saúde mental: transmitindo experiências - esp-mg · introduÇÃo ... saÚde mental na atenÇÃo...

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ESCOLA DE SAÚDE PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS Caderno Saúde Mental 4 Saúde Mental: Transmindo Experiências Novembro de 2011 Oficina 4.indd 1 2/12/2011 15:25:46

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ESCOLA DE SAÚDE PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS

Caderno Saúde Mental 4Saúde Mental:

Transmitindo Experiências

Novembro de 2011

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Antonio Augusto AnastasiaGovernador do Estado de Minas Gerais

Antônio Jorge de Souza MarquesSecretário de Estado de Saúde

Damião Mendonça RibeiroDiretor Geral da Escola de Saúde Pública de Minas Gerais

Fernanda Jorge MacielSuperintendente de Educação

Marilene Barros de MeloSuperintendente de Pesquisa

Miguel Ângelo Borges de AndradeSuperintendente de Planejamento, Gestão e Finanças

Harrison MirandaAssessor de Comunicação

Junne Menezes Diniz MedradoAssessora Jurídica

Nina de Melo DavelAuditoria Setorial

Grupo de Produção Temática em Saúde Mental Ana Marta Lobosque (coordenadora)Ana Regina MachadoIsabela Peres MacedoMarcelo Arinos Drummond JúniorIsabela Regina P. Melo (estagiária)Roselmiro Entreportes (estagiário)

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ESCOLA DE SAÚDE PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS

Caderno Saúde Mental 4Saúde Mental:

Transmitindo Experiências

Organização:Tânia Ferreira

Belo Horizonte, novembro de 2011ISSN 1984-5359

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CADERNO SAUDE MENTAL 4 - SAÚDE MENTAL: Transmitindo Experiências

O Caderno Saúde Mental 4 da ESP/MG apresenta os artigos produzidos na Oficina de Artigos pelos gestores de Serviços de Saúde Mental de municípios mineiros ao longo do ano de 2010, na Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, contemplando vários temas que tiveram seu ponto inicial na Oficina de Gestão, fruto das ações do Grupo de Produção Temática em Saúde Mental.

Organização: Tânia FerreiraColaboração: Lourdes MachadoApoio e revisão: Luciene LamounierEditora: Gráfica e Editora MafaliArte: elaborada a partir da produção de Luiz Vicente de Oliveira, na Oficina de Grafite do CAPS ad de Ribeirão das Neves, no ano de 2011.Diagramação: José Antônio dos Santos (MG 0091 DG)revisão Ortográfica: Simone Santos (MG 03194 JP)Impressão: Gráfica e Editora Mafali

Caderno Saúde Mental/ Tânia Ferreira (org.). - V.4 (2011)- .- Belo Horizonte: Escola C122 de Saúde Pública de Minas Gerais. 2011.

v.; 23 cm

Irregular

ISSN 1984-5359

I. Escola de Saúde Pública de Minas Gerais

NLM WM 105

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CADERNO SAUDE MENTAL 4 - SAÚDE MENTAL: Transmitindo Experiências

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO........................................................................................................7PREFÁCIO..................................................................................................................9INTRODUÇÃO.........................................................................................................13OFICINAS PARA GESTÃO DA REDE DE ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL: APRESENTAÇÃO DA EXPERIÊNCIA..........................................................................15

1 - TECENDO REDES DE CUIDADO EM SAÚDE MENTAL

SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA: DIREITO À SINGULARIDADE, À CONVIVÊNCIA E AO TRATAMENTO HUMANIZADO EM UM ESPAÇO ABERTO E PÚBLICOSirlene Brandão da Silva.........................................................................................21TECENDO REDE DE SAÚDE MENTAL: A INTERSETORIALIDADE COMO APOSTA Telma Orneles de Lima............................................................................................35A GESTÃO COLEGIADA COMO ESTRATÉGIA NA REDE DE SAÚDE MENTAL.Márcia Maria Rodrigues Ribeiro.............................................................................51MUDANÇA DO MODELO ASSISTENCIAL EM SAÚDE MENTAL - DESOSPITALIZAÇÃO E FORTALECIMENTO DA REDELuciana dos Santos..................................................................................................65

2 - POLÍTICA CLÍNICA E SAÚDE MENTAL

QUEM SÃO AS CRIANÇAS E ADOLESCENTES QUE CHEGAM A UM SERVIÇO DE SAÚDE MENTAL INFANTOJUVENIL?Wagner Prazeres dos Santos.................................................................................. 79ESTRATÉGIAS PARA A REDUÇÃO DE DANOS SOCIAIS E À SAÚDE DE USUÁRIOS DE DROGAS INJETÁVEIS NO BRASIL: EXPERIÊNCIAS E PERSPECTIVASYuri Lemos Mansur..................................................................................................89POLÍTICAS PÚBLICAS E A ASSISTÊNCIA PRESTADA AOS USUÁRIOS DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGASVirgínia Maria Neves Vitral Chung..........................................................................99

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OFICINAS E ADOLESCENTES EM USO E ABUSO DE DROGAS: O QUE SE TRATA AQUI?Adriana Condessa Torres.......................................................................................109

3 - SAÚDE MENTAL E TRABALHO

ENTRE O TRABALHO, A LOUCURA E A DOENÇA: UM OLHAR PARA A SAÚDE PSÍQUICA DO TRABALHADOR DA SAÚDE MENTAL EM UM CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIALSamira Neheme....................................................................................................121O IMPACTO DO TRABALHO NA SAÚDE MENTALMarina Saraiva de Almeida...................................................................................131

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APRESENTAÇÃO

A Escola de Saúde Pública, com alegria, apresenta o quarto número do seu Caderno Saúde Mental. Trata-se de mais uma conquista, que reproduz e divulga o produto de uma importante atividade aqui promovida: as Oficinas para Gestão em Saúde Mental, acopladas às Oficinas de Artigos Científicos.

As Oficinas para Gestão em Saúde Mental tiveram frequência mensal ao longo de dois anos, atendendo a 120 participantes, divididos em duas turmas, entre coordenadores de serviços e referências técnicas da área, contemplando as 13 macrorregiões de todo o Estado. Iniciadas em março de 2009, elas vieram fortalecendo a construção de redes locais e regionais de saúde mental ao longo deste período – e se concluem, enfim, com as Jornadas para Gestão em Saúde Mental e o lançamento da atual publicação, em dezembro deste ano.

As Oficinas de Artigos Científicos, complementares às Oficinas para Gestão em Saúde Mental, tiveram como objetivo subsidiar participantes desta última para a preparação de artigos sobre tópicos diversos na área da gestão. O Caderno Saúde Mental 4 publica os textos assim produzidos. Ao fazê-lo, reúne e divulga um duplo aprendizado: aquele advindo da sistematização e do debate das experiências de gestão em saúde mental, numa das oficinas, e aquele da metodologia de redação de artigos científicos, na outra.

Apesar da reconhecida relevância do tema da gestão em saúde mental, temos ainda muito poucas ações educacionais a este respeito em nosso País: sua abordagem em nossa Escola possui, portanto, dentre outros méritos, o da originalidade. Quanto aos efeitos vivos produzidos por sua realização, podemos vê-los, por exemplo, na replicação das Oficinas para Gestão em Saúde Mental, atualmente realizada pela SRS de Montes Claros, que se estende, por sua vez, a outros municípios, como Janaúba, Espinosa e Monte Azul.

A Escola de Saúde Pública prossegue avançando no âmbito da saúde mental, ao lado de várias outras produções de seu Grupo de Produção Temática da área. O lançamento do Caderno Saúde Mental 4 dá testemunho do nosso percurso.

Boas-vindas a todos!

Damião Mendonça VieiraDiretor da Escola de Saúde Pública de Minas Gerais

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PREFÁCIO

Temos falado muito, principalmente ao longo das duas últimas décadas, da história de segregação e sequestro da cidadania dos portadores de sofrimento psíquico, ocorrida no Brasil sob a égide da lógica dos manicômios. Esta história, que não podemos esquecer, nos impõe boas razões para nos afastarmos dela. Dentre estas razões, estão as ricas e fecundas experiências de novos modos de tratamento da loucura, do sujeito e de sua inclusão social em redes e serviços substitutivos em saúde mental.

O Caderno de Saúde Mental 4, em sua essência, quer transmitir, com simplicidade e entusiasmo, no diálogo com estas experiências, temas que atravessam o cotidiano de gestores e técnicos de serviços de saúde mental, na sua lida com o tratamento do portador de sofrimento psíquico, com a gestão de serviços, com a construção de redes de atenção em saúde mental, além de muitas questões impostas pela pulsação viva das ações em saúde mental de municípios do interior de Minas Gerais.

Aqui, as indagações de cada autor vão ganhando lugar no texto, pretexto para formalizar e transmitir, um pouco que seja, desse fazer inquietante e por vezes árduo, mas também precioso, do dia a dia com as questões que tangem a saúde mental.

Este Caderno nasce do esforço de elaboração de cada um que teceu seu texto na Oficina de Artigos Científicos1. Esta oficina – apêndice da Oficina de Gestão em Saúde Mental – esteio do desejo de escrita de alguns de seus participantes – ofereceu os recursos e instrumentos necessários para os artigos que ora apresentamos.

Muitos destes autores, guiados pela ética de seu fazer, puderam passo a passo tecer seu texto, sendo esta a sua primeira experiência com a escrita. Outros, já mais experientes, também trazem com estes textos questões para eles inéditas. Em qualquer destas duas experiências, o que move a escrita é um não saber sobre algo que cerne o trabalho em saúde mental e a tentativa de construir um saber e uma leitura. Daí sua importância.

