção nasatividades industriais e comerciais, o Governo poderia, praticamente, implantar umaforma de economia socialista, o que exorbitaria’ das finalidades da finança pública(UKMAR, 1999, p. 60).

No entanto, os princípios sociais veiculados na Constituição Federal exigemimplementação e não permitem escusas de quaisquer ordens. As antagoniasgovernamentais ou governistas além de não terem força justificadora das inações,expõem as ações mal dirigidas. No entanto, novamente a imaturidade democráticanacional entrega a sorte da massa desfavorecida à sua própria ignorância e baixarepresentatividade.

Teorias transparentes e incontestáveis têm se esgotado apenas no ponto do“dever fundamental de pagar os tributos”, ou seja:

O princípio do estado social tem importantes implicações para a tributação e osimpostos. Implicações essas que, em geral, vão mais no sentido da expansão eintensificação da tributação do que no da sua limitação, o que, naturalmente, nãosurpreende se tivermos na devida conta que é o estado fiscal que paga a conta doestado social (NABAIS, 1998, p. 575).

Talvez por falta de coragem para admitir a própria ineficiência, ou paraacobertar outras formas de volatilização de receitas, o Estado prefere deixar pairara idéia de que os compromissos financeiros jurássicos consomem a parcelasignificativa, e que faria diferença no âmbito dos investimentos sociais.

No entanto, a questão federativa, ou pelo menos no concernente ao federalismofiscal, é o ponto de causa e de geração da maioria das conseqüências nefastas naobtenção útil e aplicação adequada de receitas.

Enquanto os interesses das elites tecnocráticas estatais (União, Estados eMunicípios) não se renderem aos anseios do povo, às distorções sociais, ossacrifícios das gerações perdurarão. Mais nocivo do que suplantar a ideologiasocial do ordenamento vigente, enquanto sistema é manter a República Federal

países o Estado corrige e diminui a desigualdade quando distribui os recursos tributáriosarrecadados, porém, no Brasil, o Estado quando gasta confirma a desigualdade(NOGUEIRA, 2004, p. 263).

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social-capitalista sem efetivo diálogo diante das contingências econômicas. Osinteresses imediatos têm prescindido do debate democrático, ao mesmo tempoem que os interesses democraticamente assentados como direitos não têmconstituído empeços à atualização instantânea do Neodireito.

5 FEDERALISMO REGIONAL OU FISCALlSMO COOPERATIVO FEDERAL

Contemporaneamente surgem novos problemas, paradigmas, propostas, noentanto, algumas coisas permanecem idênticas, como por exemplo, a defesa dacentralização de poder na esfera federal: “ontem, eram as exigências da unidadenacional por fazer, hoje, as exigências dessa mesma unidade por preservar”(BONAVIDES, 1996, p. 397). Ainda nessa esteira, é certo que o direito permanecea centralizar a expressão do monopólio do poder estatal; e, que a regulação jurídicadas relações humanas continua a representar a variedade de interesses gerados nadinâmica social11. A variável exógena da contemporaneidade, a tecnologia, vistacomo ideologia da atualidade, representa o ideário das coisas instantâneas, também,no direito.

Ao tratar da questão contemporânea mais relevante no país observa-se essanova engenharia em funcionamento deturpado; constata-se a adaptação do direitotradicional em uma estrutura volúvel que está sempre visando à soluçãoemergencial dos interesses do momento. Dezenove anos após a entrada em vigorda Constituição Federal e um transcurso de igual prazo nas discussões sobre areforma fiscal ou tributária até o momento não foram apresentadas propostascapazes de discutir o problema pela base.

De tudo quanto se vem dizendo é possível concordar que Sudene e Sudam,Medida Provisória 255/2005, lei n°, 11.196/05, EC 42/03, PECs paralelas; ou,ainda, as CIDEs corretivas das fontes tributárias perdidas pela União em 1988 –para se referir apenas aos mais expressivos instrumentos introdutores de normasoriginárias – nada disso tem se mostrado eficaz no campo teleológico ouinstrumental.

Dois juristas de posições divergentes quanto ao critério corretivo das basesfederativas podem ser citados como vozes que assumem a deficiência oudeformidade federal no concernente à correção das desigualdades regionais. Fábio

11 A evolução econômica e social da humanidade dentro do ritmo vertiginoso daaceleração da História quebrou todos os ramos clássicos do direito, de modo queuma das grandes tarefas do jurista contemporâneo é estabelecer à nova e racionaldivisão (“autonomia”) didática do direito (BECKER, 1998, p. 35).

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Brum Goldschmidt e Paulo Bonavides são acordes na opinião negatória dofederalismo cooperativo. O primeiro apresenta uma solução calcada nacentralização administrativa, com orçamento único e competência impositivaconcentrada na União: “A competência impositiva tributária em nosso Estadopoderia ser entregue, na totalidade, à União, sem nenhum prejuízo, mantendo-senas mãos dos Estados a competência de administração (arrecadação e fiscalização),e aplicação das receitas tributárias” (GOLDSCHMIDT, 2000, p. 86).

Paulo Bonavides, com perfil mais tradicionalista, defende a construção deuma verdadeira federação das regiões, começa por pleitear “uma vontade políticaprópria, auto-determinativa, co-partícipe na formação do poder governante emâmbito nacional” (1996, p. 344). Justifica que “o pacto federativo inter-regional éo maior penhor da comunhão de nosso destino como povo e civilização [...] masnão basta regionalizar, urge também desenvolve” (BONAVIDES, 1996, p. 346).

Essa última afirmação do autor parece por em dúvida a capacidade do projetoregionalista, enquanto nova forma ou estrutura federativa, para gerar por si só odesenvolvimento; no entanto, a maneira recalcada da expressão se assenta noceticismo natural de todos os nacionais pensantes, que nada obstantes visionáriosde projetos viáveis, previnem-se quanto às meras reorganizações formalistas.Certamente influenciado pelos resultados obtidos com o cooperativismofederalista.

Nesse sentido, e incisivamente, anuncia a “morte do federalismo dasautonomias estaduais” (BONAVIDES, 1996, p. 398) e acusa o federalismocooperativo de eufemismo recorrente da velha ordem do federalismo dual. Ajustificativa peja opção do federalismo regionalista, de certa forma bucólica, inverbis: “por afigurar-se-nos uma alternativa- talvez a única - ao Estado unitário deasfixiante centralização” (BONAVIDES, 1996, p. 399).

Responde à cláusula pétrea do Art. 60, § 4°, I, da seguinte forma:

“[...] o que o texto imutável literalmente proíbe é abolir o regime republicano-federativo, coisa inteiramente distinta de transformá-Io ou alterá-Io, para ditar-lheaperfeiçoamento e acomodação a circunstâncias novas advenientes dos imperativossociais e econômicos de nossa época” (BONAVIDES, 1996, p. 400).

Na frente pragmática relembra que as tensões regionais entre Centro-Sul eNordeste, na ânsia de defender cada qual o seu interesse local compromete-se ointeresse nacional, e que a proposta da regionalização é realista e inovadora“realista, porquanto não deriva de uma teorização puramente abstrata, sem vínculocom os fatos e a realidade, ou seja, um mero devaneio de juristas e legisladoresociosos, senão que é a resultante de uma agregação espontânea de interesses,

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Reforma federalista e reengenharia tributária como pressupostos para a redução...

correspondentes a necessidades já identificadas com toda a clareza” (BONAVIDES,1996, p. 423).

O que se espera do direito contemporâneo é que seja versátil, haja vista que amera adaptação casuística e assistemática da norma ao contexto fático não ésinônimo de sua contextualização ao sistema jurídico. Para ser versátil o direitoprecisa atender simultânea e imediatamente a todo o conjunto de interesses,gerados e perenes, na realidade social.

Os mitos e medos não podem impedir a racionalização dos problemasconcretos; se não há como corrigir a federação-histórica brasileira, conferindo-lhe ideologia federativa exclusiva dos modelos centrípetos, tem-se que partir embusca de engenharias corretivas de problemas decorrentes: com isso talvez seconsiga construir no presente o modelo de um federalismo originalmente brasileiro.E, conseqüentemente, um Brasil com menos desigualdades sociais regionais oulocais.

6 CONCLUSÃO

O princípio constitucional federativo que impõe a redução das desigualdadesregionais estende suas raízes para o campo da ordem jurídico-econômicacompondo, juntamente com outros, o regime jurídico-econômico constitucionalnos termos do Art. 170 da Constituição Federal de 1988.

A positivação desta norma de estrutura se verifica, também, em nívelconstitucional, quando se assegura aos entes federados o direito ao exercício dascompetências tributárias para obter receitas tributárias (discriminação pela fonte)e à participação das receitas tributárias (distribuição da receita pelo produto)originárias de União (reparte com os Estado e Municípios) e dos Estados (repartecom os Municípios).

O reconhecimento constitucional da necessidade de redução das desigualdadesregionais, no entanto, não foi suficiente para que as regiões mais pobres do Brasiltenham suas realidades sócio-econômicas alteradas. Entre as causas prováveisdesta ineficácia estejam no modelo federativo desenhado na Constituição Federale que desde 1889 até o momento continua a expor uma estrutura centralizadorade poder econômico-tributário sustentador do poder político central da União.

O argumento da cláusula pétrea (Art.60, § 4º da CF/88) federativa não impedeanálise de propostas de alteração do modelo para adaptações às necessidades doequilíbrio regional pretendido. O que se proíbe é a eliminação da estrutura federal.Sendo assim, vale à pena considerar estudos de cientistas políticos, juristas, queapresentam alternativas, tais como o modelo de Paulo Bonavides, o da federação

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Aldimar Alves Vidal e Silva

das regiões, acompanhado de políticas públicas sócio-econômicasdesenvolvimentistas.

Insistentes propostas paliativas trazem alentos falsos. É preciso enfrentar amais provável causa das desigualdades regionais acima apontadas. Deve-se buscarum modelo federalista originalmente brasileiro. Neste sentido algunsreconhecimentos são necessários: a falsa afirmação da autonomia financeira dosentes federados; o descomedido poder do governo central fortalecido pelo podereconômico-tributário verificável tanto pela discriminação pela fonte como pelarepartição pelo produto; a possibilidade de alteração do modelo federal atualsem que signifique ofensa à claúsula pétrea; necessidade de priorizar edemocratizar as discussões dos gastos e investimentos públicos diante de evidentecrise sócio-econômica regional ou local.

REFERÊNCIAS

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 38. ed. São Paulo:lejus, 1998.

BONAVIDES, Paulo. A constituição aberta. São Paulo: Malheiros, 1996.

CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 20. ed. SãoPaulo: Malheiros, 2005.

GOLDSCHMIDT, Fábio Brum. Críticas à discriminação de rendas tributárias eà federação Brasileira. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, ano 8, n.35, p. 66-90, nov./dez. 2000.

NABAIS, José Casalta. O dever fundamenta! de pagar impostos. Coimbra: LivrariaAlmedina, 1998.

NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Tributo, gasto público e desigualdade social.Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, ano 12, n. 58, set./out. 2004.

SIlVA, José Afonso. Poder constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2002.

UKMAR, Victor. Princípios comuns de direito constitucional tributário. São Paulo:Malheiros, 1999.

VILANOVA, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos. São Paulo: Axis Mundi EditoraLtda, 2003.

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Os princípios econômicos constitucionais e a positivação pela lei de falências...

OS PRINCÍPIOS ECONÔMICOS CONSTITUCIONAIS E APOSITIVAÇÃO PELA LEI DE FALÊNCIAS E

RECUPERAÇÃO DAS EMPRESAS*

THE ECONOMIC CONSTITUCIONAL PRINCIPALS AND THEPOSITIVATION BY THE LAW OF BANKRUPTCIES AND

RECOVERY OF THE COMPANIES

Henrique Afonso Pipolo**

Resumo: A partir da inserção dos princípios e valores em umaConstituição (no caso brasileiro a Constituição Federal de 1988), todas asnormas constitucionais e infraconstitucionais produzidas na continuaçãodo processo legislativo, devem ser por eles pautadas. No caso da Lei n.11.101/05 denominada Lei de Falências e Recuperação das Empresas,tal orientação se observou, notadamente, diante dos seguintes princípiosque norteiam a ordem econômica: propriedade privada, função social dapropriedade e da empresa, livre concorrência, garantia do pleno emprego,suprimento das desigualdades regionais e sociais e tratamento diferenciadopara as pequenas e micro empresas. O objetivo de preservar empresaeconomicamente viável está exposto por meio da referida lei possibilitandodiante da realidade, efetivamente, vivenciar os efeitos do valor da funçãosocial que se irradia pela ordem jurídica brasileira, inclusive para o campoeconômico-constitucional. Este processo de positivação constrói um novopanorama no mundo dos negócios, na gestão e políticas empresarias.

Palavras-chave: Recuperação e Manutenção de Empresas (Lei n. 11.101/05). Positivação dos Princípios Constitucionais Econômicos. FunçãoSocial. Falência.

Abstract: From the insertion of the principles and values in a Constitution,all the constitutional rules and infraconstitutional must be said by them.In the case of the Law of Bankruptcies and Recovery of the Companies(Law n. 11.101/05), such orientation has been observed accurately, inreason of the following principles that surrounds the Economical Order:private property, social activity of the property and the company, free

* Artigo extraído da Dissertação de Mestrado, apresentado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Estadual de Londrina, tendo comoorientadora Profª Drª Marlene Kempfer Bassoli.

**Mestre em Direito Negocial pela UEL na área de Processo Civil, Advogado, Professor.

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Henrique Afonso Pipolo

competition, guarantee of the full job, suppliment of the regional andsocial inequalities and differentiated treatment for small and microcompanies. The main purpose of preserving the economically viablecompanies is exposed by such law enabling in reason of the reality,effectively, to see the effects of the value of the social activity thateradicates by the Brazilian Juridical Order, including for the economical-constitucional field. This process of positivation builds a new panoramain the world of business in the management of business politics.

Keywords: Recovery and Maintenance of Companies (Law n.11.101/05). Positivation of the Economic Constitucional Principles. SocialActivity. Bankruptcy.

1 INTRODUÇÃO

A Lei de Falências e Recuperação das Empresas (Lei n. 11.101/05) superou oantigo Decreto-Lei n. 7.661/45 e procurou adequar seu conteúdo e procedimentosao Código Civil de 2002 (Lei n. 10.406/02), de modo a positivar os ditames daordem econômica inserida na Constituição Federal de 1988.

A Teoria da Empresa, inserida no Código Civil, apresenta o empresário e aempresa como pedras angulares e o substrato para a interpretação das normasjurídicas reunidas no Direito Falimentar. De acordo com Arnold Wald (2003, p.854), as alterações trazidas pelo Código Civil de 2002, em relação às empresas eempresários, não acarretaram apenas mudança na terminologia. Para o referidoautor,

Não há dúvida de que, no particular, houve não só uma mudança de terminologia,mas uma substancial modernização das regras legais aplicadas às empresas e aoempresariado. Atendeu-se à evolução tecnológica, mas também à nova funçãoatribuída à empresa, que passou a exercer importante função social.

Sendo assim, verifica-se que as normas jurídicas reunidas no Direito Falimentartêm-se pautado no sentido de possibilitar a manutenção no mercado de empresasque enfrentam dificuldades financeiras, mas ainda viáveis, tendo em vista aimportância do seu papel e função social.

A modificação da Lei de Falências, tão almejada por credores, por empresáriose pela sociedade, positivou os princípios constitucionais econômicos. Deve trazerboas perspectivas para a coletividade e para o trabalhador, pois a empresa,autorizada a permanecer em funcionamento, possibilita cumprir sua função social;cria condições de manutenção do emprego; preserva o exercício da livreconcorrência, e proporciona um ambiente para o desenvolvimento regional. Além

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do tratamento diferenciado no procedimento da Recuperação para micro epequenas empresas, também positiva, em relação à falência, o princípioconstitucional da celeridade processual. Isso porque permite uma maior agilidadena realização dos ativos do falido, proporcionando pagamento mais rápido aoscredores.

2 A LEI FALIMENTAR E DE RECUPERAÇÃO DAS EMPRESAS

O conjunto de dispositivos da Nova Lei de Falências (NLF) forma um todode natureza mista, contando com normas de direito material e adjetivo. Apesarde levar o epíteto “Lei de Falências”, como herança do Decreto-Lei n. 7.661/45,o objetivo da legislação atual é evitar, o quanto possível, a decretação da quebra.Para cumprir esse desiderato o novo texto apresenta várias alternativas judiciaise extrajudiciais de recuperação das empresas, em estado de insolvência iminente,com a participação direta dos credores, e sob a fiscalização do administradorjudicial e do Poder Judiciário.

Inspirada no capítulo 11 da Lei de Falências dos Estados Unidos1, a nova Leide Falências brasileira não diz respeito apenas às empresas em estado deinsolvência. Repercute, também, diretamente sobre a administração das empresassaudáveis e em funcionamento e das pessoas que com ela se relacionam, comosócios, gestores, funcionários, fornecedores, clientes, investidores, parceiros, eprincipalmente o Estado.

Destaca-se a função social que hoje a atividade empresarial exerce, responsávelpela geração de riquezas, criação de empregos e renda, contribuindo para odesenvolvimento econômico e social do país. Depois de esgotadas muitaspossibilidades, a falência deve ser decretada. Assim, caberia epíteto melhor ànova legislação: “Lei de Recuperação Empresarial”.

No Brasil, ressalta-se que a nova lei pautou-se pelos mesmos interesses eobjetivos dos sistemas que são utilizados em outros países. Existem dois tipos deprocedimentos para recuperar a empresa: um judicial, onde o devedor, cumpridosos requisitos legais, apresenta seu plano de recuperação em juízo e, após aaprovação pelos credores, o juiz concederá a recuperação judicial; e outro

1 Os Estados Unidos da América regulam a recuperação da empresa no Capítulo 11 doBankruptcy Code. A legislação permite que o devedor continue na administração daempresa, sendo possível uma negociação entre os credores e o devedor em dificuldades,de forma que a solução encontrada por eles será respeitada pelo Judiciário, sendo queeste somente intervirá se houver desequilíbrio entre os diferentes credores.

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extrajudicial, onde o devedor apresenta o plano aos credores extrajudicialmentee, uma vez aceito, poderá ser apresentado em juízo para homologação.

3 REGIME JURÍDICO POSITIVADO PARA LEI DE FALÊNCIAS ERECUPERAÇÃO DA EMPRESA

A Lei n. 11.101/05 positiva o regime jurídico para os procedimentos daFalência e da Recuperação das empresas, apresentando princípios e regrasespecíficas. Os princípios que fundamentam a Lei de Falência e Recuperação daEmpresa estão voltados para a busca de soluções rápidas da crise e para a mantençada atividade empresarial. Quer-se viabilizar a tendência crescente do sistemalegislativo e judiciário brasileiro de desburocratizar rotinas, simplificar e acelerarprocedimentos, sem comprometer o formalismo necessário e inerente àjuridicidade.

Para alcançar tais propósitos, referido regime jurídico das empresas em situaçãode falência ou recuperação é composto por vários princípios, dentre eles: o dapreservação da empresa; da recuperação da empresa; da proteção aostrabalhadores; da celeridade e eficiência dos processos judiciais; da participaçãodos credores; e da valorização dos ativos do falido.

4 RECUPERAÇÃO EMPRESARIAL

A Lei n. 11.101/05 (Lei de Falência e Recuperação Empresarial – LFR)trouxe o instituto da recuperação (judicial ou extrajudicial) em substituição àantiga concordata. Objetivou o legislador, ao máximo, proteger o empresário deuma possível decretação de falência, pois criou mecanismos para que umasociedade empresária ou firma individual possa superar uma crise econômico-financeira que momentaneamente esteja passando.

Através do instituto da recuperação é possível manter em funcionamento aempresa devedora preservando a manutenção da fonte produtora, o emprego e ointeresse dos credores. Isso porque a função social da empresa passou a sertutelada pelo ordenamento jurídico pátrio de forma mais agressiva e evidente,adequando a situação pretérita de individualidade aos anseios sociais da atualidade.

Em tempos onde o Estado não é capaz de cumprir com todas as suasresponsabilidades mínimas, tenta-se transferir, para o particular, um pouco dessasresponsabilidades. Visualizando nas empresas uma fonte de produção de riquezasque pode contribuir, em muito, com o desenvolvimento social, sentiu o legisladora necessidade de proteger um pouco mais o empresário que, por motivos variados,passar por momentânea crise econômico-financeira. Destarte, criou mecanismos

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para que o empresário saia dessa situação de penúria vale dizer a recuperaçãojudicial e extrajudicial.

O Art. 47 da LFR traz os objetivos da recuperação judicial: viabilizar asuperação da situação de crise econômico-financeira do devedor; manutenção dafonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores;promover a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividadeeconômica.

A recuperação da empresa pressupõe um “acordo” com os credores. Narecuperação extrajudicial o devedor, conhecedor de suas dificuldades e preenchidosos requisitos legais (Art. 161 c/c 48 da LFR), convoca seus credores para que semanifestem sobre uma proposta (plano) de recuperação. Uma vez aceito o plano(mínimo de 3/5 dos credores de cada classe), o juiz homologará o plano paraque surta seus efeitos.

Na recuperação judicial, uma vez cumpridos os requisitos legais (Art. 48 daLFR), o juiz deferirá o processamento da recuperação, devendo o devedorapresentar, em 60 dias da publicação do deferimento (Art. 53 da LFR), o planopara recuperação. Não havendo impugnação de qualquer credor em 30 dias, ojuiz concederá a recuperação (Art. 58 da LFR). Caso exista impugnação, o juizconvocará a assembléia de credores que deverá se manifestar sobre o planoapresentado. Aprovado o plano, o juiz concederá a recuperação e, caso contrário,decretará a falência do devedor (Art. 56, §4º da LFR), salvo a exceção do Art.58,§1º da LFR (onde o juiz, mesmo diante da rejeição do plano pela assembléia doscredores e se constatada a presença dos requisitos deste artigo, poderá concedera recuperação).

É certo que nem todas as dívidas da empresa serão englobadas no plano derecuperação, como, por exemplo, os tributários. Cuida-se de grande oportunidadepara que o empresário possa reorganizar e reordenar sua atividade e sua situaçãoeconômico-financeira e superar a crise instalada. Não há uma unanimidade nadoutrina em relação ao modelo de recuperação apresentado na Lei atual. FábioUlhoa Coelho (2005, p. 116) entende que a recuperação das empresas deveria serrealizada no âmbito do próprio mercado inicialmente, sem qualquer intervençãodo Estado (Poder Judiciário). Isso se daria através de investimentos a serem realizadospor empreendedores ou investidores que vislumbrassem naquela empresa - emdificuldade - uma certa viabilidade na continuação de suas atividades. Se nãohouvesse tal interesse pelo próprio mercado, a saída seria a falência. Para ele,

[...] a recuperação da empresa não deve ser vista como um valor jurídico a ser buscadoa qualquer custo. Pelo contrário, as más empresas devem falir para que as boas nãose prejudiquem. Quando o aparato estatal é utilizado para garantir a permanência da

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empresas insolventes inviáveis, opera-se uma inversão inaceitável: o risco da atividadeempresarial transfere-se do empresário para os seus credores.

Se as estruturas do livre mercado estão, em termos gerais, funcionando de modoadequado, as empresas em crise tendem a recuperar-se por iniciativa deempreendedores e investidores, que identificam nelas, apesar do estado crítico, umaalternativa de investimento atraente.

Referido autor afirma que, em algumas situações, o mercado não conseguiriarecuperar a empresa não pelo fato de ser ela um péssimo investimento, masporque não se chega a um acordo em relação ao preço que o investidor querpagar e o preço que o empresário quer receber. Diante desta situação, FábioUlhoa Coelho (2005, p. 119) aceita a intervenção do Estado (Poder Judiciário),mas apenas para garantir o regular funcionamento das estruturas do livre mercado.A solução para o caso não seria atribuição do juiz, mas simplesmente deveriaafastar os obstáculos para que o mercado possa atuar de forma regular.

Não se nega que a lei de recuperação das empresas e seus procedimentospossuem algumas imperfeições, merecendo algumas alterações. No entanto, umgrande passo foi dado para que se mantenha em funcionamento a empresa queestá passando por dificuldades econômico-financeiras, preservando-se o empregoe a força produtiva beneficiando a sociedade, o Estado e os próprios credores.

5 DA FALÊNCIA: CONSIDERAÇÕES E OBJETIVOS ATUAIS

Os objetivos atuais da atual lei de falência são diversos daqueles que norteavamo antigo Decreto-Lei n. 7.661/45. A mudança de rumos ocorreu por váriosmotivos. A importância da função social da empresa na sociedade contemporâneae a evolução do Direito Comercial (empresarial) brasileiro que tomou por base aTeoria da Empresa.

O Decreto-Lei apresentava, como principal objetivo da falência, a defesa dosinteresses dos credores, predominando sobre qualquer outro. “Seu enfoquepreferencialmente projetivo do crédito público e dos interesses dos credoresinsatisfeitos expunha um processo falimentar inconseqüente [...]” (FAZZIOJÚNIOR, 2005, p. 18). Tais fatores contribuíam para que o procedimento dafalência tivesse sua natureza desvirtuada. Buscava-se mais a cobrança de umcrédito do que propriamente a decretação de falência do devedor.

Os credores iniciavam um processo de falência contra o devedor para coagi-lo a pagar dívidas que estavam vencidas e ainda não liquidadas. A impontualidadeinjustificada do devedor, por qualquer valor, era um dos fundamentos que motivavamo início do procedimento falimentar e, em muitos casos, a decretação da falência.

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Uma vez ajuizada a ação falimentar, o devedor, na antiga lei, não tinhamuitas alternativas para livrar-se daquela situação incômoda de ter, diante de si,a possibilidade da “quebra”. Coagido pela situação, não restava outra saída aodevedor que objetivava continuar com seus negócios, senão depositar a quantiadevida e elidir a decretação da falência.

A sistemática anterior dava condições para que uma empresa tivesse sua falênciadecretada por uma dívida de R$ 1.000,00 (um mil reais), por exemplo. Não haviaqualquer fixação de valores mínimos para que a falência pudesse ser decretada.Isso fez com que o volume de ações ajuizadas dessa natureza atingisse patamareselevados.

Tal situação passou a incomodar os empresários, sendo que o Poder Judiciário,percebendo tal objetivo desvirtuado do credor (transformar a ação de falênciaem cobrança), começou a agir de forma a tentar, ao máximo, um acordo entre aspartes para que a sentença de “quebra” não fosse proferida. Tentava-se, de todaa forma, a manutenção da empresa. Nem sempre o credor tinha sucesso na suaempreitada. Inúmeros foram os casos onde o credor ajuizou o pedido de falênciaobjetivando apenas coagir o devedor a efetuar o pagamento do débito e foisurpreendido pelo não pagamento, tendo como conseqüência a falência decretada.Não poderia ser pior, pois a falência da sociedade empresária colocava, na grandemaioria das vezes, uma pá de cal em qualquer possibilidade de o credor recebero crédito, seja total, seja parcial.

A Lei n. 11.101/05 mudou tal panorama. Restou estabelecido, no Art. 94,inciso I, um valor mínimo de crédito para que a falência possa ser decretada2.Somente créditos com valor superior a 40 (quarenta) salários mínimos na data dopedido de falência é que poderá ensejar a decretação da “quebra” do empresário.

Constata-se que a legislação procurou fazer com que o processo de falênciasomente fosse manejado por credores que fossem titulares de um crédito devalor relevante. O interesse do credor de receber um crédito inferior a 40 saláriosmínimos deve ser buscado através de processo de cobrança ou execução.

O volume de pedidos de falência ajuizados nos últimos meses caiudrasticamente3. A partir do início de vigência da Lei n. 11.101/2005 que ocorreu

2 Art. 94. Será decretada a falência do devedor que: I – sem relevante razão de direito,não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivosprotestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários mínimos nadata do pedido de falência.

3 Segundo estudos divulgados pelo SERASA, o volume de falências decretadas e falênciasrequeridas apresentaram queda significativa em fevereiro. No mês foram decretadas

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Henrique Afonso Pipolo

118 falências, um recuo de 43,5% sobre o mesmo mês do ano anterior - conformenota do Valor Online. Em fevereiro de 2005, foram 209 falências decretadas. Já asfalências requeridas apresentaram queda de 62,6% no segundo mês do ano, comparadoao mesmo período de 2005. Foram requeridas 317 falências contra 847 no ano passado.No bimestre, a queda nos requerimentos foi de 66,7%. De 1.879 eventos registradosem 2005 passou-se para 626 em 2006. Notícia publicada no site <http://pegntv.globo.com/Pegn/0,6993,VVP0-2659-224017,00.html>. Acesso em: 23 mar. 2006.

4 Art. 140. A alienação dos bens será realizada de uma das seguintes formas, observadaa seguinte ordem de preferência:

I – alienação da empresa, com a venda de seus estabelecimentos em bloco;II – alienação da empresa, com a venda de suas filiais ou unidades produtivasisoladamente;III – alienação em bloco dos bens que integram cada um dos estabelecimentos dodevedor;IV – alienação dos bens individualmente considerados.

em 09 de junho de 2005, a falência passou a ser um instrumento jurídicomanejado de forma mais racional, de forma que deixou de ser um meio decoação para recebimento de pequenas quantias.

Não se maneja mais, atualmente, o processo de falência como meio de coagiro devedor a saldar a dívida, mas efetivamente liquidar a sociedade empresária oua firma individual, de forma a valorizar os ativos do devedor para que os credorespossam ver seus interesses satisfeitos.

O Art. 75 da LFR delimita os objetivos específicos e que devem ser perseguidosno procedimento da falência: “preservar e otimizar a utilização produtiva dosbens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa”. Paraalcançar essa meta há autorização legal para o afastamento do devedor de suasatividades. A medida tem por finalidade preservar e otimizar a utilização dosbens da empresa, de forma que esta possa, inclusive, permanecer no mercado.

Confirma-se essa interpretação diante do regramento legal para realizar oativo do devedor que traz, em primeiro lugar, a alienação da empresa, com avenda de seus estabelecimentos em bloco, a teor do Art. 140, I, da LFR4

Art. 140. A alienação dos bens será realizada de uma das seguintes formas, observadaa seguinte ordem de preferência:I – alienação da empresa, com a venda de seus estabelecimentos em bloco;

Segundo Waldo Fazzio Júnior (2005, p. 351), “realizar o ativo, em regra,consiste em converter os bens do devedor em dinheiro, para pagamento de seupassivo”.

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Os princípios econômicos constitucionais e a positivação pela lei de falências...

O rol apresentado pelo legislador para realização do ativo é meramenteexemplificativo, pois o Art. 1455 da mesma Lei apresenta a possibilidade de outrasformas de realização do ativo serem aceitas, desde que aprovadas pela assembléiageral de credores. Pode-se contemplar, como meio de realização do ativo, porexemplo, a formação de sociedade ou cooperativa dos funcionários6 do própriodevedor ou sociedade entre os credores para que possam adquirir a empresa.

Conclui-se que a alienação da empresa, no todo ou em parte, é a principalforma que a lei apresenta para realização do ativo do devedor. Somente se aempresa não vier a ser negociada é que os bens serão vendidos de forma individual.Demonstrado está que os meios de realização do ativo permitem à empresacontinuar exercendo seu papel na sociedade. Daí a importância de não se confundira empresa com a sociedade empresária. Esta é quem vai sofrer os efeitos dafalência, pois ela é quem pode ser rotulada como o sujeito da atividade empresarial.A empresa, considerada como o objeto da sociedade empresária, pode desprender-se desta.

A própria lei apresenta mecanismos para que o adquirente da “empresa” nãotenha qualquer vinculação com as obrigações da sociedade falida. Isso quer dizerque todas as obrigações do falido permanecem com a sociedade empresária ouempresário individual que sofreram o processo de falência. Não há qualquersucessão de obrigações, a teor do Art. 141, II da LFR7.

Ressalta-se que em algumas situações o dispositivo mencionado não se aplica.É o caso do próprio sócio da sociedade falida, ou sociedade controlada pelofalido adquirir a empresa. Nessa situação, ocorre a sucessão de obrigações. Asexceções constam do Art. 141, § 1º da LFR.

5 Art. 145. O juiz homologará qualquer outra modalidade de realização do ativo, desdeque aprovada pela assembléia geral dos credores, inclusive com a constituição desociedade de credores ou dos empregados do próprio devedor, com a participação, senecessária, dos atuais sócios ou terceiros.

6 Aos funcionários, inclusive, é permitida a utilização dos seus créditos derivados dalegislação do trabalho para a aquisição ou arrendamento da empresa, a teor do art.145, § 2o da Lei de Falência.

7 Art. 141. Na alienação conjunta ou separada de ativos, inclusive da empresa ou de suasfiliais, promovida sob qualquer das modalidades de que trata este artigo:

I – [...] II – o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do

arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadasda legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho.

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A inexistência de sucessão entre o empresário falido e a empresa, torna aaquisição desta mais atrativa ao mercado, pois eventuais investidores passam ater uma situação definida em relação às suas obrigações, permitindo uminvestimento com menor risco.

Fábio Ulhoa Coelho (2005, p. 141-142) manifesta-se no sentido de que “se oadquirente da empresa anteriormente explorada pela falida tiver de honrar todasas dívidas dessa, é evidente que menos empresários terão interesse no negócio.Aliás, é provável que a própria alienação da empresa se inviabilize [...]”.

As possibilidades de uma venda por um preço considerável são maiores, sendoque, caso o negócio seja implementado, os credores terão evidentes benefícios,pois as chances de recebimento do que lhes é devido tornam-se mais concretas.Essa nova ordem traz no seu bojo a positivação de vários princípios do regimejurídico-constitucional econômico.

6 O REGIME JURÍDICO ECONÔMICO-CONSTITUCIONAL E SUAPOSITIVAÇÃO NA LEI DE FALÊNCIAS E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS

O texto da Lei 11.101/05 traça alguns objetivos para os institutos da falênciae da recuperação de empresas, que tornam possíveis a afirmação de que algunsprincípios do regime jurídico econômico-constitucional estão sendo positivadospela referida lei. É o caso, por exemplo, da recuperação judicial, que tem porobjetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira dodevedor. Quer-se manter a fonte produtora, o emprego dos trabalhadores e dosinteresses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua funçãosocial e o estímulo à atividade econômica.

No que se refere ao instituto da falência, verifica-se que os objetivos elencadosno texto da Lei 11.101/05, notadamente a possibilidade de alienação total daempresa por ofertas atrativas, de forma que o credor possa ter maiorespossibilidades de receber aquilo que lhe é devido, confirmam a afirmação acimade que a nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas está positivandocertos princípios do regime jurídico econômico-constitucional, dentre os quaispode-se apontar a função social da empresa, livre concorrência, redução dasdesigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego e a celeridadeprocessual.

6.1 Recuperação da Empresa como Vetor de Desenvolvimento Econômicoe Social

A busca pela preservação da empresa estampada na Lei de Recuperação permiteo desenvolvimento tanto econômico de uma sociedade, como também pode

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contribuir para a superação das desigualdades regionais e sociais. Se ao invés derecuperar-se, a empresa fechar suas portas ou até mesmo falir, vários serão osefeitos negativos. Isso porque há regiões que são mantidas por duas ou trêsempresas de grande porte, representando uma alta arrecadação de impostos egrande quantidade de empregos.

Se essas empresas forem acometidas por uma crise econômico-financeira háum grande risco de que toda a cadeia produtiva que é sustentada por elas sejaatingida, acarretando uma desestabilização de graves conseqüências. “O princípioda redução das desigualdades regionais e sociais” encontra sua efetivação na leide recuperação das empresas. A manutenção da empresa garante a circulação deriquezas, melhorando a vida da população que depende dela para sobrevivência.

6.2 Positivação do Tratamento Especial para as Microempresas e Empresasde Pequeno Porte na Lei de Falências e Recuperação de Empresas

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em seu Art. 170, inciso IX e Art.179 a obrigatoriedade de tratamento diferenciado (favorecido), por parte doEstado, em relação à microempresa e empresa de pequeno porte, de forma acriar condições para que tais empresas possam permanecer no mercado.

Fábio Nusdeo (1995, p. 205) defende o “princípio da preservação da empresa”.Para ele, “o princípio geral é o de não ser aceitável a norma cuja aplicação impliqueprejuízo para o grosso das empresas do setor ou para aquelas com estrutura decustos pelo menos não mais elevada do que a média”. E o grosso das empresasno Brasil é representado pelas micro e pequenas empresas.

Os benefícios dispensados à microempresa e à empresa de pequeno porte sãode ordem creditícia, tributária, administrativa e previdenciária. Somando-se a taisbenefícios, o legislador constituinte também determinou que a essas empresasfosse dado tratamento diferenciado na esfera judicial.

A Lei n. 11.101/2005 apresenta tratamento específico para o processamentoda recuperação das microempresas e empresas de pequeno porte, positivando oquanto previsto nos Arts. 170 IX e 179 da Constituição Federal. Ressalta-se quesomente as sociedades qualificadas como micro ou pequenas empresas é quepoderão beneficiar-se do regramento diferenciado estabelecido nos Arts. 70 a 72da LFR.

As vantagens são percebidas no processamento da recuperação da empresa,pois será muito mais simplificado. No procedimento das micro e pequenasempresas, ao contrário do que ocorre no procedimento das demais empresas,não há necessidade de deliberação em assembléia geral de credores acerca doplano especial formulado nos termos do Art. 72 e, uma vez cumpridas àsformalidades pertinentes, o juiz concederá a recuperação.

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A Lei n. 11.101/05 não representou apenas vantagens para as referidas empresasquando positivou o aduzido princípio constitucional de proteção à empresamicro ou de pequeno porte. Isso porque os valores representados nos princípioseconômico-constitucionais, muitas vezes, não são totalmente observados ouefetivados.

Em que pese o procedimento mais simples e célere apresentado, não permiteque todas as dívidas do micro ou pequeno empresário sejam submetidas ao planode recuperação. Somente os credores quirografários é que serão atingidos (Art.71, I). Todos os outros créditos (trabalhistas, tributários, com garantias, etc) sãomantidos da mesma forma, vale dizer, os credores continuam com o direito decobrá-los de acordo com a lei.

De qualquer sorte, mesmo diante do quadro acima, não se pode negar queem casos onde o passivo da micro ou pequena empresa é representado, em suamaior parte, por dívidas quirografárias, o procedimento especial garantido pelaLei n. 11.101/2005 tem seus méritos.

6.3 A Positivação da Função Social da Empresa Através da Realização doAtivo do Falido

A Lei de Falência, ao permitir que a empresa seja adquirida como um todopor um investidor ou outro empresário para a realização do ativo do falido,coroou o princípio da “função social da empresa”. Deixou de ser vista apenascomo uma organização privada, que proporcionava benefícios apenas para poucos,para ultrapassar os muros dos interesses exclusivamente individuais, de forma abeneficiar toda a coletividade com uma vida digna, de acordo com os ditames dajustiça social.

Sobre a função social da empresa, devem-se ressaltar os ensinamentos deWaldírio Bulgarelli (1985, p. 267-8):

É natural que, como centro polarizador da atividade econômica moderna já chamadade célula-mater da economia em nossos tempos, convergisse para a empresa umavariada gama de interesses, dizendo respeito aos trabalhadores, aos credores, aoEstado (quer na sua função mais mesquinha de arrecadador de impostos, quer comoincentivador das atividades produtoras quer ainda como intérprete das aspiraçõespopulares ou do bem público), aos sócios ou acionistas em relação ao empresáriocoletivo; aos consumidores, à comunidade, etc.

É sem dúvida que a regulação ou a proteção desses interesses chega a extravasar aárea delimitada do Direito Comercial indo a alcançar outros ramos do Direito. Eranatural também que se acrescessem os deveres da empresa para com a sociedade e

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conseqüentemente a sua responsabilidade, ficando-se autorizado a conferir-lhe, porisso, uma função social conseqüente com a idéia natural de bem público.

A função social da empresa poderia ser considerada como certa limitação aoexercício dos direitos de propriedade, sendo que a aquisição em bloco da empresafaz com que o novo empresário, ao reorganizar os fatores de produção da empresaadquirida, o faça de forma, também, para atender aos interesses da coletividade.O valor da função social persegue a propriedade com quem quer que ela esteja.

6.4 A Realização da Proteção do Emprego no Procedimento Falimentar

O “princípio da busca do pleno emprego”, constante do Art. 170, incisoVIII, da CF, também pode ser visualizado no texto falimentar. Ao manter-seuma empresa no mercado, mesmo tendo a sociedade empresária que a exerciafalido, permite-se que a força de trabalho daquela atividade continue na ativa.

A idéia do “pleno emprego” foi conceituada com propriedade por José Afonsoda Silva (1990, p. 667-8). Para ele,

Pleno emprego é expressão abrangente da utilização ao máximo grau de todos osrecursos produtivos. Mas aparece, no art. 170, VIII, especialmente no sentido depropiciar trabalho a todos quantos estejam em condições de exercer uma atividadeprodutiva. Trata-se do pleno emprego da força de trabalho capaz.

Ao permitir que a empresa continue sua atividade, mediante a aquisição poroutro empresário ou investidor, sem haver qualquer sucessão ou responsabilidadedo novo empresário em relação às dívidas ou obrigações trabalhistas deixadaspelo falido, a norma jurídica vigente permite a recontratação do empregado.Cria-se uma oportunidade para que postos de trabalho sejam mantidos, mesmodiante da falência do empresário que dirigia aquela mão-de-obra.

Outro ponto da Lei de Falência que permite a manutenção do emprego é arealização do ativo pela formação de uma sociedade ou cooperativa dostrabalhadores da falida para adquirirem a empresa e continuarem com as atividadessociais. Essa possibilidade vai ao encontro do quanto estabelecido no Art. 174, §2o da Constituição Federal. Referido dispositivo estabelece que “a lei apoiará eestimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo”. Para a consecuçãodestes objetivos os funcionários podem utilizar-se de seus créditos derivados dalegislação do trabalho para a aquisição ou arrendamento da empresa (Art. 145, §2o da LFR).

Buscou o legislador, portanto, uma das possíveis positivações do princípio dopleno emprego e do cooperativismo, de forma a proteger toda a classe trabalhadoraque poderia ser dispensada e ficar na “fila do emprego” após a falência do devedorempresário.

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6.5 A Manutenção da Empresa do Falido como Meio de Realização daRedução das Desigualdades Regionais e Sociais

A busca pela redução das desigualdades regionais e sociais não pode ser tidaapenas como um dos objetivos da República Federativa do Brasil (Art. 3º, incisoIII), pois também baliza o desenvolvimento da atividade econômica (Art. 170,inciso VII). Para que se tenha um desenvolvimento econômico em determinadasregiões menos favorecidas, resta necessária a devida circulação de riquezas. Istose dá de várias formas, sendo que o desenvolvimento, pela iniciativa privada, deatividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou deserviços é a principal.

Sobre o princípio da redução das desigualdades regionais e sociais AméricoLuis Martins da Silva (2003, p. 166), faz a seguinte observação:

Tratando-se de um sistema capitalista, parece-nos que a intenção do legisladorconstituinte brasileiro, ao elevar a redução das desigualdades sociais a princípio daordem econômica, é de orientar a intervenção do Estado na economia no sentidode melhor distribuir a riqueza ou renda nacional, para se proporcionar um aumentono nível de vida, de consciência, de educação e de cultura das camadas inferiores dapopulação, assegurando a cada membro o mínimo de que ele carece, individual esocialmente, para viver condignamente.

O empresário, ao exercer sua atividade, atinge toda a cadeia produtiva, deforma que os fornecedores de matéria-prima, materiais de mero expediente,marketing, etc, dependem dessa atividade para também manterem seus negóciose, a cada dia, ser expandido. Isto faz com que a circulação de riquezas ocorra.Ademais, ao manter a força de trabalho empregada, o empresário mantémconsumidores em potencial, sendo que todo o comércio daquela região tambémserá beneficiado.

Com a possibilidade de a empresa permanecer no mercado, mesmo após afalência, mas agora sob nova administração, cria-se o ambiente perfeito para odesenvolvimento econômico e social da região onde o empresário que irá exercera empresa esteja instalado. Mais uma vez prova-se a relevância do quanto dispostona lei falimentar sobre a aquisição da empresa como um todo, desvinculando-ada sociedade empresária ou do empresário falido que a exercia.

6.6 A Manutenção da Empresa como Forma de Preservação da LivreConcorrência

A livre concorrência, princípio que orienta não apenas a ordem econômicaconstitucional brasileira (Art. 170, inciso IV), mas também o ideal capitalistapode ser visualizado na Lei de Falência.

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Por meio das regras que compõem a livre concorrência busca-se dar acesso egarantir a todos permanência no mercado. Tratando deste tema Tércio SampaioFerraz Júnior, citado por Eros Roberto Grau (2005, p. 210) afirma que “de umponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais atodos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração do poder”. Traduz aidéia de competitividade.

A Lei de Falência, ao permitir a preservação da empresa quando da realizaçãodo ativo, possibilitou que a atividade desenvolvida para a produção ou circulaçãode um tipo de bem ou um serviço específico fosse preservada, de forma a fomentara concorrência entre os vários empresários do mesmo ramo.

Ao adquirir a empresa, o arrematante tem condições de novamente inseri-lano mercado, fazendo com que ela seja mais um elemento a participar da guerrasaudável entre os segmentos da mesma natureza na busca por novos mercadosconsumidores ou, até mesmo, aumentar o número de consumidores que já possui.