1 A Oficina de Artigos Científicos foi coordenada inicialmente pelo professor Luiz Carlos Brant Carneiro, a quem agradecemos por sua importante contribuição nos momentos iniciais de definição de temas e de produção dos artigos.

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O leitor vai encontrar aqui, questões que se abrem para aqueles que querem fazer avançar a clínica e a política em saúde mental, com o estilo de cada autor e a singularidade de seu lugar de trabalho, em recantos mineiros. Questões que foram norteadoras da pesquisa que resultou nos artigos deste Caderno: a inserção da prática de cuidados em saúde mental na Atenção Primária é possível? O que é intersetorialidade e como pode ser usada como instrumento para tecer redes de cuidado? No que consiste a Gestão colegiada? Podemos tomar a Gestão Colegiada como dispositivo de construção da Rede Pública em Saúde Mental? Quais os impasses e avanços decorrentes da redução de danos como política de tratamento a usuários de álcool e outras drogas? Como funciona e quais são as possibilidades de tratamento em um CAPS ad que se sustenta na Política de Redução de Danos? A atual política sobre drogas interfere na implicação do sujeito por uma demanda de tratamento? Seria a adolescência um tempo de vulnerabilidade ao uso e abuso de drogas? Programas de cultura, arte e lazer poderiam, por si só, ser tomados como instrumentos de prevenção e tratamento de adolescentes? Quem são as crianças que chegam aos serviços de saúde mental? De que sofrem? O que demandam para elas ou quais são as demandas delas? E a saúde mental dos trabalhadores? Os trabalhadores de saúde mental estariam mais vulneráveis ao adoecimento psíquico? Quais os recursos a serem oferecidos aos trabalhadores para fazer mediação entre o trabalho e a loucura?

Estas e outras indagações, fio do tecido dos artigos deste Caderno, provavelmente levarão o leitor a construir as suas próprias. Esta empreitada só tem uma razão de ser: fazer avançar serviços e ações em saúde mental consonantes com os princípios da Reforma Psiquiátrica, que compreendemos, deva seguir sendo construída no real do dia a dia dos serviços em saúde mental. Ali, onde os sujeitos em crise ou fora dela, tratam seu sofrimento, circulam, fazem laços – cada um a seu modo – nos instigando a gerir, construir e implementar projetos que cumpram sua função neste movimento de tratamento, proteção, reabilitação psicossocial, inclusão e cidadania do portador de sofrimento psíquico.

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É neste sentido que a Escola de Saúde Pública de Minas Gerais tem acolhido no Grupo de Produção Temática em Saúde Mental, com o apoio da Direção, a demanda de trabalhadores de diferentes municípios mineiros, contribuindo com a formação continuada dos trabalhadores e, com ela, para o avanço da política e da clínica em saúde mental. Foi neste sentido também que construímos o trabalho nas Oficinas para Gestão e de Artigos e partilhamos da alegria de trazê-lo aos leitores.

Tânia FerreiraBelo Horizonte, novembro de 2011

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INTRODUÇÃO

Desta vez, temos o prazer de oferecer aos leitores um Caderno muito especial. Intitulado Gestão em Saúde Mental, o Caderno Saúde Mental 4 reúne e divulga textos produzidos ao longo de uma importante ação educacional sobre este tema, realizada na Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, encerrando-se agora com as Jornadas de Gestão para Saúde Mental.

Estas oficinas foram cuidadosamente concebidas por Marcelo Arinos Drummond Jr. e Lourdes Machado; Lourdes, com grande empenho, conduziu sua coordenação. Elas trouxeram periodicamente à Escola, ao longo de dois anos, coordenadores e referências técnicas de saúde mental de diferentes regiões do Estado, debatendo com interesse crescente e vivo as questões surgidas no exercício da sua gestão. Remeto os leitores ao texto de Lourdes e Marcelo para conhecerem melhor os objetivos, o método e a realização deste valioso trabalho.

Acopladas às Oficinas para Gestão em Saúde Mental, transcorreram também as Oficinas de Artigos Científicos, coordenadas por Tânia Ferreira: nestas últimas, foram gestados os textos que compõem este Caderno Saúde Mental. A apresentação, assinada por Tânia, oferece um belo relato do crescimento e maturação dessa escrita.

Os laços entre serviço, ensino e pesquisa buscados pela ESP-MG se tecem efetivamente neste trabalho: perguntas, dúvidas, desafios e impasses surgidos no cotidiano da gestão em saúde mental levaram à busca de respostas que, por sua vez, incitam a reformular e perseguir novas questões.

Cumpre-nos deixar aqui vários e sinceros agradecimentos. Agradecemos Lourdes Machado, Marcelo Arinos, Tânia Ferreira, Luciene Lamounier e Ana Regina Machado - companheiros queridos do GPT-SM, pelo empenho em dar à luz a estas Oficinas e ao Caderno que as divulga; a Tammy Claret e Thiago Horta, que foram respectivamente diretora e superintendente de Educação da Escola pelo apoio quando da realização das mesmas; a Damião Mendonça Vieira, o atual diretor, e a Fernanda Maciel,

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atual superintendente de Educação, cuja contribuição foi indispensável a esta publicação; a generosa contribuição dos professores convidados; agradecemos aos alunos e aos autores. E desejamos aos leitores um feliz percurso neste novo Caderno Saúde Mental da Escola!

Ana Marta LobosqueCoordenadora do Grupo de Produção Temática em Saúde Mental

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OFICINAS PARA GESTÃO DA REDE DE ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL: APRESENTAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

Lourdes Aparecida MachadoMarcelo Arinos Drummond Junior

A primeira versão das Oficinas de Gestão em Saúde Mental foi concebida

e executada pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, entre os anos de 2004 e 2006, em parceria com Coordenação Estadual de Saúde Mental da SES/MG. Havia, por parte dessas instituições, preocupação quanto ao conhecimento ainda incipiente das referencias técnicas das Gerências Regionais de Saúde em relação aos temas ligados à gestão dos serviços no âmbito da saúde mental.

A primeira turma, composta por 56 alunos, iniciou os trabalhos problematizando a prática cotidiana, enfatizando as dificuldades e possibilidades neste campo. O grupo construiu uma lista de tarefas que seriam pertinentes à função de referencia técnica de uma Gerência Regional de Saúde.

A segunda parte da atividade se constituiu em 15 oficinas temáticas, onde foram trabalhados os conteúdos definidos pelo grupo.

Ao final da jornada de 136 horas/aula, o resultado destas Oficinas foi considerado positivo quanto aos seus objetivos e vários alunos demandaram sua continuidade, o que não ocorreu de imediato por questões institucionais.

Em 2008, após a divulgação dos relatórios referentes às visitas realizadas pela Coordenação Estadual de Saúde Mental nos 105 CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) então em funcionamento em Minas Gerais, o Colegiado Estadual de Saúde Mental considerou necessária uma ação educacional que abordasse o tema da gestão. Tendo como base a primeira experiência mencionada acima, foi construído o projeto: Oficinas para Gestão da Rede de Atenção à Saúde Mental.

A proposta foi apresentada à Escola de Saúde Pública e a Superintendência de Educação sugeriu a inclusão de oficinas de construção de artigos, colocando assim o projeto no conceito de educação permanente, ou seja, segundo o tripé Ensino – Pesquisa – Serviço.

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Teríamos como público-alvo as referencias técnicas regionais em saúde mental das 28 GRS e coordenadores e/ou gerentes de serviços de saúde mental de Minas Gerais. Foram montadas duas turmas de 60 participantes, que incluíam também um estudante de cursos afins e um usuário da rede de saúde mental/SUS. Foram contempladas em ambas as turmas, representantes das 13 macrorregiões assistenciais, de acordo com o Plano Diretor de Regionalização do Estado.

O objetivo geral seria subsidiar os participantes para ações necessárias à construção, implementação e sustentação das redes de saúde mental em Minas Gerais. Configuravam-se como objetivos específicos: problematização coletiva sobre as dificuldades e as possibilidades da gestão; identificação coletiva dos saberes técnico/políticos necessários à gestão em saúde mental; continuidade do processo de educação permanente em saúde para as referências técnicas regionais e coordenadores e/ou gerentes municipais que atuam na área de saúde mental. Esperava-se criar possibilidades para a construção de uma prática pautada pela visão crítica do processo da Reforma Psiquiátrica, baseada nas diretrizes do SUS e norteada por princípios técnicos e éticos.

A seguinte proposição foi apresentada como justificativa para implantação do projeto: a garantia da promoção e efetivação do cuidado em saúde mental da população tem sido um desafio importante para os gestores e técnicos dos municípios. A Política Nacional de Saúde Mental determina que os casos graves devam ser priorizados pelas ações assistenciais, tendo em vista o alto impacto social e pessoal dos transtornos mentais, seja pela severidade e consequências de seus sintomas, seja pela segregação que sofrem seus portadores. Pela complexidade das ações para promoção e efetivação do cuidado, o trabalho isolado das equipes especializadas não atinge a resolutividade necessária, de modo que, para alcançar o desenvolvimento e a implantação de um modelo assistencial em rede mostra-se fundamental a articulação entre os serviços e dispositivos e entre estes e a comunidade. Deve-se considerar, primeiramente, que a implantação e a manutenção de tal modelo implicam na qualificação dos gestores envolvidos para que assumam com eficácia seus respectivos papéis; e, ainda, que o ingresso de novos funcionários exercendo a função de referência técnica em saúde mental nas Gerências Regionais, assim como de novos atores exercendo o papel de coordenador municipal e/ou gerentes de serviços, reforçam a necessidade dessa qualificação.

As Oficinas iniciaram-se em fevereiro de 2009, com término previsto para março de 2011. Não havia previsão orçamentária para ação, o que veio ocorrer em 2010. A ação foi desenvolvida em duas etapas. A primeira, referente aos meses de fevereiro e abril de 2009, constituiu-se de um processo de problematização onde

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os participantes discutiram as atribuições da gestão em saúde mental. Logo após, apontaram os problemas que dificultavam esta prática. Analisaram os problemas, identificando aqueles que poderiam ser atenuados ou solucionados pelo aporte de algum conhecimento específico. Ao final, construíram uma programação com os temas que foram estudados e debatidos pelo grupo ao longo do processo. Os temas definidos pela Turma 1 foram: Políticas Públicas; Modelo Assistencial de Saúde Mental; Financiamento; Estruturação da Equipe; Intersetorialidade; Controle Social; Saúde do Trabalhador; Saúde Mental da Criança e do Adolescente; Álcool e Outras Drogas; e Preconceito. A turma 2 escolheu como temas: Intersetorialidade: Serviços de Saúde e Serviços “Externos” à Saúde, incluindo Saúde do Trabalhador; Política para Álcool e Outras Drogas: Intervenções no Território Para Crianças, Adolescentes e Adultos; A Gestão Colegiada e a Democratização das Relações; Políticas e Estratégias na Gestão de Pessoas; Desafios da Reforma Psiquiátrica; A Construção de Indicadores Para Avaliação e Acompanhamento dos Serviços de Saúde Mental; Saúde Mental na APS; Controle Social; Políticas de Saúde, Legislação e Financiamento; e Plano Local de Saúde Mental.

A segunda etapa, denominada Fase Temática, se caracterizou pelo estudo propriamente dito dos diversos saberes identificados pelo grupo. Para cada tema houve um período de dispersão, onde os participantes realizaram pesquisa relativa ao tema estudado na oficina anterior; fizeram uma análise dos problemas e construíram propostas de solução. Foi medido o grau do alcance dos objetivos de aprendizagem pelos participantes através da avaliação dos conhecimentos, habilidades e atitudes construídos pelas Oficinas, expressos em relatórios específicos para cada tema.

O objeto pedagógico foi o processo de trabalho nos serviços e nas redes, que deveria ser modificado de forma a atender com efetividade às necessidades da população usuária e estava sustentado pela proposta de intervenção baseada no Arco de Maguerez, ou seja, tendo a realidade social como ponto de partida e de chegada.

A Oficina de Produção de Artigos teve o objetivo de capacitar os participantes para a elaboração de artigos, possibilitando arcabouços teóricos metodológicos e oferecendo elementos que viabilizassem o encaminhamento dessas produções para publicação.

Cada turma contou com 15 alunos, mediante seleção prévia, entre os participantes das Oficinas de Gestão, e os artigos foram construídos a partir dos temas problematizados na primeira etapa do projeto.

Desde que foi criado, o SUS provocou profundas mudanças nas práticas de

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saúde do País. Porém, para que novas mudanças ocorram, é preciso haver também transformações na formação e no desenvolvimento dos profissionais da área. As propostas não podem mais ser construídas isoladamente ou de cima para baixo. Elas devem fazer parte de uma grande estratégia, estar articuladas entre si e ser criadas a partir da problematização das realidades locais. Foi neste contexto que esta experiência se realizou, abordando as dificuldades do trabalho através de um processo de educação permanente, abrindo possibilidades de intervenções locais nos serviços e redes de saúde mental de Minas Gerais.

Para concluir, cumpre ressaltar que estas oficinas foram realizadas ao longo da criação e consolidação do Grupo de Produção Temática em Saúde Mental da Escola de Saúde Pública em Minas Gerais - participando, portanto, de um projeto coletivo no âmbito da educação permanente em saúde, segundo as diretrizes do SUS e da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

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1 - TECENDO REDES DECUIDADO EM SAÚDE MENTAL

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SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA: DIREITO À SINGULARIDADE, À CONVIVÊNCIA E AO TRATAMENTO HUMANIZADO EM UM ESPAÇO ABERTO E PÚBLICO

Sirlene Brandão da Silva2

RESUMO

Este trabalho representa um esforço reflexivo no sentido de auxiliar profissionais da saúde, no atendimento humanizado e acolhedor a pessoas que apresentam sofrimento psíquico. A humanização é um enfoque que perpassa toda a proposta e pode ser resumida em duas palavras: acolhimento e respeito. Este artigo propõe discutir os princípios que devem permear as práticas capazes de acolher e incluir, efetivamente, os sujeitos que apresentam sofrimento psíquico nos dispositivos abertos já existentes em nossa comunidade, tais como: Unidades Básicas de Saúde, PSF, oficinas terapêuticas, grupos de convivências, pronto atendimento, hospitais gerais, etc.. Para tal, descreve a experiência de atendimento humanizado em saúde mental em um município e a contribuição deste atendimento na desmistificação da loucura e a inclusão da mesma na rede de atenção à saúde, o que implica garantia de acesso e efetividade dos princípios da universalidade e da equidade.

Palavras-chave: Saúde Mental na Atenção Básica, redes de atenção, acolhimento, humanização.

2 Psicóloga da Unidade Básica de Saúde do Município de Tocos do Moji -MG.

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Introdução

Acolher e tratar sujeitos que apresentam sofrimento psíquico em dispositivos de atenção básica do Sistema Único de Saúde - SUS é propor ações inerentes à cidadania, tendo como meta a desmistificação da loucura e a garantia de direitos.

A desconstrução da figura do louco perigoso, produzida há séculos pela sociedade, é um trabalho árduo e vagaroso, pois a convivência com a loucura e seus desdobramentos é perturbadora. Há muitas situações inusitadas que requerem novas estratégias diárias a fim de abordar o extravagante, eventualmente presente nestas experiências.

Com a democratização do Brasil e a aprovação de sua Carta Magna, em 1988, podemos observar outras possibilidades de abordar a loucura, pois várias diretrizes estratégicas de integralidade são delineadas para regulamentação de um sistema de saúde universal e regionalizado. Este novo rearranjo macropolítico ocorreu com a regulamentação do SUS, que se deu com a aprovação da Lei Orgânica nº 8.080/1990, que define a saúde como um direito fundamental do ser humano, cabendo ao Estado formular e executar políticas econômicas e sociais, visando à redução de danos, riscos e agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços, para a sua promoção, proteção e recuperação, garantindo a todos uma condição de bem-estar físico, mental e social.

Em 2001, inicia-se um movimento de inclusão da saúde mental na atenção básica, várias oficinas são realizadas e o Ministério da Saúde aprova o documento “Saúde Mental e Atenção Básica: o vínculo e o diálogo necessários” (Brasil, 2003), onde se prioriza que a assistência na rede deve ser realizada através de apoio matricial às equipes da Atenção Básica. Segundo este documento, os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS são considerados dispositivos estratégicos para a organização da rede de atenção em saúde mental, sendo seus profissionais responsáveis pelo matriciamento.

O Ministério da Saúde, em sua Portaria 336/2002, define que os CAPS devem “responsabilizar-se (...) pela organização da demanda e da rede de cuidados em saúde mental no âmbito do seu território” e “(...) desempenhar o papel de regulador da porta de entrada da rede assistencial no âmbito do seu território” (BRASIL, 2004, p. 126).

Com esta definição, os CAPS subvertem a lógica de hierarquização, agregando diferentes níveis de atenção em um só território. Segundo Amarante (1995), a assistência nesses serviços passa a ter caráter intensivo, não se restringindo ao

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trabalho de remissão de sintomas mas sim, ocupando-se da existência dos sujeitos e de suas possibilidades de habitar o social.

Contudo, ao tomarmos o CAPS como ordenador da rede como propõe o Ministério, não estaríamos reiterando o foco nesse equipamento e o seu isolamento em relação àquela rede ampla e entrelaçada de saúde que almejamos? Nesse caso, mais apropriado seria trabalhar com o conceito-imagem de uma rede multicêntrica, em que o CAPS pode funcionar como agenciador das demandas em saúde mental, mas no qual, por outro lado, cada um dos atores sociais e serviços envolvidos na atenção se destacam, em determinado momento, de acordo com o andamento do projeto terapêutico de cada usuário.

Uma rede que permita o entrelaçamento das ações e das relações. Uma rede pulsante e viva, que se movimente para dar sustentação às necessidades dos usuários e de acordo com elas. “Uma rede sem centralidade, porém quente o suficiente para agenciar as demandas dos usuários e se transformar em um suporte efetivo para as dificuldades em andar a vida que esses usuários possuem” (MARÇAL, 2007, p. 48).

A implantação desta rede pulsante e viva, à qual Marçal (2007) relata, se coloca possível após a aprovação da Política Nacional de Atenção Primária, em 28 de março de 2006, através da Portaria GM 648. A lógica do serviço em saúde no Brasil, após a aprovação desta Portaria, consiste na organização em nível de atenção primária, que poderá ser o responsável pela resolução da absoluta maioria dos problemas de saúde que afetam a população, principalmente pela sua possibilidade de atuação no ambiente em que acontece o processo saúde-doença.

Trata-se, portanto, da disponibilização de uma porta de entrada responsável por acolher, tratar, referenciar se necessário, e acompanhar o sujeito em outros níveis de atenção, sendo responsável pelo cuidado e monitoramento após seu retorno da atenção especializada.

Assim, ações e intervenções primárias à saúde são os pilares do Sistema Único de Saúde, implantado a partir da proposta de uma Reforma Sanitária comprometida com o bem-estar e a equidade.