Comprova-se que o princípio da livre concorrência a até mesmo a proteçãodos direitos do consumidor foram contemplados na Lei de Falência, mesmo quede forma não tão explícita.

7 DA CELERIDADE E EFETIVIDADE PROCESSUAL E OPROCEDIMENTO DA FALÊNCIA

O processo civil, na sua atual fase de instrumentalidade, deve ser visto comoum meio de se atingir os objetivos políticos, jurídicos, econômicos e sociais quea sociedade reclama. Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 257) afirma que “talé o momento atual da ciência do processo civil-fase instrumentalista ou teleológica– em que se tem por indispensável definir os objetivos com os quais o Estadoexerce a jurisdição, como premissa necessária ao estabelecimento de técnicasadequadas e convenientes”.

A sociedade, já exausta de tantas vezes buscar o reconhecimento de um direitoseu através de um processo lento, burocrático, ineficiente, muitas vezes, eextremamente caro, clama por soluções imediatas. Segundo Olavo de OliveiraNeto (2000, p. 100-1),

[...] nas últimas décadas aconteceu uma verdadeira revolução nos costumes e formade organização social. A evolução das sociedades de massa levou um grande númerode indivíduos a postular melhores condições de vida e, com esse anseio de umasociedade mais igualitária e harmoniosa, veio também o anseio de se obter do Estadouma prestação jurisdicional eficiente. [...] Não bastava, todavia, a elaboração de novasleis, ampliando a possibilidade de defesa de direitos afirmados violados, se o sistemacontinuava, e continua moroso e ineficaz. Mister se fez, então, uma tomada de posição

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no tocante à agilização de todo o sistema processual, que desabrochou no tema“efetividade do processo”, hoje tão discutido e prestigiado.

O processo civil tomou novos rumos, sendo que a efetividade e celeridade daprestação jurisdicional passaram a ter uma conotação de princípios, sendo inclusiveelevados à condição constitucional. A Emenda Constitucional nº. 45, de 30 dedezembro de 2004, instituiu no Art. 5º da Constituição Federal, o inciso LXXVIII,e estabeleceu que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são asseguradosa razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de suatramitação”. Por razoável, deve-se entender um processo, conforme afirma PauloHoffman (2006, p. 41), “sem dilações ou atos desnecessários, realizados da formamais rápida e eficaz e se e quando indispensáveis”.

Ainda, na visão de Hoffman (2006, p. 41),

não se pode, à custa de um processo mais célere, afrontar as garantias do devidoprocesso legal nem gerar insegurança para as partes, tampouco forçá-las a compor-se contra a vontade. Tanto é inaceitável um processo extremamente demorado côoaquele injustificavelmente rápido e precipitado, no qual não há tempo hábil paraprodução de provas e alegações das partes, com total cerceamento de defesa.

Há entendimentos de que o princípio da celeridade e o da economia processualderivam do princípio superior do acesso à justiça. Rita Dias Nolasco (2004, p.34) entende que “[...] o princípio do acesso à justiça é o centro, do qual irradiama assistência judiciária, o aumento dos poderes e deveres do juiz, a celeridade eefetividade do processo, etc”.

A reformulação do Decreto-Lei n. 7661/45 deveria contemplar um processofalimentar e de recuperação que atingisse os anseios da coletividade, notadamentedos credores, de se ter um procedimento mais célere, efetivo e menos custoso.Veio a Lei n. 11.101/05 contemplar, no Parágrafo único do Art. 75, o princípioda celeridade e economia processual. Referido dispositivo estabelece que “oprocesso de falência atenda aos princípios da celeridade e da economia processual”.A Lei de Falência apresenta dispositivos que podem acarretar certa celeridadeprocessual. É o que ocorre com os prazos, que são contínuos e peremptórios,não sofrendo suspensão em feriados, finais de semana ou férias forenses.

O Ministério Público não terá participação obrigatória em todos os feitos,pois o Art. 4º da Lei n. 11.101/05 que previa tal intervenção foi vetado peloPresidente da República. Tal fato acarreta considerável agilidade no procedimentofalimentar. Também, o fato de a lei estabelecer a possibilidade de uma empresaespecializada atuar como administradora judicial (figura do antigo síndico) poderáacarretar uma maior celeridade na prática dos atos processuais. Isso porque, na

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grande maioria das vezes, o síndico nomeado no procedimento do antigo Decreto-Lei n. 7661/45 não tinha grandes habilidades técnicas para desenvolver seutrabalho, acarretando maior demora na realização dos atos processuais.

Outra inovação que pode contribuir com a celeridade no procedimento dafalência está na realização do ativo. Permite-se a venda dos bens mesmo que oquadro de credores não esteja completo, de forma a tornar o procedimento maiságil, causando menos prejuízo aos credores, a teor do Art. 140, § 2º.

Em relação aos créditos trabalhistas, o Art. 151 da Lei autoriza que os créditostrabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos nos últimos três mesesanteriores à decretação da falência, devam ser pagos a cada trabalhador, até olimite de cinco salários mínimos para cada um, tão logo exista dinheiro em caixa.Isso possibilita que esses credores não tenham que esperar a realização total doativo para receber o mínimo para sua mantença, dando maior agilidade aorecebimento das verbas referidas.

Quanto à apuração dos crimes falimentares, constata-se que não há mais oinquérito em apenso aos autos de falência para apuração do delito. O MinistérioPúblico, verificando a ocorrência de qualquer crime falimentar, promoveráimediatamente a competente ação penal ou, se entender necessário, requisitará aabertura de inquérito policial, sendo competente o juiz criminal da jurisdição ondetenha sido decretada a falência, a teor dos Arts. 183 e 187 da Lei n. 11.101/05.

Apesar das inovações, à primeira vista tem-se a impressão de que oprocedimento tornou-se mais célere. Da leitura mais atenta do texto, no entanto,não se constata a agilidade desejada. Os procedimentos da atual da falência,principalmente em relação à primeira fase, que vai até a sentença que decreta afalência, ainda acarreta uma demora processual significativa. Isso por conta dosoutros princípios que orientam o processo civil brasileiro, como o contraditórioe ampla defesa. A matéria de defesa que pode ser discutida pelo devedor (art. 96,incisos de I a VIII), por exemplo, ampliou-se em relação ao procedimento anterior,sendo que tal fato contribui para uma demora maior no processo.

Outro ponto a ser destacado é o fato de que não há procedimento minuciosopara a falência, sendo que a maioria dos dispositivos do Código de Processo Civilé utilizada de forma subsidiária, ante o regramento mínimo da Lei de Falências.

Ao comentar o procedimento da falência trazido pela Lei n. 11.101/05, WaldoFazzio Júnior (2005, p. 244) afirma que:

[...] toda a matéria relativa à prova de defesa do devedor é regulada mediante aaplicação supletiva do estatuto instrumental civil, o que significa observar todas asnormas pertinentes à instrução probatória (documentos, testemunhas, vistorias,exames, etc) do processo ordinário. Na prática, os pedidos de falência com arrimona impontualidade e nos atos enumerados em lei poderão arrastar-se por longo

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tempo, na medida em que não se pode privar o devedor de realizar as provasnecessárias à demonstração de suas razões para não pagar.

Mesmo diante da inserção na Lei de Falência do princípio da celeridade eeconomia processual e das mudanças apresentadas, na prática não se vislumbra,pelo menos neste momento, consideráveis mudanças no que se refere à agilidadede tramitação em relação ao antigo Decreto. Poderia o legislador ter previsto, aomenos, prazos específicos para o término do processo de falência.

É certo que as normas que disciplinam a falência estão no ordenamento jurídicohá pouco tempo, sendo que não há uma estatística real para avaliar, de formaconcreta, o quanto o procedimento falimentar melhorou. Mesmo diante de algumamelhora, perdeu-se uma excelente oportunidade para realmente dar umasistemática eficaz e rápida aos processos falimentares, ou seja, um verdadeiroprocesso sumário.

8 CONCLUSÃO

Diante do estudo apresentado pode-se sublinhar:

1. O conteúdo econômico da Constituição brasileira de 1988 compõe umsubsistema, que se caracteriza como um regime jurídico-constitucionaleconômico. Indica valores e princípios elencados, principalmente, no Art.170 e incisos. Para esta pesquisa destaque-se a função social da propriedadeprivada e da empresa, da busca do pleno emprego, tratamento favorecidoa empresas de pequeno porte e microempresas, livre concorrência, tudo aconsagrar a finalidade da ordem econômica de assegurar existência digna,de acordo com os ditames da justiça social. Somando-se aos princípioscitados tem-se o da celeridade processual, consagrado no Art. 5o, incisoLXXVIII, da CF.

2. O Estado, por meio dos Órgãos Legislativo (elaborando as normas abstratase gerais inaugurais), Executivo (regulamentando e fiscalizando) e Judiciário(aplicando as leis ao caso concreto, de forma a resolver o conflitointersubjetivo), deve positivar os valores e princípios constitucionaiseconômicos. E assim o fez ao aprovar a Lei n. 11.101/2005 denominadade Lei de Recuperação das Empresas e Falência.

3. O Direito Comercial, que antes era fundado na Teoria dos atos de comércio,sofreu profundas transformações, principalmente na área empresarial.Passou a ser orientado por novos fundamentos denominados de Teoria daEmpresa, cujo modelo inicialmente idealizado na Itália e que deixou deter o comerciante e os atos de comércio como elementos centrais, passandoo empresário e a empresa a nortearem todas as relações empresariais.

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4. Influenciado por novos pressupostos o Código Civil Brasileiro de 2002,ao adotar a Teoria da Empresa, revogou toda a parte geral do CódigoComercial Brasileiro. Também orientou a elaboração da atual Lei deFalências e Recuperação das Empresas indicando que somente o empresáriopode ser sujeito de recuperação ou falência nos moldes legais.

5. Inovou-se, também, na ordem jurídica brasileira, pois é a primeira vez quese busca manter a empresa em atividade, em evidente benefício dacoletividade. È a positivação dos valores da função social da propriedadee da empresa, de forma a preservar o emprego e o desenvolvimento regionale social do local onde a empresa estiver instalada.

6. Mesmo tendo a Lei 11.101/05 garantindo tratamento diferenciado noprocedimento da Recuperação das micro ou pequenas empresas,positivando o princípio esculpido no art. 170, inciso IX da CF, críticas sãotecidas, pois abrangeu o referido plano de recuperação apenas os créditosquirografários, não contemplando os tributários, trabalhistas,previdenciários e com garantias reais. Ao deixar de fora tais créditos, pode-se inviabilizar a recuperação da empresa em dificuldade.

7. A atual Lei de Falência propicia a manutenção da empresa por meio darealização do ativo do devedor com a possibilidade da venda de seusestabelecimentos em bloco (Art. 140, I). A alienação com isenção deresponsabilidades do adquirente em relação às dívidas da sociedadeempresária falida é um dos atrativos mercadológicos.

8. A Lei de Falência, ao contemplar como forma de realização do ativo dofalido a venda da empresa como um todo (Art. 140, I), permite que a atividadedesenvolvida pela empresa continue. Possibilita-se, dessa forma, a convivênciade aspectos dos princípios constitucionais da busca do pleno emprego, dalivre concorrência e da redução das desigualdades regionais e sociais.

9. A busca pela celeridade processual fez com que o procedimento da falênciafosse alterado. A não intervenção do Ministério Público em todos osprocessos; o processamento de eventuais crimes falimentares em autosespecíficos, no juízo criminal competente, extirpando-se definitivamente oinquérito judicial que era obrigatório no Decreto-Lei revogado; a realizaçãodo ativo do falido sob a forma de alienação global da empresa fundamentauma agilidade processual.

10.Mesmo considerando alguns avanços em relação à celeridade doprocedimento da falência, constata-se que na prática tal rapidez não severificará. A inserção do princípio da celeridade processual, no parágrafoúnico do Art. 75 da Lei n. 11.101/05, não acarretará uma efetiva rapidezprocessual, ante as possibilidades de matérias a serem lançadas pelo devedor

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em sede de contestação. Toda a matéria probatória deverá obedecer aostrâmites do Código de Processo Civil, diante da falta de especificidadedo texto falimentar. Somando-se a isto, não há qualquer prazo legal paraque o processo de falência seja encerrado.

11. Poderia o legislador infraconstitucional, ante a oportunidade de modificartoda a sistemática processual do procedimento falimentar com a elaboraçãoda nova lei falimentar, ser extremamente tímido, pois teria apresentadoum procedimento sumário, com a efetiva concretização do princípioconstitucional da celeridade processual, hoje previsto no art. 5o, incisoLXXVIII da CF.

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A cláusula social na OMC

A CLÁUSULA SOCIAL NA OMC:POR UMA INTER-RELAÇÃO EFETIVA ENTRE OMC E OIT E O

RESPEITO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES

THE SOCIAL CLAUSE IN THE OMC:FOR A PERMANENT INTERRELATION BETWEEN OMC AND OITAND THE RESPECT TO THE BASIC RIGHTS OF THE WORKERS

Maria do Socorro Azevedo de Queiroz*

Resumo: A inclusão de cláusula social no âmbito da OMC, como formade eliminar condições de trabalho degradantes nos países emdesenvolvimento, é tema que vem sendo exaustivamente discutido dentrodas relações internacionais do comércio. Os países desenvolvidos acusamos países em desenvolvimento de “dumping social” e propugnam porrestrições no comércio internacional aos países que não consagram umpadrão mínimo de exigências para a classe trabalhadora. Os países emdesenvolvimento acusam os países desenvolvidos de se utilizarem dessediscurso apenas como forma de proteger seus mercados internos. Osargumentos de ambos são plausíveis, por isso, é necessário encontrar umtermo médio, que inter-relacione OIT e OMC no sentido de se protegeros trabalhadores envolvidos no processo de produção para o mercadointernacional, ao mesmo tempo, que impeça os países desenvolvidos dese aproveitarem da cláusula social para imporem barreiras protecionistas,prejudicando os países em desenvolvimento.

Palavras-chave: Cláusula social. Comércio internacional. Padrãotrabalhista. Inter-relação e princípios fundamentais.

Abstract: The inclusion of social clause in the scope of the OMC, asform to eliminate lower conditions of work in the developing countries,is subject that comes exhaustingly being argued inside of the internationalrelations of the commerce. The developed countries accuse the socialdeveloping countries with “dumping” and advocate for restrictions inthe international trade to the countries that do not consecrate a minimumstandard of requirements for the working class. The developing countriesaccuse the developed countries of waking use of this speech as form to

* Auditora-Fiscal do Trabalho, Professora do curso de Direito da NOVAFAPI-PI emestranda em Direitos Fundamentais na ULBRA-RS. email: [email protected].

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protect their domestic markets. The arguments of both are reasonable,therefore, it is necessary to find an term intermediate, that interrelatesOIT and OMC in the direction of protecting the involved workers in theprocess of production for the international market, at the same time, thatit hinders the developed countries of tanking advantage of the socialclause to impose protectionistic barriers, harming the developing countries.

Keywords: Social clause. Working standards. International trade.Interrelation. Basic principles.

1 INTRODUÇÃO

O tema apresentado vem de uma antiga discussão a respeito de uma justaconcorrência nas relações internacionais de comércio, muito mais do que umapreocupação direta com a classe trabalhadora envolvida na produção dos benslevados ao comércio internacional. Nesta Seara, apresenta-se a questão do padrãotrabalhista a ser adotado por todos os países que concorrem no comérciointernacional, como forma de tentar minorar as vantagens dos determinadospaíses, que possuem mão-de-obra abundante, os que estão em desenvolvimento,sobre os que mantêm um padrão mais elevado de direitos trabalhistas, os paísesdesenvolvidos, entre eles Japão, Estados Unidos e países da Europa continental.

Apresenta-se como referência histórica (REGIS, 1997), que as primeiraspreocupações com a padronização das questões trabalhistas vêm dasconseqüências da Revolução Industrial, séc. XIX, na Europa, quando a liberdadede contratar mão-de-obra sem qualquer intervenção estatal aviltava as condiçõesdos trabalhadores, com o objetivo de obter vantagens comerciais na relação dastrocas de manufaturas. Pressionados por movimentos da classe operária, que seorganizava em busca de melhores condições no ambiente de trabalho, melhoressalários, redução da jornada de trabalho, eliminação do trabalho infantil, reduçãodo trabalho da mulher e direitos de associação e greve, os países exigem que oavanço destas questões se desse de forma a abranger todos os países envolvidosno comércio internacional.

Nesse sentido, foi criada a Organização Internacional de Trabalho (OIT) –por iniciativa da Suíça, acompanhada da Alemanha, sendo os primeiros países alegislarem internamente sobre questões trabalhistas. Nesse sentido, era necessárioque as normas sobre trabalho fossem adotadas por todos os outros países, sobpena de prejuízos nas relações comerciais pelos os países que avançavam nestasquestões. Esse ponto central, de proteção dos trabalhadores e sua influência nocampo das relações internacionais de comércio, atravessou mais de um século e

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está presente ainda nas discussões da Organização internacional do Comércio -OMC.

O presente trabalho aborda, inicialmente, a dimensão social do liberalismo,mostrando que as questões sociais permeavam as idéias que deflagaram oliberalismo econômico e social, incluindo a necessidade de bem assalariar otrabalhador, até chegar ao paradigma do Estado Democrático de Direito. Após,abordaremos a criação da OIT e sua atuação presente na melhoria das condiçõesdos trabalhadores no mundo. Em seqüência, apresentaremos o histórico da OMCe as tentativas de inclusão do que se chama de cláusula social no âmbito dasregulações internacionais do comércio, bem como a possibilidade de inter-relacionar OIT e OMC, no sentido, não de estabelecer um padrão único a vigerem todos os países envolvidos nas trocas comerciais, mas como forma de eliminaras condições degradantes de trabalho, ainda existentes, principalmente em paísesem desenvolvimento, tais como trabalho escravo e infantil.

2 A VISÃO DO SOCIAL NAS IDÉIAS LIBERAIS E COMO A QUESTÃOCHEGA AO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Não é possível discorrer sobre comércio internacional e relações de trabalhosem situar o sujeito de direito ao longo da história, desde a formação do Estadomoderno. O Estado liberal surge como movimento de ruptura ao antigo regime,com suporte na concepção filosófica de que o homem é o fim de toda organizaçãopolítica, da sociedade e do direito. Essa concepção se estabelece a partir da lutapela tolerância religiosa e sobre as posições defendidas pelo jus-naturalismo, nossécs. XVII e XVIII, de formação das sociedades através de um contrato social.

A idéia de sociedade estatal convencional rompe com o pensamento clássico,do homem naturalmente social de Aristóteles, admitindo que não a natureza dohomem, mas sua vontade, que, reunidas, constituiu o Estado e este se constituipara garantir os direitos de liberdade propriedade, que os homens possuem aindano estado de natureza, mas que deles não gozam por completa desorganização eimpério da força individual.

Interessante notar, como se apresenta abaixo, que a formação do Estado liberalse apoiou em correntes do pensamento que defendiam os direitos de liberdade epropriedade, absolutamente, contra a interferência estatal, ao mesmo tempo emque não desconheciam a importância sobre a harmonia social desses direitos,nem sua dimensão moral e ética, podendo mesmo vislumbrar uma preocupaçãoquanto à dimensão social destes direitos, que não podiam ser invocados de formaabusiva e para prejudicar outras pessoas.

Na visão de Locke (1983), o acesso à propriedade se dava pelo trabalho.

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Assim afirma que a natureza determinou bem o tamanho da propriedade pelaquantidade de trabalho do homem e necessidade da vida. Nenhum trabalho podiadominar tudo ou de tudo apropriar-se. Já pregava a harmonização dos direitosindividuais com os sociais. Outro pensador que inspirou a criação do Estadomoderno, Kant, trazia em seu pensamento a idéia central de harmonização dosdireitos, a idéia da inter-subjetividade da liberdade, partindo da concepção deque somente um homem é livre se todos também forem livres.

No campo da economia, Adam Smith, pai do liberalismo econômico, e aquem recorrem os defensores do livre comércio, apesar de se ressaltar o bemestar individual, nunca defendeu o interesse individual de forma absoluta,independente de qualquer restrição (LOPES, 2006). Admitia a intervenção doEstado na economia para assegurar o cumprimento dos contratos e prevenir asfraudes e para realizar obras de interesse público.

Em A Riqueza das Nações, escrito em 1776, defendeu o justo salário, quedeveria ser suficiente para a manutenção dos trabalhadores e de sua família: “Umhomem tem sempre que viver de seu trabalho e o salário que também tem, pelomenos, deve ser suficiente para mantê-lo”. (SMITH, 1999, p. 43). O pai doliberalismo econômico já propugnava por condições dignas do trabalhado nocampo da concorrência comercial. O único problema de seu pensamento é queAdam Smith acreditava que os fenômenos econômicos seguiam uma ordemnatural, a qual propiciava uma harmonia universal, de forma que o bem podiaadvir mesmo do mal, afirmando que, mesmo buscando seus próprios interesses,os homens são orientados a fazerem o bem, conduzidos por uma “mão invisível”,o que denota uma forte confiança na ordem espontânea das coisas.

Mas o tempo e a caminhada da humanidade se encarregaram de mostrar ocontrário e o quadro que se segue à Revolução Industrial, com a liberdade decontratar no campo das relações do trabalho, é de exploração e degradação dascondições de trabalho, como forma de competir no mercado econômico e gerarlucratividade. É a primeira demonstração de que crescimento econômico não érequisito suficiente para distribuição de riquezas.

À crise do Estado liberal, que não mais consegue atender aos anseios de umasociedade, segue-se a exigência de um Estado providência, que se volta à garantiade uma igualdade fática no campo dos direitos. A construção do Estado social éuma reação aos postulados liberais por parte dos movimentos defensores daclasse operária. São os efeitos da Revolução Industrial, aliados à concepção deEstado abstencionista, o foco do combate do pensamento voltado à busca deigualdade fática, no que se refere à distribuição das riquezas sociais.

Três vertentes de pensamento se destacam neste período, trazendo à luz, a

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prioridade, ou em alguns casos, a mediação entre o social e o individual. Omaterialismo histórico de Karl Marx traz a idéia de homem concreto, afirmandoque as relações de produção estruturam a sociedade e determinam a cultura, apolítica e a consciência social e que somente uma revolução, que levaria a classeoperária ao poder, pondo fim à propriedade privada, libertaria o homem daalienação a que foi submetido pelo individualismo extremo. Marx, em seuradicalismo, criticava a corrente suave do socialismo que acreditava na mudançapor meio de um projeto de reestruturação das instituições sociais e políticas. Suacrítica cabia a Comte, Durkheim e Stuart Mill.

Comte, como positivista, defendia que a partir do estudo das leis sociais, épossível se estabelecer um sistema de idéias científicas que realizassem areorganização social. Ao contrário de Comte, que entendia ser a solidariedadesocial espontânea, Durkheim a entendia como orgânica, característica dassociedades mais avançadas, por meio da divisão do trabalho. Durkheim destaca aindividualidade e vê a liberdade e a propriedade privada como parte dela, porémnão podem ser exercidas sem a consideração do social.

No entanto, são as idéias sociais liberais de Stuart Mill que tenta conciliar aliberdade individual com os interesses sociais, no que ele chama de justiça social.Mill afirmava que o positivismo científico anulava o indivíduo, pois a liberdadedeveria favorecer o dissenso e a luta contra a opressão. Mill trazia a idéia deliberdade de Kant, defendendo que a liberdade não podia causar danos aos outros,nem impedir que os outros exerçam a mesma liberdade.

Pelas idéias apresentadas no campo das ciências sociais, denota-se apreocupação em colocar a sociedade acima do interesse individual e a limitar aliberdade individual em satisfação da liberdade social. São sob estas idéias e dasrepercussões da Encíclica Rerum Novarum, 1891, do papa Leão XIII, que seconstroem o Estado social, voltada a representar uma providência para ostrabalhadores, intervindo nas relações entre capital e trabalho uma relação voltadaao interesse social.

Os direitos sociais, em especial dos trabalhadores, consolidam-se no Estadosocial, passando a integrar os direitos fundamentais inicialmente nas Constituiçõesdo México, 1917, e de Weimar, 1919. Nesta perspectiva, relativizam-se adelimitação dos espaços público e privado, sendo este instrumento de realizaçãode justiça social. No Estado social, o interesse da sociedade se sobrepõe aointeresse do indivíduo.

É nesse clima que surge a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em1919, a partir do Tratado de Versales, que pôs fim a I Guerra Mundial. A OIT éuma instituição internacional de promoção da defesa dos trabalhadores, atuando

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de forma a convencer os países membros das nações Unidas a aderirem a umpadrão de condições de trabalhado, voltado a tratar o trabalhador como indivíduoprimeiro, para quem se volta o Estado e o mercado. A criação da OIT funda-senuma preocupação humanitária, no sentido de preservara dignidade dostrabalhadores no mundo.

Mas o Estado social não se sustentou perante as exigências de uma sociedadecomplexa e plural como a contemporânea, que necessitava de um equilíbrio entreo privado e o público, o individual e o social, das relações de produção e dajustiça social, encontrando abrigo na construção de um novo paradigma quesurge da experiência do Estado liberal e com o fracasso do Estado social: oparadigma do Estado Democrático de Direito. Este é uma construção da teoriaconstitucional que busca pela democracia conformar liberdade e igualdade, capitale trabalho.

É a partir da idéia de inter-relação entre o capital e justiça social, que sedefende a inter-relação de comércio e direitos trabalhistas, de abertura emundialização das relações comerciais, com reflexo direto na melhoria de padrõesde vida dos trabalhadores envolvidos nesta cadeia de produção, com base noprincípio de que as ações individuais devem estar voltadas ao interesse social,que as relações comerciais devem ter como foco sua função social, nãoprivilegiando pessoas, países ou grupos organizados individualmente, mas ascomunidades como um todo.

Nesta seara, é impensável um espaço onde se privilegie apenas as relações decomércio sem a preocupação com a cadeia produtiva, dentro dela os trabalhadorese o meio ambiente, por exemplo. É impensável uma separação radical entre omundo do comércio, com suas regras próprias, e o mundo do trabalho, com suasregras próprias e órgãos reguladores próprios atuando separadamente. Trabalhoe comércio estão tão interligados que impossível pensar um sem o outro nomundo atual de abertura internacional para as relações comerciais.

É com base neste imbricamento, que passaremos a estudar a questão dainclusão da cláusula social no âmbito da OMC e a participação da OIT nesteprocesso. Ao final tentaremos apresentar uma proposta que intente eliminar oque chamamos de condições degradantes de trabalho, com reservas para queesta solução não descambe para a utilização protecionista por parte dos paísesdesenvolvidos.

3 OIT E OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

A motivação da criação da OIT vem das preocupações com o quadro deexploração que se segue à Revolução Industrial, com conflitos entre a classe

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trabalhadora e os proprietários dos meios de produção. Jornada de trabalhoexaustiva, trabalho noturno e insalubre para menores, exploração da mão-de-obra infantil e das mulheres, foram temas que chamaram a atenção do mundo, nosentido de que era necessário um disciplinamento mundial dessas questões, porse tratar de desafios aos direitos do homem. “A razão determinante para a criaçãoda OIT foi de ordem humanitária”, (DI SENA JÚNIOR, 2003, p. 133). O objetivoera criar uma consciência mundial contra a exploração dos trabalhadores pelosempresários que, ávidos por melhor competir no mercado e obter lucros, aviltavamas condições de trabalho e dos trabalhadores.

Então, a OIT se institui com o objetivo de melhorar as condições de trabalhono mundo, eliminando as formas degradantes e injustas de trabalho a que eramsubmetidos os trabalhadores na época. Di Sena Júnior (2003, p. 135) apresentaduas outras motivações para a criação da OIT: de ordem política, pois a crescentedegradação das condições de trabalho, decorrente da evolução do processo deindustrialização, causaria como de fato já estava causando, instabilidade social ede ordem econômica, sendo que os países que passavam a adotar melhores padrõestrabalhistas sentiam-se injustiçados nas relações comerciais, por se colocaremem desvantagem em relação àqueles que não adotavam os mesmos padrões. Oúltimo motivo ainda é o mesmo argumento adotado pelos países desenvolvidosque defendem a inclusão da cláusula social no âmbito da OrganizaçãoInternacional do Comércio (OMC) com respectiva sanção em caso de nãocumprimento. É a discussão que apresentaremos mais adiante.

A OIT é uma agência da Organização das Nações Unidas (ONU) especializadaem questões trabalhistas. Criada em 1919, como já referido, pelo Tratado deVersalles que pôs fim a 1ª Guerra Mundial. Sua nova Constituição foi aprovadaem 1946, na 29ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, em Montreal,Canadá, mantendo-se como instituição chave para o estabelecimento de melhorescondições de trabalho nos países membros, conforme anuncia em seu Preâmbulo:

Considerando que existem condições de trabalho que implicam, para um grandenúmero de indivíduos, miséria, privações, e que o descontentamento que daí decorrepõe em perigo a paz e a harmonia universais, e considerando que é urgente melhoraressas condições no que se refere, por exemplo, à regulamentação das horas de trabalho,à fixação de uma duração máxima do dia e da semana de trabalho, do recrutamentoda mão-de-obra, à luta contra o desemprego, à garantia de um salário que assegurecondições de existência convenientes, à proteção dos trabalhadores contra as moléstiasgraves ou profissionais e acidentes do trabalho, à proteção das crianças, dosadolescentes e das mulheres, às pensões da velhice e da invalidez, à defesa dosinteresses dos trabalhadores empregados no estrangeiro, à afirmação do princípio

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“para igual trabalho mesmo salário”, à afirmação do princípio de liberdade sindical,à organização do ensino profissional e técnico, e outras medidas análogas;Considerando que a não adoção por qualquer nação de um regime de trabalhorealmente humano cria obstáculos aos esforços de outras nações desejosas demelhorar a sorte dos trabalhadores nos seus próprios territórios...33 Texto em vigorda Constituição da OIT desde 20.04.1948 em emenda aprovada pela 29ª reunião daConferência Internacional do Trabalho, em Montreal, Canadá, 1946, substitui aadotada em 1919, que sofreu três emendas anteriores, em 1922, 1934 e 1945. Otexto atual foi ratificado pelo Brasil, ainda em 1948. Informações em SENA, RobertoDi Junior. Comércio Internacional & Globalização: a cláusula social na OMC, 2003.

Como instituição que atua na seara trabalhista, ela é organizada de formatripartite, com a composição de seus órgãos por representantes do Governo,trabalhadores e empregadores, sendo de 50% do Governo, 25% dos trabalhadorese 25% dos empregadores. Estrutura-se em três órgãos: a Conferência – reúne-seanualmente em Genebra e é composta por todos os Estados-membros, sendosua competência principal estabelecer normas internacionais de trabalho atravésde Convenções e Recomendações. Outro órgão da OIT é o Conselho deAdministração – reúne-se três vezes ao ano em genebra e é responsável pelas asdecisões políticas e executivas. A repartição Internacional do Trabalho funcionacomo uma secretaria permanente da OIT, organizando as atividades da instituição.

Embora a OIT seja um órgão que atua internacionalmente captandoreivindicações, fazendo levantamento de situações degradantes de trabalho,acompanhando o progresso tecnológico e o desenvolvimento do comércio mundiale seus impactos nas condições de trabalho, sua ingerência junto as Estados-membros se dá apenas de forma negocial. A Organização não dispõe de nenhummecanismo sancionatório quando os Estados-membros não cumprem asConvenções que adota sequer os Estados-membros são obrigados a retificaremsuas Convenções, atuando mais de forma promocional e pelo convencimento.

Uma vez aprovada uma Convenção pela Conferência Internacional doTrabalho, ela só entra em vigor após um ano de apresentada duas ratificações:quer dizer se nenhum país ratificar a Convenção aprovada, ela não entrará emvigor em nível internacional e mesmo recebendo a duas ratificações e percorridoo prazo para sua vigência no campo internacional, nenhum outro Estado membro,além dos dois primeiros que ratificaram a Convenção, é obrigado a ratificá-la, adespeito de ter participado de sua aprovação.

Cabe ainda destacar que a ratificação das Convenções da OIT não assegurasua implementação direta pelo Estado-membro. Como bem observa Di SenaJúnior (2003, p. 142) o fato do de um país ratificar qualquer Convenção da OITnão implica em seu cumprimento, sendo que a implementação interna depende

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da vontade do Estado, que não sofre nenhuma sanção por parte da OIT pelapor não ajustar sua conduta conforme as Convenções por ele ratificadas, queconta somente com a opinião pública para coagir o estado transgressor.

Mas o procedimento de descumprimento das Convenções da OIT não é tãosem efeito assim. Os membros da Organização podem denunciar determinadoEstado por não estar cumprindo determinada Convenção, desde que os doisEstados-membros hajam ratificada a Convenção em questão. Conforme o art. 26da Constituição da OIT, a queixa é encaminhada à Repartição Internacional doTrabalho, que repassa a reclamação ao Conselho de Administração que, por suavez, constituirá uma Comissão de Inquérito. Esta examinará a queixa, elaborandoum relatório minucioso sobre a questão e apresentará medidas recomendatóriasao Estado-membro alvo da queixa, concedendo prazo para ajuste dos termosdescumpridos, no sentido de solucionar a controvérsia e dar uma resposta aoEstado-membro queixoso. O relatório será repassado pelo Diretor-Geral da RIT– Repartição Internacional do Trabalho – aos Governos interessados no litígio,que devem manifestar se aceitam ou não as recomendações adotadas ou sepreferem levar o caso à Corte Internacional de Justiça da ONU – Organizaçãodas Nações Unidas.

As normas convencionais da OIT ganharam reforço com a DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, ao estabelecer osdireitos primeiros e inegociáveis da pessoa humana, que os possui pela simplescondição de ser pessoa humana. Esses direitos, para Flávia Piovesan, são universaise indivisíveis, não podendo se dissociar os individuais dos sociais, defendendo,dessa forma, uma inter-relação entre liberdade econômica e direitos sociais dostrabalhadores. A autora observa um avanço da atuação da OIT, a partir do PactoInternacional dos direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que atualmentecontempla a adesão de 145 Estados-Partes, enuncia um extenso catálogo de direitos,que inclui o direito ao trabalho e à justa remuneração, o direito de formar e a filiar-se a sindicatos, o direito a um nível de vida adequado... Desse modo, a efetivaçãodos direitos econômicos, sociais e culturais não é apenas uma obrigação moral dosestados, mas uma obrigação jurídica... (PIOVESAN, 2003, p. 243-4).

Mas recentemente, em 1998, a OIT aprovou a Declaração dos Princípios eDireitos Fundamentais dos Trabalhadores, que em resumo expressa os termosdas Convenções sobre Liberdade Sindical, Livre Associação e Negociação Coletiva(Convenções 87 e 98), Eliminação das Formas de Trabalho Forçado (Convenções29 e 1050, Eliminação do trabalho Infantil (Convenções 138 e 182), Eliminaçãoda Discriminação no Emprego (Convenções 100 e 111). Esta Declaração de

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Princípios Fundamentais expressa o compromisso de todos os Estados-membrosde uma padronização mínima nas relações de trabalho, a prevalecer, inclusive,sobre o mercado de comércio internacional.

Mas do compromisso afirmado e expresso na Declaração de Princípios deDireitos Fundamentais dos Trabalhadores não decorre a conseqüência direta desua implementação e respeitos por todos os Estados-membros, trazendo comoresultado a melhoria no padrão de vida dos trabalhadores e a justa concorrênciano mercado internacional, pois a Declaração de Princípios e as Convenções sãoinstrumentos normativos sem eficácia vinculante, uma vez que elas não prevêemqualquer sanção por seu descumprimento.

As Convenções da OIT não correspondem às leis supranacionais capazes de tereficácia jurídica de direito interno nos Estados-membros. Portanto, a Conferênciaque gera tal tratado não é o que se pode entender por um parlamento universal compoderes para impor normas aos distintos Estados, sem contar com a aceitação desua autoridade. (SANTOS, 2004, p.34).

Apesar da juridicidade anunciada destes direitos mínimos sua efetividadedepende de meios eficazes que de se garantir o cumprimento das decisões daConferência Internacional do Trabalho e da Corte Internacional de Justiça, e esseé o problema central: é possível estabelecer sanções a nível internacional para odescumprimento dos padrões trabalhistas fundamentais? O comércio mundialpode se prestar como instrumento de coação para os Estados participantes? É oque veremos na seqüência.

4 A CRIAÇÃO DA OMC E OS DEBATES EM TORNO DA CLÁUSULA SOCIAL

A tentativa de criação de uma organização mundial que disciplinasse as relaçõesinternacionais de comércio data do final do segundo pós-guerra. Em de 1944,quando 44 países envolvidos no conflito mundial se reuniram em New Hampshire,Estados Unidos, com o objetivo de discutir e configurar uma estrutura que passassea funcionar após a guerra, voltada a ajudar os países europeus arrasados peloconflito. A reunião, conhecida como Conferência de Bretton Woods, lideradapelos Estados Unidos, resultou no acordo de criação de três instituições: FundoMonetário internacional(FMI), o Banco Mundial de Desenvolvimento eOrganização Internacional do Comércio (OIC) (THORSTENSEN, 1999).

O primeiro órgão ficou responsável pela gerência das transações financeiras eda questão monetária entre os bancos centrais dos países envolvidos no acordo.O Banco Mundial de Desenvolvimento ficou responsável por ajuda financeirapara reconstrução dos países advindos da guerra, bem como pelo financiamento

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de projetos na área social. Já a OIC, que objetiva a disciplina das relaçõesinternacionais de comércio, com conseqüente liberação das fronteiras nacionais,foi configurada em 1947, na Conferência Mundial sobre Comércio e Emprego,realizada em Havana, Cuba. No entanto, a OIC não seguiu seu curso por sua nãoratificação pelos Estados Unidos, restando ao General Agreement on Tariffs andTrade (GATT) – acordo assinado em Genebra, em 1947, para liberação de barreirastarifárias entre os 23 países signatários, a tarefa a regular e acompanhar as relaçõesmundiais do comércio.

A Carta de Havana, 1948, que então criara a OIC trazia em seu art. 7º ocompromisso dos países envolvidos com o estabelecimento de padrões justos detrabalho, sob o argumento de que condições injustas de trabalho refletiam namelhoria da produtividade e que divergência de tratamentos dos trabalhadoresde um país para o outro implicava em concorrência desleal. Mas a idéia demanutenção de um patamar de igualdade no tratamento das questões trabalhistasnos países envolvidos no comércio internacional é bem mais antiga que a idéiade criação de uma instituição que disciplinasse as relações comerciais no mundo.

Em plena Revolução Industrial, séc. XVIII, a abundância de mão-de-obra naEuropa, que aumentava à medida que os países se urbanizavam, trazendo aspopulações da zona rural para as cidades, deixava uma parte da relação entre capitale trabalhista em desvantagem no mercado, onde imperava a lei de oferta e procura.Daí a necessidade da inclusão de cláusulas sociais nos contratos de trabalho, tantointernamente, nos Estados nacionais, como, externamente, conforme ainternacionalização do comércio tomasse fosse ganhando maiores dimensões.

Cita André Regis (1997, p. 02) que as primeiras iniciativas de se propor otema de padrões trabalhistas no espaço internacional foi da Alemanha e da Suíça,sendo que estes países foram também os primeiros a regular internamente asrelações entre capital e trabalho. Ainda em 1890, foi realizada, em Berlim, aprimeira Conferência entre Governos para tratar de questões trabalhistas. A Françae a Inglaterra, apesar de restringir as discussões ao trabalho das mulheres, criançase adolescentes, esvaziaram a proposta, uma vez que a primeira não acatou asresoluções da Conferência e o segundo acatou, mas não as implementou. Osresultados da Conferência só não foram em vão porque ensejaram a criação daOIT, que veio acontecer em 1919, como já tratado.

Mas a discussão em torno da inclusão de padrões trabalhistas nos acordosinternacionais de comércio teve o mesmo fim da OIC e os esforços em ligarpadrões trabalhistas ao comércio internacional ressurgiram durante as reuniõesdo GATT, chamadas de rodadas de negociação, desta vez tendo como linha defrente os Estados Unidos.

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O GATT é um acordo que trata mais especificamente da redução de barreirastarifárias, que funcionou como agência reguladora da abertura comercial paratodos os países, até a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC).Atua o GATT sob três regras principais: o tratamento da nação mais favorecida– NMF – que proíbe qualquer país discriminar qualquer outro, ou seja, asvantagens concedidas a um país devem ser abertas a todos os outros, nas mesmascondições; a do tratamento nacional, em que os produtos importados, uma vezadentrados às fronteiras do Estado devem receber o mesmo tratamento dosprodutos nacionais, ou seja, deve ser considerado como nacional fosse; e a regrada redução de barreiras tarifárias por meio de negociações.

O GATT empreendeu oito rodadas de negociação até 1986, sendo a de maiorimportância, a última, conhecida como Rodada Uruguai, iniciada em 1986, emPunta del Leste, e concluída em 1994, em Marraqueche, com a criação daOrganização Mundial do Comércio (OMC). Além de singular importância pelacriação da OMC, não se limitou a isso, incluindo os setores de agricultura, têxtil,o ramo de serviços nas regras do comércio internacional, bem como estabeleceuregras sobre propriedade intelectual, além de alcançar a redução das tarifasalfandegárias para 5%, segundo Thorstensen (1999, p. 39). Também, da RodadaUruguai resultou a reformulação do processo de solução de controvérsia, quefuncionou, a partir da OMC, dando mais agilidade e credibilidade aos conflitoscomerciais entre os Estados-membros.

Ressurge na Rodada Uruguai a questão de padrões trabalhistas, com os EstadosUnidos tentado abrir a discussão acompanhado da França. No entanto, a resistênciados países em desenvolvimento prosperou e a proposta dos Estados Unidos deincluir um padrão de condições de trabalho na OMC fracassou. Mas isso era sóo início de uma forte discussão que perdura até hoje, colocando de um lado osEstados Unidos, que acusam os países em desenvolvimento de “dumping social,obtendo, em decorrência, vantagens comerciais sobre os países que adotam padrõestrabalhistas considerados justos, e de outro, os países em desenvolvimento, dentreeles destaca-se o Brasil, que acusam os Estados Unidos de esconder propósitosprotecionistas por trás de sua proposta.

O novo Palco de discussão do tema foi a Rodada Cingapura, em 1996. ANoruega alia-se aos Estados Unidos na defesa da inclusão de um padrão decondições de trabalho a ser adotado por todos os países envolvidos nas relaçõesde comércio internacional, como forma de tornar as relações mais equilibradas.Mais uma vez fracassa a empreitada americana, conseguindo os países emdesenvolvimento, com forte liderança do Brasil, fechar a questão, atribuindo aOIT o cuidado com padrões trabalhistas mais justos, deixando a OMC fora de

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A cláusula social na OMC

qualquer interferência nas relações de trabalho dos países-membros. Em declaraçãoministerial, fica clara a posição da OMC quanto à adoção da cláusula social,afirmando que a questão deve ser tratada pelo organismo internacional para issocriado: a OIT.

Renovamos nossos compromissos de respeitar as normas fundamentais do trabalho,internacionalmente reconhecidas. A OIT – Organização Internacional do Trabalho– é o órgão competente para estabelecer essas normas e ocupar-se delas, e afirmandonosso apoio a sua atividade de promoção das mesmas. Consideramos que ocrescimento e o desenvolvimento econômico, impulsionados pelo incremento docomércio e pela maior liberalização comercial contribuíram para a promoção dessasnormas. Rechaçamos a utilização das normas de trabalho com fins de protecionismoe concordamos que não se deve em absoluto a vantagem comparativa dos países,em particular, dos países em desenvolvimento e seus baixos salários. A esse respeitotomamos nota de que as secretarias da OMC e da OIT prosseguirão com suas atuaiscolaborações. (OMC, DECLARAÇÃO MINISTERIAL, 1996).

A posição vencida no âmbito da OMC e que se conserva atualmente é decompleta separação dos espaços das normas do mundo do trabalho e da atuaçãodo comércio internacional. Mais cinco Rodadas de Negociação prosseguiramsem que a questão sofresse qualquer alteração. Diante da atual situação, como jáabordado, de falta de efetividade das normas internacionais do trabalho, e desituações denunciadas de exploração de mão-de-obra em países emdesenvolvimento, com infração às normas de direitos fundamentais dostrabalhadores, pergunta-se, então: com quem está razão?

Que é possível os países desenvolvidos utilizar barreiras comerciais pordescumprimento dos direitos trabalhistas fundamentais com caráter para protegerseu mercado interno, caso seja aceita a cláusula social na OMC, não se nega. Poroutro lado, é justo que países em desenvolvimento lucrem com o comérciointernacional à custa da exploração vil de sua farta mão-de-obra? Entendemostambém que não. Por isso, encerrar a questão separando os espaços de atuaçãoda OIT e OMC não resolve o problema. É necessário buscar uma solução,integrando a atuação dos dois órgãos internacionais – OIT e OMC, uma vez queo comércio internacional e padrões trabalhistas estão inerentemente ligados naseqüência da cadeia produtiva.

O protecionismo dos países desenvolvidos é motivo forte de preocupaçãopor parte dos países em desenvolvimento, mas não é motivo, sequer razoável,para se evitar medidas efetivas que assegurem o cumprimento dos direitosfundamentais dos trabalhadores no mundo. E a cláusula social, se bem insertanos tratados internacionais de comércio e bem administrada pode render grandesfrutos em benefícios de todos: Estado, empresários e trabalhadores.

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5 O DUMPING SOCIAL : É POSSÍVEL UTILIZAR A OMC COMOINSTRUMENTO DE COAÇÃO AO CUMPRIMENTO DOS DIREITOSFUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES NO MUNDO?

Para definir o que seja dumping, utilizamos o conceito de Barral (2000, p. 217),para quem “esta prática pode ser definida como a discriminação de preços entredois mercados nacionais, entre o mercado exportador e o importador”. Ocorrequando o determinado Estado coloca no mercado externo determinado produtocom preço menor do que o praticado no mercado nacional. Porém, a prática dodumping somente enseja medidas antidumping, sob a guarda da regulamentação doOMC, quando além do preço praticado no mercado externo ser menor do que opraticado internamente, essa prática gere ao país importador prejuízos e queesses prejuízos estejam ligados à prática, ou seja, o país que alega o dumpingpraticado por outro deve demonstrar que a ação do país exportador lhe causouprejuízos e o nexo causal destes prejuízos com dumping. Somente demonstradaessa relação, o país importador prejudicado pode a impor medidas antidumping,conhecidas também como barreiras não tarifárias, tais como tarifas excepcionaisou medidas compensatórias..

A partir da prática do dumping, construiu-se a o termo dumping social, queocorre quando determinado país exportador aufere a vantagem de preço em seusprodutos no mercado internacional em decorrência da utilização de baixos padrõestrabalhistas. Condenando esta prática e em busca de relações comerciais maisjustas, como já apontado, os países desenvolvidos, em especial os Estados Unidos,propugnam por medidas antidumping social, com a inclusão da chamada cláusulasocial, que seria o estabelecimento de um padrão mínimo de condições de trabalhoa ser observado pelos Estados exportadores, sob pena de imposição de barreiasnão tarifárias.

Os países atingidos por essas medidas, diretamente, serão os países emdesenvolvimento, que acusam os defensores da cláusula social de esconderpropósitos protecionistas por trás da defesa dos trabalhadores dos países doterceiro mundo. Argumentam que sua farta mão-de-obra, que proporciona baixossalários, é uma vantagem comparativa favorável em relação à tecnologia, maioresinvestimentos e mão-de-obra qualificada dos países desenvolvidos. Assim pensao Governo brasileiro, que se manifesta não contrário a melhoria dos padrõestrabalhistas, mas a indexação desse padrão aos acordos multilaterais da OMC.

O Governo brasileiro apóia, sem ambigüidade, o aprofundamento sobre o respeitoaos direitos internacionais básicos do trabalhador nos foros apropriados – aOrganização Internacional do Trabalho, a mais antiga instituição multilateral emanadada Liga das Nações, e a Comissão de Direitos Humanos. Também temos de fazer o

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A cláusula social na OMC

nosso dever de casa em matéria social. Mas recorrer a instrumentos internacionaisde política comercial não seria adequado para o tratamento das questões sociais;seria abrirmos um flanco sem qualquer garantia, se quer, de que as penalidadeseventualmente impostas serviriam para impulsionar o progresso social nos paísesafetados. Sua utilização nesse contexto teria como conseqüência inevitável acrescentaruma arma poderosa ao arsenal protecionista que ainda existe à disposição dos paísesque, em nome do livre comércio (free trade) ou do comércio leal (fair trade), fechamseus mercados a nossos produtos e com isso comprometem o aumento da produçãoe a manutenção de empregos em setores da área agrícola e industrial. (LAMPREIA,1996, p. 2.).

A União Européia não tem posição unificadamente definida, porém defendeesforços para o estabelecimento de um padrão justo de condições do trabalho,mas sem sanção. Os Estados Unidos vão longe nessa questão, exigindo a adoçãode padrões trabalhistas que abranjam até os salários, por considerar que os baixossalários afetam a concorrência leal. Entendemos que a proposta nesses termostorna-se inviável na globalização comercial atual, por diferenças econômicas eculturais, entre outras, e porque afeta as vantagens comparativas entre os Estados,princípio norteador das trocas comerciais, “segundo a qual os países devem sededicar a produção de bens nos quais possuem vantagens comparativas e trocaro excedente por aquilo que não produzem”. (DI SENA JUNIOR, 2003, p. 124)

Segue Roberto Di Sena Junior afirmando que a vantagem da mão-de-obrabarata é compensada pela vantagem de tecnologia e capital dos países maisdesenvolvidos e que exigir um padrão de igualdade nas condições de trabalho,incluindo salários, requer o compartilhamento dos conhecimentos sobre tecnologiae do capital, para afastar a concorrência desleal. Com base na teoria das vantagenscomparativas, os países em desenvolvimento defendem que a inclusão da cláusulasocial deve vir acompanhada da circulação da mão-de-obra.

O autor não acredita que a inclusão de cláusula social e sanções impostas porseu descumprimento vão resolver o problema do baixo padrão trabalhista nospaíses em desenvolvimento. Argumenta que estes países não mantêm estes padrõesbaixos deliberadamente para melhor concorrer no mercado internacional, mas“refletem a situação das economias marcadas pelo excesso de mão-de-obra poucoqualificada e pela escassez de capital”, (DI SENA JÚNIOR, 2003, p. 187), e queo impacto do livre comércio na distribuição de renda deve administrado de formaeficaz pelos Governos locais.

Roberto Di Sena Júnior afirma que o emprego de sanções comerciais parase melhorar os padrões trabalhistas acabam por prejudicar os trabalhadores dospaíses em desenvolvimento, errando o alvo. As restrições advindas pelo não

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cumprimento das cláusulas sociais prejudicarão o crescimento econômico,afetando o desenvolvimento e, por conseguinte, os trabalhadores. “O objetivoperseguido é justo, mas o instrumento inadequado” conclui.

A despeito dos argumentos apresentados, que exemplifica a posição dos autorescautelosos no que se refere à inclusão da cláusula social nos acordos de comérciointernacional, entendemos que algo deve ser feito, ao menos quanto à exigênciade cumprimento dos direitos fundamentais dos trabalhadores no mundo,atualmente os constantes na Declaração dos Princípios e Direitos Fundamentaisdos Trabalhadores da OIT, sobre os quais nenhuma doutrina ou vantagem detroca deve prevalecer. E vamos além, entendemos que as relações de comérciointernacional é uma ferramenta essencial a ser utilizada nesse processo diante dafalta de efetividade da atuação da OIT já apresentada em capítulos anteriores.

Sem o exagero de se estabelecer um padrão mínimo de salário a serimplementado por todos os Estados-membros, entendemos ser possível umaatuação interligada entre OIT e OMC, não somente para o estabelecimento derelações comerciais mais justas, mas, e, principalmente, para uma efetivação doque é essencial ao homem que trabalha para o mercado produtor e consumidor.Certo que não é fácil essa ação interligada, uma vez que os países envolvidos nocomércio internacional parecem não jogar com transparência: os paísesdesenvolvidos discursam em favor dos trabalhadores, quando intencionambarreiras protecionistas – acusam os países contrários; os países emdesenvolvimento emperram a melhoria de suas condições de trabalho, para melhorcompetir no mercado – acusam os defensores da cláusula social.

O jogo transparente, cooperativo e responsável tornaria a questão mais fácil.Nossa proposição é de encontrar uma solução que satisfaça os direitos mínimosdos trabalhadores – livre associação, negociação, igual oportunidade de empregoe livre escolha do trabalho – sem comprometer o crescimento econômico e odesenvolvimento e que constitua também num anteparo contra a utilizaçãoprotecionista do meio. Nesses termos, entendemos que os casos que desafiam ocumprimento dos direitos fundamentais dos trabalhadores sejam levadosinicialmente à OIT, para uma solução negociada entre os Estados, o queixoso eo infrator. Sem solução do problema, a questão pode ser levada à CorteInternacional de Justiça e a decisão tomada por essa Corte concederá prazo paraque o Estado implemente os ajustes necessários, conforme normas da OIT.

Somente em casos de permanecer o descaso com os direitos fundamentaisdos trabalhadores, o fato seria levado à OMC, com decisão já tomada pela OITde que as relações comerciais daquele Estado podem sofrer restrições, no sentidode penalizá-lo por concorrer no mercado internacional à custa da exploração vil

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A cláusula social na OMC

de seus trabalhadores. Essa proposta evita deixar o Estado exportador inteiramentenas mãos do Estado importador, resguardando àquele contra medidasprotecionistas deste, ao mesmo tempo em que reserva aos trabalhadores dospaíses exportadores a esperança de ver seus direitos, já reconhecidos no âmbitointernacional, efetivamente garantidos.

Propostas como essa não apresenta qualquer novidade, uma vez que o próprioGATT já prevê, em seu art. XX, que trata das exceções gerais, restrições à importaçãode bens produzidos por presos, podendo essas restrições ser estendidas contra otrabalho escravo, infantil e degradante, conforme constatação pela fórmula acimaapresentada. Outra forma de ação é pelo Sistema de Proteção Geral (SPG) daOMC, que possibilita a concessão de redução de tarifas até o índice zero pelo paísimportador aos países exportadores que cumpram com determinadas exigências.O SPG também pode ser utilizado para incentivar o Estado infrator dos direitosfundamentais dos trabalhadores a fazer os ajustes necessários.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho partiu da idéia de que há direitos fundamentais dostrabalhadores; de que estes direitos já estão expressos em tratados internacionais,como exemplo a Declaração sobre Princípios Fundamentais e Direitos noTrabalho, aprovado pela a OIT em 1998; de que há transgressão a esses direitospor parte dos Estados envolvidos no comércio internacional; de que os princípiosfundamentais e os direitos dos trabalhadores, apesar de reconhecidos, não contamcom meios de coativos para sua observação; que, não obstante, o perigo dospadrões trabalhistas serem utilizados por países importadores de forma a protegerseus mercados internos, devam ser pensadas estratégias de inter-relação entre aOIT e a OMC, objetivando buscar mecanismos que levem os Estados exportadoresa adotarem padrões trabalhistas, de exigência fundamental para os trabalhadores.

Ademais, nenhum Estado é essencialmente exportador ou importador, poisenquanto é bom exportador em determinados setores é importador em outros, oque faz com que todos se utilizem das medidas adotadas, uma vez que atuam nasduas áreas, vezes exigindo os padrões trabalhistas, quando importa produtos deterceiros, vezes outras sendo cobrado a manter os padrões trabalhistas, quandoexporta para terceiros. Um dado a mais é de que grande parte do comérciointernacional é feito entre empresas transnacionais, especificamente 63%(THORSTENSEN, 1999, p. 24), e de que das 100 maiores economias do mundo,51 são empresas multinacionais (PIOVESAN, 2003, p. 259), o que conta a favorda adoção de um padrão básico de direitos trabalhistas nestas empresas queatuam no mundo.

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Outras fórmulas podem ser pensadas a partir do que já existe ou serem criadas,o que não pode é a abertura do comércio mundial não vir acompanhada demelhorias para o setor mais importante da cadeia produtiva: os trabalhadores,pondo fim à ainda existente exploração desenfreada da mão-de-obra, que gera12.3 milhões de pessoas vítimas de trabalho forçado em todo o mundo, sendoque os países da Ásia e do Pacífico são responsáveis por uma cota de mais de80% desse número, e os países da América Latina e Caribe, contribuem commais de 10%; e mais de 200 milhões de crianças vítimas do trabalho infantil,sendo que mais da metade se encontra no que se chama de “piores formas”,entre elas a exploração sexual.1

Com a inter-relação entre padrão trabalhista e comércio internacional, ganhao mercado, com relações mais justas, e ganha os trabalhadores, por terem seusdireitos fundamentais respeitados. Ademais, os direitos fundamentais dostrabalhadores são direitos mínimos, inegociáveis, sobre os quais, sequer, a eficiênciaeconômica pode prevalecer. Nesta visão, concluímos ser tão essencial a associaçãoentre comércio internacional e padrão mínimo trabalhista como é impensável adissociação entre produto e trabalho.

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KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Ícone,1993.

1 Dados da Organização Internacional do Trabalho – OIT.

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A cláusula social na OMC

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Imutabilidade das decisões: os limites objetivos da coisa julgada

IMUTABILIDADE DAS DECISÕES:OS LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA

DECISION´S IMMUTABILITY:THE OBJECTIVE LIMITS OF THE CLAIN PRECLUSION

Thaís Amoroso Paschoal*

Resumo: Analisa o alcance da imutabilidade decorrente da coisa julgadaa partir de seus limites objetivos estabelecidos no sistema processual,partindo da análise do objeto do processo.

Palavras-chave: Imutabilidade. Coisa julgada. Segurança jurídica. Limitesobjetivos. Objeto do processo.

Abstract: Analyses the immutability´s reach decurrent of the preclusionclain, considering their objective limits established in the processual system,throught of the procedure´s object analyses.

Keywords: Immutability. Claim preclusion. Legal security. Objective limits.Object of the procedure.

1 INTRODUÇÃO

A garantia constitucional da coisa julgada, disciplinada no artigo 5º, incisoXXXVI da Constituição Federal, tem por fundamento precípuo a segurançajurídica, de modo a garantir às partes a certeza na imutabilidade da sentença demérito que deu solução à relação controvertida levada à apreciação do PoderJudiciário. Ao mesmo tempo, garante a estabilidade do sistema processual, cujaefetividade se coaduna com a proibição da perpetuação dos litígios no tempo.

Definida como a imutabilidade que reveste as sentenças de mérito, a coisajulgada levanta controvérsias que vão desde seu conceito e natureza jurídica, atéa delimitação de seu exato alcance, tanto subjetiva como objetivamente, de modoa estabelecer o que em concreto é atingido pela imutabilidade decorrente dacoisa julgada.

* Formada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina em 2004. Pós-graduadaem Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estadual de Londrina em 2005.Mestranda em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná.Advogada do escritório Arruda Alvim Wambier, em Curitiba, desde 2004.

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Thaís Amoroso Paschoal

Os limites objetivos da coisa julgada são estabelecidos a partir do artigo 468do Código de Processo Civil, que determina sua incidência sobre a lide e asquestões decididas. Integrante do Código de Processo Civil que resultou do projetoBuzaid, referido artigo revestiu-se dos conceitos atribuídos por este jurista aosinstitutos processuais. Assim é que, considerando a lide como objeto do processo,acabou por firmar em tal dispositivo o estabelecimento dos limites objetivos dacoisa julgada a partir da lide. Todavia, diante da nova perspectiva doutrinária arespeito do objeto do processo, nascida, sobretudo com a doutrina alemã, a idéiade lide como objeto do processo não persistiu.

À determinação dos limites objetivos da coisa julgada, assim, torna-seimprescindível a investigação acerca do objeto do processo, já que é sobre eleque incide a autoridade da coisa julgada. Imprescindível, ainda, a análise dosconceitos de demanda, lide e pretensão, importantes para a compreensão doobjeto do processo e para a definição dos limites objetivos da coisa julgada.

Mediante tais considerações, possível será a determinação do correto alcanceda autoridade da coisa julgada, tal como posta no sistema processual brasileiro,já que determinar os limites objetivos da coisa julgada significa definir o alcanceda imutabilidade dela decorrente, ou seja, definir o que, dentro de determinadademanda e nos limites da lide posta, se reveste da autoridade de coisa julgada.

2 DA COISA JULGADA – ASPECTOS GERAIS

A coisa julgada é expressamente garantida pela Constituição Federal, queestabelece, em seu artigo 5º, inciso XXXVI, que “a lei não prejudicará o direitoadquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. A finalidade de tal proteçãoé a necessidade de estabilidade das decisões judiciais, o que resulta na garantia decerteza nas relações jurídicas trazidas ao apreço do Poder Judiciário. A coisajulgada, portanto, tem como fundamento a impossibilidade de perpetuação doslitígios no tempo e a conseqüente segurança advinda da irrevogabilidade dasSentenças de mérito.

Reconhecendo na certeza das relações jurídicas advinda da coisa julgada suafinalidade máxima, Ferreira Filho explica que “o estado anormal do litígio deveser substituído, o mais rápido possível, por uma definição irrevogável dos direitos”(1991, p. 69).

A imunização do conteúdo da sentença pela autoridade da coisa julgada, dessaforma, garante a necessária paz social, decorrente da certeza nas relações jurídicastrazidas à apreciação do Poder Judiciário. Ainda sobre a finalidade da coisa julgada,Dinamarco (2003) afirma que

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Imutabilidade das decisões: os limites objetivos da coisa julgada

Pelo que significa na vida das pessoas em suas relações com os bens da vida ou comoutras pessoas, a coisa julgada material tem por substrato ético-político o valor dasegurança jurídica, que universalmente se proclama como indispensável à paz entreos homens ou grupos (p. 303).

Como exigência social, portanto, a coisa julgada tem como função precípuagarantir a segurança jurídica, proporcionando às partes a certeza deirrevogabilidade da sentença proferida, lhes assegurado a fruição definitiva dobem objeto do litígio.

Ressaltando o caráter de irrevogabilidade que a coisa julgada atribui àssentenças, Baptista da Silva (2001) a define como

a virtude própria de certas sentenças judiciais, que as faz imunes às futurascontrovérsias, impedindo que se modifique, ou discuta, num processo subseqüente,aquilo que o juiz tiver declarado como sendo “a lei do caso concreto” (p. 484).

A autoridade da coisa julgada, portanto, opera não somente no sentido deimpedir novo julgamento sobre a mesma lide, mas também solidificando o própriodireito material objeto do conflito de interesses levado à apreciação do PoderJudiciário.

Significando a imutabilidade da sentença que solucionou definitivamentedeterminada lide, a coisa julgada impede a propositura de nova ação fundada nosmesmos elementos, ou seja, mesmas partes, pedido e causa de pedir, impedindoao mesmo tempo, e conseqüentemente, novo julgamento em sentido contrário àprimeira decisão, não podendo ser subtraído das partes litigantes, dessa forma, odireito obtido com o seu trânsito em julgado.

3 DO OBJETO DO PROCESSO NO DIREITO BRASILEIRO

O objeto do processo, a Streitgegestand do direito alemão, é o quetradicionalmente se chama de res in iudicium deducta, ou seja, aquilo que é deduzidoem juízo mediante a iniciativa do autor, sobre o qual ocorrerá o pronunciamentojudicial. Neste sentido, a doutrina firmou o entendimento de que o objeto doprocesso é identificado com o mérito da causa. É o que afirma Dinamarco (1986):“o objeto do processo é, em outras palavras, o mérito da causa [...] a busca doobjeto do processo outra coisa não é, senão a busca do conceito de mérito” (p.188).

Todavia, a conceituação do objeto do processo no sistema processual brasileirotem sido tarefa bastante tormentosa, sobretudo pela falta de homogeneidade dopróprio Código de Processo Civil no trato da matéria. Já na Exposição de Motivos

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Thaís Amoroso Paschoal

do Código de Processo Civil, Alfredo Buzaid estabelece, dentre as justificativasterminológicas do Código, o conceito de mérito relacionado à idéia de lidecarneluttiana, considerando-a, assim, o objeto do processo. A doutrinacontemporânea, entretanto, apresenta entendimento diverso, considerando o objetodo processo como a pretensão, a Anspruch do direito alemão, e não a lide, comoentendia Buzaid.

De qualquer forma, deve-se considerar o objeto do processo como o méritoda causa. Segundo Dinamarco, “o mérito da causa (ou objeto do processo) resideem algo que é trazido de fora, que dá motivo à formação do processo e quedependerá de um pronunciamento do juiz” (1986, p. 188). É o objeto do processo,assim, o instrumento que impulsiona o processo e sobre o qual incidirá opronunciamento judicial.

Dessa forma, faz-se necessária a análise dos conceitos que gravitam em tornodo objeto do processo, como a demanda, justamente por ser esta o instrumentoque coloca o objeto do processo diante da apreciação do Poder Judiciário, tendo,destarte, a apreciação dos limites da demanda, fundamental importância para adefinição dos limites da coisa julgada. Ainda, a idéia de lide, entendida inicialmentecomo objeto do processo, fundamental para a delimitação dos limites objetivosda coisa julgada.

3.1 Da demanda no sistema processual brasileiro3.1.1 A relevância da demanda na fixação do objeto do processo

A demanda é o instrumento pelo qual o autor posiciona sua pretensão diantedo Poder Judiciário, de modo a, exercendo o direito subjetivo de ação do qual étitular, pleitear a devida tutela jurisdicional cabível ao caso apresentado. É ademanda, assim, nas palavras Dinamarco, “o veículo de algo externo ao processoe anterior a ele, algo que é trazido ao juiz em busca do remédio que o demandantequer” (1986, p. 195). A demanda, dessa forma, apresenta ao Poder Judiciário oobjeto do processo, sobre o qual se pronunciará a decisão judicial e sobre o qualopera a autoridade da coisa julgada.

Neste sentido, pois, uma análise do objeto do processo deverá necessariamenteser precedida de um estudo dos limites da demanda, o que implica a apreciaçãodas questões que envolvem a idéia de pretensão e pedido, e sua relação com oobjeto do processo.

Mediante tais considerações, possível será a determinação do correto alcanceda autoridade da coisa julgada, tal como posta no sistema processual brasileiro,já que determinar os limites objetivos da coisa julgada significa definir o alcanceda imutabilidade dela decorrente, ou seja, definir o que, dentro de determinadademanda e nos limites da lide posta, se reveste da autoridade de coisa julgada.

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Com vistas a tal objetivo, busca-se inicialmente a análise da demanda enquantoveículo condutor da pretensão do autor. Tornar-se-á possível, assim, aferir oalcance exato da autoridade da coisa julgada, que recai, como se verá, sobre oobjeto do processo, trazido a juízo por meio da demanda.

3.1.2 Tríplice identidade – os elementos objetivos e subjetivos da demanda

O acesso à justiça, princípio constitucional que representa a busca por umatutela jurídica adequada a ser prestada pelo Poder Judiciário através de sua atividadejurisdicional, é efetivado mediante o exercício do direito de ação, que se concretizaatravés da demanda. A demanda, assim, é o instrumento do direito de ação,constituindo-se no ato que aciona o exercício da Jurisdição por parte do Estado.Barbosa Moreira define demanda como “o ato pelo qual alguém pede ao Estadoa prestação de atividade jurisdicional. Pela demanda começa a exercer-se o direitode ação e dá-se causa à formação do processo” (1996, p. 11).

De ressaltar-se que apesar da utilização do termo “ação” pelo Código deProcesso Civil em dispositivos como o artigo 301, §§ 1º, 2º e 3º, mostra-se maisadequada neste caso à utilização do termo “demanda”, visto que a ação caracterizao direito subjetivo de acesso à ordem jurídica justa, o qual é exercido por meio dademanda. A ação deve ser entendida como um direito abstrato a ser concretizadoatravés da demanda. Neste sentido, Liebman explica que demanda “é o ato peloqual o processo se põe em movimento” (1985, p. 34).

Os limites objetivos e subjetivos da demanda são traçados pelos seus elementosidentificadores, quais sejam partes, pedido e causa de pedir. Nas palavras deDinamarco, “cada uma das incontáveis demandas propostas ou a propor tem suaprópria individualidade, determinada pelos elementos que a compõem e adistinguem das outras” (2003, p. 112).

Expondo em juízo a pretensão do autor, a demanda estabelece o objeto doprocesso, sobre o qual se pronunciará o magistrado em obediência ao princípioda correlação ou congruência, que proíbe a ocorrência de julgamentos ultra, extraou citra petita. De acordo com Liebman (1985),

sempre é a parte que indica o objeto do processo, de modo que o juiz não podepronunciar-se além dos limites do pedido, nem sobre exceções que exclusivamentepelas partes possam ser propostas (princípio da correspondência entre o pedido e odecidido) (p. 146).

A demanda, assim, traça os exatos limites da prestação jurisdicional, emobediência ao princípio da congruência, de modo que a decisão final prolatadapelo julgador deve necessariamente ater-se aos pontos trazidos pelo autor em

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seu pedido. O pedido, assim, deverá ser interpretado restritivamente1 (artigo 293do Código de Processo Civil), sendo “defeso ao juiz proferir sentença, a favor doautor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidadesuperior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado” (artigo 460 do Códigode Processo Civil). Segundo Dinamarco (1986),

é a demanda que define o objeto do processo, ou “objeto litigioso do processo”, emtorno do qual será exercida a jurisdição em cada caso concreto, ao juiz não sendolícito desconsiderá-lo, ampliá-lo, por iniciativa própria ou pronunciar-se acerca deoutro objeto (p. 186).

O princípio da congruência, assim, deve reger o julgamento em todo o iterlógico desenvolvido na sentença, devendo o dispositivo guardar necessáriacorrespondência com o pedido do autor. Nos dizeres de Cândido RangelDinamarco (1986),

é na demanda inicial que havemos de procurar os elementos que determinam oconteúdo e traçam os limites do provimento a ser proferido pela autoridadejurisdicional. Propondo a demanda, a pessoa descreve uma situação da vida emsociedade e pede à solução que alvitra. Por isso é que, como ato provocador doprocesso e do exercício da jurisdição (e instrumentalizado na petição inicial, nadenúncia ou queixa-crime), a demanda costuma ser indicada pela doutrina comoverdadeiro projeto do provimento desejado (p. 185).

Assim, a identificação dos elementos da demanda é essencial para a exatadeterminação dos limites da prestação jurisdicional, já que o juiz julgará a causarelativa às partes a partir do pedido, delineado pelos fatos e fundamentos jurídicosexpostos pelo autor. Como conseqüência, através da identificação da demanda eda determinação de seus limites, torna-se possível a fixação dos limites da coisajulgada, determinando-se, assim, seu exato alcance.

3.2 Da lide no sistema processual brasileiro3.2.1 Lide, pretensão e objeto do processo

Atribui-se a Carnelutti (1956) a tradicional definição de lide, entendida peloautor como “um conflito (intersubjetivo) de interesses qualificado por umapretensão resistida (discutida)” (p. 28). A lide, portanto, deve ser entendida como

1 Cândido Rangel Dinamarco considera imprópria a utilização do termo “restritivamente”,preferindo adotar a “interpretação estrita”, uma vez que, segundo o autor, interpretarrestritivamente o pedido equivale a reduzir o que ele contém o que equivaleria àprolatação de sentença citra petita. (2003, p .36).

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a insatisfação de uma pretensão da parte, seja pela simples inércia da outra parteem atendê-la ou por sua efetiva resistência àquela pretensão, o que caracteriza oconflito de interesses, trazido à apreciação do Poder Judiciário por meio doprocesso.

Enquanto a lide carneluttiana é eminentemente sociológica, visto queconsidera como lide o próprio conflito material exterior ao processo, a doutrinacontemporânea procura separar as idéias de lide e conflito de interesses,reservando este ao plano pré-processual, caracterizado pela resistência à pretensãomaterial da parte, enquanto que a lide caracterizaria o conflito de interessesposto à apreciação do Poder Judiciário, com os contornos assumidos no processo.Disto decorre que a coloração dada à lide não equivale necessariamente àapresentada pelo conflito de interesses, sendo, outrossim, determinada pelo queo autor indicar no processo, assim como pelo que for deduzido pelo réu em suadefesa, não englobando os fatos que, embora existentes no mundo pré-jurídico,não compuseram, por iniciativa do autor, o processo. A este respeito, Liebmanexplica que “o conflito de interesses não entra para o processo tal como semanifestou na vida real, mas só indiretamente, na feição e configuração que lhedeu o autor em seu pedido” (1947, p. 130).

Por diversas vezes o Código de Processo Civil brasileiro utiliza-se do termolide, tendo Alfredo Buzaid, na exposição de motivos do Código de ProcessoCivil de 1973 ressaltado que o termo, quando utilizado, deve significar o méritoda causa e, conseqüentemente, o objeto do processo. Assim explica o autor:

O projeto só usa a palavra lide para designar o mérito da causa. Lide é consoante alição de Carnelutti, o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um doslitigantes e pela resistência do outro. O julgamento desse conflito de pretensões,mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão a uma daspartes e nega-a a outra, constitui uma sentença definitiva de mérito. A lide é,portanto, o objeto principal do processo e nela se exprimem as aspirações emconflito de ambos os litigantes2.

Alfredo Buzaid, assim, identifica a lide com o mérito da causa, considerando-a o objeto do processo. Tal consideração, entretanto, pode conduzir a equívocosno plano prático, além de conflitar com o próprio sistema processual, uma vezque em casos como o de revelia e reconhecimento jurídico do pedido estar-se-iaadmitindo a existência de processo sem objeto, já que nestes casos não há oestabelecimento de uma lide, no sentido carneluttiano, ou seja, não há conflitode interesses, justamente por não haver qualquer resistência à pretensão do autor

1 Exposição de motivos do Código de Processo Civil, n. 6.

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(CARVALHO, 1992, p. 56). Tal é o posicionamento adotado pela doutrina,como é o caso de Cândido Rangel Dinamarco e Milton Paulo de Carvalho, quevêem na pretensão o objeto do processo, identificando-a com o mérito da causa.Assim leciona Dinamarco (1986):

“Fica, portanto a certeza de que é a pretensão que consubstancia o mérito, de modoque prover sobre este significa ditar uma providência relativa à situação trazida defora do processo e, assim, eliminar a situação tensa representada pela pretensão; eiso escopo social da jurisdição, cumprido mediante a eliminação das incertezasrepresentadas pelas pretensões insatisfeitas” (p. 203).

No mesmo sentido, Milton Paulo de Carvalho (1992), ao afirmar que

realizado o direito de agir, a demanda apresenta como que a matéria-prima doprovimento jurisdicional, a ser elaborado no curso do processo. A pretensão neladeduzida não se altera com a defesa e constitui o meritum causae, sendo este, segundoentendemos, o objeto do processo (p. 52).

É na pretensão, portanto, que reside o objeto do processo, a ela, portanto,devendo restringir-se a decisão judicial, cabendo ao juiz, no dispositivo da sentença,decidir sobre a pretensão trazida a juízo. A pretensão é entendida por Carnelutticomo “exigência de subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio [...]a pretensão é um ato, não um poder; algo que alguém faz não que alguém tem;uma manifestação, não uma superioridade da vontade” (1956, p. 31).

O objeto do processo, todavia, não pode ser considerado a pretensão nosentido material, mas sim a pretensão processual, entendendo-se como tal apretensão à tutela jurisdicional, ao provimento a ser emitido pelo magistrado nasolução do conflito, aliada à pretensão ao bem jurídico pleiteado pelo autor.Milton Paulo de Carvalho, ressaltando opinião de José Alberto dos Reis, diferenciapretensão de pedido, colocando a primeira como integrante da relação substancial,e reservando o termo pedido para a pretensão enquanto posta no processo:

em boa técnica jurídica, uma coisa é a pretensão do autor, outra o pedido. Aquela éum elemento da relação jurídica substancial; este um elemento da relação jurídicaprocessual. A pretensão exprime o direito que o autor se arroga contra o réu; opedido traduz-se na providência que o autor solicita do tribunal. É claro que apretensão repercute-se naturalmente no pedido; a espécie de providência que oautor vai pedir ao tribunal deve ser logicamente, o reflexo da pretensão que searroga contra o réu (CARVALHO, 1992, p. 76).

O pedido, portanto, é a pretensão processual, caracterizada como objeto doprocesso, constituindo-se no pedido de resolução judicial posto à apreciação doJudiciário através da demanda, com vistas à proteção do bem da vida pleiteado

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pelo autor. Não pode ser confundida com a pretensão material, a ponto deconsiderar-se esta o objeto do processo, pois em caso de carência da pretensãomaterial, ter-se-ia processo sem objeto (CARVALHO, 1992, p. 76). Entretanto,apesar do entendimento da pretensão processual, ou do pedido, como objeto doprocesso, a pretensão material, é revelada no processo através do pedido mediato,que consiste no bem da vida a ser obtido com a solução positiva do conflitolevado ao Judiciário. Assim é que ressalta Carvalho (1992):

O bem da vida, que surge como efeito do provimento, deve integrar necessariamentea pretensão processual, uma vez que o demandante não pode formular somente opedido de provimento sem o efeito, sendo este, por sua vez, essencialmentecompatível com o provimento, conforme derive da relação de direito material postapara deslinde (p. 76).

Sob este aspecto, o pedido, enquanto pretensão processual desdobra-se empedido imediato, representado pela pretensão à tutela jurisdicional e revelado napetição inicial mediante o requerimento da tutela jurisdicional pretendida, e pedidomediato, consubstanciado no bem da vida pleiteado pelo autor. Ou seja, uma veztrazida ao processo, à pretensão material, assumindo os contornos traçados peloautor em seu pedido, caracteriza-se como pretensão processual, que, através dopedido (mediato e imediato) formulado pelo autor e pela conduta do réu assumidano processo, traçará os contornos da lide. A pretensão material, assim, poderánão ser totalmente revelada no processo, de modo que o juiz apreciará unicamenteo que estiver contido na pretensão processual do autor, sob pena de sentençaultra ou extra petita.

Objeto do processo, dessa forma, é a pretensão processual, caracterizada pelopedido (mediato e imediato) posto ao processo pelo autor através da propositurada demanda, instrumento do direito de ação. De acordo com José Carlos BarbosaMoreira (1996, p. 12), “através da demanda, formula a parte um pedido, cujo teordetermina o objeto do litígio e, consequentemente, o âmbito dentro do qual tocaao órgão judicial decidir a lide (art. 128)”.

Em decorrência, o objeto do processo deve ser entendido como o mérito dacausa, que reflete o pedido do autor, a ser apreciado pelo juiz na sentença, deacordo com o princípio da correlação ou congruência.

3.2.2 Elementos identificadores da lide

Sendo caracterizada pelo conflito de interesses colocado à apreciação do PoderJudiciário, ou seja, pela resistência do réu à pretensão processual do autor, a lidecompõe-se, como decorre de sua própria definição, das partes, da pretensão, dos

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fundamentos que sustentam tal pretensão e da resistência do réu à pretensão doautor. Alterando-se qualquer desses elementos, portanto, altera-se a lide, o quegera efeitos na apreciação da ocorrência de coisa julgada, já que esta tem seualcance restrito às questões que compuseram determinada lide. Além disso, devidoà necessária resistência do réu para que se caracterize a lide, os elementos destamostram-se mais amplos do que os elementos da demanda. Assim, a lide assumiráos contornos do pedido, bem como da conduta assumida pelo réu no processo.

Carnelutti entendia os elementos da lide como as partes, o bem e os interessesem oposição, prescindindo, pois, das razões jurídicas invocadas pelas partes paraa proteção de seus respectivos interesses. Assim é que, para Carnelutti, aindividualização da lide deve ser entendida “de acordo com os interesses emoposição, isolados das razões jurídicas que constituam o fundamento da pretensão”(1961, p. 288). Contrapondo-se à teoria carneluttiana, Calamandrei defende que

se a lide é um conflito de interesses regulado pelo direito, parece que a proteçãojurídica do interesse e, por conseguinte, a razão jurídica em virtude da qual a parteinvoca esta proteção ou se opõe a ela deva ser, por definição, elemento indispensávelpara individualizar a lide (CALAMANDREI, 1961, p. 288).

Objetivamente, portanto, pode-se dizer que a lide é determinada pelo pedidoe pela causa de pedir. O pedido limita o próprio provimento jurisdicional final,sendo, todavia, qualificado e delimitado pela causa de pedir, ou seja, pelos seusfundamentos de fato e de direito. A causa de pedir, assim, identifica o pedido,antecedendo-o (CARVALHO, 1992, p. 93), sendo dividida em causa de pedirpróxima, equivalente aos fatos, e causa de pedir remota, correspondente aosfundamentos jurídicos do pedido.

Sobre a importância da causa de pedir na delimitação do pedido e,conseqüentemente, na delimitação do provimento jurisdicional, leciona Dinamarco(2003):

Isoladamente, o objeto do processo não é suficiente para traçar os limites doprovimento jurisdicional a proferir. A regra de correlação entre o provimento e ademanda exige que também sejam respeitados os limites da causa de pedir e dacomposição subjetiva desta (autor e réu). Essa observação, contudo, não leva a incluira causa de pedir ou os sujeitos no conceito ou no âmbito do objeto do processo.Uma coisa é definir os lindes da sentença a proferir, que incluem os fundamentossuscetíveis de integrar a motivação da sentença; outra, saber qual a matéria que estásendo julgada, ou seja, qual a pretensão (p. 188).

Na composição dos elementos objetivos da demanda, o Direito brasileirooptou pelo princípio da substanciação, em contraposição ao princípio da

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individuação, segundo o qual a simples menção ao título com que age o autorpermite a propositura da demanda. Ao contrário, pelo princípio da substanciação,o pedido deve emergir de fatos constitutivos sustentadores do direito materialalegado pelo autor, devidamente delineados e explicitados na petição inicial, nãobastando a mera referência ao título legitimador da atuação do autor em juízo.Como exemplifica Theodoro Junior, não basta ao autor mencionar seu título depropriedade, devendo, ainda, expor todos os fatos que geraram a propriedade(2001, p. 314). Neste sentido, explica Botelho de Mesquita (1982),

pela teoria da individuação, a causa de pedir seria constituída pela relação jurídicaafirmada pelo autor, de tal sorte que a mudança nos fatos constitutivos operada nocurso do processo não implicaria alteração da demanda. Já, pela teoria dasubstanciação, a causa de pedir seria constituída pelo fato ou complexo de fatosaptos a suportar, a dar causa, à pretensão do autor; de tal sorte que qualquer alteraçãodestes fatos no curso da demanda importaria mudança da ação (p. 48).

A teoria da individuação, assim, restringe a causa de pedir, considerando-asimplesmente como o título que legitima o autor a agir em juízo. Por outro lado,a teoria da substanciação vê a causa de pedir de maneira complexa, de modo aabranger todos os fatos que originaram o direito a ser pleiteado pelo autor e afundamentação jurídica que faça a devida adequação de tais fatos à norma jurídicaprevista. Portanto, tendo o sistema processual brasileiro adotado a teoria dasubstanciação, tem-se que qualquer alteração na causa de pedir, tanto próximacomo remota, implicará alteração na própria demanda e, conseqüentemente nalide, uma vez considerada seu elemento identificador.

Assim, considerando-se a teoria da individuação, a alteração de um simplesfato não implicará em alteração da lide, tendo em vista que a mudança nos fatosnão conduzirá a alteração na causa de pedir, já que, independentemente do fatooriginador do título com que age, o autor continuará possuindo o direito quepleiteia em juízo. Ao contrário, tendo por base a teoria da substanciação, uma vezalterados os fatos, altera-se a causa de pedir, que indicará um novo objeto, pelaalteração da causa petendi próxima, uma nova demanda e, por conseqüência, umanova lide.

4 DOS LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA4.1 Coisa julgada e tríplice identidade

Haverá coisa julgada material quando em posterior demanda, composta pelasmesmas partes, discute-se o mesmo pedido, sob os mesmo fatos e fundamentosjurídicos (causa de pedir). Assim é a determinação do Código de Processo Civil,

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que, em seu artigo 301, § 1º, condiciona a existência de coisa julgada à reproduçãode ação anteriormente ajuizada e decidida, considerando, em seu § 2º, que “umaação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir eo mesmo pedido”.

Trata-se da tríplice identidade, cujo entendimento é fundamental para oestabelecimento dos limites objetivos da coisa julgada, e sem a qual não há quese falar na existência de coisa julgada material, conforme explica Câmara (2001):

O nosso sistema adota, como regra geral, a chamada teoria das três identidades outeoria do tria eadem. Significa isto dizer que duas demandas são idênticas quando têmas mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo objeto. Isto significa dizerque, como regra geral, a coisa julgada material só implica extinção do processo quese instaure após a sua formação se este novo feito decorrer de demanda idêntica àque levou à instauração do primeiro processo, sendo certo que duas demandas sãoidênticas quando seus três elementos identificadores (partes, causa de pedir e pedido)são iguais (p. 401).

Presente, em nova demanda, os três elementos identificadores de demanda jáproposta e sobre a qual se prolatou sentença definitiva transitada em julgado,caracterizada estará à coisa julgada material, devendo o segundo processo serextinto sem julgamento de mérito, com base no artigo 267, inciso V do Códigode Processo Civil, já que se trata de pressuposto processual negativo.

Entretanto, nem sempre a regra da tríplice identidade poderá ser aplicada,uma vez que em alguns casos, apesar de não se verificar a identidade de partes,pedido e causa de pedir, a renovação da discussão em outro processo pode gerarincompatibilidade entre as decisões, de forma a prejudicar o resultado do primeiroprocesso. Assim, entende-se que a teoria da tríplice identidade deve valer comoregra geral, embora não possa atender a todos os casos de formação de coisajulgada (CÂMARA, 2001, p. 401).

Tome-se como exemplo o caso de um credor que ajuíza ação meramentedeclaratória com vistas a obter a declaração da existência de seu crédito, sendo ademanda julgada improcedente devido ao fato de o réu ter provado que já haviapago o crédito, tendo tal decisão transitado em julgado. Pouco tempo depois, omesmo autor ajuíza contra o mesmo réu ação condenatória, com base no mesmocrédito, requerendo, entretanto, a condenação do réu ao pagamento do crédito(CÂMARA, 2001, p. 401). Não há no caso identidade de todos os elementos dademanda, uma vez que, apesar de mesmas partes e mesma causa de pedir, trata-se de pedidos diferentes: na primeira demanda, visa o autor a declaração docrédito, e na segunda, a condenação do réu ao pagamento do mesmo. A própriatutela jurisdicional pleiteada é diversa, já que, no primeiro caso, quer o autor a

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Imutabilidade das decisões: os limites objetivos da coisa julgada

mera declaração, e no segundo pretende a condenação. Todavia, apesar de nãoestar presente a identidade de demandas, necessária para a caracterização de coisajulgada material, deverá a segunda demanda ser extinta sem julgamento de mérito,pela existência da coisa julgada material.

Na caracterização da incidência da coisa julgada material, portanto, a regra datríplice identidade deve valer como regra geral. Entretanto, deve-se considerarque, em sendo o resultado da primeira demanda prejudicado por decisão posterior,ainda que diferente algum dos elementos identificadores das demandas, presenteestará à coisa julgada material, de modo a impedir a existência de umaincompatibilidade lógica entre os resultados das demandas, o que abalaria asegurança jurídica sobre a qual repousa a relação levada à solução do PoderJudiciário e a própria justiça da decisão.

4.2 LIDE E QUESTÕES DECIDIDAS

4.2.1. Coisa julgada e lide

O sistema processual brasileiro restringe o alcance da coisa julgada à lide e àsquestões decididas (artigo 468 do Código de Processo Civil). Não se trata, porém,de considerar que a autoridade da coisa julgada opera sobre toda a lide, no sentidode que é a lide que se torna imutável, mas que, proposta demanda em que sediscuta a mesma lide, presente estará o pressuposto processual negativo da coisajulgada, que incidirá sobre todas as questões pertencentes àquela lide. Restringira autoridade da coisa julgada à lide, dessa forma, implica a necessidade de existênciada mesma lide para que se caracterize a coisa julgada, com vistas a, sobretudo,considerar-se a preclusão das questões discutidas e decididas no processo, já queas mesmas somente serão atingidas pela autoridade da coisa julgada relativamenteà mesma lide. Assim, a lide traça os contornos daquilo que, dentro de determinadademanda, efetivamente será revestido da autoridade da coisa julgada, emboranão se possa afirmar que a imutabilidade é incidente sobre a lide, justamente pornão ser a lide o objeto do processo.

Tanto é assim que caso o réu se limite a contestar o pedido do autor, oslimites da coisa julgada não serão modificados, por não haver, neste caso, ampliaçãodo thema decidendum. Ao contrário, se reconvir, formular pedido contraposto ou,ainda, se o autor ajuizar ação declaratória incidental, haverá ampliação do objetode julgamento e, conseqüentemente, os limites objetivos da coisa julgada abraçarãoos pedidos presentes dessas demandas (MOREIRA, 1974, p. 31). Neste sentido,Arruda Alvim explica que “na reconvenção, oposição e declaratória incidental,

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o processo é acrescido de mais objetos litigiosos, sobre os quais também pesaráa autoridade da coisa julgada” (1979, p. 250).

De acordo com os elementos e limites da demanda será determinado o âmbitodo julgamento e, conseqüentemente, o alcance da coisa julgada material, de modoque sua autoridade atinge efetivamente o pedido formulado pelo autor, com oscontornos dados pela causa de pedir. Dessa forma, apesar de restrita aos limitesda lide, a coisa julgada atinge efetivamente o pedido do autor, objeto do processo,decidido no dispositivo da sentença, única parte sentencial atingida pela autoridadeda coisa julgada, já que correlacionada necessariamente ao pedido do autor. Deacordo com Moreira (1974):

Apenas a lide é julgada; e como a lide se submete à apreciação do órgão judicial pormeio do pedido, não podendo ele decidi-la senão “nos limites em que foi proposta”(art. 128), segue-se que a área sujeita à autoridade da coisa julgada não pode jamaisexceder os contornos do petitum (p. 30).