Por mais de 20 anos, o movimento da Reforma Psiquiátrica procurou distanciar-se dos planos sanitaristas, mas a aproximação faz-se necessária e este artigo quer contribuir para demonstrar que o momento é favorável para este movimento: primeiro pela criação de uma macropolítica universal em saúde, que atende o sujeito integralmente - o que significa privilegiar o território onde se vive, utilizando de um dispositivo de rede, que possibilite uma maior resolutividade na transposição de um atendimento em saúde mental manicomial para um atendimento assistencial comunitário; em segundo, a aprovação da Lei 10.216/01,

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que regulamenta as internações psiquiátricas e propõe novos dispositivos de tratamento e moradias em saúde mental.

O direito igualitário à saúde está instituído em formas de leis. Cabe a nós, profissionais da saúde, fazer valer estes mecanismos para promover as ações de inclusão dos sujeitos que apresentam sofrimento psíquico nos dispositivos existentes na comunidade, seguindo os princípios estabelecidos pelo SUS.

Este trabalho tem como principal objetivo demonstrar a eficácia do acolhimento e tratamento de sujeitos que apresentam transtornos mentais e de comportamento, em uma unidade básica de saúde de um município de pequeno porte, localizado no Sul de Minas Gerais.

O sofrimento psíquico através de uma nova óptica de cuidado

Observa-se que a sensibilização da sociedade em relação aos transtornos mentais e de comportamentos ainda é incipiente. O preconceito e a discriminação têm inibido uma resposta mais abrangente e eficaz à loucura.

Segundo Paulillo (1999), a grande complexidade interna dos sujeitos humanos atrapalha o trabalho em relação à loucura, pois trabalhar com riscos exige abrir mão da busca da invariância, da lógica racional e dos discursos impositivos.

Richard Parker (1994) propõe a política da solidariedade como meio de tratar discriminações. Tendo compreensão da solidariedade como a percepção do diferente, como a capacidade da pessoa entender e identificar-se com a dor e o sofrimento do outro, apesar de diferenciá-lo de si próprio.

Quando nos colocamos no lugar de alguém para tentar entender seu ponto de vista, fica mais fácil compreender e aceitar as diferenças culturais, sociais, raciais, intelectuais ou afetivas, que sempre fizeram parte do convívio humano. O que está envolvido nesse processo é a construção de uma identidade, o desenvolvimento do senso de valor e, sobretudo, uma constante tomada de consciência. Aprende-se que cada indivíduo vê a vida de acordo com sua realidade, cada visão é única e legítima (FAGUNDES, 2010).

Segundo Piaget, a evolução dos seres vivos, o comportamento humano e a história do homem são processos dialético-probabilísticos resultantes da interação entre o organismo (animal/ homem) e o meio (sociedade); nada é inato (tudo está em construção) e nada é imposto de fora ao organismo, sem que este reaja (assimilação possível). Segundo Lima (1980), “a evolução da vida, em geral, é o resultado da permanente interação (sistema aberto) em que o organismo escolhe

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do meio os elementos que, incorporados, garantem sua sobrevivência; a iniciativa partindo, sempre, do organismo “ .

Somente se as crenças forem submetidas à discussão é que o pensamento hipotético-dedutivo se desenvolve, senão paralisa-se por falta de necessidade de reequilibrar-se. Ainda de acordo com Lima (1980), “a partir de certos estágios superiores do desenvolvimento, o homem e a humanidade só progridem com a liberdade.”

Para Piaget, a educação consiste em fazer criadores, inventores, inovadores. Para ele, todos os indivíduos, em maior ou menor grau, podem ser criadores e para isso não existem receitas nem métodos.

O que se propõe neste artigo é inovar no cuidado a sujeitos que apresentam transtornos mentais e de comportamento, é o deixar habitar, os dispositivos unificados de saúde, para que a loucura passe a fazer parte do cotidiano das Unidades Básicas de Saúde - UBS (atenção primária), das Unidades de Pronto Atendimentos – UPAS, hospitais gerais (atenção secundária), etc.

Trata-se de acolher, segundo Ferreira (2010). Aquele que busca o serviço deve sentir que chegou a um lugar que fará a diferença... que colocará fim à peregrinação por outros profissionais e serviços. Estabelecer um lugar de endereçamento e um laço. Acolher é acolher na escuta; escuta que possa identificar e privilegiar elementos que favoreçam o acolhimento particularizado que a situação impõe.

Muitas escolas de ensino superior, formadoras de opiniões, insistem em preparar os futuros especialistas em saúde, principalmente mental, em sistemas asilares fechados: hospitais psiquiátricos e manicômios judiciários. Esse é um dos fatores que dificulta o cuidado na rede de atenção à saúde. Muitos profissionais (trabalhadores do sistema) têm embasamento teórico, muitas vezes, distorcido do cuidado em saúde mental e insistem em repetir o que foi apreendido. Ao invés de darem suporte para a construção de uma nova política, preferem seguir a mesmice, o que está pronto e acabado, “pois fazer política é fazer o que não foi feito” (FERREIRA, 2010).

Os transtornos mentais e de comportamento, como qualquer outra doença, devem ser acolhidos e tratados nos dispositivos do SUS, principalmente, na rede básica municipalizada da saúde. Quando houver agravamento da doença, deverão ser tratados como tal e encaminhados a hospitais gerais para tratamento intensivo.

O fortalecimento da gestão municipalizada do SUS constitui uma estratégia fundamental para assegurar o acesso integral da população à promoção, proteção e recuperação da saúde. Tal fortalecimento depende, principalmente, da participação decisiva dos prefeitos e de seus secretários de saúde.

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Os municípios são gestores plenos da atenção básica ou do sistema em seus respectivos âmbitos. Concluir e consolidar essa municipalização da gestão do SUS é uma firme prioridade do Ministério da Saúde. As funções de coordenação, articulação, negociação, planejamento, acompanhamento, controle, avaliação e auditoria – inerentes à gestão do SUS – representam condições essenciais para o alcance da resolubilidade, qualidade e humanização das ações e serviços prestados à população, principalmente em saúde mental, alvo final de todos os esforços em curso.

Através da consolidação da rede municipalizada, dar-se-á continuidade a projetos na área da saúde mental. Demonstrarei através de um relato breve, um trabalho de sucesso realizado em um município de pequeno porte, Tocos do Moji, do interior do Estado de Minas Gerais.

Trata-se de uma cidade muito pequena, situada na região Sul do Estado de Minas Gerais, com população atual de 3.950 habitantes (Censo 2010). Desses, mais de 70% moram na zona rural.

Com uma topografia privilegiada, o município oferece atrações naturais como cachoeiras, trilhas e uma natureza exuberante, o que o coloca na rota do turismo ecológico, rural e de esportes radicais, integrando hoje o Circuito Turístico Serras Verdes do Sul de Minas, além de abrigar um povo simples e extremamente acolhedor.

A atividade agropecuária pode ser considerada a âncora econômica municipal, que impacta a economia local através das oportunidades de trabalho criadas e da renda gerada. É ela que, em grande parte, viabiliza a demanda, tendo forte influência sobre o desenvolvimento do comércio e dos serviços locais, que se estabeleceram de forma a atender as necessidades mais imediatas da população. A indústria de transformação, pouco desenvolvida no município, é caracterizada pela pequena agroindústria familiar e pelo artesanato.

Cabe destacar que o município, apesar de apresentar uma relativa diversificação produtiva, seja da atividade agropecuária, seja do artesanato, além de apresentar um rico potencial turístico, não internaliza os ganhos advindos desta produção. A agropecuária não é beneficiada localmente, sendo exportada in natura. O artesanato, especialmente o crochê, é todo comercializado por terceiros, fora do município. E grande parte da população economicamente ativa trabalha no município vizinho, conferindo a este, a condição de cidade-dormitório.

Em 2008, foi criado o plano local de saúde mental, o “BEM-VIVER”. Trata-se de uma ação da Secretaria Municipal de Saúde em conjunto com diversas instituições e serviços da área governamental e não governamental, que visa identificar e atender todas as pessoas que apresentam transtornos mentais e

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de comportamento, oferecendo atenção que garanta os direitos e promova a cidadania, de acordo com leis estaduais e federais. Trata-se de um trabalho intersetorial, “pois a rede somente se consolida se houver sensibilização dos outros dispositivos: corresponsabilidade (responsabilidade partilhada com os parceiros da rede)” (FERREIRA, 2010).

O plano tem como base a promoção da saúde, que consiste em proporcionar às pessoas os meios necessários para melhorar e exercer maior controle sobre si mesmas.

Modelo de assistência

O modelo de assistência em saúde mental realizado no município é norteado pelos princípios básicos do Sistema Único de Saúde: universalidade, integralidade e equidade. As ações são desenvolvidas na Atenção Primária, seguindo um modelo de redes de cuidado territorializada. A rede pressupõe diferentes serviços de saúde mental, que deverão atender diferentes necessidades e organizados a partir das seguintes diretrizes: acolhida, vínculo, responsabilidade e contrato de cuidados.

- Acolhida: corresponde ao desenvolvimento de ações que acolham todos os usuários que procurem os serviços, disponibilizando o atendimento e/ ou escuta imediata.

- Responsabilidade: diz respeito à responsabilização da equipe pela atenção integral dos sujeitos, considerando a especificidade de cada população: crianças, adolescentes, adultos, idosos/as, pessoas em situação de rua, pessoas institucionalizadas, etc..

- Vínculo: pressupõe a humanização da relação com o usuário, reconhecendo em cada um a capacidade crítica de escolha da modalidade de atendimento de melhor adequação às suas necessidades.

- Contrato de Cuidado: diz respeito à construção de um projeto de cuidados que considere a história de vida, a cultura e a singularidade de cada sujeito, suas interrelações na sociedade, reconhecendo o saber de cada um sobre suas potencialidades e fragilidades.