Tendo seus limites fixados na lide, a coisa julgada terá por base o conflito deinteresses levado à apreciação do Poder Judiciário, caracterizado pela resistênciado réu à pretensão do autor, atingindo, em decorrência da eficácia preclusiva deladecorrente, todas as questões apreciadas pertinentes à lide. Mas, em concreto, oslimites objetivos da coisa julgada abrangem o resultado da lide, ou seja, a decisãoproferida pelo órgão jurisdicional, que, solucionando a controvérsia, atende àpretensão formulada pelo autor na petição inicial. Assim, apesar da necessáriaexistência de mesma lide para a caracterização da coisa julgada, esta opera somentesobre seu resultado, que se encontra no dispositivo da sentença e corresponde àpretensão processual do autor, implicando, todavia, na preclusão de todas asquestões pertinentes àquela lide.

Considerando que para a verificação da repetição de lides faz-se necessária aidentidade de partes, pedido e fundamentos de fato e de direito do pedido, somenteestará impossibilitada a apreciação de nova situação fática levada à apreciação doPoder Judiciário quando se encontrar adstrita aos contornos traçados pelo pedidoe explicitados pela causa de pedir, ou seja, quando referir-se à lide já solucionada,sobre a qual operou a autoridade da coisa julgada. Alterações no plano fático,portanto, podem conduzir à incompatibilidade entre lides que, emborasemelhantes, apresentem contornos diversos, de modo que sua apreciação nãoofenderá a coisa julgada.

4.2.2 Coisa julgada, questões decididas e questões prejudiciais

O artigo 468 do Código de Processo Civil brasileiro determina o alcance da

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autoridade da coisa julgada às questões decididas, ou seja, todas as questões quecomponham o objeto do julgamento da causa, integrando, portanto, o decisum.

Por questão entende-se, segundo Silva (1970), “um ponto duvidoso sobre ofundamento da pretensão ou da contestação”, obtendo-se a decisão da lidemediante a resolução das questões (p. 47). São as questões, portanto, todo pontocontroverso no processo, entendendo-se por ponto qualquer alegação da parte nosentido de sustentar sua pretensão.

A doutrina majoritária considera decididas e cobertas pela autoridade coisajulgada somente as questões indispensáveis para a prolatação da decisão final.Neste sentido, explica Moniz de Aragão que “a resolução das questões da lidefica coberta pela autoridade da coisa julgada na medida em que estas hajam sidoobjeto de julgamento na sentença” (1992, p. 244).

As questões decididas, portanto, são atingidas pela autoridade da coisa julgada,tornando-se impedida, assim, sua reapreciação em novo processo, na medida emque constituam objeto do julgamento da causa, integrando, assim, o decisum.

Diversamente do que ocorre com as questões decididas, fundamentais para adecisão da demanda, a que se refere o artigo 468 do Código de Processo Civil, asquestões prejudiciais decididas incidentemente no processo não fazem coisa julgada,conforme determina o artigo 469, inciso III do Código de Processo Civil. Monizde Aragão, comentando o artigo 468 do Código de Processo Civil, explica que,

as questões abrangidas pela disposição comentada são somente as de mérito, julgadascomo objeto principal do processo, pois as chamadas “questões prejudiciais”,solucionadas incidenter tantum, mesmo que sejam questões de mérito, não são por elaabrangidas, em decorrência do texto expresso do art. 469, III (1992, p. 243).

Questões prejudiciais são todas as questões consideradas premissas dojulgamento da causa, caracterizando-se como pressuposto fático ou jurídico parao resultado final do processo. É o caso da relação de paternidade em ação depensão alimentícia, ou da questão de domínio na ação reivindicatória. Vê-se,assim, que a questão prejudicial refere-se sempre a uma relação jurídicacontrovertida, tendente a influenciar no julgamento principal.

Na definição de Alvim, “prejudicial é aquela questão que deve, lógica enecessariamente, ser decidida antes de outra, sendo que sua decisão influenciaráo próprio teor da questão vinculada” (1977, p. 24). E, de acordo com Grinover(1972), questões prejudiciais são aquelas que

não dizem respeito diretamente à relação jurídica controvertida, mas que poderiamser por si sós, objeto de um processo independente, apresentando-se, porém, naqueleprocesso, apenas como ponto duvidoso na discussão da questão principal (p. 23).

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Embora importantes para a decisão da demanda, a lei processual brasileiraexclui as questões prejudiciais do âmbito de alcance da coisa julgada, de maneiraque tais questões poderão livremente ser apreciadas em processo futuro, aindaque a solução dada neste processo seja diversa da obtida no primeiro, sempreque diversa a lide apreciada. Entretanto, tratando-se de mesma lide, serãoalcançadas pela eficácia preclusiva da coisa julgada, restando impossibilitada,portanto, nova discussão. Neste sentido, leciona Guimarães (1969),

Apenas a questão que é objeto do decisum, e não aquelas que constituam suaspremissas adquire a auctoritas rei iudicatae. Estas premissas são atingidas peloefeito preclusivo da coisa julgada, mas não adquirem, elas próprias, autoridade decoisa julgada. Podem, por isso, tais questões ser ressuscitadas em novo processocujo objeto seja diverso do objeto do processo precedente. Só na hipótese de novoprocesso visando diminuir ou extinguir os efeitos da anterior sentença imutável,não poderão aquelas questões ser novamente suscitadas (p. 21).

Liebman ressalta que não se pode estender a coisa julgada a todas as questõesdebatidas e decididas no processo:

Não se abrangem na coisa julgada, ainda que discutidas e decididas, as questões que,sem constituir objeto do processo em sentido estrito, o juiz deverá examinar comopremissa da questão principal: foram elas conhecidas, mas não decididas, porquesobre elas o juiz não sentenciou, e por isso podem ser julgadas livremente em outroprocesso, mas para fim diverso do objetivado no processo anterior (1984, p. 56).

Ressalta Moniz de Aragão, com base no entendimento de FrancescoMenestrina, que na resolução da questão prejudicial é empregado o mesmoraciocínio lógico desenvolvido na decisão principal, sendo ambas, portanto,revestidas de “juízos de igual natureza”. O juiz, dessa forma, utiliza-se da mesmaoperação intelectual realizada no julgamento da questão principal, subsumindo ofato concreto à norma abstrata. Assim, “a operação intelectual para julgar davalidade do contrato, ou da existência do vínculo de parentesco, em nada difereda que é empregada no julgamento do litígio sobre a prestação decorrente docontrato ou em torno dos alimentos” (1992, p. 257).

Ao contrário, Moreira, ressaltando a impropriedade do termo decididaempregado no artigo 469, inciso III, afirma:

Sobre a prejudicial não ocorre decisão, mas simples cognitio: o juiz resolve a questão,como etapa necessária do itinerário lógico que lhe cumpre percorrer para chegar aopronunciamento final; mas de modo nenhum a julga – e por isso mesmo não surgea respeito coisa julgada” (1974, p. 30).

Tal é a diferenciação trazida pela doutrina a respeito da disciplina da questão

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prejudicial, posta no artigo 469, III do Código de Processo Civil, e as questõesdecididas, enunciadas no artigo 468 da mesma lei. Ou seja, relativamente à mesmalide, as questões prejudiciais não poderão novamente ser discutidas, devido aoalcance da eficácia preclusiva. Em outro processo, com vistas à composição denova lide, poderão ser novamente apreciadas e decididas.

Como ressalta Dinamarco (2003),

só a decisão do mérito projeta efeitos na vida das pessoas, os fundamentos não(sequer os de mérito). Por isso, só a decisão da causa ficará imunizada pela coisajulgada material: a solução de questões, não (disposição expressa dos incisos do art.469 do Código de Processo Civil) (2003, p. 186).

Isso porque, segundo o autor,

o fato de uma questão (ou conjunto de questões) ter pertinência à relação materialin judicium deducta, caracterizando-se como questão de mérito, não significa que elaprópria (a questão, ou grupo de questões) seja o mérito [...] questões de mérito nãose confundem com o próprio mérito: são questões relativas a ele, da mesma formacomo as dúvidas sobre a regularidade do processo se definem como questõesprocessuais, mas com o processo em si mesmo não se confundem (DINAMARCO,1986, p. 190, 206)3.

Apesar de voltadas para o mérito da demanda, as questões de mérito sãointegrantes da motivação da sentença, enquanto a apreciação do mérito ocorreno dispositivo da mesma. Donde decorre a exclusão das questões de mérito doslimites objetivos da coisa julgada, que abrangerão somente a decisão sobre omérito.

1 De ressaltar-se, todavia, que as questões prejudiciais serão atingidas pela autoridade dacoisa julgada se a parte assim interessada ajuizar a correspondente ação declaratóriaincidental, que tem a função precípua de ampliar os limites objetivos da coisa julgada,estendendo-os às questões prejudiciais, decididas incidentemente no processo. É oque determinam os artigos 5º, 325 e 470 do Código de Processo Civil, tendo esteúltimo a seguinte redação: “Faz, todavia, coisa julgada a resolução da questão prejudicial,se a parte o requerer, o juiz for competente em razão da matéria e constituir pressupostonecessário para o julgamento da lide”. A ação declaratória incidental, portanto, ampliao objeto do processo, de modo que nele estarão compreendidas questões referentes àlide. Consequentemente, a ação declaratória incidental amplia os limites objetivos dacoisa julgada.

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4.3 Coisa julgada e objeto do processo: a imutabilidade do dispositivoda sentença

A autoridade da coisa julgada atinge o objeto do processo, sobre o qualrecairá a determinação contida no provimento jurisdicional final. O instrumentoque fixa o objeto do processo é a demanda, que coloca diante do Poder Judiciárioa pretensão processual do autor, objeto do processo, revelada no pedido mediatoe imediato. Assim, o que efetivamente torna-se passível da imutabilidadedecorrente da coisa julgada é o pedido, por caracterizar-se na pretensão doautor posta à apreciação do Poder Judiciário e sobre o qual incidirá a resoluçãojudicial. De acordo com Wambier (2000),

a imutabilidade do conteúdo decisório do provimento final de mérito tem ligaçãoimediata com o pedido que tenha sido formulado pelo autor. Assim, embora o queefetivamente transite em julgado, adquirindo esse elevado tônus de imutabilidade,seja a parte decisória da sentença, é certo que, via de regra, na normalidade doscasos, isto é, nas hipóteses de sentença de procedência ou de improcedência em quenão tenha ocorrido julgamento ultra, extra ou infra petita, o pedido formulado peloautor como que conduz a formação da coisa julgada (p. 266).

A lei processual civil brasileira restringe a eficácia da coisa julgada ao comandoemergente da sentença, ou seja, ao dispositivo, excluindo de seu âmbito o relatórioe a fundamentação, o que vem expressamente determinado no artigo 469, incisoI, do Código de Processo Civil. Tal disposição advém da idéia de que o dispositivoda sentença reflete o pedido formulado pelo autor na petição inicial, determinando,portanto, o alcance da coisa julgada.

É propriamente em decorrência dessa necessária correlação entre pedido, objetodo processo, e dispositivo, que a lei processual adotou a restrição dos limitesobjetivos da coisa julgada a esta parte da sentença, de modo a excluir de suaabrangência os motivos da decisão, equivalentes à causa de pedir, fundamentosdo pedido. Conforme entendimento de Nery Júnior (2001),

poder-se-ia dizer que a parte final da petição inicial, isto é, o pedido, correspondeà parte final da sentença, vale dizer, o dispositivo. Assim, o conjunto formado pelopedido e o dispositivo é alcançado pela coisa julgada material [...] os motivos de fatoe de direito contidos na petição inicial (causa de pedir) correspondem àfundamentação da sentença. Assim, o conjunto formado pela causa de pedir efundamentação não seria atingido pela coisa julgada material (p. 910).

Assim, os motivos que revelam o processo de formação do convencimentodo juiz quanto à decisão final não fazem coisa julgada, sendo somente importantes

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para o delineamento do dispositivo. Neste sentido, explica Ovídio A. Baptistada Silva (2001) explica que

apenas o decisum adquire a condição de coisa julgada, nunca os motivos e osfundamentos da sentença que, como elementos lógicos necessários ao julgador,para que ele alcance o decisum, devem desaparecer ou tornar-se indiferentes ao alcanceda coisa julgada, não obstante continuem a ter utilidade como elementos capazes deesclarecerem o sentido do julgado (p. 509).

Prevalece a idéia, portanto, de que os motivos não são considerados decisõesno processo, mas apenas ilustram o raciocínio lógico empregado pelo julgadorao proferir o comando final da sentença. Não sendo dotados desta qualidade de“decisório”, ficam excluídos da autoridade da coisa julgada, sendo, todavia,indispensáveis para se atingir a decisão final.

Para Barbi, os motivos a que se refere o dispositivo supra citado revelam a“explicação de como o juiz se convenceu da existência, ou inexistência, dos fatosem que se baseia a sentença” (1975 p. 534-5).

São os motivos, assim, os fundamentos da decisão final, essenciais para aconclusão do juiz a respeito da procedência ou improcedência do pedido, apesarde não inseridos no objeto do julgamento, não sendo atingidos, portanto, pelaautoridade da coisa julgada.

Para Barbosa Moreira, estão compreendidos nos motivos da sentença tanto a“verdade dos fatos” (artigo 469, II) como as questões prejudiciais, decididasincidentemente no processo (artigo 469, III), uma vez que ambos constituem-seem razões de decidir. Segundo o autor,

a análise dos três incisos revela com facilidade que o texto é redundante. A rigor,bastaria à alusão aos motivos (inciso I), em que tudo mais já está compreendido [...]Desde logo se vê, portanto, que os dois últimos incisos do art. 469 na verdade selimitam a explicitar o conteúdo do inciso I, em relação a duas classes de “motivos”(MOREIRA, 1974, p. 31).

Realmente, as questões prejudiciais e a verdade dos fatos são fundamentosda sentença, de modo que se enquadram perfeitamente no âmbito de suamotivação. E, como tal, não são atingidos pela autoridade da coisa julgada.Dessa forma, a simples alusão à “motivação”, no artigo 469, implicaria na exclusãodas questões e da verdade dos fatos do âmbito de alcance da coisa julgada.

Deve-se ressaltar, neste ponto, o entendimento a respeito da “verdade dosfatos”, expressão utilizada pelo Código de Processo Civil no artigo 469 supracitado. No sistema positivo, a verdade que servirá como fundamento à decisãofinal não corresponde necessariamente à verdade dos fatos, tal como se apresentam

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extraprocessualmente, mas restringe-se à verdade formal, existente no processo,e trazida pelo autor mediante a exposição dos fatos embasadores de seu pedido.Assim, a pretensão material pode estar consubstanciada em fatos diversos, que,entretanto, não foram completamente trazidos pelo autor na petição inicial. A“verdade dos fatos”, a que se refere o artigo supra mencionado, dessa forma,será aquela revelada pelo autor na sua pretensão processual, mais especificamenteno seu pedido mediato, bem como na causa de pedir próxima. É exatamenteneste ponto que se encontra a diferença entre lide e conflito de interesses. A“verdade dos fatos” expressa no artigo 469 é a verdade que sustenta a lide e nãonecessariamente o conflito de interesses.

Correlato ao pedido do autor, o dispositivo é a parte sentencial que sofre aincidência da coisa julgada material, restando excluídos de sua autoridade osmotivos da sentença, onde incluem-se a questão prejudicial decidida incidentementeno processo e a verdade dos fatos, entendida esta como a verdade formal, reflexoda lide, não necessariamente sustentadora do conflito de interesses, fenômenopré-processual. Para a dimensão da coisa julgada, assim, importa a consideraçãodos fatos trazidos ao processo, ainda que sobre eles não incida sua autoridade.

No dispositivo, assim, está à resposta jurisdicional ao pedido do autor. Emboraa identificação da lide seja necessária à delimitação da abrangência da coisa julgada,sobretudo no que se refere às questões que compõem a lide, é no dispositivo,correlato ao pedido, que está à efetiva incidência da autoridade da coisa julgada.

A autoridade da coisa julgada atinge o objeto do processo, expresso no pedidodo autor, veiculado através da demanda. A resposta jurisdicional a ser concedidano dispositivo da sentença, portanto, vincula-se integralmente ao pedido do autor,em obediência ao Princípio da Correlação ou Congruência, de modo que somenteo dispositivo receberá a incidência da imutabilidade decorrente da coisa julgadamaterial.

5 CONCLUSÕES

1. O alcance da autoridade da coisa julgada é determinado através de seuslimites, estabelecidos no sistema processual. Objetivamente, somente seráatingido pela qualidade de imutabilidade decorrente da coisa julgada o queestiver compreendido em tais limites. Qualquer discussão sobre a coisajulgada, pois, deve partir da fixação e análise dos limites objetivosestabelecidos pela lei processual;

2. Visando o estabelecimento dos limites objetivos da coisa julgada, o artigo468 do Código de Processo Civil determina que a autoridade da coisajulgada opera nos limites da lide e das questões decididas;

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Imutabilidade das decisões: os limites objetivos da coisa julgada

3. Caracteriza-se a lide pelo conflito de interesses trazido à apreciação doPoder Judiciário. Compõe-se, assim, dos três elementos identificadoresdas demandas, ou seja, partes, pedido e causa de pedir, dados os devidoscontornos assumidos em virtude da conduta do réu e sua resistência àpretensão do autor;

4. Enquanto fenômeno pré-processual, o conflito de interesses apresentadeterminada feição que, uma vez trazido ao processo, assumirá os contornostecidos pelo autor e pela conduta do réu, quando, então, caracterizadaestará à lide. Na solução da lide, dessa forma, o magistrado deverá ater-seaos fatos trazidos pelo autor à demanda, e, igualmente, às alegações doréu, de maneira que a coloração assumida pelo conflito de interesses nãoserá levada em consideração;

5. Apesar da determinação constante do artigo 468 no sentido de que aimutabilidade decorrente da coisa julgada incide nos limites da lide, não éa lide que efetivamente sofre a incidência da coisa julgada, tornando-seimutável, mas sim o objeto do processo. E, embora a Exposição de Motivosdo Código de Processo Civil de 1973 considere a lide como tal, prevaleceo entendimento que considera a pretensão como objeto do processo;

6. A coisa julgada atinge o objeto do processo, entendido como o mérito dademanda, e que corresponde à pretensão processual do autor. A pretensãoprocessual equivale ao pedido, abrangendo, portanto, o pedido mediato,revelado no bem da vida pleiteado pelo autor, e o pedido imediato, ouseja, a tutela jurisdicional pretendida;

7. A pretensão material não é considerada objeto do processo, uma vez queenquanto fenômeno pré-processual, concomitante ao conflito de interesses,a pretensão não interessa à solução do litígio. Somente será consideradaquando, uma vez trazida ao processo, servir de sustentação ao pedido doautor, tratando-se, neste caso, de pretensão processual;

8. Sendo o objeto do processo a pretensão processual, ou o pedido, tal comoposto pelo autor na petição inicial, será este o que efetivamente integraráo conteúdo do thema decidendum. A conduta do réu, enquanto somenteconteste a demanda, não influenciará o objeto do processo e,conseqüentemente, o âmbito de alcance da coisa julgada;

9. O objeto do processo é trazido à apreciação do Poder Judiciário por meioda demanda. Instrumento do direito de ação, a demanda constitui-se noato que dá início ao exercício da Jurisdição, expondo a pretensão do autor,com vistas à obtenção da adequada solução para seu problema.Conseqüentemente, os limites da coisa julgada deverão ater-se

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necessariamente aos limites da demanda, por ser este o instrumento queconduz a pretensão do autor à apreciação do órgão jurisdicional;

10. Os limites da demanda são caracterizados pela tríplice identidade, ou seja,partes, pedido e causa de pedir. Assim, duas demandas serão idênticasquando apresentem exatamente os mesmos elementos identificadores.Neste sentido, haverá coisa julgada sempre que em posterior demandaforem caracterizados os mesmos elementos identificadores de demandapreviamente trazida à apreciação do Poder Judiciário e sobre a qual tenhasido proferida sentença de mérito;

11. Apesar de necessária a identificação dos três elementos para a caracterizaçãode coisa julgada, há casos em que esta incidirá devido à incompatibilidadeentre os resultados de duas demandas, ainda que diverso algum dos trêselementos identificadores. A coisa julgada impedirá novo julgamentosempre que o resultado da primeira demanda restar prejudicado peloresultado da segunda;

12. Somente o dispositivo da sentença se tornará imutável em decorrência dacoisa julgada material, já que, em obediência ao Princípio da Correlaçãoou Congruência, a resposta jurisdicional a ser concedida no dispositivodeve estar vinculada ao pedido do autor, objeto do processo;

13. A coisa julgada não se estende aos motivos, nos quais incluem-se a “verdadedos fatos” e as questões prejudiciais decididas incidentemente no processo.Tal determinação refere-se à nova lide, ou seja, relativamente à mesmalide os motivos serão imutáveis, impedida, portanto, sua reapreciação;

14. O artigo 468 do Código de Processo Civil estabelece que a autoridade dacoisa julgada opera sobre as questões decididas, ou seja, tornam-se imutáveistodas as questões que integrem o decisum.

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Morosidade do Pode Judiciário: prioridades para a reforma

MOROSIDADE DO PODER JUDICIÁRIO:PRIORIDADES PARA A REFORMA

THE SLOWNESS OF THE JUDICIARY:PRIORITIES FOR REFORM

Vera Lúcia Feil Ponciano*

Resumo: Aborda sobre a explosão de litigiosidade ocorrida no Brasil apartir da atual Constituição Federal, que levou ao ponto culminante oproblema da morosidade da prestação jurisdicional. Enfatiza o despertarda sociedade brasileira para a realidade da estrutura do sistema judicial,que gerou a necessidade de reforma do Judiciário. Destaca reformaslegislativas efetuadas. Elenca algumas prioridades para a consecução daalmejada reforma do Poder Judiciário.

Palavras-chave: Litigiosidade. Morosidade. Crise. Poder Judiciário.Reforma.

Abstract: The text treats about the increase of the litigation in Brazilafter the current Constitution and, as a consequence, the slowness of theJudicial process in Brazil. It emphasizes the awakening of the braziliansociety to the deficiencies of the law system structure, which caused theneed of a Judiciary Reform. Criticizes the speeches that cause an overallfeeling of a Judiciary crisis, without showing technical studies or viablesolutions. Gives attention to the law changes. Points some priorities toput in practice the desired Judiciary Reform.

Keywords: Litigation. Slowness of the Judicial process. Crisis. Judiciary.Reform.

1 INTRODUÇÃO

A questão da necessidade de reforma do Poder Judiciário tem sido colocadano centro dos debates jurídicos, políticos e sociais, principalmente a partir daConstituição Federal de 1988, pelo fato de esta ter contribuído para o surgimento

* Juíza Federal da 8ª Vara Cível de Curitiba/PR, mestranda em Direito Econômico eSocioambiental na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). email:[email protected].

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de várias demandas sociais reprimidas e ampliação do acesso à justiça, gerando oprotagonismo do Poder Judiciário. No entanto, este não estava preparado paracumprir sua função de pacificação social por meio da resolução dos conflitos demodo célere e adequado.

Esse fato, aliado à dinâmica do mundo moderno, proporcionada pela evoluçãotecnológica e científica, despertou a sociedade brasileira para a realidade daestrutura do sistema judicial, tida como arcaica, burocrática e ineficiente,especialmente em virtude da morosidade da prestação jurisdicional.

Diante desse quadro, cresceu a insatisfação social com esse Poder, e passou aser destacada a existência de uma “crise” do Poder Judiciário. Embora amorosidade seja um grave problema a ser solucionado, a sensação de “crise” éexplorada politicamente, e muitos discursos que pregam a reforma do Judiciáriosão desprovidos de estudos técnicos e científicos, no que tange aos diagnósticose à previsão de soluções.

O objetivo deste artigo é indicar prioridades para a reforma do Judiciário,relacionadas à democratização do acesso à justiça; ao investimento em recursoshumanos, tecnológicos e materiais; à identificação dos fatores que causam amorosidade e à necessidade de um planejamento estratégico em nível nacional.

2 A EXPLOSÃO DE LITIGIOSIDADE

Na área da ciência e tecnologia, o século passado, sobretudo após a II GuerraMundial, foi marcado por um progresso sem precedentes na história dahumanidade, em virtude de novas descobertas científicas e do surgimento deinovações tecnológicas, todas destinadas a proporcionar, em tese, mais satisfaçãoe felicidade ao ser humano. Esse progresso proporcionou um mundo cada vezmais dinâmico, no qual as relações comerciais se desenvolvem de modo célere eem tempo real.

Esse progresso proporcionou um mundo cada vez mais dinâmico, no qual asrelações comerciais se desenvolvem de modo célere e em tempo real.

Na área do direito a revolução, a partir do mesmo período, ficou por conta doreconhecimento dos direitos humanos em nível internacional pela DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos de 10/12/1948; pelos demais tratados econvenções posteriores; pela inclusão de novos direitos na Constituição de váriospaíses ocidentais, o que fez Norberto Bobbio qualificar a era após II GrandeGuerra como a Era dos Direitos (BOBBIO, 1992).

No plano lógico-formal, a Constituição Federal de 1988 não ignorou essastransformações, contribuindo para a democratização do país e para o surgimento

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de uma sociedade mais consciente e preocupada com as questões da cidadania ecom o acesso à justiça, considerando a ampliação do rol dos direitos fundamentais,com ênfase especial aos de terceira geração1.

Esse progresso no campo jurídico-constitucional brasileiro gerou expectativascrescentes de efetivação daqueles direitos pelo Estado, a fim de garantir-se aigualdade material. Todavia, o Brasil não estava dotado de condições para tanto,motivo pelo qual as expectativas se voltaram para o Poder Judiciário, que passoua ser provocado para garantir os direitos consagrados na atual Lei Fundamental.

Diante desse quadro, surgiram novas formas de conflito e abriu-se caminhopara o acesso à justiça de várias demandas sociais até então reprimidas, o quecontribuiu para o protagonismo do Judiciário e, conseqüentemente, para o aumentoda quantidade de processos, o que se convencionou chamar “explosão delitigiosidade”, que tivera seu marco inicial a partir da década de 702, conformedisserta José Eduardo Faria (FARIA, 2003, p. 6):

Por isso, desde que um amplo espectro de movimentos sociais – centros de defesade direitos humanos, comunidades de base, comissões eclesiais de base, movimentosde minorias, sindicatos, organizações não-governamentais, etc. – emergiu entre osanos 70 e 80 procurando ampliar o acesso dos segmentos marginalizados e pobresda população à Justiça, e o advento da Constituição de 88 propiciou um sem númerode demandas judiciais para o reconhecimento de novos direitos (moradia) e a aplicaçãode direitos já consagrados (reforma agrária), os tribunais brasileiros passaram amovimentar toneladas de papel e a protocolar, carimbar, rubricar, distribuir, despachare julgar milhões de ações (Quadro 4).

Boaventura de Souza Santos (SANTOS, 1997, p. 44) enfatiza sobre o assunto:

De tudo isto resultou uma explosão de litigiosidade à qual a administração da justiçadificilmente poderia dar resposta. Acresce que esta explosão veio a agravar-se noinício da década de 70, ou seja, num período em que a expansão econômica terminavae se iniciava uma recessão que se prolonga até hoje e que, pela sua pertinácia, assumeum caráter estrutural. Daí resultou a redução progressiva dos recursos financeiros do

1 O ideal de fraternidade corresponde à terceira geração dos direitos fundamentais, ouseja, a outras modalidades de direitos decorrentes de uma sociedade de massa, surgidaem razão dos processos de industrialização e urbanização, tais como desenvolvimento,paz, meio ambiente, saúde, educação pública, proteção ao consumidor, à infância e àjuventude, ao idoso e ao deficiente físico.

2 De acordo com a pesquisa realizada no Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário,apurou-se que o número de feitos ajuizados no ano de 2000 foi superior em 135% aototal ajuizado em 1990.

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Estado e sua crescente incapacidade para dar cumprimento aos compromissosassistenciais e providenciais assumidos para com as classes populares da década anterior.

Entretanto, o Judiciário não estava preparado para responder com efetividadea essa explosão de litigiosidade. Assim, ao mesmo tempo em que se evidenciouo protagonismo do Judiciário, cresceu a insatisfação social com esse Poder, poisele não estava – e ainda não está – dotado de condições para atender a essacrescente demanda, seja por deficiência na área de recursos humanos3, tecnológicosou materiais.

Entretanto, não podemos ignorar outros fatores que colaboraram para aexplosão de litigiosidade. Entre eles, podemos destacar: a) o avançado progressoda tecnologia de informação, que contribuiu para que as pessoas passassem a sermais bem informadas sobre seus direitos inclusive; b) a disparidade gravíssimaentre o discurso jurídico e a planificação econômica (ZAFFARONI, 1995, p.24); c) a judicialização da política e da economia, que é um fenômeno complexoe envolve vários fatores (FARIA, 2003, p. 12)4; d) a instabilidade normativa e a“inflação jurídica” (FARIA, 2003, p. 14), decorrente da produção legislativa deforma desordenada e desenfreada, inclusive contrariando a Constituição Federale leis infraconstitucionais; e) o aumento da burocracia estatal e a produçãolegislativa impulsionada unicamente pelo clientelismo político (ZAFFARONI,1995, p. 25); f) não implantação pelo Estado brasileiro das políticas públicasnecessárias à efetivação dos direitos garantidos pela atual Carta Magna.

Tais fatores demonstram, em verdade, a “crise” do Estado brasileiro, quedesobedece à própria Constituição e não garante os direitos que estão previstosnela. A litigiosidade no nosso país cresce dia a dia, exigindo esforços por partedo número reduzido de juízes e servidores, que não conseguem dar conta dacrescente demanda, não obstante as constantes reformas legislativas e a existênciados recursos tecnológicos disponíveis.

De qualquer modo, é importante que a sociedade brasileira tenha despertadopara a questão da democratização do acesso à justiça e da eficiência do PoderJudiciário, especialmente no tocante à morosidade5, passando a exigir que a

3 Importante frisar que os recursos humanos em alguns órgãos do Poder Judiciáriodeixam a desejar tanto em termos de quantidade quanto no aspecto da qualificação deservidores.

4 Segundo José Eduardo Faria, um dos fatores é “a incapacidade do Estado de controlar,disciplinar e regular, com os instrumentos normativos de um ordenamento jurídicoresultante de um sistema romano idealista, rígido e sem vínculos com a realidadecontemporânea, mercados cada vez mais integrados em escala planetária”.

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atividade jurisdicional acompanhe a dinâmica do mundo moderno, a fim de atenderàs necessidades sociais emergentes numa nova ordem democrática, considerandoa sua função social e a importância da justiça no Estado Democrático de Direitocontemporâneo.

3 A MOROSIDADE DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

Diante dessa alta litigiosidade e da insatisfação social, o Judiciário não podiapermanecer fechado em si mesmo e incapaz de se auto-avaliar, tampouco o PoderLegislativo e Executivo poderiam ficar alheios ao problema. Em virtude disso,os três poderes passaram a discutir abertamente a questão6, bem como juristas ea sociedade interessada numa prestação jurisdicional célere e eficiente, pois setornou inconcebível que o Poder Judiciário mantenha sua estrutura atual e fiquealheio às transformações sociais e aos novos conflitos. Indubitavelmente, amorosidade do Judiciário é realidade e a necessidade de combatê-la é premente.

Em 1997, o Banco Mundial, dentro do seu programa de estudos acerca doJudiciário dos países da América Latina, iniciado na década de 80, elaborou orelatório O Setor Judicial na América Latina e no Caribe: Elementos da ReformaDALOKIAS, 1996, p. 6-10). Entre as constatações do estudo técnico realizado,podemos destacar as seguintes:

“o Judiciário é incapaz de assegurar a resolução de conflitos de forma previsível eeficaz, garantindo assim os direitos individuais e de propriedade”; “a reforma doJudiciário faz parte de um processo de redefinição do Estado e suas relações com asociedade, sendo que o desenvolvimento econômico não pode continuar sem umefetivo reforço, definição e interpretação dos direitos e garantias sobre a propriedade.Mais especificamente, a reforma do judiciário tem como alvo o aumento da eficiênciae equidade em solver disputas, aprimorando o acesso à justiça que atualmente nãotem promovido o desenvolvimento do setor privado”.

5 Conforme consta na edição especial da revista Consulex nº 167, de dezembro de 2003,p. 17, em pesquisa promovida, os advogados indicaram como um dos principais problemasda Justiça a morosidade. Também foi promovida pesquisa entre os juízes em 1993 peloInstituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (IDESP), tendo sidoapontada a morosidade como um dos principais problemas do Judiciário.

6 Em 15 de dezembro de 2004 o Presidente da República, o Presidente do STF, oPresidente do Senado Federal e o Presidente da Câmara dos Deputados firmaram oPacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e republicano (http://www.mj.gov.br/reforma/pdf/publicacoes/Reforma_do_judiciario.pdf).

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Embora a ênfase do estudo seja na “modernização do Poder Judiciário paraassegurar um ambiente tranqüilo aos investimentos estrangeiros, por meio documprimento dos contratos, da certeza e previsibilidade dos direitos sobre apropriedade”, não havendo “qualquer vinculação direta entre o financiamentopara a reforma e a melhoria das condições sociais desses países”, sendo a razãomaior para a modernização “garantir aos investidores estrangeiros em paísesemergentes, o rendimento “compatível” com o risco de se investir nesses países”(BARBOSA, 2007, p. 3) o maior para a modernizaçnto para a reforma e a melhoriadas condiçs, da certeza e privisibilidade dos direitos sobre a proprie7, não hádúvidas de que o documento do Banco Mundial colaborou para acelerar os debatese dar início a um processo de reforma do Poder Judiciário, inclusive em nívelconstitucional.

Todavia, muitos debates instaurados sobre a morosidade do Poder Judiciárioe a necessidade de sua reforma, sem base em estudos técnicos e estatísticas,acabam passando uma generalizada sensação de “crise” judicial, como se amorosidade do Judiciário nunca tivesse existido. Ao contrário, a história demonstraque a justiça brasileira sempre foi morosa e distanciada da população, ou seja,estar em “crise” atualmente pressupõe que um dia a justiça brasileira tenha sidocélere e democrática (TASSE, 2004, p. 43).

Destarte, o debate não pode ser exagerado nem generalizado ou baseado emmeras opiniões pessoais, pois se “crise” do Judiciário existe, não decorre elaapenas da ineficácia do Judiciário em dar solução rápida às demandas, mas devárias causas, inclusive relacionadas à crise do próprio modelo de Estado, quegeraram um crescente protagonismo do Judiciário no seio de uma sociedadedesigual (FARIA, 2003, p. 15).

4 A REFORMA CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL

A Emenda Constitucional nº 45/2004 promoveu a almejada Reforma doJudiciário, trazendo diversas mudanças com o objetivo de tornar o Poder Judiciáriomais transparente e a prestação jurisdicional eficaz e célere. Entre as mudanças,podem ser citadas a instituição da garantia da razoável duração do processo8, aquarentena dos juízes9, a criação do Conselho Nacional de Justiça (CF, art. 92, I-

7 Projeto de Pesquisa BRA/07/004 – Pensando o Direito, apresentado Ministério da Justiça– Secretaria de Assuntos Legislativos – SAL. Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento – PNUD. ÁREA TEMÁTICA: Observatório do Poder Judiciário.TÍTULO DO PROJETO: Novos parâmetros para a construção de um Poder Judiciáriorealizador do Estado Democrático de Direito. Junho 2007.

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A), a adoção da Súmula Vinculante (CF, art. 103-A) e a ampliação da competênciada Justiça do Trabalho (art. 114).

Após a EC n° 45/2004 iniciou-se o processo de reforma da legislaçãoinfraconstitucional, com o objetivo também de encontrar solução para a lentidãodo sistema judiciário. Várias alterações foram feitas, por exemplo, no Código deProcesso Civil, entre elas, pelas Leis nºs 1.187, de 19.10.2005; 11.232, de22.12.2005; 11.276/06; 11.280/06 11.382/06; 11.419/06 e 11.448/07. Noentanto, tais reformas não têm sido suficientes para resolver o problema damorosidade.

Desse modo, a discussão vai além da necessidade de meras reformasconstitucionais e legais isoladas. A redução da litigiosidade e a resolução dosconflitos de modo célere e adequado não são possíveis apenas com reformasprocessuais, motivo pelo qual é preciso pensar em outras medidas que possamcolaborar para a solução do problema.

5 PRIORIDADES PARA A REFORMA DO JUDICIÁRIO

5.1 Redução do valor das custas processuais

Uma mudança que contribuiria para a democratização do acesso à justiça é aredução do valor das custas processuais, além da uniformização delas em nívelnacional, pois, sem dúvida, em muitos Estados da Federação, no âmbito da JustiçaEstadual, o valor delas é tão elevado que impede o indivíduo de ingressar peranteo Judiciário. Observa-se ainda que aos processos que contam com a assistênciajudiciária gratuita não é dispensado o mesmo tratamento que àqueles em que ascustas são pagas.

Tomamos as lições de Adel El Tasse (TASSE, 2004, p. 40, 81) para ampararnossa afirmação, dada a ousadia e coragem com que enfrentou o assunto, verbis:

“O acesso jurisdicional, como garantia constitucional não passa, em muitos Estadosbrasileiros, de ilusão, posto que a Justiça é cara, em sistemas cartorários arcaicos,segundo os quais os serviços inerentes ao Poder Público pertencem à iniciativaprivada.

8 A EC nº 45/2004 introduziu o inciso LXXVIII no art. 5º, preconizando que: “LXXVIII– a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração doprocesso e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

9 É proibido ao magistrado exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou,antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração(CF, art. 95, V).

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A prestação jurisdicional é obstada, em várias hipóteses, pelas elevadas custas que,na esperança que ao final seu direito seja reconhecido, deve a parte arcar em proveitodo enriquecimento dos titulares de cartórios privados.

“A realidade é que as portas da justiça estão cerradas para a grande maioria dapopulação brasileira, que suporta as dores de ver seu direito sacrificado”.“Não se pode perder de vista, igualmente, os custos da justiça brasileira, que nãopermitem que as camadas menos favorecidas economicamente possam obter a tutelado Poder Judiciário, para o resguardo de seus direitos.

“Em muitos Estados brasileiros, como no caso do Paraná, ainda é mantida umaarcaica ditadura cartorária, na qual cartórios judiciais não pertencem ao Estado. Oobjetivo de toda estrutura judicial é a pacificação social, no entanto, tais cartóriosnão passam de meras máquinas de “fazer dinheiro” para seus proprietários que, emgeral, não apresentam preocupações com o cessar da litigiosidade na sociedade,atuando, tão-somente, na contínua batalha pelo aumento de seus lucros”.

Não obstante o elevado valor das custas processuais, a qualidade do serviçoprestado deixa a desejar, pois não há investimento adequado em recursos humanos– quantitativamente e qualitativamente –, tampouco em recursos tecnológicos emateriais.

Essa constatação não se baseia em mera opinião pessoal, pois a Ordem dosAdvogados do Brasil – OAB/PR, em seu Jornal da Ordem, do mês de junho de2007, estampou na primeira página a seguinte notícia: “Varas Estaduais – Retratodo caos na Justiça do Paraná”, destacando: a) a falta de varas e de juízes, quecompromete o funcionamento da Justiça; b) a falta de equipamentos deinformática; c) o despreparo de juízes e serventuários; d) a morosidade, inclusivepara efetuar uma simples consulta do andamento processual.

Na reportagem e nas opiniões colhidas destacam-se expressões tais como: “Éo caos!”; “A solução não pode mais ser adiada. A situação é absolutamenteinsuportável”; “falta ordem na casa”; “Estamos num declive imenso e não sabemosaonde vamor parar”; “situação absurda”; “Só o tempo que levamos para fazeruma simples consulta demonstra o quanto estamos sendo desrespeitados”; “Amaioria das cidades do interior do Paraná também vive a dramática deteriorizaçãoda Justiça Comum Estadual”; “A situação é de colapso”.

Embora as constatações se refiram a toda a Justiça Estadual de 1ª instância,envolvendo cartórios oficiais (criminais, criança e adolescente), a maior cobrançapara que o serviço seja prestado de forma célere e adequada deve ser feita aoscartórios não oficiais, pois estes é que cobram custas elevadas e auferem lucro.Conforme expressão do advogado Newton de Sisti no periódico referido: “Os

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Morosidade do Pode Judiciário: prioridades para a reforma

cartórios precisam ser oficializados para que não se tenha a ambição do lucro aogerenciá-los”.

Desse modo, é necessário que os administradores do Poder Judiciário Estadualatentem para essa realidade nos Estados em que a estrutura judicial esteja nasituação analisada, não obstante a resolução do problema envolva questõespolíticas também.

5.2 Recursos humanos, tecnológicos e materiais

Para que o Judiciário possa prestar a tutela jurisdicional de forma adequada,célere e com qualidade, sem dúvida deve existir número suficiente de juizes e deservidores, além do necessário investimento em recursos tecnológicos e materiais.

No tocante ao número reduzido de juízes, o Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira(TEIXEIRA, 2001, p. 4), no ano de 2001, salientou que tínhamos 01 para cada25 a 29 mil habitantes, verbis:

Dessa moldura se conclui, sem maiores esforços, que há uma nítida distinção entre

o Judiciário que a sociedade reclama, e todos desejamos, e o Judiciário que aí está

posto, que a todos descontenta, inclusive, e, sobretudo, aos juízes, em quem acabam

por recair as críticas generalizadas, desconhecendo os jurisdicionados a real dimensão

da problemática, quando temos 1(um) juiz para cada 25 a 29 mil habitantes(a média,

na Europa, é de 1 para 7.000 a 10.000), quando o Supremo Tribunal Federal julga

mais de 100.000(cem mil) processos por ano(enquanto a Suprema Corte dos Estados

Unidos julga menos de 100(cem) causas em igual período) e o Superior Tribunal de

Justiça mais de 200.000(duzentos mil), com um aumento anual de aproximadamente

20%, números de longe sem similar no plano internacional, sendo de acrescentar

que igualmente supercongestionadas estão às instâncias ordinárias.

Todavia, frisamos que não apenas deve ser aumentado o número de juízes,como também ser dada ênfase a um processo de formação e aperfeiçoamentodos magistrados, por intermédio da Escola Nacional da Magistratura, previstano art. 93, inc. IV, da CF, segundo o qual essa Escola deve ser responsável pela“previsão de cursos oficiais de preparação, aperfeiçoamento e promoção demagistrados, constituindo etapa obrigatória do processo de vitaliciamento aparticipação em curso oficial ou reconhecido por escola nacional de formação eaperfeiçoamento de magistrados”.

Visando cumprir o mandamento constitucional, foi instituída a Escola Nacionalde Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), por meio da

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Resolução nº 03, de 30.11.2006, da Presidência do STJ – Superior Tribunal deJustiça, com o objetivo de regulamentar, autorizar e fiscalizar os cursos oficiaispara ingresso e promoção na carreira da Magistratura (art. 1º).

Compreendem-se no objetivo as seguintes atividades: a) definir as diretrizesbásicas para a formação e o aperfeiçoamento de Magistrados; b) fomentarpesquisas, estudos e debates sobre temas relevantes para o aprimoramento dosserviços judiciários e da prestação jurisdicional; c) promover a cooperação comentidades nacionais e estrangeiras ligadas ao ensino, pesquisa e extensão; d)incentivar o intercâmbio entre a Justiça brasileira e as de outros países; e) estimular,diretamente ou mediante convênio, a realização de cursos relacionados com oobjetivo da ENFAM, dando ênfase à formação humanística; f) habilitar para osefeitos do art. 93, inciso II, alínea “c”, e inciso IV, da Constituição Federal,cursos de formação e aperfeiçoamento de magistrados oferecidos por instituiçõespúblicas ou privadas.

Dirigido pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Raphael deBarros Monteiro Filho, o Conselho Superior da ENFAM é integrado pelosmembros do Conselho de Administração do Tribunal e por dois magistrados desegundo grau designados pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) epela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE).

Os cursos oferecidos pela ENFAM serão divididos da seguinte forma: cursode formação para ingresso na magistratura e curso de aperfeiçoamento dosmagistrados, visando ao vitaliciamento e ao constante aprimoramento necessárioà promoção do juiz e ao exercício da jurisdição.

O curso de formação de magistrados fará parte da última etapa do concursopúblico para ingresso na carreira, terá a duração mínima de quatro meses e ocandidato receberá uma bolsa mensal de valor mínimo equivalente a 50% daremuneração do juiz substituto. A obrigatoriedade do curso de formação é aprimeira inovação instituída pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamentoda Magistratura e foi aprovada pelos representantes das 33 escolas estaduais efederais de magistratura reunidos no Superior Tribunal de Justiça.

Outra inovação aprovada foi à instituição do curso de aperfeiçoamento paraque o magistrado obtenha a vitaliciedade do cargo. Atualmente, ela é concedidaapós dois anos de exercício na magistratura, sem a necessidade de qualquer tipode aperfeiçoamento. A partir de agora, no decorrer dos dois anos de exercício, omagistrado participará de pelo menos 120 horas de cursos – 30 horas por semestre.Os cursos para efeito de promoção terão duração mínima de 20 horas por semestree serão específicos para cada promoção (ENFAM, 2007).

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Morosidade do Pode Judiciário: prioridades para a reforma

O Conselho da Justiça Federal (CJF) também instituiu o Plano Nacional deAperfeiçoamento e Pesquisa para Juízes Federais10 (PNA), aprovado em 31/08/2007. O fundamento é que juízes com conhecimento nas áreas de sociologia,filosofia, política, entre outras relevantes à realidade atual, além do especificamentetécnico-jurídico, garante um Judiciário mais condizente com as necessidades eanseios da sociedade moderna. Essa premissa é a base do pensamento que moveua criação do Conselho das Escolas de Magistratura Federal (CEMAF) e aelaboração do Plano Nacional de Aperfeiçoamento e Pesquisa para Juízes Federais,previsto na Resolução nº 532. de 20.11.2006. O plano, para o biênio 2008/2010, foi aprovado pelos membros do CEMAF, em 20.08.2007, em reuniãorealizada na Coordenação- Geral da Justiça Federal.

O Plano compreende as bases políticas, metodológicas e operacionais paraseleção, formação, aperfeiçoamento e especialização dos juízes federais. A metapara 2008 e 2009 é de que 100% dos concursos públicos para o ingresso nacarreira de juiz federal substituto sejam realizados de acordo com o conteúdoprogramático proposto no Programa. O PNA será encaminhado para o Conselhoda Justiça Federal, para apreciação pelo seu Colegiado.

A implementação do Plano será de responsabilidade do Centro de EstudosJudiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF), como órgão central desistema, e das Escolas de Magistratura Federais dos Tribunais Regionais Federais.A avaliação e monitoramento do programa ficará a cargo do CEMAF, com oauxílio do CEJ/CJF, que elaborará o sistema com objetivos, metas e indicadorespreviamente definidos. As escolas programarão as ações previstas no PNA até omês de setembro anterior ao biênio de execução, encaminhando o currículo decursos ao CEMAF.

O Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira (TEIXEIRA, 2001, p. 5) já defendia aexistência de uma escola judicial institucionalizada de âmbito nacional (grifo original):

Além do vazio de poder que se reflete na multiplicidade de vozes que “acham” isso e aquilo,enquanto a própria sociedade não sabe qual o modelo que o Judiciário deseja e que alternativasoferece, vê-se que, não obstante a iniciativa do Executivo brasileiro há mais de 20(vinte) anos, e aextraordinária evolução que está ocorrendo em todo o mundo, a propósito da seleção, formaçãoe aperfeiçoamento dos juízes, até hoje o Brasil não conta com uma escola judicialinstitucionalizada de âmbito nacional, o que ganha maior destaque quando se sabe que os estudiosostêm apontado tais escolas como o maior fenômeno positivo surgido no Judiciário na segunda metadedo século XX.

10 Conforme informações do sítio http://www.jf.gov.br/portal/publicacao/engine.wsp?tmp. area=83&tmp.texto=10131. Aacesso em: 30 agosto 2007.

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A reforma do Judiciário: reflexões e prioridades E não poderia ser diferente. Se oJudiciário se torna essencial à convivência social, se o seu papel será cada vez maisimportante neste século XXI, somente com juízes à altura dessa missão teremos oJudiciário que se pretende e com o qual todos sonhamos. Destarte, sobretudo quandocada vez mais jovens são os novos juízes* no mundo do Civil Law, quando ossistemas jurídicos passam por profundas mudanças legislativas e uma novamentalidade se reclama, torna-se imprescindível a adoção de boas escolas, nos moldesdas ricas e admiráveis experiências que o mundo civilizado vem presenciando.

Portanto, considerando que um dos maiores desafios para o Poder Judiciárioé selecionar e formar bons magistrados, devidamente preparados a solucionar osconflitos de interesses de forma célere e justa, não resta dúvidas de que sãonecessárias mudanças para possibilitar uma boa seleção, formação eaperfeiçoamento do magistrado.

No que tange aos recursos tecnológicos e materiais, ao lado das reformasprocessuais introduzidas pelas leis e de outras mudanças necessárias, é precisoque o Poder Judiciário invista na modernização de sua gestão, incorporando aosseus serviços as ferramentas tecnológicas disponíveis no mercado, com a finalidadede alcançar agilidade e eficiência na prestação jurisdicional.

A modernização do Poder Judiciário já se iniciou, embora não de modouniforme em toda a justiça brasileira. A plataforma eletrônica, aliada à qualificaçãodos recursos humanos, poderá tornar-se o instrumento pelo qual se alcançaráceleridade e eficiência na prestação jurisdicional, no que se refere, por exemplo,à redução do lapso temporal de recebimento, envio de informações e consultas aoutros órgãos, operando-se através de sistemas integrados de base de dados.

A utilização das tecnologias viabiliza uma racionalização e facilitação deprocedimentos dos serviços judiciários, auxiliando na ampliação do acesso àjustiça e à celeridade processual. A informatização e a Internet possibilitaram,por exemplo, a prestação de vários serviços, entre eles: páginas eletrônicas;comunicação eletrônica dos atos processuais; diário da justiça eletrônico11;disponibilidade de inteiro teor de acórdãos, sentenças e decisões na internet;consulta do andamento processual na internet; envio de petições por correio

11 Em 16 de abril de 2007, o Supremo Tribunal Federal lançou, por meio da Resoluçãonº 341 da Presidência, o Diário da Justiça Eletrônico, uma versão digital da publicaçãooficial que reúne todos os atos processuais do Tribunal. Esse Diário substitui a versãoimpressa das publicações oficiais e passa a ser veiculado gratuitamente na rede mundialde computadores – Internet.

12 A Lei nº 11.419/2006 não exige a entrega da petição em papel posteriormente. A Leiautoriza o envio de petições, de recursos e a prática de atos processuais em geral pormeio eletrônico mediante uso de assinatura eletrônica

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eletrônico12; acesso pelo magistrado das Declarações de Bens e Direitos no sítioda Receita Federal, mediante certificação digital13; Sistema BACEN-JUD14;processo eletrônico (e-proc) 15.

O Relatório Anual do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2006, p. 3) 16 destacaa importância do uso das ferramentas tecnológicas:

O uso intensivo da informatização é indispensável para a aceleração de procedimentos.Quase todos os tribunais já contam com um razoável parque informático, emboraos equipamentos se encontrem isolados por problemas de conectividade e deoperacionalidade que podem ser solucionados. O grande desafio consiste na quebrados paradigmas tradicionais de utilização dos recursos disponíveis. Normalmente,os computadores são empregados para pouco mais que edição de textos, e a conexãointernet, para consulta a repositórios de jurisprudência. As possibilidades da tecnologiada informação como meio de aceleração da tramitação processual precisam serdemonstradas para juízes, legisladores, funcionários e usuários a fim de quecompreendam que é possível obter segurança e permanência nos registros sem osuporte papel.

Com efeito, o uso intensivo dos recursos tecnológicos no sistema judiciário

13 A Secretaria da Receita Federal do Brasil adotou o Certificado Digital para que osserviços protegidos por sigilo fiscal também possam ser atendidos por meio de suapágina na Internet, com o objetivo de certificar a autenticidade dos emissores edestinatários dos documentos eletrônicos, assegurando sua privacidade einviolabilidade. Assim, foi possível a esse órgão também criar o Sistema INFOJUD(Informações ao Judiciário), por meio do qual possibilita aos magistrados acesso on-line aos dados cadastrais (CPF e CNPJ) e declarações de pessoas físicas (DIRPF eDITR) e jurídicas (DIPJ, PJ Simplificada e DITR).

14 Sistema criado pelo Banco Central do Brasil, por meio do qual se permite a solicitaçãode informações de dados protegidos por sigilo bancário, envolvendo pessoas físicas ejurídicas clientes do Sistema Financeiro Nacional, sobre a existência de contas correntese aplicações financeiras, determinações de bloqueio e desbloqueio de contas ecomunicações de decretação e extinção de falência.

15 A Lei nº 11.419/2006 regulamentou o Processo Eletrônico. O Tribunal RegionalFederal da 4ª Região foi o pioneiro na criação do e-proc. Por meio da Resolução nº13, de 11/03/2004, a Presidência do TRF4ªR, autorizou a implantação do processoeletrônico nos Juizados Especiais Federais da 4ª Região, Turmas Recursais dos Estadosdo Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina e na Turma Regional de Uniformizaçãoda 4ª Região. O Provimento nº 01, de 10 de maio de 2004, da Presidência do TRF4ªR,estabeleceu normas complementares para a utilização do sistema.

16 Disponível em http://www.cnj.gov.br/index. php?option=com_content&task=view&id=2663&Itemid=251. Acessao em: 15 ago. 2007.

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constitui um meio relevante para a modernização da administração da justiça epara a sua democratização, a fim de acompanhar a dinâmica das relaçõeseconômicas e sociais dos novos tempos.

5.3 Planejamento Estratégico em nível nacional

São vários os fatores que impedem a democratização do Poder Judiciário ecausam a sua ineficiência em atender com celeridade, adequação e justiça asdemandas sociais que lhe são propostas. As propostas para a resolução dosproblemas também são várias.

Entretanto, antes de tudo é preciso identificar as reais causas e as soluçõesviáveis, mediante o indispensável desenvolvimento de estudos técnicos eestatísticas profissionais, a fim de diagnosticar a situação atual dos órgãosjudiciários. Além disso, é necessário um planejamento estratégico em nívelnacional, dada a diversidade de tribunais nos pais, que somam o total de 91(noventa e um), funcionando em compartimentos estanques com gestãoadministrativa e jurisdicional diversa um do outro.

O Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira (2001, p. 4) ressaltou sobre a necessidadeda existência de um órgão nacional de planejamento:

De igual intensidade, outrossim, é a ausência de um órgão nacional deplanejamento, que poderia ser agregado ou não à própria escola. Órgão comfuncionamento permanente, dotado de estrutura leve e eficiente, no qual o “achismo”seria substituído pela pluralidade de idéias e manifestações, onde as experiênciasbem sucedidas poderiam florescer e seria uma constante o diálogo com a comunidade,com os dirigentes, com os mais experientes e com as inteligências mais lúcidas eprivilegiadas, onde se formulariam alternativas para o bom funcionamento e para aprópria política judiciária em seu sentido mais nobre, a repensar o Judiciário comoórgão estatal a serviço da Nação e da cidadania, ocupando-se, inclusive, deanteprojetos de lei, como no campo processual.

Efetivamente é preciso que seja elaborado um Planejamento Estratégico doPoder Judiciário em nível nacional, o que já foi reconhecido pelo CNJ – ConselhoNacional de Justiça, que assumiu essa missão, conforme se verifica no seu RelatórioAnual do ano de 2006 (CNJ, 2006, p. 6):

A Constituição Federal de 1988 conferiu ao Conselho Nacional de Justiça a atribuiçãode elaborar Relatório Anual a ser remetido ao Congresso Nacional (artigo 103-B, §4°, VII). O Relatório tem por objetivo descrever as atividades do Conselho, apresentare analisar a situação do Poder Judiciário no País, propor as providências necessárias.As recomendações do Conselho representam um instrumento para a função deaprimoramento do autogoverno do Poder Judiciário.

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Desse modo, este Segundo Relatório do Conselho Nacional de Justiça constituimais um alicerce na construção de uma cultura de planejamento estratégico emnível nacional em torno do processo de Reforma do Judiciário inaugurado pelaEmenda nº. 45, de dezembro de 2005. O relatório 2006 apresenta a agenda depolítica judiciária para o biênio 2006-2008, os projetos desenvolvidos e os resultadosobtidos pelo Conselho Nacional de Justiça em 2006.[...]Nesse contexto, o Conselho Nacional de Justiça reafirmou, em 2006, sua missãoinstitucional precípua de desenvolver o planejamento estratégico para o PoderJudiciário Nacional, minimizando o insulamento administrativo por meio de políticasjudiciárias aglutinadoras. Por isso, o Conselho tem buscado estimular a comunicaçãoe a troca de experiências de gestão inovadoras (boas práticas); incrementar parceriasinternas entre os diferentes órgãos judiciais; e fomentar parcerias externas cominstituições do sistema de justiça e atores sociais para o aprimoramento do sistemajudiciário nacional. As “ilhas de excelência” do Poder Judiciário Nacional têmrecebido destaque e divulgação.

Importante destacar no Relatório Anual do CNJ (2006) as recomendações deprovidências consideradas como prioritárias para o aprimoramento do serviçojudiciário. As sugestões alcançam tanto o âmbito normativo quanto oadministrativo e gerencial.

As recomendações visam a atingir alguns objetivos, entre eles: a) centralizaras estatísticas na base única Justiça em Números – gerida pelo Conselho Nacionalde Justiça, como instrumento de gestão, transparência e avaliação de desempenhodo sistema judiciário nacional; b) diminuir, de modo claramente perceptível paraa sociedade brasileira, a morosidade do Judiciário por meio de uso intensivo denovas tecnologias; c) adotar “padrões de interoperabilidade” para integração dossistemas de informação do Poder Judiciário nacional; d) implementar asprovidências necessárias para a instalação da informatização do processo (processovirtual); e) institucionalizar um novo modelo organizacional, a partir de umacultura interna que ponha fim ao puro “gerenciamento da rotina”, ao improvisoe ao insulamento administrativo; f) adotar iniciativas que repercutam em favordos direitos humanos e do acesso à Justiça, bem como do combate ao crimeorganizado, à impunidade e à violência urbana.

Portanto, o CNJ deve desenvolver o planejamento estratégico para o Poder

17 O trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é de importância vital para areforma judiciária nos planos da atuação administrativa e financeira e no controleético-disciplinar. Sua missão institucional precípua é a formulação de políticas eestratégias nacionais para tornar o Sistema Judiciário mais eficiente e menos oneroso.

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Judiciário Nacional17, minimizando o isolamento administrativo por meio depolíticas judiciárias uniformes, inclusive mediante apoio e contribuição de todosos tribunais do país.

6 CONCLUSÃO

A ampliação ao acesso à justiça e a contemplação de novos direitosfundamentais na Constituição Federal de 1988, aliadas à evolução na área daciência e da tecnologia a partir do século passado, geraram uma explosão delitigiosidade e o protagonismo do Poder Judiciário.

A estrutura do sistema judiciário, porém, não estava preparada para atenderàs novas demandas propostas, o que gerou uma insatisfação social com a prestaçãojurisdicional, especialmente no tocante à morosidade.

A questão da morosidade passou a ser discutida abertamente pelos três Poderese pela sociedade em geral, ressaltando-se a existência de uma “crise” do PoderJudiciário e destacando-se a necessidade de sua reforma.

Muitos debatem acerca da questão, no entanto, não são baseados em estudose estatísticas técnicas, apontando soluções superficiais e paliativas.

As reformas legislativas efetuadas não são suficientes para resolver o problemada ineficiência da atividade jurisdicional. Assim, é necessário pensar em mudançasna estrutura do próprio sistema, a fim de adaptá-lo à realidade social e econômicabrasileira, selecionando-se algumas prioridades.

As prioridades passam pela necessidade de: a) redução do valor das custasprocessuais; b) investimentos em recursos humanos, tecnológicos e materiais e/c) planejamento estratégico em nível nacional, a cargo do CNJ.

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A globalização e o ressurgimento da lex mercatoria

A GLOBALIZAÇÃO E O RESSURGIMENTO DA LEX MERCATORIA

THE GLOBALIZATION AND THE REEMERGING OF THE LEX MERCATORIA

Cícero Krupp da Luz*

Resumo: O presente artigo está proposto em duas partes interligadasentre a globalização e o processo global da lex mercatoria. Primeiro serãoestabelecidos as principais abordagens do conceito de globalização, desdesua formação política e sua condição tecnológica até seus reflexos emníveis jurídicos e políticos. Será dada ênfase nas mudanças que o Estadosofre em relação à soberania, mercado e jurisdição. A lex mercatoria, surgenesse contexto como os processos de formações de direito “sem Estado”,ou melhor, em moldes onde o Estado conta com outros atores naconstrução desse direito, assim como, o crescente papel das cortes dearbitragem nesse processo.

Palavras-chave: Globalização. Estado. Soberania. Direito. Lex mercatoria.

Abstract: The present paper is considered in two linked parts betweenthe globalization and the global process of lex mercatoria. Firstly the maindiscussions of the globalization concept will be established, from itspolitics formation and its technological condition into its consequencesin legal and political levels. Emphasis in the changes that the State suffersin relation the sovereignty, market and jurisdiction will be given. Lexmercatoria, appears in this context as the processes of formations of Law“without State”, or better, in such way where the State counts on otheractors in the construction of this Law, as well as, the increasing paper ofthe courts of arbitration in this process.

Keywords: Globalization. State. Sovereignty. Law. Lex mercatoria.

* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS com bolsaCNPq. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela UNISINOS, onde foi bolsistade Iniciação científica do CNPq. Também é membro-colaborador do Grupo de PesquisaTeoria do Direito, que tem o apoio e financiamento do CNPq e da UNISINOS. “Opresente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico – CNPq – Brasil”.

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Cícero Krupp da Luz

1 INTRODUÇÃO

A globalização é a ruptura mais radical que a modernidade e acontemporaneidade presencia desde o final do século XX. Os maiores problemasque enfrentamos em nossa era – meio ambiente, terrorismo, pobreza – para citaralguns, podem ser relacionados a esse fenômeno. Mas é necessário bastantecuidado e sutileza para não cometer enganos e também não ser enganado com aglobalização.

Um dos objetivos desse artigo será buscar compreender as mais importantesconcepções que levaram ao planeta se tornar global, tanto no seu âmbito políticoe tecnológico quanto aos reflexos para a sociedade como um todo. Esse item teráum caráter desvelador e questionador, pois sugere, mas não determina que aglobalização tenha sido um projeto político com o objetivo de trazer mais riquezasem nível global, mas que trouxe relativos benefícios a poucos, inclusive aos paísesmais ricos.

Esses reflexos não se deram exclusivamente no plano social ou ambiental. Oaspecto político ao interferir na ordem global também sofre mudanças, aliás,deixando claro que uma característica da globalização é a indeterminação. OEstado sofre mudanças significativas em relação a sua soberania. Por isso agovernança é uma das possibilidades de constituição de um melhor aproveitamentodos recursos estatais e também de um projeto onde a sociedade civil seja maisparticipativa impondo também limites ao poder econômico.

Inclusive o sistema econômico terá tanta preponderância que irá reconfigurarplanos jurídicos. A lex mercatoria tem uma sobrevida e ganha muita força comessa nova estruturação global. Esse direito tem características que remetem aomedievo, onde os Estados pouco valiam, forçando a criação de regras própriasfrente à dificuldade atual de convergências políticas comerciais.

A lex mercatoria irá estabelecer possibilidades novas para o direito, o Estado epara as instituições que esparsamente iniciam um espontâneas produções jurídicasinserindo as regras que faltam no jogo comercial internacional, e para isso restaà crescente utilização de cortes arbitrais que tem o poder de decisão de crescentevalidade jurídica.

2 GLOBALIZAÇÃO2.1 A gênese dentre o projeto político e a propulsão tecnológica

Verifica-se uma forte modificação na estrutura global da sociedade no finaldo século XX. A revolução tecnológica, o fim da guerra fria, e a liberalização dosmercados nacionais são apontados como os principais motivos para o

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desencadeamento de um processo vertiginoso que não apenas reordenou aeconomia mundial, mas estabeleceu novos paradigmas para todos os sistemas dasociedade, no direito, na religião, nas artes, na política e na ciência: a globalização.“A globalização é um fenômeno complexo que teve efeitos de grande alcance,com uma força benigna e irresistível que pode ou não oferecer prosperidadeeconômica às pessoas em todo o mundo.” (WORLD COMMISSION ON THESOCIAL DIMENSION OF GLOBALIZATION - WCSDG, 2004. p. 27)

Esse desenvolvimento tem uma decisiva natureza econômica, sendo referidocomo um processo de expansão do mercado global, tendo, portanto, o sistemaeconômico como seu líder em grande escala. A partir dessa globalizaçãoeconômica, seguiu-se a redistribuição da geografia industrial do planeta, fazendocom que certas inovações tecnológicas fossem garantidas como fontes constantesde expectativas de maior lucro.

Dentre suas características fundamentais estão a expansão do comércio, oinvestimento externo direito, fluxos financeiros e a tecnologia. A expansão docomércio tornou-se mais rápida que o próprio crescimento do PIB mundial demaneira não uniforme, onde países mais industrializados e de mão de obraqualificada tendem a levar vantagens. O investimento externo direto foipossibilitado principalmente pela revolução tecnológica, aliada a uma rápidaintegração dos mercados financeiros, que permitiu conhecer melhor e mais rápidoos mercados estrangeiros, enquanto favoreceu o desenvolvimento de transaçõesfinanceiras em todo o mundo 24 horas do dia. (WCSDG, 2004, p. 28, 32).

As indústrias de alta tecnologia e de alto nível de conhecimentos são os setoresde crescimento mais rápido na economia global. E os seus efeitos se refletemnos diferentes setores econômicos, tipos de empresas, categorias de trabalhadorese grupos sociais. Muito embora apenas os países industrializados com uma sólidabase econômica obtiveram benefícios substanciais da globalização, naqueles emvias de desenvolvimento não se observa nitidamente esses índices, com exceçãoda China e Índia. (WCSDG, 2004, p. 33, 38).

Além do aspecto econômico, a globalização foi impulsionada também pelaRevolução Tecnológica da década de 70, que foi intensificada no final do séculoXX (CASTELLS, 2002). Observa-se uma grande gama de novas informações, quesão difundidas de maneira jamais vista, com muita velocidade e de variados modos:tempo/espaço tem suas dimensões alteradas. “No universo de software da viagemà velocidade da luz, o espaço pode ser atravessado, literalmente, em ‘tempo nenhum’;cancela-se a diferença entre ‘longe’ e ‘aqui’. O espaço não impõe mais limites àação e seus efeitos contam pouco, ou nem conta”. (BAUMAN, 2001, p. 36).

Embora a tecnologia tenha sido um marco essencial para o pleno

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Cícero Krupp da Luz

desenvolvimento da globalização da maneira que está sendo realizada, nãopodemos perder de vista que os Estados nacionais colaboraram ativamente paraque a globalização fosse realizada, isto é, a globalização não ocorreu por acasodos acontecimentos, não foi um acidente. “Globalização não é ‘tecnologicamente’direcionada, mas politicamente ‘projetada’ visando a estabilidade do capitalismoatravés de administração econômica global.” (AXTMANN, 2004, p. 274.)

2.2 Tanto Estado quanto Direito

Dentro desse momento histórico, se seguirmos o padrão moderno dos grupossociais divididos a partir de seu Estado-nação, observaremos muitastransformações em todos os seus sistemas sociais, de maneiras próprias e nãonecessariamente simultâneas, principalmente em elementos de sua soberania: arelatividade de suas fronteiras com blocos econômicos, movimentos de imigração,choques culturais tecnológicos ocidentais:

A interação e a divisão, a globalização e a territorialização, são processo mutuamentecomplementares. Mais precisamente, são duas faces do mesmo processo: aredistribuição mundial de soberania, poder e liberdade de agir desencadeada (masde forma alguma determinada) pelo salto radical na tecnologia da velocidade.(BAUMAN, 1999. p. 77.)

Ainda assim, é importante observar que a própria noção de soberaniadeve ser desmistificada de uma idéia construída simbolicamente a partir de 1648,com a Paz de Westphalia, onde o Estado deteve soberania dentre de seu território,com exclusiva autoridade dentro das linhas de suas fronteiras geográficas(KRASNER, 2001, p.17). “A noção de uma era dourada da soberania no qual osEstados continham ‘suas’ sociedades dentre de fronteiras territoriais é um mito.É incrivelmente surpreendente que, na base dessa dicotomia, tantos teóricosheterodoxos tendem a associar soberania e ‘globalidade’ com duas fases diferentesdo desenvolvimento histórico” (LACHER, 2003, p. 529).

O corpo soberano do Estado talvez nunca tenha existido, mas de algumamaneira justificava ações de Estados, principalmente relacionados a Guerras e amovimentos colonizadores. Ou mais precisamente a soberania do Estado-naçãoe o seu relacionamento proporcional ao território e a formação do povo tevedesenvolvimentos diferentes, em diferentes partes países do mundo, que iráinevitavelmente mudar com a globalização.

Portanto, o Estado-nação soberano da modernidade entra em colapso, ou aomenos seu conceito é transformado. Não pode mais se afirmar conceitos anterioresa uma reflexão em torno de um aporte crítico em torno da soberania, mesmo que

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A globalização e o ressurgimento da lex mercatoria

nunca tenha sido realizada, da mesma forma que se deve discutir o Estado deBem-Estar Social ainda que nunca tenha sido plenamente realizado em muitaspartes do mundo. “Com a ‘globalização’, verifica-se uma ruptura brutal e radicalcom um modo de pensar e de agir ligado à ‘modernidade’. Se não se pode aindaalegar que o direito está se tornando global ou universal, pelo menos está emmutação” (ARNAUD, 2006, p. xi). As nações perdem uma boa parte da soberaniaque detinham e os políticos perderam muita da sua capacidade de influenciaros acontecimentos (GIDDENS, 2001, p. 21).

Os poderes do Estado são delegados “para cima” para órgãos supraregionais einternacionais, “para baixo” para níveis locais regionais, urbanos e também “parafora,” como um resultado de cooperação transfronteiriça, para alianças cross-nacionaisrelativamente autônomas entre metropolitano local ou Estados nacionais cominteresses complementares (AXTMANN, 2004, p. 269).

Mas o Estado ainda persiste, transformado e com uma crescente sociedadecivil organizada, com várias significações e conotações diferenciadas. Na medidaem que se verifica a globalização, a emergência e o desenvolvimento da sociedadeglobal implica que a sociedade nacional mude de figura, tanto empírica comometodologicamente, tanto histórica como teoricamente (IANNI, 1997, p. 88).

O desenvolvimento de regimes e organizações internacionais provocouimportantes mudanças na estrutura da elaboração de decisões na política mundial.Emergiram novas formas de política multilateral e multinacional e, com elas, estilosdistintos de adoção de decisões coletivas que envolvem governos, organizaçõesintergovernamentais e uma grande variedade de grupos de pressão transnacionaise organizações não-governamentais internacionais (HELD, 1997, p. 139).

Com efeito, o processo de decisão do Estado fica globalizado. É necessáriouma cooperação com outras instituições. Ninguém mais está isolado. Organizaçõesinternacionais como ONU, Corte Interamericana de Direitos Humanos, OMC,G20, Conselho de Direitos Humanos da ONU e Anistia Internacionalinstitucionalizam conexões mais profundas entre si: propostas e discussões sãorealizadas em reuniões mundiais para se tornar possível à tomada de decisãotanto econômica quanto política. Isso se dá pelo fato de um novo conceito derelação entre outras partes do mundo é estabelecido, não é simplesmenteinternacional, é um surgimento global de inter-relacões diferentes, entrelaçadasde maneiras distintas, como na internet.

A globalização não leva em consideração o internacional em sentido estrito,como no caso da internet – facilitação de redes de informações e dados, como nocaso de bibliotecas, de conferencias e também como uma ferramenta para ocomércio, inclusive de produtos ilegais, isto é, tráfico. Assim surgem problemas

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do comércio eletrônico e aplicação de regras internacionais de comercio,principalmente em matéria de prova, controle de sites, redes de organizações depráticas ilícitas (ARNAUD, 1999, p. 7).

Assim, falar de globalização é mais do que simplesmente falar de internacionalização.A realidade que se passa com a nação nesse processo de intercâmbios pode serchamada de ‘transnacionalização’, mas de fato essas diferenciações são tênues. Oimportante é entender que a maioria das transações comerciais não se submetem asleis nacionais, nem mesmo as leis internacionais que os estados promulgam e queeles se encarregam de respeitar, isto é, eles pouco se preocupam com essas leis(ARNAUD, 1999, p. 11).

Globalização, por assim dizer, é uma tomada de consciência de que muitosproblemas nesse fim de século, não podem ser mais tratados através da simplesreferencia aos Estados sem uma referencia aos vínculos que passaram a unir asdiferentes partes do globo terrestre, ultrapassando questões de meio ambiente,comunicações, mas englobando também uma melhor compreensão dos fenômenosque ocorrem no intercambio monetário e econômico (ARNAUD, 1999, p. 13).

Mesmo depois do fim da bipolaridade geopolítica e da guerra fria, não sechegou a um regime de direito internacional derivado do estabelecimento de umdireito global sob uma autoridade única e tendo o poder de coerção ou de umsólido consenso dos Estados-nação (ARNAUD, 2006, p. 224). Isso se verificadevido a uma grande complexidade que envolve não só a sociedade, mas tambémo próprio sistema político que mal consegue convergir em alguns poucos pontossobre segurança internacional e direitos humanos.

A lex mercatoria do mercado mundial e outras práticas jurídicas ‘isentas de Estado’fizeram explodir as dúvidas de princípio até então tão bem reduzidas ao silencio:produzem um direito global sem Estado, tanto para lá das ordens jurídicas nacionaiscomo além do direito tradicional dos povos, que se baseia em convenções entreEstados. A globalização do direito despoleta uma massa de fenômenos jurídicos,impondo-se à prática do direito, que não pode incluí-los ou excluí-los da sua hierarquianormativa (TEUBNER, 1999, p. 344).

Portanto, o fenômeno da globalização deve ser observado em seu rompimentoprático e teórico e principalmente considerando seus elementos que rompemcom certos ideais modernos. Não é mais possível fechar os olhos para essatransformação, pois o barulho nos faz lembrar de que estamos vivendo numoutro modelo de sociedade. Nesse modelo é preciso observar o direito dentro dasociedade globalizada. “No começo da era moderna era o colapso do direito

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natural, e hoje, é o efeito da globalização que adiciona para uma real ameaçapara as operações do sistema jurídico” (TEUBNER, 2001, p. 38).

2.3 Governança

Governança é uma nova possibilidade para a administração pública exigidaem decorrência do processo de globalização. Para uma boa governança é necessárioo correto funcionamento de um sistema político democrático com garantias amplasde liberdade e respeito aos direitos humanos, favorecendo assim umdesenvolvimento de uma sociedade civil dinâmica que reflita toda a diversidadede opiniões e interesses (WCSDG, 2004, p. 59).

Esse conceito surge quando instituições internacionais como o Banco Mundial,do Fundo Monetário Internacional e o Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento, começam a utilizar o termo,1caracterizando como ‘boagovernança’ aqueles governos que conseguissem manter um nível de direitoshumanos e outras características ambientais como desenvolvimento sustentávele reforma do Estado (privatizações), chegando ao que seria chamado Consensode Washington.

Assim, a governança é a tentativa de um sistema de múltiplos níveis e formasde regulação no qual micro e macro regiões, assim como diferentes modalidadesde associações, organizações e redes de cidadãos que emergem como novas unidadespolíticas possam contribuir para a reconstituição da política global em termosmais democráticos e socialmente menos excludentes (CAMARGO, 1999, p. 13).

Com efeito, a noção de governança partiu de uma análise da crise de governabilidade,nos planos local e internacional, inscrevendo-se na problemática da perda decredibilidade da instancia estatal e da diminuição de eficiência e eficácia da açãopública. Num mundo de crescente complexidade, de crescente diferenciação esubsistemas, o Estado é impotente para prever a conseqüência de suas ações e,portanto, para ditar normas e aplicá-las, tornando-se incapaz de responder àsdemandas da sociedade (CAMARGO, 1999, p. 11).

O regime de governança não se trata apenas de resultado das estratégias deprivatização de partidos e governos neo-liberais, mas de um deslocamento seculardo equilíbrio entre o sistema político e o sistema econômico, sendo “que suasnormas representam um direito genuíno, que não pode mais ser ocultado,cumprindo tarefas legislativas, administrativas, regulatórias e de soluções deconflitos do direito clássico em novas formas e em novos contextos” (TEUBNER,2005, p. 277).

1 O Banco Mundial utilizou esse termo no seu relatório de 1989 Sub-Saharam África:From Crisis to Substainable Growth. (MILANI, 1999, p. 104).

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De fato, governança vai mais além do que o conceito de ‘governo’ porqueengloba mecanismos de controle que se encontram fora da jurisdição e da esferaregulatória do governo; ela vai mais além da democracia porque implica noçõesde eficiência que servem a democracia e o desenvolvimento concomitantemente(MILANI, 1999, p. 107). O Estado perde parte da vigência internacional, o Estadocedendo espaço as organizações não-governamentais e a iniciativa privada, o queleva à substituição do conceito de governo pelo de governança. “Parler degouvernance, c’est admettre qu’il a d’une part, des gouvernants, e d’autre part,des gouvernés, sans que les relations entre les deux soient nécessairemente desrelations d’autorithé ou des relations de hiérarchie” (ZOLLER, 1997, p. 148).

O desenvolvimento da capacidade econômica com investimentos e políticaspúblicas eficazes são necessários para que os ganhos da globalização sejam detodos, por serem pontos estratégicos para a governança (WCSDG, 2004, p. 63).Por isso, a governança global abrange muitos domínios da atividade humana(indústria, comércio, meio ambiente, moral, direito, comunicação e informaçãoetc.) e pode se desenvolver e conquistar todo o planeta graças às tecnologias deinformação e de comunicação.

3 LEX MERCATORIA

3.1 Raízes quase medievais

Dentro do processo de globalização, como já foi amplamente referido aeconomia aliada ao desenvolvimento tecnológico adquirem avanços importantespara que o projeto político de uma crescente troca de bens e consumo fosseconcretizada. Entretanto, muitas vezes essa receita deu tão certo que os própriosEstados não tiveram agilidade suficiente para propor limites ou normas queregulassem esse comércio. Ainda que o Estado tenha um papel determinante, elenão está presente em todos os momentos em que ocorrem transaçõesinternacionais. E pelo que nos conta a história, esse processo de construção deum direito sem a presença atuante dos Estados é mais antiga que os própriosEstados e teria tido início na Era Medieval, sendo chamado de lex mercatoria.

A lex mercatoria da Europa medieval teve início quando essa expressão foiutilizada por comerciantes a fim de regular suas próprias relações, e formandoatravés dos estatutos e corporações, seu ordenamento que seria consultado paradeferir decisões em jurisdições mercantis competentes quando as partespertencessem à classe dos comerciantes (CAROCCIA, 2006, p. 290).

La lex mercatoria no sólo había sido esto porque regulaba las relaciones mercantiles,sino también y sobre todo porque era un derecho creado por los mercantes. Sus

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fuentes habían sido los estatutos de las corporaciones mercantiles, la jurisprudenciade las curie mercatorum, porque en ellas tenían sus sesiones los mercantes. Hoy seentiende de la misma forma, por lex mercatoria, un derecho creado por la claseempresarial, sin la mediación del poder legislativo de los Estados. (GALGANO,2005, p. 65).

E essa mediação não se dava através dos Estados, tendo em vista que eles nãotinham a mesma condição que tem hoje. “The most fundamental differencebetween the modern world and arcahic Europe was the lack of states. Of course,the reader may recall Charlemagne (768-814) and his empire, the kingdoms ofthe Anglo-Saxons, or those of the Eastern and Western Franks, […] however,these lordships cannot be termed states in any sense of the world approaching itsmodern meaning” (VOLCKART; MANGELS, 1999, p. 435). Por isso, éimportante a lembrança de um período anterior a modernidade e aos Estadosmodernos quando estamos presenciando uma nova mudança nessas relações.Frisa-se que não estamos na direção de uma era medieval, mas sim de algo aindadiferente, mas que pode tem características sutilmente parecidas.

Na era medieval, os mercadores sem qualquer proteção ou segurança acabarampor se auto-organizarem em torno de si formando Grêmios (‘guilds”) paraconstruírem o que chamaríamos hoje de ‘redes’ para alcançarem outros pontoscomerciais através de rotas e evitando os saques e o inadimplemento dos acordos.“Guilds achieved the provision of security by making use of a kind of exchangethat had been unfamiliar to merchants as long as they were too dependent toform organizations of their own. It was based on mutual support in case ofdistress, that is, on armed help against assailants” (VOLCKART; MANGELS,1999, p. 437).

No decorrer dessa evolução, esses Grêmios foram tornando-se além de pontosde segurança, também instituições nas quais eram resolvidas disputas jurídicasem torno de desacordos ou inadimplementos comerciais, enquanto a jurisdiçãofeudal ou comunitário pouco ou nenhuma importância tinha em relação a essasquestões. “it is hardly necessary to point out that feudal authorities played nopart in this process. Institutions that had been developed within guilds wereprobably transferred by analogy onto new situations and imitated if they provedto be advantageous” (VOLCKART; MANGELS, 1999, p. 439).

2.2 Múltiplas Fontes sem fundamentação legal

Atualmente a lex mercatoria é referida principalmente com o surgimento daglobalização para delimitar o conjunto de normas não elaboradas por meio da

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mediação política dos Estados, sendo ainda destinada a regular as relaçõescomerciais do mercado global (CAROCCIA, 2006, p. 290). Assim, a gênese dalex mercatoria está justamente na circunstância de ser ela numa reação ao status quocriado pelos sistemas nacionais que demonstram inaptidão para reger as relaçõeseconômicas internacionais, tornando-se grande fonte a contrario sensu da lex mercatoria(STRENGER, 1996, p. 148).

A Lex mercatoria é um conjunto de princípios e regras costumeiras, espontaneamentereferidos ou elaborados no quadro do comércio internacional, sem referência a umsistema particular ou lei nacional. São desenvolvidas em negócios internacionaisaplicáveis em cada área determinada do comércio internacional, aprovadas eobservadas com regularidade (CAROCCIA, 2006, p. 289).

Isto é, de alguma forma um direito emergente que tem o objetivo de trazerexpectativas normativas para que o comércio transnacional tenha maior fluidez,mesmo que para isso seja necessário criar um direito sem Estado. E o Estado éjustamente o que dá força e validade ou direito moderno, por isso a lex mercatorianão tem fundamentação no ordenamento jurídico. Ou existe uma normafundamental (KELSEN, 1996) global? Ou existe uma regra secundária (HART,2001) global? O discurso desconstrutivista (DERRIDA, 2002) de fundamentaçãomística tem dificuldades em encontrar a violência, então o que fazer? A lex mercatorianão ficando paralisada pelo paradoxo, fundamenta-se na sua autovalidação.

A lex mercatoria rompe com dois tabus: o primeiro de que sua afirmação só se dáatravés de disposições jusprivatistas (contratos e fusões); e o segundo, reivindicandovalidade entre os Estados-nações e até além das relações “inter-nacionais”,formando-se espontaneamente no plano transnacional, sem a autoridade do Estado,sem a sua capacidade de impor sanções, sem o seu controle político e sem alegitimidade de um processo democrático (TEUBNER, 2003, p. 17).

A formação atual da lex mercatoria não tem uma fonte única nem tampoucooriginárias, as fontes são múltiplas. Contudo se pode apontar grandes formadoresde princípios e costumes dessa rede de decisões. O mais tradicional órgão deregulação do comércio é a Câmara de Comércio Internacional de Paris(International Chamber of Commerce – ICC), que foi fundada em 1919 e seautodenomina a “A Organização Mundial dos Negócios”. Essa organização éformada exclusivamente por grandes corporações privadas de todos os ramos ede qualquer país do mundo. Dentre seus principais objetivos está a promoção docomércio, serviços e investimento, eliminando obstáculos e distorções do comérciointernacional e a promoção da construção e configuração de regras, padrões edesenvolvimento de políticas globais de comércio (ICC, 2007).

O ICC é a voz do comércio do mundo competindo a economia global como uma

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força de crescimento econômico, criação de empregos e prosperidade. Devido àseconomias nacionais estarem agora tão proximamente ligadas, decisõesgovernamentais não tem nem de longe a mesma repercussão que no passado. A ICCé a única verdadeira organização global dos negócios que reage por ser mais assertivaem expressar as posições dos negócios. As atividades da ICC cobrem um abrangenteespectro, de arbitragem e resolução de conflitos para tornar o comércio aberto e osistema econômico de mercado, auto-regulação do comércio, lutar contra a corrupçãoou combate o crime comercial. (ICC, 2007).

Outros dois organismos internacionais com o objetivo de unificar as leisglobais privadas chamam-se UNCITRAL e UNIDROIT. Enquanto a UNIDROITtem uma formação mista intergovernamental e comercial, a UNCITRAL éverdadeiramente o braço Estatal que ainda resiste dentro desse tema.

O Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado de Roma -UNIDROIT é uma organização intergovernamental criada em 1926 como auxiliarda extinta Liga das Nações, que tem o propósito de estudar necessidades e métodospara modernizar, harmonizar e coordenar o privado, em especial, o direitocomercial entre Estados e grupos de Estados. Essa organização é composta deEstados e grupos de Estados e tem ligação com as Nações Unidas. A UNIDROITelaborou uma recopilação orgânica da lex mercatoria com o título de “Princípiosdos contratos comerciais internacionais”, divulgados nos principais idiomas,tratando de uma parte geral sobre obrigações sobre o contrato (GALGANO,2005, p. 72).

Os princípios UNIDROIT foram elaborados por um grupo de estudiosos oriundos,em grande parte, do ambiente acadêmico, mas também por magistrados e funcionáriosda Administração Pública pertencentes a diversas áreas jurídicas, nenhum deles agindoem nome do próprio governo. [...] Sob tal perfil, os Princípios tendem, seguramente,a recepcionar aquele direito espontâneo criado pelos comerciantes, denominado,por alguns estudiosos, como “nova lex mercatoria”, ainda que não coincidamexatamente. (CAROCCIA, 2006, p. 439).

Mas foi apenas em 1994 que o Instituto Internacional para a Unificação doDireito Privado de Roma (UNIDROIT) divulgou a primeira edição dos“Princípios dos Contratos Comerciais internacionais, aonde na introdução noque se refere ao ato de produção legislativa, a UNIDROIT deixou expressadoque todas as regras que não sejam endossadas pelos governos nacionais, nãopodem ser instrumentos vinculatórios e, portanto sua irá depender doconvencimento de autoridade competente (JEMIELNIAK, 2005, p. 181). Dessaforma se observa uma certa reticência na utilização desse direito, ou seja, o quepodemos concluir que o Estado ainda é parte principal nesse desenvolvimento,mas não é o único.

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A Comissão das Nações Unidas em Direito Comércio Internacional –UNCITRAL foi criada pela Assembléia Geral em 1966, quando os países membrosreconheceram que as disparidades entre os leis nacionais que governam o comérciointernacional eram fortes obstáculos para o desenvolvimento do comércio. Assimcriou-se uma organização no qual as Nações Unidas poderiam ter um papel maisativo na redução desses obstáculos. Isto é, a UNCITRAL é uma organização quetenta impor de alguma maneira os interesses dos Estados dentro desse auto-regulação econômica do próprio sistema da economia.

É como se fosse uma contra-força dos Estados ou uma tentativa de ter um mínimode controle do que está acontecendo. Essa é a mais forte organização que vem acontrapor a ICC. Ainda assim, se constata na estrutura da UNCITRAL diversasmenções diretas a textos legislativos (privados) da ICC endossados pela UNCITRAL,(UNCITRAL, 2007) mesmo sendo um órgão das Nações Unidas, toda a legislaçãoaplicável em nível global referente à, por exemplo, Créditos Documentários e Contratosde Fiança, são regulados pela ICC e endossados pela UNCITRAL.

Como podemos verificar praticamente todo o desenvolvimento da lex mercatoriaficou relativamente distante do Estado, restando seu crescente papel de formadorde blocos regionais que ainda parece mais uma tendência do que uma realidade,tendo em vista que com exceção da Comunidade Européia, os outros blocosmundiais andam de forma muito lenta para qualquer tipo de acordo. Portanto,outras organizações que tem grande interesse nesse desenvolvimento tiveramuma maior saliência. O estabelecimento de normas e padrões do comércio estáno sentido de adaptação do direito nacional ao direito mundial e não o contrário.As constituições federais dos Estados envolvidos pouco ou nada tem influênciano estabelecimento dessas normatizações.

3.3 Arbitragem Internacional – Cortes alternativas de decisões

Nesse contexto, arbitragem tem muitas vantagens na relação entre o sistemado direito e o sistema da economia. Enquanto o direito tem uma racionalidadeprópria, com procedimentos de tomadas de decisões que incluem princípiosconstitucionais inalienáveis, a racionalidade econômica é exclusivamente voltadapara o aumento de capital, o que pode ser muitas vezes proporcionalmente inversoao tempo “gasto” em um litígio. Ademais, a arbitragem admite outra funçãoalém de ser mais rápida que o direito Estatal, desenvolvendo a formação dessepróprio “direito paralelo” da lex mercatoria, formando seus princípios e construindoos contratos internacionais.

A função arbitral por seu turno assume o papel de catalisadora, desvinculada daintervenção de soberanias estatais, acelerando a produção de princípios gerais dodireito do comércio internacional, cuja generalidade permitiu, progressivamente, a

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elaboração de regras materiais autônomas, regendo tanto a interpretação, como aformação e a execução dos contratos internacionais. (STRENGER, 1996, p. 149).

O conflito entre direito Estatal e não-Estatal é deixado de lado, permitindo odesenvolvimento de aspectos importantes na instrumentalização da lex mercatoria,onde à arbitragem é atribuída força de decisão de conflitos jurídicos de bensdisponíveis. “A arbitragem internacional e os famosos “códigos de conduta”elaborados por várias organizações internacionais representam passos no sentidoda resolução do conflito entre a lex mercatoria internacional e o direito nacionaldos estados individuais “(TEUBNER, 1989, p. 225).

Arbitrators in transnational commercial law cases face not only the challenge ofelaborating the grounds for concrete decisions but also for justifying the findingand use of the principles applied. This objective is both complex and unparalleled.Arbitrators solving commercial disputes according to lex mercatoria principles do notjust construe the rules and rationales for their decisions as do judicial interpretersof the law in other legal systems. In this instance, it is necessary to recall that theNew Law Merchant is a relatively young discipline and advances in many directions,responding to the actual practical needs of the international community(JEMIELNIAK, 2005, p. 187).