A base para o bom desenvolvimento da saúde mental no município deve-se à criação do Plano Municipal de Saúde Mental BEM-VIVER, onde se obteve o perfil

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epidemiológico do município e o índice de sujeitos que apresentam transtornos mentais e de comportamento.

O Plano visa à atuação transversal com outras políticas específicas, buscando o estabelecimento de vínculos.

O acolhimento do sujeito que apresenta transtornos mentais e de comportamento, independente da faixa etária, é realizado pelos agentes comunitários de saúde. Em seguida, há uma discussão do caso, entre a psicóloga (referência técnica) e a equipe do Programa Saúde da Família (PSF), quando se decide qual é a melhor abordagem para o sujeito. Após este primeiro momento de reconhecimento, é realizada uma triagem pela psicóloga, que pode ser na Unidade Básica de Saúde ou na própria residência. Dependendo do transtorno, é realizada psicoterapia em grupo ou familiar.

Se houver necessidade de medicalização, é realizado um agendamento com psiquiatras de municípios referências. Em casos de surtos psicóticos com risco de morte, o sujeito é encaminhado ao hospital geral, onde há leitos de retaguarda. A referência para outro hospital fica por conta do psiquiatra de plantão do hospital geral. Em caso de alta, o acompanhamento é realizado pela equipe do PSF, inclusive no controle de medicamentos e aplicação de psicofármacos injetáveis.

Quando se tratam de crises causadas pelo uso abusivo de substâncias psicoativas, encaminha-se para Unidades de Pronto Atendimento, onde é realizada a desintoxicação. Após remissão dos sintomas, o sujeito retorna à Unidade Básica de Saúde para tratamento psicoterápico, tendo como abordagem a terapia cognitiva comportamental, visando à diminuição de danos. O monitoramento é feito pelos agentes comunitários de saúde observando semanalmente seu desempenho nas atividades laborativas e se houve remissão, ou mesmo diminuição, no consumo de substâncias. Os agentes foram responsáveis pelo levantamento preliminar, através do cadastramento dos sujeitos que fazem uso contínuo de psicofármacos.

A equipe de saúde abraçou com muita propriedade a luta antimanicomial. Podemos observar isto através da diminuição significativa no número de internações psiquiátricas no município. O índice de internações psiquiátricas diminuiu consideravelmente: passou de 18 internações/ano para duas internações/ano, ou seja, redução de 90%.

Através do levantamento preliminar, constatou-se um uso abusivo e indiscriminado de psicofármacos pela população, principalmente benzodiazepínicos. Na farmácia básica, foi dispensado um total de 13.010 comprimidos no mês de setembro de 2008, sendo que 9,7% da população faz uso contínuo destes medicamentos.

Constatou-se, também, uso abusivo de álcool e tabaco pelo sexo masculino

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na faixa etária de 16 a 70 anos. Muitos utilizam o álcool durante o trabalho na lavoura de morango, que contém grande quantidade de agrotóxico.

Pensando neste histórico, cria-se o projeto: Viva a Vida Caminhando, que tem como objetivo conferir maior sustentabilidade e efetividade às ações de prevenção e controle de doenças crônicas não transmissíveis (tais como transtornos mentais e de comportamento) à população, através de articulação, promoção e implementação de atividades físicas moderadas de caráter regular e reeducação alimentar.

A prática assistencial não objetivou a eliminação de sintomas, nem tampouco a doutrinação dos pacientes para que abandonassem determinados padrões de comportamento. Mais do que uma preocupação com comportamentos desviantes, o principal alvo foi o ser humano em sua singularidade e subjetividade.

O uso de substâncias psicoativas, principalmente o álcool e o tabaco, acompanha a humanidade desde os primórdios de sua história e muitas vezes este uso faz parte da cultura e não desencadeia problemas. De acordo com Formigoni (2009, p.3), “isso dificulta lidar com o fato de que para cerca de 30% das pessoas, o uso se torna abusivo e gera problemas, entre eles: dependência, tolerância, sensibilização, crise de abstinência e fissura”.

Destacam-se como características centrais da proposta assistencial do projeto: interesse pelo sujeito em sua totalidade; atenção especial ao funcionamento psicodinâmico dos dependentes e seus familiares; promoção e implementação de atividades físicas moderadas de caráter regular e incentivo à alimentação saudável e balanceada. Estudos epidemiológicos e experimentais evidenciam a relação proporcional entre atividade física e benefícios psicológicos. Dentre os benefícios observados estão diminuição da ansiedade e do estresse; alterações na depressão moderada, alteração no estado de humor, na autoestima e em atitudes positivas.

Dessa forma, estimular a população a desenvolver um estilo de vida ativo representa um instrumento valioso na melhora dos padrões de saúde. Por outro lado, em termos de saúde pública, trabalhos recentes demonstram que o impacto mais benéfico da atividade física acontece quando ela é realizada em intensidade moderada.

A atividade física auxiliando a saúde mental já é algo conhecido de longa data, inclusive a máxima “mente sã em corpo são” (mens sana in corpore sano) exprime bem essa relação, significando o quanto os exercícios físicos nos levam a ter mente saudável. Os exercícios ajudam a oxigenar o cérebro: atuam aumentando o fluxo sanguíneo nos tecidos havendo, por conseguinte, aumento

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na oferta de oxigênio. Ao realizarmos exercícios, existe aumento na quantidade de hormônios circulantes no organismo, os quais aumentam o metabolismo e fazem nosso corpo “trabalhar” em ritmo mais intenso, deixando-o “treinado” para outros momentos em que necessitemos desse preparo físico. Hoje é sabido que o simples fato de caminhar libera endorfinas, substâncias que, entre outras coisas, diminui a sensação da dor (MONTEIRO, 2010).

Quando necessário, realizou-se também psicoterapia individual e/ou psicoterapia em grupo. Segundo Laplache e Pontalis (1986), psicoterapia no sentido lato, é qualquer método de tratamento das desordens psíquicas ou corporais que utilize meios psicológicos.

Já em relação ao tratamento de dependentes, Gois (1993) aponta a inconveniência da psicoterapia individual pelo fato desta reforçar no paciente a necessidade de mentir, uma vez que não está entre seus pares - o que não ocorre na psicoterapia em grupo, em que todos já viveram ou vivem essa experiência. Explica que esta atitude concorreria para criar uma relação assimétrica, o que levaria o paciente a se sentir discriminado ao se perceber em polaridades tais como: louco/careta, eu/eles, dependente/autoridade, paciente/profissional. Segundo o autor, “ao se aperceber dessas dicotomias, o paciente, em vez de se tornar responsável por sua cura e de colaborar ativamente, tornar-se-ia resistente ao tratamento, apresentando comportamentos transgressivos e desafiadores” (GÓIS, 1993, p.32).

Considerações finais

O acolher e cuidar do sujeito que apresenta sofrimento psíquico, através da prática de atividades físicas em grupo, possibilitou uma ação em que o sujeito esteve implicado integralmente no seu fazer, seja pelo gestual do corpo, pela expressividade plástica ou pelo movimento do fazer diferente.

É importante mencionar que o monitoramento contínuo do trabalho se faz necessário e deve ser realizado pela equipe e principalmente pelos usuários e familiares, ou seja, por todos os atores envolvidos no processo de controle/cura do sofrimento psíquico.

Esperamos com este artigo ter contribuído com aqueles que, da atenção primária em saúde, se dispõem a acolher, cuidar e tratar o paciente com sofrimento psíquico, numa igualdade com outros pacientes sem, contudo, desconsiderar suas diferenças.

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TECENDO A REDE DE SAÚDE MENTAL: A INTERSETORIALIDADE COMO APOSTA

Telma Orneles de Lima3

RESUMO

Este artigo relata uma experiência e aponta reflexões sobre a importância da construção do trabalho em redes e da intersetorialidade no cuidado ao portador de sofrimento psíquico, priorizando a reinserção social e o resgate da cidadania. Para isso, consideramos importante retomar conceitos e discursos acerca da loucura, os princípios e movimentos da Reforma Psiquiátrica, a Política de Saúde Mental, bem como aqueles sobre os equipamentos substitutivos no contexto brasileiro, acompanhado da discussão sobre o tecer de redes e intersetorialidade. Concluímos que é possível construir um novo modelo de assistência ao portador de sofrimento psíquico, usando estratégias que envolvam a comunidade e integrem o serviço, o usuário, a família e a sociedade em geral.

Palavras-chave: Saúde mental, intersetorialidade, trabalho em rede, reinserção social.

3 Psicóloga, pós-graduada em Saúde Mental: Família e Comunidade. E-mail: [email protected]

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Introdução

Em quase todas as sociedades o louco é excluído e recebe um status religioso, mágico, lúdico ou patológico. Segundo Foucault (1970), na Idade Média, na Europa, a existência dos loucos era admitida e mesmo em alguns momentos, quando se tornavam instáveis e se mostravam preguiçosos, era-lhes permitido vagar aqui e ali. A partir do século XVII, com a constituição da sociedade industrial, a existência de tais pessoas não foi mais tolerada, criando-se grandes estabelecimentos para internar todos aqueles que não podiam trabalhar.

Com o advento do capitalismo, durante o período final do século XVIII ao início do século XIX, a situação dos loucos mudou. O médico francês Philippe Pinel rompeu com as antigas práticas de internamento e instalou um duplo começo: o de um humanismo e o de uma ciência finalmente positiva. Com isso, os improdutivos (enfermos, velhos, ociosos e prostitutas) foram liberados. Por outro lado desmistifica-se a loucura e ela é trazida para o domínio do humano.