Portanto, não é de se admirar quando privatistas declaram que não podemficar esperando a Justiça Estatal: “A nova lei de arbitragem tem como principalobjetivo mudar a atitude dos brasileiros na maneira de resolver seus litígios deordem patrimonial, pois não é mais possível ficar esperando que a Justiça Estatalsolucione todas as pendências privadas” (ARAÚJO, 2004, p. 118).

Embora já era de praxe entre o direito comercial internacional, o Brasilassegurou a utilização da arbitragem nacional e internacional através da Lei 9.307/96 que incorporou a lex mercatoria como possibilidade de lei aplicável. “Outrofator que distingue a arbitragem da Justiça comum é a possibilidade de ser usadaa lex mercatoria, que informa uma visão cosmopolita de um direito comercialuniforme supranacional, realizando-se de forma independente daquele oriundode uma única unidade política, com características de um direito despolitizado”(ARAÚJO, 2004, p. 121).

4 CONCLUSÃO

A globalização é o processo social mais forte que a civilização enfrenta nofim do século XX e nesse inicio de século XXI. As razões políticas nas quais nosdetemos na abertura do capital para explicar um projeto que tinha as pretensõesde desenvolver todas as regiões do mundo e o globo como um todo, funcionaram

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de maneira muito questionável. Apenas as regiões já desenvolvidas anteriormenterealmente obtém sucessos econômicos e vantagens políticas. Mas ao contrário,as desvantagens são para todos. Ainda que os Estados Unidos consiga construirum escudo anti-mísseis, não irão conseguir construir um escudo anti-Katrina ouanti-aquecimento global. O meio ambiente é um exemplo muito apropriado paradesenvolver a incerteza global na qual localizamos nossa sociedade. Mesmo quenossos Estados tomem todas as medidas ambientalmente responsáveis,socialmente corretas, economicamente sábias ou politicamente cosmopolita, oEstado não tem controle se as conseqüências tomadas serão revertidas embenefícios, pois o globo caminha junto. Talvez tenha sido sempre assim, massomente agora podemos perceber isso de maneira tão clara.

Esse é o dilema Estatal, uma falsa soberania que também não é tão falsa, masmuito restrita ainda que bastante exigente. O domínio econômico, ao contrário,tem uma maior autonomia, controle e até assim soberania sobre si próprio deuma forma dominadora para a política. As estruturas Estatais modernizadas eatuantes não tem a mesma dinâmica e principalmente perspectiva que a econômica.

Diante disso, uma lex mercatoria surge pelas periferias da sociedade em todosos espaços onde não existe o que precisaria existir, normatividade sobre acordos,negócios e contratos que transpassam os territórios nacionais. Múltiplas fontesestão à escolha, assim como a corte em caso de dissídios. A fundamentaçãopolítica nacional não é encontrada, no lugar está à eficácia e funcionalidade.Dessa forma, se observa um crescimento desse discurso que de alguma formapreocupa por não ocupar um espaço, ser em muitos lugares e nenhum. Apreocupação com o local parece estar nas mãos da governança. A governançadeve ser responsável por inclusões democráticas, respeito aos direitos humanos,tanto pelo Estado quanto pela participação da sociedade civil.

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A Lei de Biossegurança sob a abordagem da ética discursiva

A LEI DE BIOSSEGURANÇA SOB A ABORDAGEM DAÉTICA DISCURSIVA*

THE LAW OF BIOSECURITY UNDER THE BOARDING OF THEDISCOURSE ETHICS

Valkíria Aparecida Lopes Ferraro**

Simone Vinhas de Oliveira****

Resumo: A atividade biotecnologia indica uma perspectiva de modificaçãosocial e de ecossistemas com uma imprevisão sobre os resultados dessasalterações. Isso toca em questões ético-jurídicas, pois, denota riscos paraas sociedades contemporâneas. A criação de espaços públicos departicipação popular significa uma proposta procedimental de controledos possíveis abusos da atividade biotecnológica e a pretensa coibiçãodas temeridades. Nesse sentido, a ética discursiva representa uma peçachave de um projeto de radicalização democrática pelo qual são válidas eaceitas normas que exprimem uma vontade universal no desenvolvimentobiotecnológico - Princípio Universal. E essa vontade, como uma vontaderacional definida pela intersubjetividade da racionalidade comunicativa,só seguirá uma norma se ela for universal na medida em que todos ossetores interessados no desenvolvimento biotecnológico participarem dosdiscursos – Princípio do Discurso. Para Habermas, as normasfundamentadas discursivamente fazem valer ao mesmo tempo duas coisas:o conhecimento daquilo que a cada momento reside no interesse de todos,bem como uma vontade geral que apreendeu em si mesma, semrepreensão, a vontade de todos. Diante desses fundamentos, tecem-sereflexões sobre um dos efeitos da Lei de Biossegurança - a criação deum poder discricionário da CTNBio e a ausência de regulamentação doCNBS. Tais fatos são assimétricos para o atual modelo democrático, bemcomo impossibilita um processo de radicalização democrática.

Palavras-chave: Biotecnológica. Democracia. Ação comunicativa. Éticadiscursiva. Biossegurança.

* Artigo produzido como resultado de pesquisas em andamento no projeto de pesquisacadastrado pela Universidade Estadual de Londrina sob o nº. 04511 - Biotecnologia e Direito:A Possibilidade Jurídica da Utilização de Células Embrionárias em Período de Descarte sobo Prisma da Lei de Biossegurança, de autoria da segunda sob a coordenação da primeira.

** Doutora em Direito Civil pela PUC/ São Paulo. Professora permanente do Programade Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina.

*** Mestranda do Programa de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadualde Londrina.

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Valkíria Aparecida Lopes Ferraro; Simone Vinhas de Oliveira

Abstract: The biotechnology activity indicates a perspective to socialand ecosystems modifications with improvidence about the results ofthese alterations. This involves ethical-legal topics, therefore, denotes risksfor the contemporary society. The creation of public spaces with popularparticipation means a procedural proposal of control the possible imposesof the biotechnological activity and intend suppress the temerity. In thisway, the discoursive ethics represent a key part of a project of democraticradicalization for which they are valid and accepted norms as universalstate, this will in the biotechnological development - Universal Principle.And this will, as a rational will defined by the intersubjectiv of thecommunicative rationality, will only follow a norm if it will be universalin the measure and all the sectors interested in the biotechnologicaldevelopment to participate of the speeches - Principle of the Speech.For Habermas, the grounded discoursive norms make to be valid for twotopics: the knowledge of something that exist in each moment and theevery one interest, and also the general will that learned, without pressure,the will of everyone. With all those fundaments, it is able to have thoughtsabout the effect of the Biosecurity Law - the creation of onediscretionary power to regulate the biotechnology activities thoughtCTNBio and the absence of regulation of the CNBS. These facts areasymmetric for the actual democratic stander and make unable the processof democratic radicalization.

Keywords: Biotechnological. Democracy. Communicative action.Discoursive ethics. Biosecurity.

1 INTRODUÇÃO

Por uma análise empírica sobre a produção legislativa que regulam a atividadebiotecnológica, realizou-se um recorte sobre a Lei de Biossegurança, verificando-se um dos seus o efeito imediato: o poder discricionário da Comissão TécnicaNacional de Biossegurança (CTNBio).

Esse modelo de normatização é assimétrico aos fundamentos éticosdemocrático, pois, trata-se de um órgão tecnocrata, vinculado ao poder executivo,decidindo, exclusivamente, sob a regulação da atividade biotecnológica.

Esse poder discricionário da CTNBio adverte para uma ausência derepresentatividade popular na regulação da CTNBio e aponta para umailegitimidade desta forma de normatização.

A discricionalidade do CTNBio, além de não legitimada no modelodemocrático atual, nos distancia, ainda mais, do ideal de radicalização democráticaconciliando a autonomia privada com o exercício da autonomia pública pelosfundamentos da ética discursiva, que converge à ampla participação popular.

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A Lei de Biossegurança sob a abordagem da ética discursiva

A procedimentalização dessa participação pode ocorrer por meio daregulamentação do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) como formade controle dos abusos possíveis cometidos pela biotecnologia.

2 A RACIONALIDADE DA BIOTECNOLOGIA E OS PRINCÍPIOS DAÉTICA DISCURSIVA

Na segunda metade do XIX, o processo de desenvolvimento biotecnológicogenético iniciou-se com o monge Gregor Mendel que, estudando as ervilhas domosteiro, formulou leis estatísticas da hereditariedade. A partir disso, a investigaçãogenética cresceu rapidamente pelo aperfeiçoamento dos instrumentos emlaboratório com maior precisão nos exames microscópios das células, permitiram-se desvelar suas estruturas e as informações genéticas presentes. Desde então, abiotecnologia progrediu revelando os segredos do DNA, revelando o códigogenético, transferindo e manipulando genes.

Na práxis tecno-científica, em especial na biologia molecular, com o domíniotécnico sobre as estruturas, formas e conteúdos da vida nas espécies, há umaracionalidade tecno-instrumental da Modernidade1. Nesse sentido, Habermas(1986) coloca que no universo da tecnologia há uma grande racionalização daausência de liberdade do homem que demonstra a impossibilidade da autonomia,da capacidade de decisão sobre a própria vida. Isto significa que a racionalidadeda ciência e da técnica é, por essência, uma racionalidade de dispor, umaracionalidade de dominação.

1 A Modernidade proporcionou uma transição do modelo de racionalidade baseado natradição da religião e nos costumes para a racionalidade fundamentada na autonomiada razão (cientificismo). Na obra O Discurso Filosófico da Modernidade, Habermas explicaque filosoficamente a primeira auto-avaliação sistemática da modernidade que foifeita por Kant, Marx e Hegel, mas que só teve eco no início do século XX, quando foiradicalizada por Max Weber e pela Escola de Frankfurt. Acrescentam, ainda, ascontribuições de pensadores como Nietzsche, Heidegger e Foucault, cujasinterpretações têm gerado sérios desdobramentos com relação ao próprio significadoda Modernidade, os quais levaram a uma concepções que identifica a Modernidadecomo um modelo de racionalidade que só levou à miséria e dominação de um serhumano instrumentalizado em critérios técnico-científicos. Esses últimos sãoprecursores do movimento denominado pós-modernismo.Apesar de considerar relevantes as contribuições dos autores pós-modernos como umdiagnóstico pertinente às estruturas de dominação da modernidade, Habermas, aocontrário destes, retoma o projeto da modernidade e acrescenta uma construção teóricabaseada numa racionalidade comunicativa como proposta ética para interferir naracionalidade instrumental de dominação.

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Valkíria Aparecida Lopes Ferraro; Simone Vinhas de Oliveira

A racionalidade instrumental da biotecnologia obedece aos critérios dacompetitividade e dominação, cujos fins estão em si próprios e não na coletividade.Isso significa que o agir está voltado aos resultados das pesquisas, tendo comofim o avanço do domínio da técnica exclusivamente, o qual o próprio homempassou a ser objeto e perdeu a condição de sujeito.

Essa racionalidade instrumental (individualista e competitiva) provoca os riscospara sociedade na medida em que proporciona um desequilíbrio entre os que dominama biotécnica e os que não dominam e debelam os maiores impactos na sociedade,o qual o conteúdo das descobertas interfere profundamente nas forças da naturezacomo nenhuma outra tecnologia antes conhecida. Nesse contexto, quanto maispoderosas são as novas tecnologias, maiores são as possibilidades de destruiçãodos ecossistemas e de modificação social, o que envolve o interesse geral dasociedade, interferindo, assim, na liberdade, na autonomia2 e na dignidade3 humana.

Nesse contexto, a teoria do agir comunicativo de Habermas apresenta a éticado discurso4, cujo elemento fundamental para orientar a conduta biotecnológicaé à existência de princípios e como esses princípios devem ser entendidos por

2 O conceito de autonomia está inseparavelmente relacionado à idéia de liberdade. Aautonomia é definida no contexto de liberdade em oposição à heteronomia. A autonomiado sujeito se expressa na sua capacidade de autodeterminação, na sua vontade legisladorade estabelecer e concretizar fins no mundo social. Esses fins só podem ser alcançadosatravés de certos meios. Isto significa que toda legislação decorrente da vontadelegisladora dos homens precisa ter como finalidade o próprio homem, a espécie humanacomo tal. Mais especificamente a vida e a dignidade do homem. O imperativo Categóricoorienta-se, pois, segundo um valor básico, inquestionável e universal: a dignidade davida humana (FREITAG, 1989, p. 10).

3 Kant admite que no mundo social, nos sistemas de fins, existem duas categorias devalores: o preço e a dignidade. Enquanto o preço representa um valor exterior e amanifestação de interesses particulares, a dignidade representa um valor interior,interesse geral. A legislação elaborada pela razão prática deve levar em conta, comofinalidade suprema, a realização desse valor interior e universal: dignidade humana.(FREITAG, 1989, p. 10).

4 A ética discursiva de Habermas pressupõe pelo menos três dados, ainda nãosuficientemente explicitados: a competência comunicativa dos integrantes do grupo;situações dialógicas ideais, livres de coerção e violência; e, finalmente, um sistemalingüístico elaborado que permita pôr em prática o discurso (teórico e prático). Quandoa ação instrumental e a comunicativa não conseguem (pacificamente) resolver taisproblemas, Habermas admite a ação estratégica (instrumental), cuja função primordialconsistiria em estabelecer as condições materiais e políticas para que a ação comunicativae, no contexto dela, o discurso prático possam entrar em ação. (FREITAG, 1989, p. 38).

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uma racionalidade comunicativa5 por meio de um ato ideal e situações de falasideais. O ato de fala ideal apresenta uma racionalidade comunicativa em seusargumentos e a situação ideal de fala significa a participação de todos os setoresinteressados com atos de fala ideal nos discursos do qual se constrói o consensopela a força do melhor argumento6.

Habermas desenvolve a Ética Discursiva para a política, a ética e o Direito, oqual considera válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidospoderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursosracionais. (HABERMAS, 2001, p. 142).

Nas palavras de Freitag (1989) a ética discursiva de Habermas é uma daspeças-chaves do projeto de radicalização democrática. A questão da moralidadeconfunde aqui com a questão da democracia: debate público.

A partir desse paradigma procedimental ético pode-se construir uma análiseempírica sobre a produção normativa7 que regulam a atividade biotecnológica.

5 O agir comunicativo comporta uma racionalidade baseada nos princípios de justiça esolidariedade, que busca seus os fins nos entendimento com a definição do interessegeral que pode interagir com outros sistemas no mundo da vida cuja racionalidade éinstrumental, em especial com o sistema tecno-ciência que busca os fins em si mesmo.(DUTRA, 2005, p. 57.)

6 Em sua essência, a ética discursiva procura substituir o imperativo categórico de Kantpelo procedimento da argumentação moral. Dessa forma, o imperativo categórico étransformado em um princípio universalizável, na situação dialógica ideal, perdendosua autoridade como critério moral absoluto “puro”. A ética discursiva sugere quesomente podem aspirar à validade aquelas normas que tiverem o consentimento e aaceitação de todos os integrantes do discurso prático. Para que uma norma tenhacondições de transformar-se em norma geral, aspirando validade universal enquantomáxima da conduta de todos os participantes do discurso prático, os resultados eefeitos colaterais decorrentes da sua observância precisam ser antecipados, pesadosem suas conseqüências e aceitos por todos. Isto ocorre através de um procedimentoargumentativo em que prevalece o melhor argumento, respeitados todos os demais, àluz de sua maior coerência, justeza e adequação. O caráter universal de uma norma ouprincípio moral qualquer só se evidencia se tal princípio ou norma não exprimirmeramente a intuição moral de uma cultura ou época específica, mas sim um conteúdoque possa ter validade geral, fugindo a toda e qualquer forma de etnocentrismo.(FREITAG, 1989, p. 36).

7 Em 24 de março de 2005, o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva sancionoua Lei da Biossegurança nº. 11.105 / 2005. A lei de biossegurança representa o principalinstrumento regulatório da atividade científica na área da biotecnologia.

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3 A LEI DE BIOSSEGURANÇA SOB A ABORDAGEM DA ÉTICA DISCURSIVA

A Lei da Biossegurança nº. 11.105/2005 foi elaborada com um dos propósitosde regulamentar o Artigo 225, §1º, incisos II, IV e V da Constituição Federal,reunindo quatro relevantes matérias diversas: a pesquisa e a fiscalização dosorganismos geneticamente modificados (OGM); a utilização de células-troncoembrionárias para fins de pesquisa e terapia; o papel, a estrutura, as competênciase o poder da CTNBio; e, por fim, a formação do Conselho Nacional deBiossegurança (CNBS).

Trata-se de um conteúdo amplo e diverso no corpo de uma mesma lei o queadverte para uma superficialidade das discussões realizadas. É evidente, então,que não houve a possibilidade de participação de todos os setores sociais,considerando o breve tempo e a ausência espaço público para debate combinadocom uma diversidade de temas desta lei.

A Lei de Biossegurança partiu da regulamentação dos transgênicos, em especialo plantio de semente transgênica, para se alcançar a regulamentação de técnicasde reprodução humana assistida. O resultado dessa regulamentação ocorreuconforme tanto os interesses de laboratórios e de centros de pesquisas com célulashumanas como também para do agronegócio. Isto é, a Lei de Biossegurança foielaborada com um caráter fragmentário e instrumental de setores da sociedadeque tinham interessem próprios e individuais entre os diversos temas tratados.

A racionalidade instrumental é inerente aos sistemas econômico e tecno-científico, os quais pertencem o agronegócio, centros de pesquisas e laboratórios.Esse agir instrumental resulta em benefício para a sociedade como odesenvolvimento econômico e o avanço científico. Entretanto, a racionalidadeinstrumental não realiza discursos que consideram os efeitos nocivos e irreversíveispara toda humanidade entre os temas da biotecnologia, pois seu fim está em simesmo e não na coletividade e por isso a racionalidade instrumental não podeconstruir uma racionalidade comunicativa.

A racionalidade comunicativa pode interagir com o agir instrumental destessistemas pelo tratamento ético. Ou seja, a ética discursiva pode conduzirformalmente a validez das normas do paradigma procedimental. Dessa maneira,a Ética do Discurso conduz como a sociedade entende o princípio da precaução,por exemplo, para atividade biotecnologia pela força do melhor argumento8.

Trata-se da reconstrução do imperativo categórico9 pela linguagem. A

8 Explica McCarthy (1998), a chave da noção habermasiana da obtenção de um acordoé a possibilidade de fazer uso de razões com que possa chegar a um reconhecimentointersubjetivo de pretensões de validade suscetíveis de crítica. Assim, a práticacomunicativa possibilita aos participantes entrarem num processo argumentativo, no

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A Lei de Biossegurança sob a abordagem da ética discursiva

universalização do princípio é um processo dialógico. No princípio estãopresentes os aspectos cognitivo e prático do agir comunicativo dos sujeitos pormeio da linguagem. Em Kant, a objetividade do imperativo categórico tem umaspecto monológico e abstrato no sujeito apriórico. E pode ser reconstruídoracionalmente numa perspectiva universalista. (BOUFLEUER, 2001). Habermasse fundamenta na intersubjetividade e no dialogo, pois entende a objetividadedo como devo agir da norma baseado na racionalidade consensual comunicativa.Pelos aspectos formais da intersubjetividade, a teoria habermasiana é processual,dialógica e comunicativa envolvendo a participação dos sujeitos nos discursos.

Pelo Princípio da Universalização, a ética discursiva só considera válidasnormas que exprimem uma vontade universal. Isto é, uma razão comunicativaque incluem as situações ideais oferecidas pelo conhecimento do interesse geral.E com o Princípio do Discurso, elaboram-se as situações ideais de fala comométodo para alcançar um consenso. As situações ideais incluem os interlocutoresnecessários nos discursos, ou seja, a expressão da vontade universal depende dagarantia de participação de todos os setores da sociedade na discussão paraelaboração da norma. Não há um conteúdo, mas, uma forma (Princípio daUniversalização e Princípio do Discurso) como Princípio Ético que representama procedimentalização do entender os princípios presente nas normas.

Na Lei de Biossegurança ressalta uma ausência de critérios para a atividadebiotecnológica devido à mistura de temas10 combinado com o poder11

discricionário da CTNBio.Com isso, o efeito imediato da Lei de Biossegurança foi constituir como

qual permanece sempre aberta a possibilidade de identificar e corrigir os erros, ouseja, de aprender com eles.

9 “O imperativo categórico declara a ação como objetivamente necessária por si,independentemente de qualquer intenção, quer, sem quaisquer outras finalidades, valecomo princípio apodíco (prático).” (KANT, 1980, p. 125).

10 Lei da Biossegurança nº. 11.105 / 2005, Artigo 1º Esta Lei estabelece normas desegurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, amanipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, oarmazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambientee o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados,tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança ebiotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observânciado princípio da precaução para a proteção do meio ambiente.

11 Lei da Biossegurança nº. 11.105 / 2005, Artigo. 14 Compete à CTNBio:I – estabelecer normas para as pesquisas com OGM e derivados de OGM;

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Valkíria Aparecida Lopes Ferraro; Simone Vinhas de Oliveira

órgão regulador dos critérios de segurança a Comissão Técnica Nacional deBiossegurança (CTNBio). Resta examinar a legitimidade das decisões dosmembros desta Comissão pelos fundamentos democráticos.

4 O PODER DISCRICIONÁRIO DA CTNBio NOS LIMITES DO ESTADODEMOCRÁTICO DE DIREITO

No contexto atual, a principal regulação da atividade biotecnológica, no país,ocorre por meio da CTNBio12, vinculada ao ministério de Ciência e Tecnologia.

Ante a ausência de critério da Lei de Biossegurança diante da variabilidade de

II – estabelecer normas relativamente às atividades e aos projetos relacionados àOGM e seus derivados;III – estabelecer, no âmbito de suas competências, critérios de avaliação emonitoramento de risco de OGM e seus derivados;IV – proceder à análise da avaliação de risco, caso a caso, relativamente a atividades eprojetos que envolvam OGM e seus derivados;V – estabelecer os mecanismos de funcionamento das Comissões Internas deBiossegurança – CIBio, no âmbito de cada instituição que se dedique ao ensino, àpesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à produção industrial que envolvaOGM ou seus derivados;VI – estabelecer requisitos relativos à biossegurança para autorização de funcionamentode laboratório, instituição ou empresa que desenvolverá atividades relacionadas àOGM e seus derivados;VII – relacionar-se com instituições voltadas para a biossegurança de OGM e seusderivados, em âmbito nacional e internacional;VIII – autorizar, cadastrar e acompanhar as atividades de pesquisa com OGM ouderivado de OGM, nos termos da legislação em vigor;IX – autorizar a importação de OGM e seus derivados para atividade de pesquisa;X – prestar apoio técnico consultivo e de assessoramento ao CNBS na formulação daPNB de OGM e seus derivados;XI – emitir Certificado de Qualidade em Biossegurança – CQB para o desenvolvimentode atividades com OGM e seus derivados em laboratório, instituição ou empresa e enviarcópia do processo aos órgãos de registro e fiscalização referidos no art. 16 desta Lei;XII – emitir decisão técnica, caso a caso, sobre a biossegurança de OGM e seusderivados no âmbito das atividades de pesquisa e de uso comercial de OGM e seusderivados, inclusive a classificação quanto ao grau de risco e nível de biossegurançaexigido, bem como medidas de segurança exigidas e restrições ao uso;XIII – definir o nível de biossegurança a ser aplicado ao OGM e seus usos, e osrespectivos procedimentos e medidas de segurança quanto ao seu uso, conforme asnormas estabelecidas na regulamentação desta Lei, bem como quanto aos seus derivados;

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A Lei de Biossegurança sob a abordagem da ética discursiva

temas, a CTNBio normativa a atividade biotecnológica estabelecendo critério paraautorizar ou não determinada atividade. Em que pese haver uma necessidade deórgão de apoio técnico para o poder executivo com essa comissão, a sua competênciade regular plenamente a atividade biotecnológica por meio de autorização e certificaçãoé assimétrica aos fundamentos éticos tanto para modelo de democracia derepresentação popular e também para o modelo13 de democracia de participação.

Essa forma de regulação encerra uma discrepância com o modelo Democrático

XIV – classificar os OGM segundo a classe de risco, observados os critériosestabelecidos no regulamento desta Lei;XV – acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico-científico na biossegurançade OGM e seus derivados;XVI – emitir resoluções, de natureza normativa, sobre as matérias de sua competência;XVII – apoiar tecnicamente os órgãos competentes no processo de prevenção einvestigação de acidentes e de enfermidades, verificados no curso dos projetos e dasatividades com técnicas de ADN/ARN recombinante;XVIII – apoiar tecnicamente os órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidosno art. 16 desta Lei, no exercício de suas atividades relacionadas à OGM e seus derivados;XIX – divulgar no Diário Oficial da União, previamente à análise, os extratos dospleitos e, posteriormente, dos pareceres dos processos que lhe forem submetidos,bem como dar ampla publicidade no Sistema de Informações em Biossegurança –SIB a sua agenda, processos em trâmite, relatórios anuais, atas das reuniões e demaisinformações sobre suas atividades, excluídas as informações sigilosas, de interessecomercial, apontadas pelo proponente e assim consideradas pela CTNBio;XX – identificar atividades e produtos decorrentes do uso de OGM e seus derivadospotencialmente causadores de degradação do meio ambiente ou que possam causarriscos à saúde humana;XXI – reavaliar suas decisões técnicas por solicitação de seus membros ou por recursodos órgãos e entidades de registro e fiscalização, fundamentado em fatos ouconhecimentos científicos novos, que sejam relevantes quanto à biossegurança doOGM ou derivado, na forma desta Lei e seu regulamento;XXII – propor a realização de pesquisas e estudos científicos no campo dabiossegurança de OGM e seus derivados;XXIII – apresentar proposta de regimento interno ao Ministro da Ciência e Tecnologia.§ 1º Quanto aos aspectos de biossegurança do OGM e seus derivados, a decisãotécnica da CTNBio vincula os demais órgãos e entidades da administração.§ 2º Nos casos de uso comercial, dentre outros aspectos técnicos de sua análise, osórgãos de registro e fiscalização, no exercício de suas atribuições em caso de solicitaçãopela CTNBio, observarão, quanto aos aspectos de biossegurança do OGM e seusderivados, a decisão técnica da CTNBio.

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representativo porque não há representação popular nessa espécie de atividadenormativa. O poder legislativo é o poder legitimado para elaborar normas derelevância social pela sua representatividade popular. Os possíveis impactos e aimprevisibilidade gerados pela biotecnologia constituem a relevância social dasnormas sobre esse tema. A ausência de critério na Lei de Biossegurança, ou seja,suas omissões não legitimam um outro poder (executivo), a não ser o própriolegislativo saná-las. Por serem essas normas de relevância social, devem serproduzidas pelo poder legislativo para serem legítimas conforme os fundamentosdemocráticos de representação.

Torna-se, assim, evidente a assimetria do poder discricionário da CTNBiotanto com o modelo democrático atual, bem como com os fundamentos éticosque buscam uma ampla participação popular nas decisões políticas do Estado:radicalização da Democracia.

Para Hans Jonas, o novo imperativo está endereçado muito mais à políticapública que à conduta privada diante do paradoxo da tecnologia, que exercepoder e foge do controle, requer-se algum tipo de “poder sobre o poder”. Há

12 Conforme o Artigo 1º e seus parágrafos, os agentes deverão, obrigatoriamente, requerera autorização do Conselho Nacional de Biossegurança – CTNBio que deverá fornecerCertificado de Qualidade em Biossegurança sob pena de estabelece a co-responsabilidade dos agentes nas atividades e pesquisa quanto aos seus efeitos emdecorrência do descumprimento. O art. 14 reafirma a competência do CTNBio emestabelecer parâmetros e requisitos de segurança, ou seja, aprovar ou não as atividadesou pesquisas com OGM.

13 O modelo elaborado para legitimar ideologicamente as teses sobre democracia,defendida nos Estados Unidos e Inglaterra, em medos da década de 40, correspondeao modelo elitista / pluralista. Tal modelo sistematizado inicialmente por JosephSchumpeter, no livro Capitalismo, socialismo e democracia, considera que a democracia éum método de escolha ou autorização de governos, ou seja, é aquele acordoinstitucional para chegar às decisões políticas em que os indivíduos adquirem poderde decisão por meio de uma luta competitiva pelos votos da população. O eleitor,neste sistema, é chamado para votar em que se apresenta como candidato.Quanto ao modelo de democracia participativa, trata-se de um modelo de governo que adefende um funcionamento de uma democracia direta na base e com sistema representativonos outros níveis de governo. As principais preocupações estão no modo de atingir essemodelo de democracia participativa assegurando aos eleitores as responsabilidades doEstado perante eles. (CORTINA, 2001, p. 94-98) Os avanços em direção à radicalizaçãoda democracia na sociedade tem ocorrido nos momentos em que a força organizativapopulares consegue impor o alargamento dos direitos políticos e sociais.

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que moderar a ação técnica e lhe impor limites para poder excluirantecipadamente ações que desencadeiem, mesmo em um caso remoto, riscospara a humanidade e a vida no planeta. Esse poder sobre o poder deve emanarda sociedade como um todo, sendo preciso “afetar a opinião popular”, oscomportamentos e as leis ligadas ao campo da ciência e da técnica. E nas palavrasde Oswaldo Giacoia Junior “O novo imperativo ético não se dirige (como oimperativo categórico de Kant) ao comportamento do indivíduo privado, masao agir coletivo, sua destinação não é, portanto, a esfera próxima das relaçõesentre singulares, mas a do domínio da política pública.” (GIACOIA, 2000, p.193-206).

Se, se entende como proposta minimizar ou reverter os efeitos perturbadorese irreversíveis14 do agir instrumental da biotecnologia por um controle popular, opoder discricionário da CTNBio contraria esses fundamentos éticos. Pois, nessemodelo de regulação, além de não atender ao modelo representação popular,obsta um plano de ampla participação social como forma de radicalizaçãodemocrática necessária nas decisões no âmbito da biotécnica.

A participação popular nas decisões possibilita uma racionalidade comunicativae imprimi a validade15 às normas jurídicas. Pra isso, Habermas concilia a autonomiaprivada com autonomia pública para a procedimentalização das respostas quedevem ser dadas pelo Direito como forma de resolver as tensões no EstadoDemocrático de Direito. (HABERMAS, 2001).

14 Hans Jonas afirma que os erros na Biotecnologia produzem efeitos irreversíveis. Eisto revela a ineficácia dos mecanismos de responsabilidade civil, fundado na culpa(binômio lesão-sanção), Pois, a responsabilidade civil, nas bases do iluminismo, lidacom a previsibilidade da lesão causada pela agir do indivíduo, oposto às imprevisibilidadese multiplicidades de situações das sociedades complexas diante dos avanços biotecnológicos.(KAUFMAM, 2004, p. 464).

15 Para Habermas, a tensão interna entre faticidade e validade do Direito Moderno semanifesta em três níveis: na norma jurídica, no sistema de direitos e no estadodemocrático de direito. No nível da norma jurídica, os destinatários do direitopodem obedecê-la por temor da coerção prevista na lei, proveniente de sua vigênciasocial (faticidade) ou pela convicção que procede do reconhecimento de sualegitimidade (validade), porque o direito moderno permite que os agentes, orientadospela racionalidade comunicativa do mundo da vida, sigam as normas jurídicas peloreconhecimento de sua legitimidade, enquanto os agentes, regidos pela racionalidadeestratégica dos sistemas, calculam os custos e benefícios de obedecê-la como um fatosocial, no qual os custos são representados pelas sanções previstas em lei, na formade multa ou pena de reclusão, enquanto os benefícios emanam dos lucros e vantagens

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de violá-la. A tensão interna entre faticidade e validade se manifesta também nosistema de direitos, por meio do qual Habermas mostra como se distinguem osdireitos fundamentais individuais, políticos e sociais. O sistema de direitos somentepode ser fundamentado através da auto-legislação democrática empreendida pelospróprios cidadãos, pois, dadas as condições pós-metafísicas da Modernidade, os cidadãosnão são mais capazes de aceitar a fundamentação das normas jurídicas com base nodireito natural teológico, que emana da vontade de Deus, ou a partir do direito naturalracional, proveniente da razão natural. Contudo, o processo democrático tambémtem que permitir aos autores das leis a liberdade subjetiva de escolher os motivospara aprová-las orientados estrategicamente, assim como a possibilidade de alcançarracionalmente um consenso sobre a legitimidade da lei, comprometendo-se, em últimainstância, com a solidariedade engendrada pela ação comunicativa no mundo da vida,porque os direitos políticos de participação e comunicação são direitos subjetivoscomo quaisquer outros direitos. (DURÃO, 2006, p. 108).

16 Quando no século passado se manifestou o contraste entre liberais e democratas, acorrente democrata levou a melhor obtendo gradual, mas inexoravelmente a eliminação

Os direitos fundamentais da livre iniciativa e de liberdade da pesquisacientífica na esfera da autonomia privada coexistem e se conciliam com aautonomia pública que representa a liberdade no âmbito de participação políticadas decisões. As resoluções das leis, que culminam no conteúdo jurídico daatividade biotecnológica devem ser validadas pela vontade geral, ou seja, umordenamento jurídico motivado pelo consenso do ambiente social nosfundamentos de uma democracia deliberativa.

A autonomia privada e a autonomia pública pressupõem-se mutuamente. A conexãointerna entre democracia e Estado de direito consiste em que, por um lado, os cidadãosapenas podem fazer um uso adequado de sua autonomia pública se graças a umaautonomia privada assegurada são suficientemente independentes; e por outro lado,só podem obter um equilibrado exercício de sua autonomia pública. Por isso osdireitos fundamentais e os direitos políticos são indivisíveis. (HABERMAS, 2002, p.293).

O Conselho Nacional de Biossegurança pode significar a criação de espaçopúblico para o exercício da autonomia pública no âmbito da biotecnologia. Oexercício da autonomia pública, com a aplicação do Princípio do Discurso e oPrincípio da Universalidade, está no bojo da ética discursiva para orientar ascondutas na esfera da autonomia privada.

Embora a Lei de Biossegurança tenha disposto sobre a formação do ConselhoNacional de Biossegurança (CNBS)16, não há uma regulamentação para esteúltimo. Para isso, deve haver um novo tratamento legal daquele disposto na Leide Biossegurança quanto à elaboração dos conteúdos jurídicos para a atividadebiotecnológica.

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Esse novo tratamento legal deve inserir a participação do CNBS no âmbitode competência de regulamentação da atividade biotecnológica. Assim,deslocando a competência regulatória atribuída à CTNBio pela atual legislação,a principal regulamentação da atividade biotecnológica poderá ser realizadapor deliberações desse conselho.

A CTNBio, pelo seu caráter técnico, poderá servir de órgão de apóio aoconselho. Na medida em que se desenvolvem os mecanismos legais de participaçãona gestão democráticas, reconhecê-se dois requisitos básicos para o cidadão agirparitariamente junto ao poder público: ativismo político e compreensão técnica.O primeiro diz respeito à capacidade de formular ações de finalidade pública. Jáo segundo significa entender as ações que envolvem o agente público. Por isso, anecessidade de haver um trabalho educacional no conselho que pode serdesenvolvido pela CTNBio dentro das deliberações do CNBS. Tendo em vista ograu elevado de compreensão técnica nos debates e possibilidade de amplaparticipação de sujeitos no debate que não dominam a informação debatida, aCTNBio pode ser fundamental para a democracia participativa no papel educadorpelo seu domínio do conhecimento sobre a biotécnica.

O caráter regulador deste Conselho importa para configurar uma políticadeliberativa de Estado Democrático de Direito e consolidar os direitos políticos,bem os direitos fundamentais no âmbito da biotecnologia. Com isso, há,estrategicamente, com fim próprio de conter os abusos da atividade biotecnológica,a procedimentalização pelo Direito17 de um agir comunicativo com osfundamentos da Ética Discursiva Habermasiana. Assim, a elaboração de conteúdos

das discriminações políticas a concessão do sufrágio universal. Hoje, a reaçãodemocrática consiste em exigir a extensão de participação nas tomadas de decisõescoletivas para lugares diversos daqueles em que se tomam as decisões políticas. Consisteem procurar conquistar novos espaços para a participação popular e, portanto, emprovar a passagem da fase democrática de equilíbrio para a fase da democracia departicipação. (LIBERATI; CYRINO, 2003, p. 86-7). Por exigência da participaçãoentre representação de governo e da sociedade civil nesse novo organismo, surgiu nocampo do ordenamento jurídico, um novo perfil, um novo canal institucional, osConselhos de Direitos. Esses canais de participação direta do povo asseguram umaverdadeira co-gestão, um exercício partilhado do poder político entre governantes esociedade civil. A origem formal dos conselhos pode ser reconhecida na Constituiçãode 1988 no Artigo 204, inciso II.

17 Em tempos pós-metafísicos e secularizados, a força coercitividade do Direito o constituicomo o instrumento que melhor garante a integração social detentor de um poderunificador equivalente à religião. (ARROYO, 2000, p. 84).

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jurídico da biotecnologia poderá pressupor um exercício da autonomia privadaconciliada autonomia pública, ou seja, a intersubjetividade e comunicação noBiodireito.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O agir instrumental da atividade biotecnológica provoca um desequilíbrioestrutural existente nas relações sociais. A autonomia pública, sob a abordagemda ética discursiva, pode servir como importante elemento de estabilização relaçõessociais e, assim, como limites para os abusos da atividade biotecnológica.

Para tanto, é preciso refletir sobre os modelos de elaboração de norma quecontrariam os parâmetros democráticos das decisões políticas como ocorre coma Tecnocracia da CTNBio.

Numa Democracia representativa, os critérios normativos para a atividadebiotecnológica devem ser elaborados pelo poder legislativo. Porque sendo oconteúdo de relevância social da Lei de Biossegurança, a matéria é de competêncialegislativa do Congresso Nacional – órgão de representação popular e não umórgão tecnocrata do Poder Executivo. O retorno da regulamentação para olegislativo seria simétrico ao patrão ético-jurídico do atual modelo democrático.

Mas, a proposta de radicalização democrática, como premissa para conter osabusos da atividade biotecnológica, conduz ao padrão ético de participação políticados indivíduos. Isto aponta a necessidade de criação de espaços públicos o queconverge para os fundamentos da ética discursiva habermasiana.

Ambos os modelos democrático (representação política e participação direitapolítica) se opõe à idéia de órgão tecnocratas do poder executivo decidindo,exclusivamente, sobre temas que afetam os interesses de toda humanidade.

A formação de um Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) pela Lei deBiossegurança aponta um caminho para da ética discursiva porque criaprocedimentos para haver uma racionalidade comunicativa.

Resta a regulamentação deste Conselho para instituir um espaço público departicipação nas decisões política sobre biotecnologia. A partir da intersubjetividadee da comunicação, os quais são elementos da ética discursiva habermasiana, épossível objetivar o dever ser da atividade biotecnológica num modelo dedemocracia deliberativa.

REFERÊNCIAS

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A Lei de Biossegurança sob a abordagem da ética discursiva

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A proteção internacional dos direitos humanos e o Direito Internacional do Meio Ambiente

A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DIREITOINTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE: CONSIDERAÇÕES INICIAIS

THE INTERNATIONAL PROTECTION OF HUMAN RIGHTS AND THEINTERNATIONAL RIGHT OF THE ENVIRONMENT : INITIAL CONSIDERATIONS

Ana Karina Ticianelli Möller*

Tânia Lobo Muniz**

Resumo: O presente artigo pretende desenvolver a discussão sobre arelação existente entre a proteção dos direitos humanos e a do meioambiente, como uma das grandes prioridades da agenda internacionalcontemporânea.

Palavras-chave: Direitos Humanos. Direito Internacional. Meio ambiente.

Abstract: This present article intends to develop the discussion aboutthe existent relation between the human rights and the environment, asone of the major priorities of the contemporany international agenda.

Keywords: Human Rights. International Law. Environment.

1 INTROUÇÃO

A proteção internacional dos direitos humanos e o direito internacional domeio ambiente são, dentro do contexto do direito internacional público, os doisgrandes temas da globalidade. Apesar dos dois assuntos terem maturidadebiológica, as questões inerentes à inter-relação entre os temas ainda não foramdevidamente esclarecidas no âmbito das relações internacionais contemporâneas(MAZZUOLI, 2004b, p. 97).

A inserção do tema “meio ambiente” na esfera de proteção dos direitoshumanos, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, decorreu da percepçãode que questões ligadas à sua proteção não se limitam somente à poluiçãoambiental, mas abrangem um universo social e econômico muito mais amplo.

* Advogada, especialista em Direito Empresarial e mestranda em Direito Negocial pelaUniversidade Estadual de Londrina.

**Docente titular do programa de Mestrado em Direito Negocial da UniversidadeEstadual de Londrina. Doutora em direito pela PUC/SP.

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Ana Karina Ticianelli Möller; Tânia Lobo Muniz

No que pese a pauta principal ter sido o meio ambiente, a Conferência dasNações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio deJaneiro, de 3 a 14 de junho de 1992, considerada um marco do Direito InternacionalAmbiental, resultou na reafirmação de princípios internacionais de direitoshumanos, como os da indivisibilidade e interdependência, conectando-os às regrasde proteção ao meio ambiente.

Os diversos estudos sobre as mudanças climáticas sofridas pelo planeta esuas conseqüências, bem como a elaboração de inúmeros tratados internacionaisa respeito, demonstram que o assunto é relevante para a humanidade.

O presente estudo pretende relatar essa importância dada aos temas de direitoshumanos e meio ambiente em nível internacional, abordando o significado eabrangência dos tratados, especialmente das proposições em foco, e suasrepercussões nas sociedades contemporâneas.

2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE TRATADOS INTERNACIONAIS

Para melhor compreensão dos assuntos a serem tratados é necessário umsucinto relato do significado jurídico de tratados internacionais, por constituíremimportante fonte de obrigação do Direito Internacional, com natureza deobrigatoriedade e de vinculação, por meio de análise de sua formação econseqüências.

A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 26 de maio de 1969,teve como finalidade codificar as principais regras costumeiras sobre a matéria,disciplinando e regulando o processo de formação dos tratados internacionais.Limitou-se, porém, aos acordos celebrados entre Estados, não abrangendo aquelesdos quais participam organizações internacionais1. Posteriormente, esta Convençãofoi complementada pela de 1986 sobre o Direito dos Tratados e OrganizaçõesInternacionais, cujo objetivo foi precisamente o de regulamentar essa realidade,em relação a estas entidades.

O tratado é uma das principais fontes do direito internacional público, emconjunto com os costumes internacionais e princípios gerais do direito. Indicauma modalidade de ato jurídico, através do qual se manifesta um acordo devontades entre duas ou mais entidades dotadas de personalidade jurídica

1 De acordo com Flávia Piovesan, a celebração de tratados entre Estados e organizaçõesinternacionais e entre organizações internacionais é cada vez mais freqüente. Estefato alterou a noção tradicional de que o tratado era exclusivamente um acordo entreEstados, pela noção de tratado é acordo entre dois ou mais sujeitos de direitointernacional. (PIOVESAN, 2000, p. 66).

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A proteção internacional dos direitos humanos e o Direito Internacional do Meio Ambiente

internacional (ACCIOLY; SILVA, 1996). “É o acordo formal, concluído entresujeitos de direito internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos”(REZEK, 1996, p. 112). Ou ainda, “ato jurídico segundo o qual os Estados eOrganizações Internacionais que obtiveram personalidade por acordo entrediversos Estados criam, modificam ou extinguem uma relação de direito existenteentre eles” (ARAÚJO, 1988, p. 33).

Outras denominações, além de tratado, podem ser utilizadas para se referir aacordos internacionais, tais como convenção, pacto, protocolo, carta, convênio, etc.

Para a sua validade é preciso que haja concurso de vontades, que as partessejam sujeitos de direito internacional, que crie compromissos jurídicos com caráterobrigatório e deve ser regulado pelo direito internacional. (DINH; DAILLIER,2003). O consentimento deve ser mútuo e livre, e o objeto lícito e possível.

Por determinação constitucional, os tratados internacionais, entendidos noseu sentido amplo, entram no ordenamento jurídico brasileiro por um processode transformação denominado internação, internalização, incorporação ou recepção dostratados internacionais. É um tipo de transformação para que o documentointernacional vire um direito interno, com todas as características que a normapossui. Isto porque, no Brasil adota-se um sistema dualista no qual a normainternacional, o tratado internacional in casu, não é aplicada diretamente,necessitando passar por um processo para transformá-lo em norma doordenamento jurídico interno (ARIOSI, 2004).

De modo geral, o processo de conclusão e internalização podem ser divididosem quatro fases distintas: a negociação, com a discussão dos termos de seuconteúdo, entre os signatários; a assinatura do texto final, avaliado pela equipenegociadora; o referendum, internalização propriamente dita, pelo CongressoNacional, com a instrumentalização do texto em Decreto Legislativo, e finalmentea fase de ratificação e promulgação, pelo Presidente da República, com a ediçãodo Decreto do Executivo. Após a promulgação e publicação do Decreto doExecutivo, este adquire vigência no ordenamento jurídico interno brasileiro comhierarquia de lei federal ordinária.