Os loucos ficaram nestes estabelecimentos considerados como pacientes cujos distúrbios tinham causas que se referiam ao caráter ou à natureza psicológica. Assim, Pinel define a alienação mental como doença, isolando os pacientes para que seus corpos e cérebros pudessem ficar em repouso, reprimindo qualquer tipo de manifestação de ideias. Essa era a base do tratamento moral, que propunha o isolamento do louco em instituição especializada. Dessa forma, o que foi um estabelecimento de internação transformou-se em um hospital psiquiátrico. Desde então, os distúrbios mentais tornaram-se objeto da Medicina e uma categoria social nascera, chamada Psiquiatria. A partir deste momento, a loucura recebe um status de doença mental.

No Brasil, no início do século XX, foram criadas no Rio de Janeiro as primeiras colônias de alienados4, e a partir das décadas de 1940 e 1950, dezenas dessas instituições asilares foram disseminadas por todo o País.

Após a Segunda Guerra Mundial, a sociedade dirigiu seus olhares para os hospícios e descobriu que as condições de vida oferecidas aos pacientes psiquiátricos ali internados, eram semelhantes às dos campos de concentração. Assim nasceram as primeiras experiências de reformas psiquiátricas.

No final da década de 1970, o Movimento dos Trabalhadores em Saúde 4 Lugares longe de centros urbanos onde os pacientes ficavam encarregados de trabalhos agrícolas e artesanais, com o objetivo de serem recuperados.

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Mental (MTSM) critica o saber psiquiátrico e busca uma transformação genérica da assistência prestada e, mais especialmente, das formas de segregação e de isolamento social em que viviam os pacientes. Nesse momento, inicia-se a construção da atual concepção de Reforma Psiquiátrica.

Com a proclamação da Constituição em 1988, cria-se no Brasil o Sistema Único de Saúde (SUS) e são definidas as condições institucionais para implantação de novas políticas públicas de saúde, incluindo a saúde mental. Na década de 1990, o Ministério da Saúde - a partir das recomendações da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) contidas na Declaração de Caracas5 - redefine a saúde mental na América Latina redirecionando os recursos da assistência psiquiátrica para um modelo substitutivo de base comunitária.

Na realidade do Médio Vale do Jequitinhonha, na região Nordeste do Estado de Minas Gerais, até o final de 2001, os familiares e os trabalhadores da saúde “tratavam” os seus pacientes portadores de sofrimento psíquico dentro da lógica manicomial, ou seja, tinham os manicômios como primeira opção de atendimento. Desta maneira, o tratamento realizado pautava-se na exclusão e na segregação.

Também sob a influência desta lógica, muitos pacientes eram estigmatizados como improdutivos, perigosos e incuráveis. Como tal, os pacientes psiquiátricos estavam sempre prestes a ser internados nos locais onde poderiam ser controlados, aguardando até que nova crise os levasse de volta a este lugar, que acabava sendo sua principal referência – o local de internação.

Entretanto, em 2002, a partir da contratação de uma referência técnica em saúde mental, o município de Itaobim, com aproximadamente 20.000 habitantes e sede de Microrregião de Saúde desenvolveu, com recursos próprios e ainda timidamente, ações voltadas para os portadores de sofrimento psíquico, dentro da lógica antimanicomial, com base na legislação e na consolidação de uma rede de serviços substitutivos ao modelo manicomial. Além disso, objetivou-se a promoção dos direitos de cidadania, a desinstitucionalização, a reinserção social e o cuidado ao portador de sofrimento psíquico junto à família e a comunidade.

Deste modo, este trabalho pretende apontar reflexões sobre a importância das ações em rede e intersetoriais no cuidado ao portador de sofrimento psíquico desse município, demonstrando que é possível promover saúde, inserção social e cidadania, mesmo com poucos recursos financeiros.

5 Documento aprovado na Venezuela, em 14 de novembro de 1990, como resultado da Conferência Regional para Reestruturação da Atenção Psiquiátrica na América Latina. Assinado pelo Ministério da Saúde, pela Organização Pan-Americana de Saúde e pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

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Essas reflexões nascem de uma experiência profissional, como referência técnica6 em saúde mental no período de 2003 e 2006. Para isso, fez-se necessário retomar conceitos e discursos sobre a loucura; os princípios e movimentos da Reforma Psiquiátrica; a Política de Saúde Mental; os equipamentos substitutivos no contexto brasileiro; e a discussão sobre o tecer de redes que impôs apurar o conceito de intersetorialidade.

Este trabalho baseou-se em análise de textos oficiais do Ministério da Saúde, da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais e de autores que ofereceram subsídios para a construção deste referencial teórico.

O modelo manicomial: o isolamento social e as práticas coercitivas

A exclusão é um fenômeno complexo e multidimensional que afeta diversas condições objetivas da vida de um cidadão, como trabalho, lazer, cultura e educação. Muitas pessoas ao longo de suas vidas sofrem algum tipo de discriminação, humilhação e segregação, que as impede de exercer e usufruir minimamente o que lhe é de direito. Existem contextos em que a exclusão social é marcante e nenhum direito é garantido. Ao lado da fragilização das políticas públicas, as pessoas não encontram na sociedade o espaço para serem sujeitos e se tornam socialmente vulneráveis.

As marcas deste fenômeno são ainda mais evidenciadas nas pessoas que fogem às regras estabelecidas, às normas, à moral e à chamada boa conduta. O louco - que ao longo de sua história fora considerado um ser dotado de poderes especiais - chega ao século XX sob o domínio da Psiquiatria, trancafiado em instituições ditas terapêuticas, que tornam a loucura objeto de estudo e “cura”, ou seja, como uma doença, anulando o sujeito.

Nestes hospitais psiquiátricos, o isolamento social e as práticas coercitivas eram principais ferramentas. Aqui o primeiro passo é colocar uma barreira entre o internado e o mundo externo, de tal forma que o paciente vai deixando tudo que é seu e assumindo o que é institucional.

No entanto, na segunda metade do século XX, surge um movimento que teve como alguns de seus propulsores a experiência da psicanálise, a inserção da saúde pública nas instituições psiquiátricas, as descobertas de medicamentos psicotrópicos e sua eficácia no tratamento de alguns transtornos mentais,

6 A função essencial da referência técnica em saúde mental é promover uma ação conjunta entre diferentes serviços e instituições e, com isso, criar uma rede de cuidados.

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e, especialmente, a luta dos trabalhadores. Nasce o movimento da Reforma Psiquiátrica, que se inicia na Itália com o psiquiatra Franco Basaglia, deslocando a loucura de uma compreensão individual ou familiar para o produto de uma sociedade que a precisa excluir.

A Reforma Psiquiátrica, que transcorre há mais de quatro décadas, é uma experiência que está acontecendo, que está em constante construção e exige um movimento permanente de resistência. Experiências ocorrem em diversos cantos do mundo, cada uma com suas peculiaridades, buscando alternativas para que não reproduzam ou mascarem a dinâmica manicomial.

Ao explicitar estas questões, não se almeja colocar o hospital psiquiátrico como o vilão da história da doença mental, uma vez que a causa do movimento antimanicomial vai muito além do fechamento do espaço físico.

Segundo Lobosque (1997), o hospital não é o único instrumento ou a única versão do dito modelo manicomial, porque mesmo sem manicômio a sociedade pode permanecer fortemente manicomial. Trata-se, pois, de certo modo de olhar, certo modo de saber sobre o louco, uma nova relação com a loucura e suas formas de abordá-la. Assim, para romper com este modelo é preciso gerar serviços territorializados e abertos, capazes de atender urgências e acolher pacientes em crise, tais como: Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) e Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAM), e, essencialmente, mudar o modo de pensar e tratar a loucura e o louco.

Notas sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil e em Minas Gerais

No Brasil, a Reforma Psiquiátrica surge mais tarde, na década de 1970, a partir do protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde mental, e este processo ainda está por se consolidar. Mas é somente em 2001 que a Reforma Psiquiátrica torna-se definitivamente uma política oficial, através da Lei 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, redirecionando o modelo assistencial em saúde mental e associando-o ao movimento do Sistema Único de Saúde (SUS) de ampliação de redes e a necessidade do ingresso da saúde mental. Vale destacar, ainda, que a Reforma tem trazido a reinserção do paciente em seu meio social como importante meta do tratamento, vedando a internação de pacientes em instituições com características asilares.

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Contemplando os avanços na legislação em saúde mental no âmbito nacional, o Ministério da Saúde, através da Portaria GM nº 336 de 19 de fevereiro de 2002, estabelece que os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS se constituirão nas seguintes modalidades de serviços: CAPS I, CAPS II e CAPS III7, definidos por ordem crescente de porte, complexidade e abrangência populacional.

Em Minas Gerais, vivenciamos nas décadas de 1960 e 1970 uma maciça proliferação das clínicas psiquiátricas privadas conveniadas com o antigo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS).

No ano de 1979, ocorreu na cidade de Belo Horizonte o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, marcado pela presença de Franco Basaglia e Robert Castel8. Este foi um momento decisivo para o movimento antimanicomial no Estado.

No que diz respeito à rede pública, Minas Gerais possuía três hospitais para adultos: Centro Hospitalar de Barbacena (CHPB) criado em 1903, Instituto Raul Soares (IRS) fundado em 1922 e o Hospital Galba Veloso (HGV) inaugurado em 1964. Este último funcionava basicamente como local de triagem e distribuição de pacientes previdenciários para a rede particular conveniada. Vale lembrar que foi no interior destas instituições psiquiátricas que se instaurou a contestação à situação vigente.

Ainda em Minas Gerais, em 1994, cria-se juridicamente o Fórum Mineiro de Saúde Mental (FMSM), caracterizado como um movimento social autônomo, constituído de técnicos, usuários, familiares e militantes ativos na luta antimanicomial.