É diferenciado o procedimento, porém, quando seu conteúdo refere-se adireitos humanos. A Constituição Federal do Brasil, em seu art. 5º, par. 2º, promovea interação entre o Direito Brasileiro e os tratados internacionais de direitoshumanos ao dispor que os direitos e garantias e dispondo ali expressos “nãoexcluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dostratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”,incluindo, desta maneira, no catálogo dos direitos constitucionalmente protegidos,os direitos enunciados nos tratados firmados pelo Brasil (PIOVESAN, 2000).

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Ana Karina Ticianelli Möller; Tânia Lobo Muniz

Assim, todos os instrumentos de proteção de direitos humanos ratificadospelo Brasil (tratados internacionais sobre direitos civis e políticos e sobre direitoseconômicos, sociais e culturais), passam a deter o “status” de normasconstitucionais, incorporando-se automaticamente no ordenamento jurídicobrasileiro. (MAZZUOLI, 2004b, p. 121).

O tratamento jurídico diferenciado, segundo Flávia Piovesan,

justifica-se na medida em que os tratados internacionais de direitos humanosapresentam um caráter especial, distinguindo-se dos tratados internacionais comuns.Enquanto estes buscam o equilíbrio e a reciprocidade de relações entre Estadospartes, aqueles transcendem os meros compromissos recíprocos entre os Estadospactuantes. Os tratados de direitos humanos objetivam a salvaguarda dos direitosdo ser humano e não das prerrogativas do Estado (PIOVESAN, 2000, p. 159-228).

3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOSDIREITOS HUMANOS

O Direito Internacional dos Direitos Humanos tem sua base doutrinária emuma moralidade com padrões mínimos e firma-se num consenso sobre duasproposições morais: todos têm direito a condições mínimas de uma vida digna aser vivida e certas liberdades e proteções são necessárias para tal vida (FREEMAN,2002). Consiste em um sistema de normas internacionais, procedimentos einstituições desenvolvidas para implementar esta concepção e promover o respeitodos direitos do homem em âmbito mundial (PIOVESAN, 2000).

Surge em meados do século XX, em decorrência da Segunda Grande GuerraMundial e, segundo Richard B. Bilder (1992 apud PIOVESAN, 2003), seumovimento é baseado na concepção de que toda nação tem a obrigação de respeitaros direitos humanos de seus cidadãos e de que todas as nações e a comunidadeinternacional têm o direito e a responsabilidade de protestar, se um Estado nãocumprir suas obrigações. Neste contexto, o ser humano passa a ocupar posiçãocentral nas sociedades contemporâneas.

A aprovação da Declaração dos Direitos Humanos, adotada e proclamadapela resolução 217 A (III), da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 dedezembro de 1948, foi o verdadeiro marco divisor do processo deinternacionalização dos direitos humanos, ensejando a produção de inúmerostratados internacionais destinados a proteger todos os indivíduos. Até então, asquestões humanitárias estavam restritas a algumas poucas legislações internas dealguns países e somente integravam a agenda internacional na ocorrência deguerras (MAZZUOLI, 2004b, p. 100).

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A proteção internacional dos direitos humanos e o Direito Internacional do Meio Ambiente

A dignidade inerente a todos os seres humanos independentemente da suanacionalidade é o eixo filosófico da Declaração dos Direitos do Homem, que éuniversal por sua expressão, por seu conteúdo, por seu campo de aplicação e dáinício a uma fase da humanidade na qual a afirmação dos direitos humanos é aomesmo tempo universal e positiva (GREGORI, 2002). Esse ponto de vista tornoupossível o surgimento de inúmeros acordos internacionais protetivos dos direitoshumanos, tanto em aspectos civis e políticos, como relativos às áreas de domínioeconômico, social e cultural, tanto mundial como regional e todo um sistemainternacional de sua proteção.

A concepção contemporânea de direitos humanos, introduzida pela Declaração,conjuga o valor da liberdade com o valor da igualdade, e dá ênfase à universalidade,indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, reafirmadosposteriormente na Declaração de Viena de 1993, em seu artigo 5º, que dispõeque os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados,definitivamente legitimando a noção de indivisibilidade desses direitos, cujospreceitos devem ser aplicados tanto aos direitos civis e políticos, como aoseconômicos, sociais e culturais, e enfatizando os direitos de solidariedade, o direitoà paz, o direito ao desenvolvimento e os direitos ambientais.

A criação desses sistemas normativos, tanto na esfera global pela Organizaçãodas Nações Unidas, como nas esferas regionais, elevou o ser humano à categoriade sujeito de direito internacional público, preservando o indivíduo de açõesdanosas, inclusive do próprio Estado, e por meio desses instrumentos gerais eregionais, e também especiais, que visam determinados sujeitos de direito, buscaa preservação do indivíduo de ações danosas, inclusive do próprio Estado.

Nesse sentido, como diz o pensador italiano Norberto Bobbio, de que a“Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade temdos próprios valores fundamentais, na segunda metade do século XX. É umasíntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foramgravadas para sempre” (BOBBIO, 1992, p. 34), e considerando então, que osdireitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humanaem constante processo de construção e reconstrução (ARENDT, 1979, apudPIOVESAN, 2005), aliado ao desenvolvimento progressivo do Direitointernacional dos Direitos Humanos, no contexto das relações internacionaiscontemporâneas, foram introduzidos inúmeros tratados de proteção ao meioambiente.

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Ana Karina Ticianelli Möller; Tânia Lobo Muniz

4 DO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE

4.1 A tomada de consciência

Uma das realidades do Século XX, trazida para o Século XXI, é a necessidadede proteção do meio ambiente, em razão dos problemas surgidos em função dasintensas atividades industriais e de um consumismo humano exacerbado emnível mundial, com desenvolvimento a qualquer custo, resultando em umdesequilíbrio entre o meio ambiente e a atividade econômica.

O processo de globalização das economias nacionais e a gravidade dosproblemas globais, somente enfrentáveis por meio de esforço mundial, introduzemna história humana a necessidade de se aprofundar a definição e a consolidaçãojurídica do conceito de interesse público internacional, para protegê-lo da formamais efetiva possível, como a maior das prioridades.

Houve, durante os séculos passados, preocupações isoladas, com a água,preservação de determinados animais e conservação da paisagem construída pelohomem, mas sem a consciência de que a proteção destes fatores transcende aonível local, pois a percepção de que se encontram entrelaçados numa rede deinter-relações entre os próprios fatores e entre espaços nacionais e extras nacionais,é fenômeno atual (SOARES, 2002).

Essa compreensão começa a acontecer quando a poluição passa a serconsiderada um evento que ultrapassa as fronteiras, e que os planos de preservaçãodo meio ambiente e antipoluição somente alcançariam resultados efetivos casohouvesse uma ação em escala mundial.

4.2 Os marcos legais

O Direito Ambiental passa a ter mais em evidência na década de 70 do SéculoXX, com a realização da Conferência das Nações Unidas para o AmbienteHumano, em 1972, em Estocolmo, na Suécia. Nesta Conferência foi proclamadoque a forma ideal de planejamento ambiental é aquela que associa a prudênciaecológica às ações pró-desenvolvimento, o eco desenvolvimento.

Foi, então, dado início a uma conscientização ecológica, aliada à necessidade de cooperaçãointernacional para a proteção do meio ambiente. Os Estados e organizações nãogovernamentais foram encorajados a efetivar medidas de proteção ambiental ehouve uma sensibilização da opinião pública sobre o assunto e a urgência dasquestões debatidas.

Nesse encontro, restou destacada a preocupação especial com o meio ambiente,consagrando, solenemente, princípios basilares na Declaração sobre o AmbienteHumano2:

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A proteção internacional dos direitos humanos e o Direito Internacional do Meio Ambiente

Princípio 1: O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e aodesfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade talque lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem estar e é portador solene deobrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes efuturas. A esse respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o apartheid, asegregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressãoe de dominação estrangeira permanecem condenadas e devem ser eliminadas.Princípio 2: Os recursos naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e afauna, e especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas naturais, devemser preservados em beneficio das gerações atuais e futuras, mediante uma cuidadosaplanificação ou regulamentação, segundo seja mais conveniente.Princípio 3: Deve ser mantida, e sempre que possível restaurada e melhorada acapacidade da Terra de produzir recursos vitais renováveis Princípio 4: O homemtem a responsabilidade especial de preservar e administrar ponderadamente opatrimônio representado pela flora e fauna silvestre, bem assim o seu habitat, que seencontram atualmente em grave perigo, em virtude da conjugação de diversos fatores.“Conseqüentemente, ao se planejar o desenvolvimento econômico, deve atribuir-seuma importância específica à conservação da natureza” (DECLARAÇÃO..., 1972).

Vinte anos depois, em 1992, foi realizada no Rio de Janeiro, a maiorconferência mundial sobre problemas ambientais, a Conferência das NaçõesUnidas sobre Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), que ficou conhecidacomo ECO 92. O objetivo era elaborar estratégias e medidas para deter adegradação ambiental, no Brasil e no mundo, promovendo o desenvolvimentosustentável.

A ECO 92 mostrou que os padrões de produção e consumo estavam emníveis insustentáveis e que ajudar os países em desenvolvimento, por meio decooperação técnica e científica, bem como apoio financeiro, poderia ajudar aabaixar os índices de degradação ambiental.

O direito soberano dos Estados sobre seus recursos naturais foi ressaltado,porém estes têm o dever e a responsabilidade de evitar qualquer tipo de danoambiental, respeitando os Estados vizinhos, protegendo a geração presente e afutura, lutando contra a pobreza e investindo no desenvolvimento.

Na ECO 92 foram traçados os princípios éticos da equidade e de tomada de decisão,que se tornaram freqüentes nas negociações ambientais e que foram adotadosposteriormente na Convenção Quadro3 das Nações Unidas sobre a Mudança doClima, de 1992 e, conseqüentemente, no Protocolo de Quioto, de 11 de dezembrode 1997, como será visto a seguir.

2 Declaração firmada por ocasião da Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo,Suécia, de 05 a 15 de junho de 1972.

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Surgiu, também, a necessidade de regulamentação das questões ambientais,uma vez que somente a preocupação com o meio ambiente não conseguiriafrear o desenvolvimento industrial com degradação ambiental, com conseqüentesà saúde humana e animal. A preocupação e a necessidade de regulamentaçãoatingiram a comunidade internacional.

A Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança de Clima foi abertapara assinatura e ratificação na Conferência Mundial sobre Problemas Ambientais(CNUMAD), e concluída em 09 de maio de 1992. Entrou em vigor em 21 demarço de 1994, com 189 Países-partes firmando seus termos. Teve como objetivoestabilizar a emissão de gases de efeito estufa de modo a prevenir a intervençãohumana maléfica para a atmosfera.

Por meio desta Convenção, a Organização das Nações Unidas (ONU)reconheceu que as mudanças climáticas devem ser vistas como um problema dahumanidade, de vital importância para as gerações presentes e futuras. Assim,foram estabelecidas regras gerais sobre a emissão de gases que causam o efeitoestufa, em especial o dióxido de carbono.4

Os Estados-partes são divididos em dois grupos, em virtude das diferençaseconômicas, sociais e de nível de desenvolvimento: o Anexo I5 e o Não Anexo I.O primeiro contém os Estados desenvolvidos, industrializados e ricos e tambémos industrializados em processo de transição para uma economia de mercado6.No segundo estão 189 Estados considerados ainda em desenvolvimento, entreeles o Brasil.

3 Convenção-Quadro é um tipo de convenção que necessita de outros meios pararegulamentá-la, não é considerada um tratado impositivo, com normas e regras cogentes,não implica sanções aos que a descumprirem, é uma soft law. Trata de muitos assuntosao mesmo tempo, sem ênfase especial a nenhum deles. De acordo com Guido FernandesSilva Soares, alguns autores entendem que a soft law exprime apenas uma obrigaçãomoral ou natural ligada à idéia de equidade. Embora não existam acordos doutrináriosclaros sobre a abrangência conceitual desta expressão, esta é uma fonte de direitointernacional utilizada em sentido genérico para acordos, protocolos, declarações deprincípios, entre outros (SOARES, 2002).

4 Gás ligeiramente tóxico, inodoro, incolor e de sabor ácido, obtido como subprodutode algumas combustões.

5 Na Convenção, o chamado Anexo I é o bloco de países que possuem metas obrigatóriasde redução, sendo composto essencialmente por países do oeste europeu, Japão eCanadá.

6 Belarus, Bulgária, Croácia, Eslovênia, Estônia, federação Russa, Hungria, Letônia,Lituânia, Polônia, República Tcheca, República Eslovaca, Romênia e Ucrânia.

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Com a idéia e o reconhecimento de que os Estados desenvolvidos, como osda União Européia7 e os Estados Unidos da América do Norte, foram os maioresresponsáveis pela poluição do ar no último século, estes países foram convocadosa arcar com a conseqüência de seus atos.

A responsabilização diferenciada, que resultou no estabelecimento de metasde estabilização dos níveis de emissão de gases de efeito estufa apenas para osEstados desenvolvidos, é baseada no principio de responsabilidade comum, porémdiferenciada, adotada pela Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudançasde Clima, e que rege usualmente as relações entre os países desenvolvidos e ospaíses em desenvolvimento, constituindo exceção ao principio da reciprocidadedas partes (FRANGETTO; GAZANI, 2002).

O princípio de responsabilidade comum, porém diferenciada está previsto no Art. 3 daConvenção Quadro e afirma que devem ser consideradas as necessidadesespecíficas e as circunstâncias especiais dos Estados-partes considerados emdesenvolvimento, e que a iniciativa de ações de combate à mudança do clima eseus efeitos advenha dos países desenvolvidos (YOSHIDA, 2006).

Criou-se o princípio poluidor pagador, recurso econômico utilizado para queo poluidor arque com os custos da atividade poluidora, que confirma que oscitados Estados desenvolvidos são os maiores causadores e responsáveis peloefeito estufa no Planeta Terra, sendo de sua responsabilidade tomar medidaspara combater os desgastes ambientais. De acordo com Antônio HermanBenjamin, o princípio poluidor-pagador não é um princípio de compensação dosdanos causados pela poluição, pois seu alcance “é mais amplo, incluídos todos oscustos da proteção ambiental, quaisquer que eles sejam, abarcando, a nosso ver,os custos da prevenção, de reparação e de repressão do dano ambiental...”(BENJAMIN, 1993, p. 227).

A Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima prevêajuda científica e financeira para os países em desenvolvimento e pode contarcom a participação e apoio de Organizações Internacionais que tenham interesse,

7 Bloco econômico, político e social, que em 2007 alcançou a marca de 27 países equase meio bilhão de pessoas que participam de um projeto de integração política eeconômica. Os países integrantes são: Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre,Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estonia, Finlândia, França, Grécia,Hungria, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Polônia,Portugal, Reino Unido, Romênia, República Checa e Suécia. (ESTADOS-MEMBROSda União Européia. Disponível em: <http://europa.eu/abc/governments/index_pt.htm>. Acesso em: 18 abr. 2007).

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por meio de assistência financeira, suporte técnico e ajuda para construirmecanismos que sejam viáveis ecologicamente.

O Protocolo de Quioto surge como um anexo à Convenção, com a função deregulamentá-la e especifica-la, com regras próprias e sanções aos infratores,fazendo com que o documento ganhe em eficácia e efetividade. É um acordointernacional patrocinado pela ONU, firmado em 1997, por 59 países, na cidadede Quioto, no Japão.

Esse Tratado tem por objetivo reduzir as emissões de gases de efeito estufa -GEEs em nações industrializadas, através de metas que correspondem, em média,à redução de 5,2% sobre o montante de gases emitidos pelo país signatário doProtocolo em 1990 e estabelecer modelo de desenvolvimento limpo para os paísesemergentes, como será explicado adiante.

O Protocolo entrou em vigor em 16 de fevereiro de 2005, 90 dias após aRússia ter formalizado sua adesão. A ratificação russa cumpriu o requisito essencialpara sua vigência, ou seja, a ratificação por 55 Estados-partes que respondampor pelo menos 55% das emissões globais de gases de efeito estufa. Quando istoocorreu, o Protocolo contava com adesão de 141 países, correspondendo a 61,6%das emissões globais.

Os países desenvolvidos, listados no Anexo B8 do Protocolo de Quioto, devemcumprir suas metas de redução de emissões de gases de efeito estufa no decorrerdo chamado primeiro período de compromisso, que corresponde aos anos de2008 a 2012. Para o segundo período, após 2012, foi realizada a Conferência deMontreal, no Canadá, de 28 de novembro a 10 de dezembro de 2005, onde ospaíses que aderiram ao Protocolo de Quioto concordaram em começar a discutiro que será nessa etapa, porém sem estabelecer prazos.

Os objetivos do Protocolo são a redução da emissão de gases de efeito estufae a sua maior absorção pelos sumidouros naturais9. As medidas vinculantes e

8 Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Bulgária, Canadá, Comunidade Européia, Croácia,Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos da América, Estônia,Federação Russa, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Islândia, Itália, Japão,Letônia, Liechtenstein, Lituânia, Luxemburgo, Mônaco, Noruega, Nova Zelândia, PaisesBaixos, Polônia, Portugal, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, RepúblicaTcheca, Romênia, Suécia, Suíça e Ucrânia.

9 De acordo com a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima,sumidouros naturais são quaisquer processos, atividades ou mecanismos, incluindo abiomassa, e, em especial, florestas e oceanos, que têm a propriedade de remover umgás de efeito estudo, aerossóis ou precursores de gases de efeito estufa da atmosfera.Podem constituir-se também de outros ecossistemas terrestres, costeiros e marinhos.

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flexibilizadoras atuam no duplo sentido de pressionar pelo cumprimento dasmetas e incentivar a adoção de meios mais práticos e baratos de cumpri-las.Define, ainda, metas individuais para cada Estado e vincula cumprimento destasnormas com medidas sancionatórias.

Porém, a criação de princípios e orientações de conduta foi reconhecida comonão suficiente para que a redução de emissão de gases de efeito estufa se tornasseefetiva, necessitando de medidas concretas e sanções aplicáveis para o alcancedas metas propostas.

Foram, então, programadas, em decorrência dos objetivos comuns de poluiçãodefinidos, sanções aplicáveis em caso de descumprimento, tendo em vista adificuldade em estabelecer o elo entre o Estado poluidor e a poluição. O Sistemade Cumprimento das regras impostas pelo Protocolo foi de fundamentalimportância, uma vez que não existiam sanções jurídicas, até então, pelodescumprimento pelas Partes.

4.3 Sistemas de atuação

Os Tratados acima criaram um sistema de ajuda para os Estados emdesenvolvimento que não possuem condições e meios necessários paraimplementar as normas do Protocolo, com dois mecanismos. O primeiro tratasobre assistência técnica e financeira, transferência de tecnologia, treinamento eeducação. O segundo mecanismo é sobre a ajuda na diminuição dos custos daredução da emissão de carbono na atmosfera.

São elaborados relatórios anuais das Partes e inventário de emissão de gases estufapara verificar se estão sendo mantidos regularmente os compromissos firmados. Averificação destes relatórios traz a perspectiva de andamento da implementação dosmecanismos internos que estão sendo adotados pelos diversos signatários.

O Protocolo de Quioto regulamenta arranjos técnico-operacionais para utilizaçãopor parte de empresas ou países, que oferecem facilidades para que os Estadosconstantes no Anexo B do Protocolo possam atingir limites e metas de redução deemissões. Tais instrumentos também têm o propósito de incentivar os paísesemergentes a alcançar um modelo adequado de desenvolvimento sustentado.

Para auxiliar os signatários, o Protocolo de Quioto dispõe de mecanismos deflexibilização, de acordo com a realidade individual particular, se industrializado,se em transição para economia de mercado, ou se em desenvolvimento. São trêsos mecanismos de flexibilização previstos, quais sejam: Comércio de Emissões –Emission Trading, realizado entre Estados listados no Anexo B, de maneira queaquele que tenha diminuído suas emissões para abaixo de sua meta, transfira oexcesso de suas reduções para outro que não tenha alcançado tal condição;

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Implementação Conjunta – Join Implemantation, implantação de projetos deredução de emissões de GEEs em países que apresentam metas no âmbito doprotocolo e finalmente, Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – CleanDevelopment Mechanism, que será visto a seguir.

A idéia de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) – pode ser resumidana constatação de que a redução de uma unidade de GEEs emitida na atmosferavoluntariamente por uma empresa situada em um país em desenvolvimento poderáser negociada no mercado mundial com os países industrializados (ou empresasnele situadas) que precisam desses créditos para cumprir suas metas emconformidade ao Protocolo de Quioto.

Para a validade de um projeto de MDL, é preciso que este realize odesenvolvimento sustentável no Estado que o esteja recebendo, devendo observaros seguintes requisitos: participação voluntária aprovada por cada parte envolvida,benefícios reais, mensuráveis e de longo prazo, relacionados com a mitigação damudança do clima; e reduções de emissões que sejam adicionais as que ocorreriamna ausência da atividade certificada do projeto (FRANGETTO; GAZANI, 2002).

Assim, torna-se possível reduzir as emissões globais de gases de efeito estufae, ao mesmo tempo, abre-se importante alternativa para o desenvolvimentosustentável dos países em desenvolvimento.

4.4 Desenvolvimento sustentável

O conceito de desenvolvimento sustentável foi introduzido no âmbito dodireito internacional, em 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre o MeioAmbiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, que o fez constar emvários dos princípios contidos na “Declaração do Rio de Janeiro sobre MeioAmbiente e Desenvolvimento”, reforçando a idéia de que o desenvolvimento e apreservação do meio ambiente são possíveis ao mesmo tempo.

Segundo relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente da ONU, “ésustentável o desenvolvimento tal que permite satisfazer nossas necessidadesatuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer as suas”10.

10 Publicado em abril de 1987, o Relatório “Nosso Futuro Comum”, é um estudopreparado na Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU.O relatório, publicado no Brasil pela Fundação Getúlio Vargas, gerou a Eco-92, realizadano Rio de Janeiro, cinco anos depois. Este relatório inaugurou o conceito de“desenvolvimento sustentável” e prevê exatamente o que o Painel Intergovernamentalsobre Mudanças Climáticas (IPCC) alertou recentemente sobre desastres ambientais.

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Nesse sentido, a idéia de um desenvolvimento sustentável diz respeito àexploração de recursos naturais no presente sem comprometer os recursos naturaisà disposição das gerações futuras (DERANI, 2001), o que implica na necessidadede conciliação entre os interesses econômicos e a preservação do meio ambiente.

No entanto, o conceito de desenvolvimento sustentável envolve outras facetas.Uma delas é o aspecto social, daí o termo “desenvolvimento”, que aponta para anecessidade de superação da pobreza e exclusão nos países em desenvolvimento,num cenário de degradação ambiental.

Nesse contexto, a idéia de sustentabilidade, relaciona-se à preservação evalorização da diversidade étnica e cultural e estimula formas diferenciadas deutilização de biodiversidade e dos recursos naturais (COUTINHO, 2004).

A discussão acerca do conceito de desenvolvimento sustentável aponta para anecessidade de sua operacionalização a partir de mecanismos e instrumentos depolíticas públicas e de normas jurídicas que definam deveres de preservaçãoambiental e incentivos para o desenvolvimento de padrões de produção sustentáveis.

Para tanto, discussões a partir de temas concretos de possibilidades dedesenvolvimento econômico e necessidade de preservação ambiental são muitoimportantes, além da necessidade de implementação de técnicas de exploraçãoambientalmente sadias, ou ao menos de menor danosidade em comparação comos paradigmas predominantes (NUSDEO, 2001).

O direito soberano dos Estados sobre seus recursos naturais deve serrespeitado, porém estes têm o dever e a responsabilidade de evitar qualquer tipode dano ambiental, respeitando os soberanos vizinhos, protegendo a geraçãopresente e a futura, lutando contra a pobreza e investindo no desenvolvimento.

Aliadas às discussões ambientais, existem questões sociais, pois não há comoseparar a preocupação com o meio ambiente do aspecto social. Ações dirigidas aum destes temas refletem diretamente no outro, tendo em vista que o desequilíbriodo meio ambiente acarreta inúmeros prejuízos à sociedade, assim como odesequilíbrio das sociedades causa danos ambientais.

Nessa perspectiva, atuações visando o desenvolvimento sustentável, por meiodo equilíbrio entre proteção ambiental, inserção social e crescimento econômico,ganham cada vez mais força nas sociedades contemporâneas.

O documento ficou conhecido como relatório Brundtland, já que a Comissão erapresidida por Gro Harlem Brundtland, então primeira-ministra da Noruega. (Disponívelem: http://www.ana.gov.br/acoesadministrativas/relatoriogestao/rio10/riomaisdez).

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5 O DIREITO AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO COMO UM DIREITOHUMANO FUNDAMENTAL

Se por muito tempo o meio ambiente foi visto como algo dissociado dosdireitos humanos, a partir do Século XX, com o aumento significativo das tragédiasambientais, ele passou a ser reconhecido como um valor autônomo no meiojurídico, acabando com a visão utilitarista das normas ambientais antigas, parapassar a considerar a proteção ao meio ambiente um direito de todos.

Como destaca Guido Fernando da Silva Soares, as normas de proteção ao meioambiente “têm sido consideradas como um complemento aos direitos do homem,em particular o direito á vida e à saúde humana” (SOARES, 2003, p. 173).

Finda a Segunda Guerra Mundial, essa preocupação torna-se questão denatureza internacional, ao inserir o tema no art. 12 do Pacto Internacional deDireitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, ao dispor sobre o direito aum nível de vida adequado. No que pese a referência ter sido indireta, ficoureconhecido que o direito ao uma vida digna está intrinsicamente ligado a ummeio ambiente sadio e equilibrado. Para Cançado Trindade, “parecia aberto ocaminho para o reconhecimento futuro do direito a um meio ambiente sadio”(CANÇADO TRINDADE, 1993, p. 84).

O direito fundamental à preservação do meio ambiente e o direito à vida, foireconhecido pela Declaração do Meio Ambiente, adotada na Conferência dasNações Unidas, em Estocolmo, em 1972, que assegurou a “correlação de doisdireitos fundamentais do homem: o direito ao desenvolvimento e o direito a umavida saudável” (SILVA, 2000, p. 41). Ficou declarado que o ser humano temdireito fundamental à liberdade, à igualdade e a uma vida com condições adequadasde sobrevivência, num meio ambiente que permita usufruir de uma vida digna,ou seja, com qualidade de vida, com a finalidade também, de preservar e melhoraro meio ambiente, para as gerações atuais e futuras11.

O direito a uma ordem nacional e internacional, em que os direitos e liberdadesestabelecidos na Declaração Universal possam ser plenamente realizados, passaa ser integrado pelo direito internacional do meio ambiente. É com a garantia de um

11 “Princípio 1 – O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e aodesfrute de condições de vida adequada em um meio ambiente de qualidade tal quelhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigaçãode melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras [...].” “Princípio 2– Os recursos naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna,especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas naturais, devem ser preservadasem benefício de gerações atuais e futuras [...].”

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ambiente ecologicamente equilibrado que os direitos e liberdades estabelecidos naDeclaração de 1948 podem ser plenamente realizados (MAZZUOLI, 2004b).

O meio ambiente, passou, portanto, a ser considerado essencial para que oser humano possa gozar dos direitos humanos fundamentais, dentre eles, o própriodireito à vida.

Nesse sentido, no âmbito da América, o Protocolo Adicional à ConvençãoInteramericana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos,Sociais e Culturais, conhecido como Protocolo de San Salvador, de 1988, asseguraem seu art. 11 o direito a um meio ambiente sadio, dispondo que “toda pessoatem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicosbásicos”, e que “os Estados-partes promoverão a proteção, preservação emelhoramento do meio ambiente.”

A inter-relação dos direitos humanos com a proteção internacional do meioambiente, no atual contexto das relações internacionais, encontra-se em diversosinstrumentos internacionais, entre outros (MAZZUOLI, 2004b, p. 113):

1. Convenção sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiçanas Questões Ambientais, conhecida como Convenção de Aarhus, de 25 de junhode 1988, que declara que “toda pessoa tem o direito de viver num ambienteadequado á sua saúde e bem-estar e o dever, tanto individualmente quanto emassociação com outros, de proteger e melhorar o meio ambiente em beneficioda geração atual e das gerações futuras”;

2. Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembrode 1989, ao dispor que os Estados-partes adotarão medidas apropriadas comvistas a “combater as doenças e a desnutrição, dentro do contexto dos cuidadosbásicos de saúde mediante, inter-alia, a aplicação de tecnologia disponível e ofornecimento de alimentos nutritivos e água potável, tendo em vista os perigose riscos da poluição ambiental”;

3. Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de 21 de outubro de 1986,conhecida como Carta de Banjul, que inclui várias disposições relacionadas como direito ao meio ambiente sadio;

4. Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, de dezembro de 2.000,que dispõe em seu art. 27: “Todas as políticas da União devem integrar umelevado nível de proteção do ambiente e a melhoria de sua qualidade, e assegura-los de acordo com o princípio do desenvolvimento sustentável”.

No Brasil, a previsão constitucional pátria atual sobre o tema é m marcohistórico de inegável valor, dado que as Constituições que precederam a de 1988jamais se preocuparam da proteção do meio ambiente de forma especifica eglobal. Nelas sequer uma vez foi empregada a expressão “meio ambiente”, a

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revelar total despreocupação com o próprio espaço em que vivemos (MILARÉ,1991).

A Constituição de 1988 dispõe que além de um direito, o meio ambientesadio e equilibrado é um bem de natureza pública, tendo o Poder Público e acoletividade a obrigação, o dever de assegurar a efetividade deste direito, por serum bem de uso comum do povo, com caráter indisponível, não pertencendo aum ou outro, mas a todos.

A vida tutelada pela Constituição transcende os estreitos limites de sua atuaçãofísica, abrangendo também o direito à qualidade de vida sadia em todas as suasformas. Assim, como um direito universalmente reconhecido como um direitohumano básico ou fundamental, o seu gozo é condição sine qua non para o gozode todos os demais direitos humanos, incluído o direito ao meio ambienteequilibrado (CANÇADO TRINDADE, 1993).

6 CONCLUSÃO

Por muito tempo o meio ambiente foi visto como lago dissociado dahumanidade. Conceito revisto, felizmente e obrigatoriamente, devido aos efeitossofridos pela população mundial nas últimas décadas. No que pese a mudançaconceitual, não basta conscientização sem que haja ação.

Ao se constatar que os efeitos ambientais são transfronteiriços, torna-se aindamaior a responsabilidade global no empenho em proporcionar qualidade de vidae ambiente sadio, a toda a população mundial.

A proteção internacional do meio ambiente não é, nem deve ser matéria dedomínio exclusivo da legislação interna dos Estados. É um dever de toda acomunidade internacional e deve ser visto como uma conquista da humanidade.

A inserção da temática ambiental na esfera dos direitos humanos por meiodos tratados internacionais é um grande avanço, que abrange um universo muitomais complexo do que simplesmente questões relativas à poluição ambiental. Háa consciência de que ambiente em desequilíbrio é uma forte ameaça à saúde e aeconomia mundial.

Os efeitos conhecidos devidos às mudanças ambientais não foram provocadosem pouco tempo e tampouco serão amenizados rapidamente. Serão necessáriasmedidas drásticas, sem, no entanto, prejudicar a economia dos Estados, bemcomo o mercado internacional.

O conceito de desenvolvimento sustentável requer bom senso e razoabilidade,uma vez que deve aliar proteção e desenvolvimento, garantindo qualidade e meiosdignos de vida, a presente e futuras gerações.

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A proteção internacional dos direitos humanos e o Direito Internacional do Meio Ambiente

As ações voltadas ao desenvolvimento sustentável devem ser vistas comoobrigação dos Estados e não como caridade ou generosidade. Ainda que existamlimitações de ordem econômica, tecnológica, e outras, para implementação deatividades que visam produção aliadas ao respeito ao ser humano, na busca dedesenvolvimento, os Estados tem o dever de buscar alternativas visando o bemcomum, considerando o direito ao meio ambiente como parte integrante eindissolúvel dos direitos humanos de todas as nações.

O respeito ao meio ambiente é respeito ao ser humano. Justiça e oportunidadede vida digna a todos e não apenas a alguns privilegiados, sem destruição dosrecursos naturais finitos e sem colocar em dúvida a sustentabilidade da Terra.

REFERÊNCIAS

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Instrumentos econômicos de proteção do meio ambiente

INSTRUMENTOS ECONÔMICOS DE PROTEÇÃO DO MEIOAMBIENTE: REFLEXÕES SOBRE A TRIBUTAÇÃO E OS

PAGAMENTOS POR SERVIÇOS AMBIENTAIS*

ECONOMIC INTRUMENTS OF ENVIRONMENTAL PROTECTION:REFLEXIONS ABOUT THE TAXATION ENVIRONMENTAL AND THE

PAYMENTS FOR ENVIRONMENTAL SERVICES

Carolina Vieira Ribeiro de Assis Bastos**

Resumo: Este artigo tem por objetivo refletir sobre os instrumentoseconômicos para a proteção do meio ambiente. Primeiramente, apresentadois instrumentos, a tributação ambiental e os pagamentos por serviçosambientais. Em seguida, faz algumas críticas aos mecanismos econômicosde proteção do meio ambiente e analisa o fundamento dos mesmos.

Palavras-chave: Tributação. Serviços ambientais. Proteção do meioambiente.

Abstract: This paper aims to reflect about the economic instrument tothe environmental protection. At the first, presents two instruments,environmental taxation and the payments for environmental services. Afterthat, does some critiques to the economic mechanisms of environmentalprotection and analyzes the their basis.

Keywords: Taxation. Environmental services. Environmental protection.

1 INTRODUÇÃO

A tensão entre desenvolvimento e meio ambiente traduziu-se na incapacidadedo sistema econômico para proteger o meio ambiente, exigindo a intervenção doEstado. Neste sentido, passou-se a buscar a idéia de um desenvolvimentoequilibrado, sustentável, que integrasse a proteção do meio ambiente como fatornecessário à qualidade de vida.

Assim, o direito ao meio ambiente foi reconhecido como direito subjetivopela maior parte dos ordenamentos constitucionais (art. 225, CF) e sua defesa foicolocada como princípio diretivo da política econômica (art. 170 VI CF).

* Artigo desenvolvido na disciplina Direito Tributário, no primeiro semestre de 2007,sob supervisão da Profª Dra. Marlene Kempfer Bassoli.

** Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina-PR.

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Carolina Vieira Ribeiro de Assis Bastos

Por isso, a proteção do meio ambiente facultou ao poder público, a intervençãona utilização dos recursos naturais e na condução da atividade econômica. Hádiversas formas de intervenção, mas recentemente têm recebido especial atençãoos instrumentos econômicos de proteção do meio ambiente.

O presente trabalho tem por objetivo abordar dois instrumentos que podemser empregados na defesa do meio ambiente: a tributação e os pagamentos porserviços ambientais. Em seguida, pretende levantar algumas críticas a taisinstrumentos, bem como analisar seus fundamentos.

2 OS INTRUMENTOS ECONÔMICOS DE PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE

No seio da economia de mercado e recebidos com grande polêmica no campoda política ambiental, os instrumentos econômicos vieram a complementar asestratégias de defesa do meio ambiente. Através da pressão indireta exercidasobre as atividades contaminantes, influenciam principalmente o custo de bens eserviços, incitando condutas menos contaminantes (HERNÁNDEZ, 1998).

A utilização dos mecanismos econômicos no campo ambiental é relativamenterecente. Isto porque a regulamentação administrativa baseada em medidassancionatórias era mais facilmente compreendida pela população do quecomplexos dispositivos de mercado. Além disso, por um tempo, a indústriamostrou-se reticente a tais mecanismos argumentando que originavam custossuplementares que encareciam os produtos e inviabilizavam a competitividadenos mercados internacionais (HERNÁNDEZ, 1998).

No entanto, os métodos empregados pelos organismos administrativos,baseados principalmente em medidas repressivas, resultaram insatisfatórios. Nestecontexto, a partir da última década as políticas ambientais, tendo em vista aeficácia na proteção do meio ambiente, passaram a enfatizar o uso de instrumentosmenos repressores e mais incentivadores.

Segundo Altamirano (2003), quatro elementos caracterizam os instrumentoseconômicos: a existência de um estímulo financeiro; a faculdade do agentecontaminador de reagir livremente diante deles; a intervenção estatal e a finalidadeprotetora do meio ambiente. Apesar da inegável contribuição de tais instrumentospara a eficácia das políticas ambientais, a principal crítica que se levanta é que oenfoque meramente economicista pode conceder ao sujeito contaminante umverdadeiro direito a contaminar.

Há diferentes tipos de instrumentos econômicos utilizados para a proteçãodo meio ambiente. Dentre eles, analisar-se-á a seguir: os instrumentos fiscais,que tomados pela administração visam reduzir a degradação através daredistribuição dos custos empregados ou de benefícios econômicos ou fiscais e,

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a idéia de mercados de serviços ambientais, que através da criação de um mercadopermite aos contaminadores comprar, em quantidade e tempo limitados, direitosde contaminação.

2.1 A tributação ambiental

A utilização de instrumentos tributários para a proteção do meio ambientenão se trata de função primordial do tributo, que é de servir como instrumentojurídico financeiro ao Estado para arrecadar recursos capazes de garantir asnecessidades públicas.

A idéia de utilizar o tributo para corrigir disfunções sócio-econômicas, surgiuem 1920, quando o economista britânico Pigou, em A economia de Bem-Estar1,sugeriu que as falhas do mercado fossem corrigidas através da internalização deuma determinada externalidade social a cargo dos sujeitos responsáveis pelamesma. No caso ambiental, essa internalização significou impor gravames queincorporassem ao preço do produto o custo da contaminação (HERNÁNDEZ,1998).

Pigou diferenciou os custos privados dos custos sociais. Os primeiros são osque as empresas contabilizam, os segundos são os que realmente custam àcomunidade e, a diferença entre eles são as externalidades. Essa distinção implicavaafirmar que as empresas experimentam privadamente um custo mais baixo que osocial, questionando o modelo de equilíbrio2, então defendido, cuja conclusãoessencial era que o sistema de mercado atuando em competição perfeita fazia amelhor atribuição possível dos recursos de produção e dos bens de consumo(ALTAMIRANO, 2003).

Pigou chamou os efeitos sociais danosos da produção privada de deseconomiasexternas e os efeitos de aumento de bem-estar social da produção privada deeconomias externas. Então, havendo uma falha de mercado o Estado deveriaintervir, corrigindo-a. Em se tratando de uma deseconomia externa, deveriaintroduzir um sistema de imposto, já no caso de uma economia externa deveriaatuar por meio de subsídios ou incentivos fiscais (DERANI, 2001).

1 A análise de Pigou surgiu de um precedente jurisprudencial britânico, cujo objeto erauma demanda promovida por agricultores dos campos pelos quais atravessavamlocomotoras e provocavam faíscas que incendiavam tais campos; por conseqüência osagricultores deveriam pagar maiores quantias de seguro (ALTAMIRANO, 2003, p. 41).

2 A ideologia econômica da época baseava-se na idéia da “mão invisível”, segundo a qual asdisfunções poderiam ser corrigidas dentro da própria estrutura de mercado, mediante olivre jogo das forças econômicas. Diante da ineficácia dessa idéia passou-se a defender opapel do Estado como regulador dos aspectos negativos (HERNANDÉZ, 1998, p. 77).

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A degradação do meio ambiente é um exemplo típico de externalidade negativae o princípio do poluidor-pagador fundamenta-se no objetivo de internalizar oscustos externos de uma degradação. Através da aplicação deste princípio impõe-se ao sujeito econômico, que tenha causado um problema ambiental, que arquecom os custos da diminuição ou afastamento do dano.

Assim, a responsabilidade individual ou a internalização dos custos sociaisconstitui o ponto de partida da discussão tributário-ambiental. A introdução doelemento ecológico na estrutura tributária estabelece uma série de instrumentoscujo denominador comum é gravar as atividades que direta ou indiretamenteprejudiquem o meio ambiente.

Neste sentido, no que tange à natureza, Hernández (1998) distingue os tributosambientais em: os que perseguem uma redistribuição do custo da proteção oureparação do meio ambiente e aqueles que buscam incentivar condutas menosdanosas para o meio ambiente. No primeiro caso, dos tributos ecológicosredistributivos, o fato imponível consiste na prestação dos serviços públicoscorrespondentes (Ex: reciclagem), pelos quais se pagará, geralmente, taxas, preçospúblicos ou contribuições especiais3. Quanto aos tributos com funçãoincentivadora, incidem indiretamente no agente contaminador de maneira queeste busque por sua própria conveniência econômica vias alternativas menoscontaminantes; nestes casos, via de regra, são utilizados os impostos(HERNÁNDEZ, 1998).

Os impostos ambientais possuem uma função sancionatória, quem contaminarepara o dano gerado; ou modeladora de conduta, a qual estimula a nãocontaminação. Já as taxas, aplicadas no campo ambiental, podem ser analisadassob dois aspectos: por um lado são um meio de responsabilizar o contaminadorfinanceiramente e por outro, fixam um preço pela sua atividade impondo destemodo um preço econômico ao responsável pelo custo ecológico. Por fim, osincentivos e subsídios, ocorrem quando por razões motivadas em princípiosjurídicos, no caso a proteção do meio ambiente, ainda que produzido o fatoimponível do imposto, o ordenamento jurídico concede uma dispensa total ouparcial da obrigação tributária (ALTAMIRANO, 2003).

Cabe ressaltar que, há um intenso debate entre os estudiosos do assunto sobrequal seria a figura tributária mais adequada para proteger o meio ambiente.Argumenta-se que, no plano da utilização dos serviços públicos, que vinculem aadministração pública com fins ambientais, as taxas4 e contribuições especiais

3 Os impostos também podem levar a cabo tal função, apesar de não ser a regra, assimcomo as taxas podem assumir uma função incentivadora (HERNÁNDEZ, 1998).

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são os tributos indicados, pois refletem a opção legítima de financiamento de taisserviços. No entanto, a utilização das taxas como instrumento de internalizaçãoencontra óbices quando: há dificuldade de se identificar o sujeito responsávelpela contaminação (não cumpre o caráter específico); não há como quantificar odano causado (não cumpre o princípio da contraprestação) e, se é necessárioproduzir efeitos incentivadores (HERNÁNDEZ, 1998).

De outro modo, defende-se que os impostos5 se dirigem a alcançar os objetivosda política ambiental, pois como não gravam os contribuintes que ocasionamdanos ambientais com os custos dos que são responsáveis, podem ser a figuracentral de um sistema tributário ambiental. As taxas e contribuições especiaisdeverão ser aplicadas somente nas atividades que assim requeiram, ou seja, sãoaptas a financiar os gastos causados pela contaminação, mas não para internalizaros custos sociais ou incentivar condutas (HERNÁNDEZ, 1998).

Dentre as vantagens da tributação ambiental destaca-se: a flexibilidade, quesendo característica de todo instrumento econômico, permite que não imponhanem proíba ações concretas, mas relega ao particular a eleição da via maisconveniente às suas possibilidades; a disposição para incentivar a investigação eimplementação de novas tecnologias favoráveis ao meio ambiente; e, o fato deque um sistema baseado em tributos pode aproveitar na sua gestão as instituições,estrutura e pessoal das Administrações Fiscais, evitando assim gastosdesnecessários (HERNÁNDEZ, 1998).

As desvantagens ou inconvenientes de se utilizar tributos como instrumentode proteção do meio ambiente, surgem da comparação com os mecanismosadministrativos. Levanta-se: a dificuldade de conhecer a resposta dos agentescontaminantes e o grau em que conseguirão os objetivos propostos; acomplexidade de fixar o correto tipo de tributo que reflita efetivamente o custosocial que se pretenda internalizar; e, o fato de que a efetividade dessesinstrumentos somente é viável em longo prazo, por isso, são ineficazes emsituações de emergência (HERNÁNDEZ, 1998).

4 Taxas são prestações pecuniárias exigidas coativamente pela autoridade pública emcaráter de contraprestação por serviço público divisível que dita autoridade presta aosujeito ou está em condições de prestá-la. Diante desta definição alguns autoresconsideram limitada a relevância das taxas como instrumento econômico para a proteçãoambiental (ALTAMIRANO, 2003).

5 Os impostos são: “as prestações pecuniárias, que se impõem pelo ordenamento jurídico,em favor da Administração Pública, sem conexão com uma vantagem oferecida porela” (NAWIASKY, 1982 apud CARRAZA, 2000, p. 365).

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Recentemente, passou-se a questionar ainda se os tributos são mesmomecanismos eficazes para evitar a degradação ambiental. Outros recursos naturais,como o ar e água limpos, a proteção da camada de ozônio, estabilidade climática,biodiversidade, nem sempre conseguem ser atingidos por tais mecanismos, sãoos casos em que os efeitos das externalidades são gerados por um número elevadoe indeterminado de sujeitos, bem como atingem um número mais indeterminadoainda, potencialmente toda a humanidade.

2.2 Os pagamentos por serviços ambientais

Na última década, o debate sobre os serviços ambientais tornou-se popular. OsPagamentos por Serviços Ambientais (Payments for Environmental Services) tambémoptam por uma perspectiva econômica com relação ao direito e ao meio ambiente.

Trata-se de um novo instrumento de promoção da sustentabilidade ambiental,que coloca o meio ambiente como uma nova classe de mercadoria disponível emtransações de mercados, pelo qual todos nós devemos pagar. O termo “serviçosambientais” foi originalmente cunhado por economistas e agora aparece comfreqüência em documentos produzidos pelos governos, pelo Banco Mundial eoutras organizações internacionais, universidades, associações comerciais,organizações não governamentais e organizações sociais (GRAIN, 2005).