Já em 18 de janeiro 1995, o Governo de Minas aprova a Lei 11.802, que dispõe sobre a promoção da saúde e da reintegração social do portador de sofrimento mental; determina a implantação de ações e serviços de saúde mental substitutivos aos hospitais psiquiátricos e a extinção progressiva destes; regulamenta internações e dá outras providências.

Por outro lado, mesmo com os avanços na política de saúde mental, na maioria dos municípios da região Nordeste do Estado de Minas Gerais o entendimento sobre a loucura e suas diversas manifestações reproduziu, até o início do século XXI, o pensamento manicomial, asilar e segregador das diversas culturas.7 Serviços abertos que prestam atendimento prioritariamente às pessoas com sofrimento psíquico grave e ou persistente, além de articularem com a rede de serviços da comunidade favorecendo a reinserção delas a este espaço.8 Sociólogo, professor e escritor nascido na França em 1933, trouxe importantes contribuições ao campo, sobre tudo por suas ideias sobre exclusão e desiqualdade social.

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A deportação de pacientes e sua internação em hospitais psiquiátricos de Belo Horizonte era a primeira opção de muitos familiares ávidos por uma solução ou um lugar onde pudessem colocar os seus entes queridos - já que não podiam contar com nenhuma política pública voltada para os casos de pacientes com transtorno mental.

Somado a isso, tínhamos a falta de informação e de empenho político para que as mudanças pudessem acontecer. Muitas pessoas foram levadas para manicômios e de lá não saíram ou, quando saíam, retornavam para o seu município e não tinham uma rede de apoio que os referenciassem e os acompanhassem. Desta forma, a reincidência hospitalar era bem expressiva, uma vez que o paciente permanecia no município perambulando pelas ruas, “perturbando a ordem social” e sofrendo todo tipo de violência.

Estes municípios estão compreendidos na Gerência Regional de Pedra Azul, compondo-se em sua jurisdição por 25 do Médio e Baixo Jequitinhonha. Segundo a lógica do Plano Diretor de Regionalização de Minas Gerais (PDR-MG) divide-se em três Microrregiões de Saúde, perfazendo população, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 2008, estimada em 314.580 habitantes.

Em Itaobim, sede de Microrregião de Saúde, no ano de 2002, a partir da decisão do Conselho Municipal de Saúde em conjunto com a gestão daquela época, foi deliberado que era imprescindível contratação de um profissional para realizar intervenções em saúde mental.

Na época, o município passava por mudança na gestão política e enfrentava muitos problemas financeiros e administrativos. Contava apenas com uma equipe do Programa Saúde da Família (PSF), que cobria 20% da população, e muitos casos que requeriam atenção especializada, como por exemplo atendimento psiquiátrico e neurológico, eram atendidos uma vez por mês através do Consórcio Intermunicipal de Saúde (CISMEJE), em municípios mais desenvolvidos.

As ações de saúde, bem como outros setores das políticas públicas, ainda estavam desarticuladas e em processo de estruturação. Conforme DATASUS/SIH9, as internações em hospitais psiquiátricos em 2002 perfaziam 41 pacientes e os gastos financeiros do SUS com estas internações, neste mesmo ano, foram de R$ 35.431,07.

9 Citado por SILVA, Z. S. 2008.

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Diante deste quadro, reafirmando a garantia dos direitos, foi oportuno refletir sobre a definição de estratégias que pudessem viabilizar, na realidade local, ações que promovessem o cuidado, a saúde e a inclusão social. Dentre essas estratégias, as redes sociais surgem como alternativas necessárias de enfrentamento, principalmente frente às manifestações da exclusão social.

A partir da noção de rede, considera-se a intersetorialidade como um princípio que orienta as práticas de construção de redes municipais. Assim, este princípio surge como alternativa que possibilita uma visão ampliada no conceito e ações em saúde.

Portanto, o conceito de gestão intersetorial e de rede cria novas possibilidades de intervenção, gerando em cada um de seus membros a participação que viabiliza a reconstrução da sociedade civil. Ocasiona a criação de respostas novas aos problemas sociais, tornando mais eficaz a gestão social, que se caracteriza por ser intersetorial, articulando instituições e pessoas para construírem projetos, recuperar a vida e a utopia (JUNQUEIRA, 2010). Compreendendo, assim, estratégias que ao longo do tempo do saber e das práticas compartilhadas e integradas, vão se consolidando como intersetoriais, respondendo com eficácia à solução dos problemas da população.

A prática de construção de redes sociais: a intersetorialidade

Em nosso contexto, a intersetorialidade apresenta-se como um dos eixos estruturantes das políticas públicas de saúde e se aproxima como parte integrante do que contemporaneamente vem se discutindo sobre o conceito cidade saudável:

A cidade saudável é aquela em que todos os atores sociais em situação – governo, organizações não governamentais, sociedade civil organizada, famílias e indivíduos – fazem uma aliança para transformar a cidade em um espaço de produção social da saúde, desenvolvendo os capitais humanos, social e produtivo, de forma sustentada, exercitando políticas públicas integradas e intersetoriais, incentivando a participação pública e reduzindo as iniquidades, de forma a melhorar a qualidade de vida dos cidadãos (MENDES, 1996 apud PAULA; PALHA & PROTTI, 2004, p. 334).

Entendemos que esta ideia é elemento central, capaz de articular vários setores, tanto onde as ações de saúde são ofertadas à população, como onde a

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dimensão é mais voltada ao planejamento, com potencialidade de articular setores fundamentais que podem desencadear mudanças mais efetivas e duradouras para o setor da saúde.

Intersetorialidade é aqui entendida como a articulação de saberes e experiências no planejamento, realização e avaliação de ações, com o objetivo de alcançar resultados integrados em situações complexas, visando um efeito sinérgico no desenvolvimento social. Visa promover um impacto positivo nas condições de vida da população, num movimento de reversão da exclusão social (JUNQUEIRA & INOJOSA, 2010).

Lobosque (1997) diz que, para a prática clínica operar no sentido contrário ao da exclusão, é preciso considerar três princípios: da singularidade, do limite e da articulação. Esta última, por sua vez, propõe estabelecer parcerias e articulações com outros segmentos que também buscam combater os diversos dispositivos de exclusão e que tenham posicionamento político incisivo em prol da cidadania.

Ainda segundo Lobosque (2001), várias parcerias podem se desenvolver pela via da intersetorialidade com as Secretarias Municipais e Estaduais, como por exemplo, do Desenvolvimento Social, da Educação, instituições e entidades tais como de Direitos Humanos e outros. A interlocução com as organizações não governamentais – ONGs - no campo da saúde mental traz muitos benefícios à rede.

Na atualidade podemos citar um avanço nesta perspectiva intersetorial: a realização da IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial, momento histórico conquistado a partir das mobilizações de vários segmentos da sociedade e concretizado na Marcha para Brasília10. Foram propostos três eixos, dos quais destacamos o dos Direitos Humanos e Cidadania como desafio ético e intersetorial (Eixo da Intersetorialidade). Nesta linha, tivemos o dever e o cuidado de debater e construir propostas que contemplassem questões como direitos humanos, cidadania, inclusão, seguridade social, geração de renda, justiça, entre outros.

10 Marcha dos usuários pela Reforma Psiquiátrica,” Brasília vai ouvir nossa voz!”, realizada em Brasília/DF, em 30 de setembro de 2009.

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Todas as questões apresentadas nos apontam para uma nova maneira de pensar a loucura no nosso meio, bem como para a produção de cuidado que tenta romper com qualquer forma de tratamento sustentada pelo fazer arcaico da exclusão, disciplinarização e isolamento. Para tanto, se faz necessário retomarmos o conceito de território:

Dessa forma, o território é um conceito central, norteador das ações a serem construídas pelo serviço. Ou seja, não há como pensar a construção do cuidado em saúde mental, tecida como estratégia em rede sem pensar no tempo e no lugar em que este cuidado se constitui. As estratégias do cuidado ao portador de sofrimento psíquico no interior da Amazônia serão diferentes daquelas produzidas na periferia de uma metrópole (YASUI, 2010).

O território aqui é entendido não como algo estático, mas como objeto

dinâmico, vivo, onde as interrelações acontecem. Um espaço que pode se caracterizar como geográfico, mas constitui-se essencialmente da relação dos cenários naturais, da história social dos homens, da cultura, política, economia e maneira peculiar como cada um ocupa determinado lugar. Pensar a saúde mental sob a lógica deste território é promover possibilidades de cuidado a partir de um olhar sobre as necessidades das pessoas.

Lobosque (2003) indica que para um serviço de saúde mental ser considerado como substitutivo deve constituir-se enquanto rede, funcionando como um conjunto de dispositivos e equipamentos, ações e iniciativas que permitem a extinção do hospital psiquiátrico. Conjunto este, que deve ter como registro as estratégias de uma política pública compromissada com a transformação dentro dos princípios de um Sistema Único de Saúde.

A intersetorialidade e a nossa experiência

O serviço iniciam suas atividades em 2002 com uma psicóloga que articulou parcerias importantes com diferentes órgãos e segmentos sociais, tais como: a rede de assistência à saúde e social, Secretarias de Cultura, Esporte e Lazer e Educação, Departamento de Agricultura, Ministério Público, Casa de Juventude (ONG), Grupo de Mulheres de Itaobim (GRUFEMI), igrejas (católica e protestante), comércio e rádio locais, além de pessoas da sociedade civil que se prontificavam ao trabalho voluntário.

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Tais parcerias foram fundamentais para o surgimento do Centro de Saúde Mental (CESAMI)11. Neste serviço eram oferecidas as seguintes atividades habituais: atendimentos individuais (acolhimento, consultas, psicoterapia) e familiar, visita domiciliar, além do atendimento psiquiátrico realizado quinzenalmente12.