Segundo Born e Talocchi (2002), subjaz à idéia de serviço ambiental anecessidade de se manter a capacidade da natureza de reproduzir as condiçõesambientais que sustentam a vida no planeta. Escolhe-se uma visão bastanteutilitarista da natureza, na qual esta é vista como uma espécie de “usina” queproduz “recursos”, ou melhor, “serviços”, necessários ao bem-estar dos seresvivos, principalmente do homem.

A tendência ao uso de mecanismos de caráter econômico para a gestãoambiental apóia-se em princípios como o poluidor-pagador, usuário-pagador eprotetor-recebedor. Este último é o que fundamenta o pagamento pelos serviçosambientais. Soma-se ainda o argumento de que o dinheiro resolve mais do queleis e decretos, em outras palavras, que mercado e economia sobrepõem-se àpolítica, à justiça e aos direitos (BORN; TALOCCHI, 2002).

A terminologia e definição legal dos pagamentos por serviços ambientaisainda encontra-se em processo de formação, mas já entraram em nossa consciênciacoletiva, tanto que há alguns anos existem verdadeiros mercados desses serviços.Neste sentido, cabe a reflexão sobre o assunto, pois a escolha pela propagação detais serviços não pode ser aceita como óbvia e inquestionável.

Os pagamentos por serviços ambientais enfatizam uma forma de intervençãodireta em favor da proteção do meio ambiente. Baseiam-se em modelos de compra

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e venda, nos quais os vendedores entregam os resultados da conservação emtroca dos pagamentos negociados. Recentes debates discutem os pagamentospor serviços ambientais através da comparação entre os mecanismos diretos eindiretos.

Segundo Ferraro e Kiss (2002), institucionalmente, ambos os mecanismosexigem instituições que possam monitorar os ecossistemas, resolver conflitos ecoordenar comportamentos individuais, alocar e executar direitos e responsabilidades.No entanto, os pagamentos por serviços ambientais requerem uma menorcomplexidade institucional e custos mais baixos para implementação. Além disso,pesquisas apontam no sentido de que residentes de áreas rurais conservadas porpagamentos podem lucrar duas vezes mais do que com intervenções indiretas.

Argumenta-se ainda que os pagamentos por serviços ambientais possamcolocar muitas regiões cujas práticas de conservação estão à margem da economiapara gerar retornos substanciais. Assim, os pagamentos por serviços ambientaisnão só beneficiam fazendeiros pobres, como concedem maior liberdade para osmesmos decidirem como atingir seus objetivos e aspirações, do que os subsídiosque geralmente predeterminam suas atividades (FERRARO; KISS, 2002).

Portanto, o princípio básico é o de que o modo mais barato de conseguir algoque se queira, por exemplo, proteção de uma floresta tropical, é pagar por ele. Anegociação desses serviços tem por principais esferas de ação: o seqüestro decarbono, a captura e armazenamento de água, conservação da paisagem e dabiodiversidade.

O processo de estabelecimento de um esquema de venda de um serviçoambiental começa com um projeto de conservação, de ecoturismo ou um projetorelacionado à água. A maioria dos projetos tem apoio governamental, no entanto,é comum verificar-se a iniciativa do setor privado e esforços de organizações nãogovernamentais. Em tais projetos oferece-se às comunidades locais um pagamentoanual pela conservação de áreas naturais ou florestas e, em troca as comunidadesdevem implementar um plano de manejo definido por governos ou agênciasprivadas (GRAIN, 2005).

Cada plano de manejo deve ter um impacto zero sobre o meio ambiente, oque significa que nada deve ser removido ou interferido. Além disso, freqüentemente,principalmente nos projetos de ecoturismo e água, as comunidades envolvidasdevem investir em infra-estrutura e marketing, o que acaba resultando emempréstimos e débitos (GRAIN, 2005).

Neste sentido, há três impactos imediatos nas comunidades envolvidas emcada projeto de conservação: perda do controle sobre uma mínima parte de seuterritório; dívidas que podem levar à perda da terra e, medidas punitivas financeiras

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e legais em caso de não cumprimento do plano de manejo. Assim, pode-se prevero potencial de expropriação, marginalização, repressão, exploração e divisão internade comunidades (GRAIN, 2005).

De outro modo, pode-se estabelecer um serviço ambiental pela privatizaçãode um parque nacional, o qual é dado às empresas privadas ou ainda, mais comum,se cria uma fundação ou organização não governamental de conservação. A essasempresas ou ONGs são dadas concessões para administrar áreas naturais porlongos períodos de tempo e em troca da promessa para conservar confere-seliberdade para lucrar com os recursos naturais (GRAIN, 2005).

Uma das mais sérias conseqüências deste novo acesso ao gerenciamento derecursos naturais é a possibilidade dos governos assumirem a autoridade paraconceder ou reconhecer o direito de comunidades sobre territórios quehistoricamente sempre estiveram sob seu controle. Os governos são potencializadosa tirar tais direitos se certas condições não forem preenchidas ou ainda, reduzir àpropriedade à terça parte, incluindo empresas e ONGs (GRAIN, 2005).

Os governos também assumem o direito a privatizar6 grandes pedaços deterra, muitos dos quais foram tomados em primeiro lugar de povos indígenas epodem ser parte de uma herança pública ou nacional. Segundo estudiosos doassunto, a privatização da natureza, incluindo povos indígenas e pequenosfazendeiros, tem aumentado para níveis nunca antes vistos e os serviços ambientaisestão sendo oferecidos como um mecanismo de expropriação e concentração dapropriedade de terras (GRAIN, 2005).

Com base nos direitos de propriedade de Coase, procura-se estimar um valorpara o uso dos recursos naturais conforme o mercado. Segundo Derani (2001),determinando-se um preço à natureza, privatiza-a, imputando ao utilizador desterecurso uma contraprestação monetária. Adverte ainda que, uma relaçãodependente de uma situação econômica não garante a proteção efetiva do meio

6 Os direitos de propriedade intelectual moveram a agenda internacional da OMC, maseles não permitiram a privatização de tudo. Para reivindicar algo como propriedade énecessário no mínimo descrever e reconhecer um animal, um organismo, uma plantaou um gene, então como fazer com os elementos vivos que ainda não são conhecidosou cujas funções ainda não são explicitamente conhecidas? Por exemplo, sobre óleos,minerais, ar, água, oxigênio, chuva ou a capacidade de organismos mortos para decompore purificar o ar ou regular o clima? Segundo alguns analistas, tudo isto não poderia serreivindicado como propriedade intelectual e a solução encontrada constitui-se em umlento ataque, não somente contra o Estado, mas contra o que é público e coletivo, pormeio dos serviços ambientais (GRAIN, 2005, p. 6).

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Instrumentos econômicos de proteção do meio ambiente

ambiente, pois sujeita-se a outros critérios como existência de mercado, situaçãoconcorrencial, flutuações entre crises e aquecimento de consumo etc. Além disso,quanto maior o preço da mercadoria, menor a quantidade de sujeitos que têmacesso a ela e, a qualidade de vida torna-se um bem de mercado acessível a quemdetém riqueza e disponibilidade para pagá-la.

No entanto, os instrumentos econômicos alcançam alguma efetividade naproteção do meio ambiente, e sendo esta uma tarefa hercúlea, não podem serignorados. Uma das formas de minimizar os riscos deste instrumento meramenteeconômico tem sido articular a dimensão ecológica com a social.

Neste sentido, defendem Born e Talocchi (2002) que, os mecanismos econômicosambientais são úteis, mas que devem observar e promover a justiça social, que secaracteriza pela equidade, pela inclusão social e que a integridade ambiental devese pautar no princípio da responsabilidade comum diferenciada. Segundo esteprincípio, os que mais poluem atualmente ou mais degradaram o planeta ao longoda história têm uma dívida ecológica com os países e povos de menordesenvolvimento material e econômico, pois como causaram menores impactosdevem arcar menos com as ações necessárias ao desenvolvimento sustentável.

Argumenta-se ainda que, o direito a receber um pagamento por tal espécie deserviço deve associar-se a algo que ultrapasse a obrigação de todos de proteger omeio ambiente. Pelo contrário, se o sistema premiar aqueles que fazem menosque o mínimo, para que corrija em certo lapso temporal o que deveriam ter feito,institucionalizaria um tratamento igualitário entre poluidores e não poluidores.

Born e Talocchi (2002) advertem a necessidade de se analisar profundamenteas responsabilidades e obrigações em jogo na adoção desses serviços. Defendem aimperativa aplicação e operacionalização precisa do conceito de compensação porserviços ambientais, pois somente o estabelecimento de regras claras pode evitarefeitos perversos. Neste sentido, é premente uma redefinição do que seriam bensprivados, bens comuns públicos e bens coletivos. A titularidade dos recursos naturaisé complexa e as tradicionais definições jurídicas não são suficientes, soma-se aindao fato de que, o enfrentamento desse problema é uma questão política, de acesso àdireitos e equidade social, não se restringe à uma questão de técnica jurídica.

Para que a efetividade dos mercados de serviços ambientais se some à equidade,tem-se defendido que eles precisam: alcançar uma forma adequada de atribuirvalor aos ecossistemas; distribuir adequadamente os direitos entre os proprietários;fazer valer as regulamentações de mercado; nivelar produtores e consumidoresde tais mercados, de maneira que possam participar equitativamente. No entanto,esses fatores não têm sido devidamente observados quando da implementaçãodos mercados.

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3 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS INSTRUMENTOS ECONÔMICOSDE PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE

Subjaz a esses instrumentos uma determinada concepção do direito, sobre aqual cabe a reflexão. A descrição da norma por meio de conceitos não muitoclaros pode levar a conseqüências indesejadas. Tanto na proposta de tributaçãoambiental quanto na criação de mercados de serviços ambientais está presenteuma concepção marcadamente econômica do Direito.

No entanto, cabe ressaltar que em que pese essa concepção econômica, aspropostas se diferenciam, pois, enquanto a tributação procura racionalizar o usodos recursos naturais, trazendo o Estado para neutralizar seus efeitos negativos;a inserção do bem ou serviço meio ambiente no mercado pode até otimizar suautilização econômica, mas o enquadra dentro de uma política empresarial e nãode uma política pública.

3.1 A concepção de direito adotada

Na década de 70 surge uma tendência teórica que impressionou os estudiosos dodireito ao buscar a audaciosa combinação entre direito e economia, a Laws and Economicsou Análise Econômica do Direito. Esta teve início pelos trabalhos de, Ronald H.Coase (The Problem of Coust Social-1960), o qual analisa o problema do custo social ouefeitos externos produzidos pelas atividades econômicas, criticando a Economia deBem Estar, e de Guido Calabresi (Some Thougts on Risk Distribuition and the Law ofTourts-1961), que examina a distribuição do risco como critério de imputação daresponsabilidade que informa o direito de danos. Porém, recebeu novo e significativoimpulso com a publicação de Richard Posner, Economic Analisys of Law (1973), o qualfinalmente consolidou o movimento teórico (ALVAREZ, 2006).

Isto porque, a obra de Posner foi um estudo sistemático da maioria dos setoresdo sistema jurídico americano, desde a perspectiva da análise econômica e continhaas principais teses da tendência predominante na Escola de Chicago e da teoriado direito a partir do paradigma do mercado e da eficiência econômica(ALVAREZ, 2006).

Para a Análise Econômica do Direito, os indivíduos são racionais e secomportam tentando maximizar seus interesses em todos os âmbitos e facetas desua vida, por isso, o Direito é um conjunto de incentivos que premia as condutaseficientes e penaliza as ineficientes. Em decorrência, o valor econômico eficiênciaou o princípio da maximização da riqueza podem ser usados pelos juízes comomodelo para determinar quando uma decisão pode ser considerada justa(ALVAREZ, 2006).

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Instrumentos econômicos de proteção do meio ambiente

Conforme Alvarez (2006), a aplicação da teoria econômica à realidade jurídicaimplica adotar a perspectiva econômica como referencial analítico da regulação edo sistema jurídico, o que por conseqüência estabelece um novo tipo de relação, naqual a interpretação e avaliação de uma norma realizam-se desde os pressupostosda teoria econômica. Então, a racionalidade subjacente à norma é uma racionalidadeeconômica e coloca no centro dos estudos jurídicos os problemas relativos: àeficiência do direito, aos custos dos instrumentos jurídicos na persecução de seusfins e as conseqüências econômicas das Intervenções Jurídicas.

Além disso, a reconstrução do discurso jurídico se dá por uma linguagemtecnocrática, pois os destinatários desse discurso não são indivíduos ou grupos,mas operadores que partem de uma visão funcional e operacional do direito.Assim, o direito passa a ser compreendido como meio para atingir fins ou objetivossociais, por isso, conforme a maioria dos teóricos dessa corrente os valores eobjetivos das normas jurídicas devem derivar dos desejos e interesses reais dasociedade num determinado momento (ALVAREZ, 2006).

Em defesa da Análise Econômica do Direito, argumenta-se que a teoria procuraexplicar o pensamento jurídico partindo do comportamento dos indivíduos peranteas regras e os efeitos destas na obtenção de resultados eficientes. Segundo Pacheco,isto é possível porque de fato o direito influi no comportamento dos indivíduose tal influência é de natureza econômica (ALVAREZ, 2006).

Sob a ótica econômica, destaca Pacheco, depois de fixada a prioridade daação racional econômica e o fim da ação do ponto de vista da eficiência econômica,o Direito converte-se num conjunto de incentivos e guias que encaminham aconduta dos indivíduos para a consecução do fim específico que deve perseguir,no caso, a eficiência econômica (ALVAREZ, 2006).

A Análise Econômica do Direito começou a produzir explicações nos maisvariados campos jurídicos e isto pode ser claramente identificado no campo dodireito ambiental. Em ambos os casos referidos neste artigo, na tributaçãoambiental e nos pagamentos por serviços ambientais percebe-se a concepção dedireito aqui cunhada, ou seja, o Direito como um conjunto de incentivos quepremia as condutas eficientes e penaliza as ineficientes.

3.2 Riscos e contribuições

Dworkin (2003) afirma que, a Análise Econômica do Direito satisfez algumasexigências de adequação às nossas práticas jurídicas, pois de fato alguns padrõesconhecidos podem ser identificados com a aplicação do princípio econômicopor isso, não pode ser rejeitada. No entanto, nem sempre as decisões jurídicaspodem ser objeto de uma negociação hipotética ou submetida a outros parâmetros

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econômicos. Neste sentido, afirma que se restringíssemos nossas escolhas, nossasresponsabilidades, apenas às situações de mercado, a autonomia pessoalpraticamente desapareceria, pois numa sociedade cujos membros aceitam asimulação de mercado como um dever, tal dever nunca estaria inativo.

Uma das principais críticas aos mecanismos econômicos é que somente sãopossíveis em âmbitos espaciais e temporais bem determinados, por isso, suautilização deve ser apenas complemento de medidas administrativas formandoos chamados sistemas mistos, nos quais o predomínio de um ou outro mecanismodependerá do tipo de problema a ser enfrentado (HERNÁNDEZ, 1998).

Além disso, ressalta-se que, ainda que busquem objetivos políticos, econômicose ambientais, esses mecanismos se apóiam em um individualismo metodológicointegrado por uma perspectiva econômica isolada. A economia ambiental apenasmostra como tratar a natureza de maneira que se retire dela um máximo deutilidade privada e ao mesmo tempo integre o meio ambiente na economia demercado, por isso, acaba desconsiderando a complexidade da questão ecológica(DERANI, 2001).

Segundo Derani, tais modelos precisam encontrar a devida contextualização,sobretudo porque a valorização da natureza é artificiosa, por isso, necessita docorreto amparo jurídico e político para alcançar o fim almejado. Além disso, oEstado depara-se com peculiaridades na problemática ambiental que nem semprepode resolver com eficiência, sua ação é limitada pelos seguintes pontos: aglobalidade dos problemas ecológicos e seu efeito na base de reprodução social;o caráter social e cultural da crise ecológica; o caráter inédito e irreversível dosexperimentos ecológicos e, o caráter histórico mundial que chegou tal crise(DERANI, 2001).

Optar por uma perspectiva meramente economicista com relação à problemáticaecológica implica relegar ao direito ambiental um papel puramente instrumental.Não basta que a política ambiental seja economicamente justa e adequada, elaprecisa se apoiar em aspectos morais e éticos, ponderá-los e levar em consideraçãoo interesse das pessoas afetadas. Por isso, a atuação do Estado na proteção dosrecursos naturais não pode ser isolada, dissociada de questões culturais, econômicase de capacidade técnica, nem se restringir ao problema da internalização dos custossociais, sem envolvimento dos diversos setores da sociedade.

Neste sentido, entende-se que tais instrumentos são úteis na proteção domeio ambiente e não podem ser desconsiderados. No entanto, é necessárioobservar atentamente sua implementação, garantir que cumpram os princípioselencados na Constituição. No caso da tributação, seu caráter extrafiscal deve serabsolutamente combinado com os princípios da legalidade, da tipicidade e da

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Instrumentos econômicos de proteção do meio ambiente

capacidade contributiva. Já os pagamentos por serviços ambientais não podemser simplesmente aceitos pelo nosso ordenamento, já que estão sendo amplamenteempregados em outros países, antes terão de ser normativamente construídos detal maneira que se garanta o respeito a princípios como a igualdade, erradicaçãoda pobreza e função social da propriedade.

Portanto, o Estado e a coletividade devem assumir o papel de ativosfiscalizadores, essa seria uma postura de vanguarda na proteção do meio ambiente,ou seja, que empregasse os instrumentos econômicos de proteção do meioambiente, os quais de fato já existem e não se pode retroceder, mas que tambémarticulasse todos os setores da sociedade, pois a complexidade do problemaecológico não pode enfrentada de forma isolada e fragmentada.

4 CONCLUSÃO

A proteção do meio ambiente é uma tarefa titânica, por isso, deve levar emconsideração todos os instrumentos que contribuam para sua realização. Osinstrumentos econômicos têm tido especial contribuição, pois são instrumentosque procuram articular meio ambiente e desenvolvimento econômico. Estetrabalho limitou-se a analisar dois deles, a tributação e o pagamento por serviçosambientais.

No que tange à utilização da tributação para correção dos problemasambientais, esta se justifica em seu caráter extrafiscal e no princípio do poluidor-pagador. No entanto, deve-se buscar a categoria idônea e a viabilidade jurídicapara o problema em questão, proteção do meio ambiente e/ou internalização decustos sociais, bem como respeitar os princípios constitucionais tributários.

Cabe ressaltar, que nem sempre o instrumento tributário é o apto para enfrentarum determinado problema ecológico, por isso, deve ser compatibilizado comoutros instrumentos administrativos, como alguns autores defendem, é necessárioum sistema misto que combine intervenções diretas e indiretas, ou instrumentosadministrativos e econômicos.

No que se refere aos pagamentos por serviços ambientais, ao lado da eficiênciatemos de observar os riscos de que surjam efeitos perversos na sua implementação,como a possibilidade de atores fortemente articulados na sociedade, os quaisdetêm poder político e econômico a se apropriarem desses serviços, de tal maneiraque mais uma vez o direito estaria sendo usado para benefício de somente alguns.

Além disso, o desequilíbrio de comprometimento na proteção do planeta entrepaíses desenvolvidos e não desenvolvidos; não pode ser perpetuado pelanegociação desses serviços, cita-se o exemplo dos créditos para patrocinar projetos

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de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo. Além disso, não se podedesconsiderar o risco potencial de não se reconhecer atividades preservacionistastradicionais de populações indígenas e caboclas, tendo em vista a comparaçãocom grandes áreas privadas gestionadas por grandes empresas.

Por isso, a implementação desses serviços deve respeitar preceitos éticos emorais, para que na negociação desses serviços ambientais, a dimensão humananão seja colocada em segundo plano.

Percebe-se ainda que estudar o conceito de direito ou o fundamento subjacentea tais instrumentos implica refletir sobre o modelo de sociedade e o correspondentepapel que relegaremos ao Direito e ao sistema jurídico. Diante da faticidade daeconomia de mercado, é inegável que por vezes a perspectiva econômica, o carátereficiência e o cálculo custo-benefício predominarão. Porém, o Direito não podeser reduzido a esse aspecto instrumental, pois ele também possui um caráterdeontológico e uma pretensão de responder, ainda que de maneira relativa, àsdemandas da sociedade por justiça.

Na perspectiva do direito ambiental, a defesa do meio ambiente desenvolveu-se concomitantemente à idéia de participação popular, pois o direito deveriatambém assumir um papel pedagógico. Neste sentido, a adoção por instrumentoseconômicos deve incorporar além da proteção do meio ambiente a realização dademocracia. A tributação articula atividade econômica e Estado e os pagamentospor serviços ambientais tem a pretensão de envolver além de Estado e atividadeeconômica, a sociedade civil por meio de organizações não governamentais. Assim,resta como desafio ao Direito garantir a proteção do homem e do meio ambienteem coexistência com a racionalidade de cunho instrumental típica do sistemaeconômico, de forma democrática.

REFERÊNCIAS

ALTAMIRANO, Alejandro C. El derecho constitucional a um ambiente sano,derechos humanos e su vinculación com El derecho tributário. In: MARINS,James (Coord). Tributação e Meio Ambiente. Curitiba: Juruá, 2003.

ALVAREZ, Alejandro Bugallo. Análise Econômica do Direito: contribuições edesmistificações. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 9, n. 29, p. 49-68,jul./dez. 2006.

BORN, Rubens Harry; TALOCCHI, Sergio (Coord.). Proteção do capital social eecológico: por meio de Compensações por serviços Ambientais (CSA). São Paulo:São Lourenço da Serra; Peirópolis: Vitae Civilis, 2002.

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Instrumentos econômicos de proteção do meio ambiente

CARRAZA Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. SãoPaulo: Malheiros, 2000.

DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2. ed. São Paulo: Max Limonad,2001.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad: Jefferson Luiz Camargo. SãoPaulo: Martins Fontes, 2003.

FERRARO, Paul J.; KISS, Agnes. Direct payments to conserve biodiversity. Science,v. 298, p. 1718-9, Nov. 2002.

GENETIC RESOURCES ACTION INTERNATIONAL (GRAIN). No, air,don’t sell yourself. Seedling, v. 34, Apr. 2005. Vol 34. Disponível em: <http://mercadosambientais.com/pages/article.library.others.php?component_id=3804&component_version_id=6315&language_id=12>. Acesso em: 31 maio2007.

HERNÁNDEZ, Jorge Jiménez. El tributo como instrumento de protección ambiental.Granada: Editorial Comares, 1998.

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Instruções ao Autores / Instructions for Authors

I N S T R U Ç Õ E S A O S A U T O R E SI N S T R U C T I O N S F O R A U T H O R S

SCIENTIA IURIS

A revista científica SCIENTIA IURIS do Curso de Mestrado em DireitoNegocial da UEL – Universidade Estadual de Londrina tem o objetivo de publicarartigos científicos de autores de instituições de ensino ou pesquisa, nacionais ouestrangeiras.

1. Procedimentos para aceitação dos artigos: Os artigos enviados devem seroriginais, isto é, não terem sido publicados em qualquer outro periódico oucoletânea no país. O procedimento adotado para aceitação definitiva será oseguinte:• Primeira etapa: seleção dos artigos segundo critério de relevância e adequaçãoàs diretrizes editoriais.• Segunda etapa: parecer de qualidade a ser elaborado por pareceristas “adhoc”. A Comissão Editorial e os consultores científicos, por eles indicados,compõem o filtro de qualidade responsável por essa etapa.

Os pareceres comportam três possibilidades:a. aceitação integral;b. aceitação com alterações;c. recusa integral.1.1. Línguas: Serão aceitos trabalhos redigidos em inglês ou preferencialmenteem português. Trabalhos em outras línguas poderão ser aceitos, dependendo daconsulta prévia ao Conselho Consultivo.1.2. As opiniões e conceitos contidos nos artigos são de responsabilidade exclusivado(s) autor(es).

2. Tipos de colaborações aceitas pela revista: serão aceitos trabalhos originaisque se enquadrem na seguinte categoria:2.1. Artigos Científicos (mínimo de 10 laudas e máximo de 25 laudas):Apresentam, geralmente, estudos teóricos ou práticos referentes à pesquisa edesenvolvimento que atingiram resultados conclusivos significativos. Os artigosoriginais referentes à pesquisa experimental devem conter todas as informaçõesnecessárias que permitirão ao leitor repetir as experiências e/ou avaliar asconclusões do autor. As publicações de caráter científico deverão conter os

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Instruções ao Autores / Instructions for Authors

seguintes tópicos: Título (Português e Inglês); Resumo; Palavras-chave; Abstract;Key words; Introdução; Desenvolvimento; Conclusão; Agradecimentos (quandonecessários), e Referências.

3. Forma de apresentação dos artigos3.1. A SCIENTIA IURIS adota as normas de documentação da AssociaçãoBrasileira de Normas Técnicas (ABNT) e a norma de apresentação tabular doInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os artigos devem serencaminhados em disquete ou CD e em três vias impressas, digitadas em editorde texto Word for Windows 7.0 ou posterior, em espaço duplo, em fonte tipoArial, tamanho 12, não excedendo 80 caracteres por linha e o número de páginasapropriado à categoria em que o trabalho se insere, paginado desde a folha derosto personalizada, a qual receberá número de página 1. A página deverá ser emformato A4, com formatação de margens superior e esquerda (3 cm) e inferior edireita (2 cm).3.2. Todo artigo encaminhado à revista deve ser acompanhado de carta assinadapelo(s) autor(es), onde esteja explicitada a intenção de submissão ou novasubmissão do trabalho a publicação. Esta carta deve conter, ainda autorizaçãopara reformulação de linguagem, se necessária. Em caso de trabalho de autoriamúltipla, a versão final deverá ser acompanhada de carta assinada por todos osautores.3.3. A apresentação dos trabalhos deve seguir a seguinte ordem:3.3.1. Folha de rosto despersonalizada contendo apenas:• Título em português, não devendo exceder 15 palavras;• Título em inglês, compatível com o título em português.3.3.2. Folha de rosto personalizada contendo:• Título em inglês• Título em português• Nome de cada autor, seguido por afiliação institucional e titulação por ocasiãoda submissão do trabalho.• Indicação do endereço completo da preferência do autor para constar napublicação do texto e para o envio de correspondência. O endereço eletrônicodeve também ser inserido.• Indicação do endereço para correspondência com o editor sobre a tramitaçãodo artigo, incluindo fax, telefone e endereço eletrônico.• Se necessário, indicação de atualização de afiliação institucional.• Se apropriado, parágrafo reconhecendo apoio financeiro, colaboração de colegase técnicos, origem do trabalho (por exemplo: trabalho anteriormente apresentado

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Instruções ao Autores / Instructions for Authors

em evento, derivado de tese ou dissertação, coleta de dados efetuada em instituiçãodistinta daquela informada na afiliação, e outros fatos de divulgação eticamentenecessária).3.3.3. Folha contendo Resumo (máximo de 100 palavras), redigido em parágrafoúnico, espaço simples e alinhamento justificado e Palavras-chave (mínimo 3 emáximo 5) para fins de indexação do trabalho. Devem ser escolhidas palavrasque classifiquem o trabalho com precisão adequada, que permitam que ele sejarecuperado junto com trabalhos semelhantes, e que possivelmente serão evocadospor um pesquisador efetuando levantamento bibliográfico.3.3.4. Folha contendo Abstract e Key words, em inglês, compatível com o textoem português. O Abstract deve obedecer às mesmas especificações para a versãoem português, seguido de Key words, compatíveis com as palavras-chave.

3.4.5 Texto propriamente dito.• Em todas as categorias do trabalho, o texto deve ter uma organização dereconhecimento fácil, sinalizada por um sistema de títulos e subtítulos que reflitamesta organização.• As citações bibliográficas devem ser feitas de acordo com as normas daABNT (NBR 10520 – Informação e Documentação - Citações em documentos - Apresentação/ Ago. 2002), adotando-se o sistema autor-data. Ex.:Barcellos et al. (1977) encontram...... posse pro labore ou posse-trabalho (NERY JÚNIOR; NERY, 2001).... sem que essa prestação de serviços ...” (HONRUBIA et al., 1996, p. 224).Segundo Canotilho (2000 apud ARAUJO, 2001, p. 82),...– Quando vários trabalhos forem citados no mesmo parágrafo, os mesmos devemser apresentados em ordem cronológica. Se houver mais de um trabalho do mesmoautor no mesmo ano, devem ser utilizadas letras para distingüi-los. Exemplo:Diniz (2003a). O critério para a escolha das letras a, b, c etc. de cada referência éo de ordem alfabética do nome dos artigos ou obras que aquele autor citounaquele mesmo ano.– No caso de trabalho de até três autores, seus sobrenomes na citação devem virseparados por vírgula e pela palavra “e”. Exemplo: Cintra, Grinover e Dinamarco(2003).– No caso de mais de três autores, indica-se apenas o primeiro, acrescentando-sea expressão et al. Exemplo: Barcellos et al. (1997).– Na lista das Referências, cada trabalho referenciado deve ser separado do seguintepor 2 (dois) espaços. A lista dos documentos pesquisados deve ser apresentadaem ordem alfabética, não numerada, seguindo o sobrenome do autor principal,

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Instruções ao Autores / Instructions for Authors

destacando em negrito o título do periódico (para artigos) ou o nome da obra(quando para capítulos de livro), como descrito no item Referências.• As notas não bibliográficas devem ser colocadas no rodapé, utilizando-se defonte tamanho 10, ordenadas por algarismos arábicos que deverão aparecerimediatamente após o segmento do texto ao qual se refere a nota.Observação importante: siglas e abreviaturas devem ser evitadas, pois dificultama leitura. Quando forem necessárias, as siglas ou as abreviaturas devem serintroduzidas entre parênteses, logo após ao emprego do referido termo na íntegra,quando do seu primeiro aparecimento no texto. Ex.: Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística (IBGE). Após a primeira menção no texto utilizar somentea sigla ou abreviatura. Todas as abreviaturas em tabelas ou ilustrações devem serdefinidas em suas respectivas legendas.

3.3.6 Referências (NBR 6023 – Informação e Documentação - Referências - Elaboração/ Ago. 2002)Devem conter todos os dados necessários à identificação das obras, dispostas emordem alfabética. Para distinguir trabalhos diferentes de mesma autoria, serálevada em conta a ordem cronológica, segundo o ano da publicação. Se em ummesmo ano houve mais de um trabalho do(s) mesmo(s) autor(es), acrescentaruma letra ao ano (ex. 1999a; 1999b).

3.3.6.1 Referências dos documentos consultados. Somente devem ser inseridasna lista de Referências os documentos efetivamente citados no artigo.

4. Direitos Autorais4.1. Artigos publicados na SCIENTIA IURISOs direitos autorais dos artigos publicados pertencem à revista SCIENTIA IURIS.A reprodução total dos artigos desta revista em outras publicações, ou paraqualquer outra utilidade, está condicionada à autorização escrita do(s) Editor(es).Pessoas interessadas em reproduzir parcialmente os artigos desta revista (partesdo texto que excedam a 500 palavras, tabelas e ilustrações) deverão ter permissãoescrita do(s) autor(es).4.2. Reprodução parcial de outras publicações

Artigos submetidos que contiverem partes de texto extraídas de outraspublicações deverão obedecer aos limites especificados para garantir originalidadedo trabalho submetido. Recomenda-se evitar a reprodução de tabelas e ilustraçõesextraídas de outras publicações.

O artigo que contiver reprodução de uma ou mais tabelas e/ou ilustrações

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de outras publicações só será encaminhado para análise se vier acompanhado depermissão escrita do detentor do direito autoral do trabalho original para areprodução especificada na SCIENTIA IURIS. A permissão deve ser endereçadaao autor do trabalho submetido. Em nenhuma circunstância a SCIENTIA IURISe os autores dos trabalhos publicados nesta revista repassarão direitos assimobtidos.

5. Os trabalhos não aceitos para publicação serão devolvidos aos autores, sesolicitados.

6. A presente Instrução aos Autores, o modelo de Concessão de DireitosAutorais, da Carta de Autorização para Publicação e do Checklist,encontram-se disponíveis em: <http://www.uel.br/pos/mestradoemdireito

7. Endereço para Encaminhamento:Curso de Mestrado em Direito NegocialUniversidade Estadual de Londrina/Centro de Estudos Sociais Aplicados - CESAConselho Editorial - Revista SCIENTIA IURISCampus UniversitárioCEP 86051-990 Londrina, Paraná, BrasilFone/fax: (0xx43) 3371-4693E-mail: [email protected]

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Lista de Revistas Permutadas

LISTA DE REVISTAS PERMUTADAS

A Comissão Editorial da revista Scientia Iuris, desde sua fundação, visou orelacionamento com instituições brasileiras e estrangeiras para o intercâmbiotécnico, científico e cultural, de modo a expandir quantitativa e qualitativamenteas atividades de ensino, pesquisa e extensão no âmbito das Ciências Jurídicas.

Assim, além da colaboração técnica e científica com entidades nacionais einternacionais, esta iniciativa permitiu o intercâmbio de publicações, as quais sãoincorporadas ao acervo de periódicos da Biblioteca Central da UniversidadeEstadual de Londrina (UEL) e disponibilizadas para toda comunidadeuniversitária.

E para dar continuidade a cooperação mútua estabelecida com estasinstituições, bem como para expandí-la, disponibilizamos a lista das revistas comas quais a Biblioteca Central mantém permuta.

ARGUMENTUM JURECENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE RONDONÓPOLISFACULDADE DO SUL DO MATO GROSSOBIBLIOTECA CENTRAL – INTERCÂMBIOAV. ARY COELHO, 829VILA CIDADE SALMEN78.705-050 – RONDONÓPOLIS – MT

ARGUMENTO – REVISTA JURÍDICAFACULDADE ESTADUAL DE DIREITO DO NORTE PIONEIRO, BC/INTERCÂMBIOAV. MANOEL RIBAS, 711 – C 10384.400-000 – JACAREZINHO – PR

CIÊNCIA E DIREITO – REVISTA JURÍDICAUNIÃO DA ASSOCIAÇÃO EDUCACIONAL SUL-MATOGROSSENSEBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIORUA 26 DE AGOSTO, 6379.002-080 – CAMPO GRANDE – MS

DIREITO E DEMOCRACIAUNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASILBIBLIOTECA CENTRAL – INTERCÂMBIORUA MIGUEL TOSTES, 101 – PRÉDIO 592.420-280 – CANOAS – RS

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Lista de Revistas Permutadas

SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 301-308, 2007

DIREITO E SOCIEDADEMINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁDIVISÃO DE DOCUMENTAÇÃO E BIBLIOTECAAV. MARECHAL FLORIANO PEIXOTO, 1251BAIRRO REBOUÇAS80.230-110 – CURITIBA – PR

DIREITO EM AÇÃOUNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIASISTEMA DE BIBLIOTECASBC, QS 07 LOTE 01 EPCTÁGUAS CLARAS – SETOR SUL91.966-700 – TAGUATINGA – DF

DISPUTATIONES - O DIREITO EM REVISTAFACULDADE DO NORTE NOVO DE APUCARANABIBLIOTECA CENTRAL - INTERCÂMBIOAV. ZILDA SEIXAS AMARAL, 4350PQ INDUSTRIAL86.806-380 – APUCARANA – PR

ESPAÇO JURÍDICOUNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINABIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIORUA OIAPOC, 211 – BAIRRO AGOSTINICAMPUS SÃO MIGUEL DO OESTE89.900-000 – SÃO MIGUEL DO OESTE – SC

FMU DIREITO: REVISTA DO CURSO DE DIREITOFACULDADES METROPOLITANA UNIDASBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIORUA TAGUA, 150 – LIBERDADE01.508-010 – SÃO PAULO – SP

INFOJURTRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃOBIBLIOTECAA/C- CÉSAR GONDIN – SUPERVISOR DE PERIÓDICOSRUA DO ACRE, 80 – 8º ANDAR – CENTRO20.081-000 – RIO DE JANEIRO – RJ

INTERTEMASASSOCIAÇÃO EDUCACIONAL TOLEDOBIBLIOTECA “VISCONDE DE SÃO LEOPOLDO”PRAÇA RAUL FURQUIM, 09 – VILA FURQUIM19.023-410 – PRESIDENTE PRUDENTE – SP

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SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 301-308, 2007 303

Lista de Revistas Permutadas

JUSTIÇA DO DIREITOUNIVERSIDADE DE PASSO FUNDOBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOCAMPUS UNIVERSITÁRIOCAIXA POSTAL, 61199.001-970 – PASSO FUNDO – RS

NOVOS ESTUDOS JURÍDICOSUNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAIBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIORUA URUGUAI, 458CAIXA POSTAL, 36088.302-202 – ITAJAI – SC

REVISTA CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAISUNIVERSIDADE PARANAENSEBIBLIOTECA CNETRAL / INTERCÂMBIOAV. PARIGOT DE SOUZA, 3.636 – JD. PRADA85.903-170 – TOLEDO – PR

REVISTA DA EMERJESCOLA DE MAGISTRATURA DO ESTADO RIO DE JANEIROBIBLIOTECARUA DOM MANUEL, 29 – 3º ANDAR – CENTRO20.010-900 – RIO DE JANEIRO – RJ

REVISTA DA FACULDADE DE DIREITOFACULDADES INTEGRADAS DE GUARULHOSBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIORUA DR. SOLAN FERNANDES, 155CAMPUS VILA ROSÁLIA07.072-080 – GUARULHOS – SP

REVISTA DA FACULDADE DE DIREITOUNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTASBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOCAMPUS UNIVERSITÁRIOCAIXA POSTAL, 35496.010-900 – PELOTAS – RS

REVISTA DA FACULDADE DE DIREITOUNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

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Lista de Revistas Permutadas

SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 301-308, 2007

BIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOCAIXA POSTAL, 6.02560.451-970 – FORTALEZA – CE

REVISTA DA FACULDADE DE DIREITOUNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOCAIXA POSTAL, 19.05181.531-990 – CURITIBA – PR

REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSMUNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIACENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANASBIBLIOTECA SETORIAL / CCSHRUA FLORIANO PEIXOTO, 1.184 – SALA 10197.015-372 – SANTA MARIA – RS

REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO RITTER REISFACULDADES INTEGRADAS DO INSTITUTO RITTER DOS REISBIBLIOTECA CNETRAL / INTERCÂMBIOR. ORFANOTRÓFIO, 555 - CAIXA POSTAL, 1.35590.840-440 – PORTO ALEGRE – RS

REVISTA DA FACULDADE MINEIRA DE DIREITOPONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICABIBLIOTECA CNETRAL / INTERCÂMBIOAV. DOM JOSÉ GASPAR, 500 – CORAÇÃO EUCARÍSTICOCAIXA POSTAL, 1.68630.535-610 – BELO HORIZONTE – MG

REVISTA DE CIÊNCIA JURÍDICAUNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOAV. COLOMBO, 5.79087.020-900 – MARINGÁ – PR

REVISTA DE DIREITO DA CONCORRÊNCIAMINISTÉRIO DA JUSTIÇACONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICASCN QUADRA 2 - PROJEÇÃO C70.712-902 – BRASÍLIA – DF

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SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 301-308, 2007 305

Lista de Revistas Permutadas

REVISTA DE DIREITO MACKENZIEINSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIEBIBLIOTECA “GEORGE ALEXANDER” / INTERCÂMBIORUA DA CONSOLAÇÃO, 896 – PRÉDIO 02 – CONSOLAÇÃO01.302-907 – SÃO PAULO – SP

REVISTA DO CURSO DE DIREITOASSOCIAÇÃO ENSINO UNIFICADO DO DISTRITO FEDERALBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOSEUP – EQS 704/904 – CONJ. A70.390-045 – BRASÍLIA – DF

REVISTA DO CURSO DE DIREITO DA UFUUNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIABIBLIOTECA CENTRAL - SETOR AQUISIÇÃOCAMPUS SANTA MÔNICAAV. JOÃO NAVES ÁVILA, 2160, BL 3C,38.408 – UBERLÂNDIA – MG

REVISTA DO DIREITOFACULDADE DE DIREITO DE CACHOEIRA DO ITAPEMIRIMBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIORUA MARIO IMPERIAL, 56 – B. DOS FERROVIÁRIOSCAIXA POSTAL, 1429.308-400 – CACHOEIRA DO ITAPEMIRIM – ES

REVISTA DO DIREITOUNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SULBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOA/C- VALÉRIA FAVA DAL OSTOCAMPUS UNIVERSITÁRIO96.815-900 – SANTA CRUZ DO SUL – RS

REVISTA DO DIREITO UPISFACULDADE INTEGRADA DA UNIÃO PIONEIRA DE INTEGRAÇÃO SOCIALBIBLIOTECA CENTRAL – INTERCÂMBIOSEP/SUL – EQ 712/912 – CONJ. A70.390-125 – BRASÍLIA – DF

REVISTA FACULDADE CHRISTUSFACULDADE CHRISTUSBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIO

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Lista de Revistas Permutadas

SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 301-308, 2007

RUA ISRAEL BEZERRA, 630B. DIONIZIO TORRES60.135-460 – FORTALEZA – CE

REVISTA FACULDADE DE DIREITO DE SÃO BERNARDO DO CAMPOFACULDADE DE DIREITO DE SÃO BERNARDO DO CAMPOBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIORUA JAVA, 425 – JD. DO MAR09.750-650 – SÃO BERNARDO DO CAMPO – SP

REVISTA JURÍDICAFACULDADE NOVO ATENEU DE GUARAPUAVABIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIORUA SALDANHA MARINHO, 1.706 – CENTRO85.010-290 – GUARAPUAVA – PR

REVISTA JURÍDICACENTRO ENSINO SUPERIOR DE JATAÍBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIORUA SANTOS DUMONT, 1.200 – SETOR OESTECAIXA POSTAL, 18275.804-045 – JATAÍ – GO

REVISTA JURÍDICAFACULDADES UNIFICADAS DE FOZ DO IGUAÇUBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIORUA XAVIER DA SILVA, 77585.851-180 – FOZ DO IGUAÇU – PR

REVISTA JURÍDICAUNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINABIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIORUA GETULIO VARGAS, 2.125 – B. FLOR DA SERRACAMPUS DE JOAÇABA89.600-000 – JOAÇABA – SC

REVISTA JURÍDICAUNIVERSIDADE REG. INT. ALTO URUGUAI DAS MISSÕESBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOAV. ASSIS BRASIL, 709 – CAIXA POSTAL, 184CAMPUS FREDERICO WESTPHALEN98.400-000 - FREDERICO WESTPHALEN – R

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SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 301-308, 2007 307

Lista de Revistas Permutadas

REVISTA JURÍDICA IUS VIVENSUNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCOBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOAV. TAMANDARÉ, 6.000CAIXA POSTAL, 10079.117-010 – CAMPO GRANDE – MS

REVISTA JURÍDICA DA UNICUNIVERSIDADE DE CUIABÁBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOAV. BEIRA RIO, 3.100 – JD. EUROPA78.015-480 – CUIABÁ – MT

REVISTA JURÍDICA - UNIVERSIDADE DE FRANCAUNIVERSIDADE DE FRANCABIBLIOTECA CNETRAL / INTERCÂMBIOAV. DR. ARMANDO SALLES OLIVEIRA, 201PARQUE UNIVERSITÁRIO14.404-600 – FRANCA – SP

REVISTA JURÍDICA UNIJUSUNIVERSIDADE DE UBERABABIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOAV. NENÊ SABINO, 1.801BAIRRO UNIVERSITÁRIO38.055-500 – UBERABA – MG

REVISTA JURÍDICA UNIDERPUNIVERSIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO DOESTADO E DA REGIÃO DO PANTANALBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOR. CEARÁ, 333 – MIGUEL COUTO – C. P. 2.15379.003-010 – CAMPO GRANDE – MS

REVISTA JURÍDICAASSOCIAÇÃO EDUCATIVA EVANGÉLICABIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOAV. UNIVERSITÁRIA, KM 3,5CIDADE UNIVERSITÁRIA75.070-290 – ANAPOLIS – GO

SIGNUMCENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE VITÓRIA

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Lista de Revistas Permutadas

SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 11, p. 301-308, 2007

BIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIORUA BARÃO DE MONJARDIM, 30 – CENTRO29.010-390 – VITÓRIA – ES

THEMISUNIVERSIDADE NOVA DE LISBOAFACULDADE DE DIREITOBIBLIOTECA CENTRALCAMPUS UNIVERSITÁRIO DE CAMPOLIDETRAV. ESTEVÃO PINTO1099-032 – LISBOA – PORTUGAL

UNIVERSITAS JUSCENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIABIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOSEPN 707/907 – CAMPUS DO CEUB70.790-075 – BRASÍLIA – DF

UNOPAR CIENTÍFICA: CIÊNCIAS JURÍDICAS E EMPRESARIAISUNIVERSIDADE DO NORTE DO PARANÁBIBLIOTECA CENTRAL / INTERCÂMBIOAV. PARIS, 675 – JD. PIZA86.041-140 – LONDRINA – PR

VERBA JURISUNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBAPÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS JURÍDICASAV. GENERAL OSÓRIO, 415EDIFÍCIO BANCO REAL – 5º ANDAR58.010-780 – JOÃO PESSOA – PB