Foram também desenvolvidas ações intersetoriais, no intuito de promover o cuidado às pessoas com sofrimento psíquico, principalmente, grave e persistente. Este cuidado compreendia acolhimento, responsabilização, inclusão, cidadania, referência, respeito, singularidade e prevenção. Para que estas ações acontecessem foram imprescindíveis articulações no território e com a rede.

Para o bom andamento do projeto de saúde mental, eram realizadas palestras e reuniões com pacientes, familiares, comunidade e trabalhadores da rede, bem como outras atividades integradas ao Programa Saúde da Família; atividades educativas e de lazer; oficinas terapêuticas e de geração de renda; treinamentos e capacitações.

Tais ações nos fizeram amadurecer nesta ideia e prática intersetoriais. Trabalhávamos com a noção mínima de que aquela pessoa louca era um cidadão com direitos e deveres e, principalmente, parte daquela sociedade.

Muitos usuários foram inseridos em escolas, comércio, nas festas tradicionais, em ONGs, associações e em outros momentos e espaços do território.

Por vezes, encontramos dificuldades, principalmente no manejo de alguns casos, na falta de comprometimento de alguns familiares no tratamento e no posicionamento preconceituoso de alguns cidadãos. Em 2003 fizemos nossa primeira manifestação do dia 18 de maio – Dia Nacional da Luta Antimanicomial.

Na época, estava sendo implantada mais uma equipe do Programa Saúde da Família (PSF) aumentando, assim, a cobertura populacional e a parceria com a equipe do CESAMI. Sempre acreditamos e investimos nesta articulação com a Atenção Primária.

11 Funcionando em espaço cedido, a princípio por uma associação vinculada à Igreja Católica, que contou com equipe composta por: psicóloga, auxiliar de enfermagem, assistente administrativo, auxiliar de serviços gerais.12 Em Teófilo Otoni via CISMEJE.

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Ainda que o serviço possuísse uma estrutura física específica, cuidamos para que tivesse uma relação estreita com a Atenção Primária e muitas ações eram desenvolvidas com equipes do PSF, aproveitando as suas potencialidades. Destacamos aqui a realização da I Semana da Saúde Integral e entendemos que:

… O Programa Saúde da Família ou Estratégia da Família possa ser, por assim dizer, já um programa de saúde mental. A diferença de outras modalidades com AMAS, ambulatórios de saúde mental, pronto atendimentos ou mesmo centros de saúde convencionais, os pacientes conhecem os médicos enfermeiros e agentes comunitários de saúde pelo nome e as equipes de saúde da família mantêm um vínculo continuado com essas pessoas. Fazem acolhimento, que é uma maneira de escutar o sofrimento de quem precisa quando precisa, dispõem de diversos dispositivos coletivos como grupos de caminhada, grupos de reciclagem de lixo, de ações culturais diversas. (LANCETTI,2010).

Ademais, garantimos a participação de alguns usuários e familiares em eventos, festas culturais e populares como: Forrobim e Festa da Manga; 3ª Conferência Municipal de Saúde; Conselho Municipal de Saúde; apresentação pública do Coral do CESAMI “Vozes que não querem calar”.

Como resultado e reconhecimento do nosso trabalho, vale registrar que no ano de 2005, o Serviço foi contemplado com o prêmio “José César de Moraes”, ficando entre os 10 melhores no Estado com experiência em saúde mental na Atenção Básica.

Muitos foram e têm sido os desafios. Trabalhar promovendo saúde mental requer mudanças tanto do ponto de vista físico, quanto no que diz respeito às nossas crenças, conhecimentos e práticas. No dizer de Lancetti (2009), com saúde mental trabalhamos com a noção de pirâmide invertida, pois ao contrário do restante dos procedimentos da saúde, quanto mais se transita no território mais a complexidade aumenta. E esta complexidade requer ações neste território, ricas em possibilidades.

Os resultados foram acontecendo: na clínica, na sociedade, na saúde, no sistema, na vida das pessoas. Segundo informação do DATASUS/SIH (apud SILVA, 2008), no ano de 2003, foram registradas 31 internações e, em 2004, apenas duas. Em 2005 e 2006 não houve internação.

Ainda segundo esta fonte, os gastos do SUS com internações em hospitais

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psiquiátricos em 2003 foram de R$ 23.022,35; em 2004, de R$ 1.725,15; e em 2005 e 2006 não houve gasto.

Vale citar também o credenciamento do CAPS em nosso município, projeto iniciado com este trabalho de saúde mental na Atenção Primária13.

Diante desta análise, acredita-se que os serviços substitutivos criados na região do Baixo e Médio Jequitinhonha contribuíram positivamente para a redução das internações psiquiátricas e, consequentemente, para o resgate da cidadania dos portadores de sofrimento psíquico, pois os anos em que se observa a redução, coincidem exatamente com o período em que a assistência foi implementada e o acesso melhorado (SILVA, 2008).

Considerações finais

Em muitos municípios de pequeno porte em Minas Gerais, onde a realidade é muito peculiar e bem diferente da dos grandes centros urbanos - tanto pelo número de habitantes, quanto pela dificuldade em manter uma equipe interdisciplinar ou ainda pelos poucos recursos financeiros disponíveis - há a possibilidade e o compromisso de ofertar assistência aos portadores de transtorno mental? Será que os muitos que são referenciados e atendidos no modelo CAPS, têm garantido o princípio da acessibilidade?

O que percebemos, a partir de nossa experiência em municípios pequenos, é que o modelo CAPS cria uma lacuna assistencial quando se trata de locais onde não é possível sua implantação. Mais ainda, municípios não contemplados com os CAPS passam a depender apenas da vontade municipal e ainda da iniciativa individual de alguns profissionais. O bom atendimento ao portador de sofrimento psíquico, na maioria das vezes, não conta se trata de uma política municipal de saúde, não tem incentivos dos outros âmbitos do Governo e persistem apenas como iniciativa individual, tendo como consequência a saída do profissional mais comprometido.

Os CAPS são mais que dispositivos, são concepções clínicas e políticas operando em determinado território. Portanto, mais que uma estrutura física e os recursos que nele são empregados, interessam a lógica, a forma de seu funcionamento no território.

13 Em 14/11/2006, PT/SAS/MS nº 845 de 14/1/2006, publicada no Diário Oficial da União no dia 15/11/2006.

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Verificamos trabalhos nos quais outras estratégias, além dos CAPS, estão sendo utilizadas, com sucesso como recursos de assistência ao portador de sofrimento psíquico, dentre essas, ações intersetoriais no território e sua utilização como estratégia de acompanhamento do Programa Saúde da Família.

Nos quatro anos de trabalho, as atividades variaram sempre de acordo com os recursos e necessidades percebidas nos determinados momentos. Constantemente havia atendimentos psicológicos individuais e em grupos; consultas psiquiátricas quinzenais; visitas domiciliares; e reuniões com as equipes do PSF. Porém, em diversas ocasiões trabalhamos em ações pontuais com o objetivo de tratar de determinados temas ou ainda “experimentar” uma nova forma de assistência.

A oficina terapêutica com a horta, por exemplo, funcionou por determinado período, inclusive com notável melhora dos pacientes envolvidos. Vale marcar, também, a criatividade no aproveitamento de recursos já disponíveis na comunidade, no próprio sistema de saúde ou outros setores do Governo, consolidando a proposta de intersetorialidade.

Consideramos aqui apontamentos e reflexões sobre as várias possibilidades de acolher e cuidar a “loucura”: muitos dispositivos construídos no território para prevenir e intervir nas doenças e sofrimentos psíquicos; recursos individuais e coletivos para trabalhar em prol da inclusão e da cidadania, em especial, da promissora parceria com as equipes do Programa Saúde da Família, que contribuiu para construção de novas maneiras de se fazer saúde mental, certamente antimanicomiais.

Assim, reiteramos nossa aposta na Reforma Psiquiátrica e, com ela, numa rede de cuidados que considere a loucura e o louco como parte integrante de sua comunidade, como quem a modifica, transforma e constrói com os demais cidadãos.

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A GESTÃO COLEGIADA COMO ESTRATÉGIA NA REDE DE SAÚDE MENTAL

Márcia Maria Rodrigues Ribeiro14

RESUMOEste artigo propõe apresentar algumas considerações sobre os desafios

com os quais se depara um gestor em saúde mental. Busca também apontar o componente dinâmico desta função, que deve promover uma gestão participativa, que busque fortalecer a política municipal de saúde mental e a articulação dos serviços em rede, contribuindo para os avanços na Reforma Psiquiátrica.

Palavras-chave: Gestão colegiada, planejamento, estratégia, dispositivo, saúde mental.

14 Psicóloga, especialista em Saúde Mental, trabalhadora da rede de saúde mental de Ribeirão das Neves desde 1997; coordenadora municipal de saúde mental de julho de 2007 a agosto de 2010.

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Introdução

Este artigo propõe uma reflexão sobre alguns dos desafios com que se depara um gestor em saúde mental. Busca, ainda, apontar que este lugar pode ter um componente dinâmico, sendo compreendido e construído em um contexto histórico. Essencialmente, visa discutir que a gestão colegiada pode ser uma ferramenta, uma estratégia, pois possibilita sair de um lugar solitário, angustiante e, ainda, centralizador de decisões e ações que historicamente coube ao gestor de políticas públicas e de serviços em rede. Propondo uma gestão participativa, que vise fortalecer a política municipal de saúde mental e o destino dos serviços em rede, a gestão colegiada se constitui no alvo de nossa preocupação.

O cotidiano de um gestor está em permanente construção, contribuindo com o fortalecimento da construção de um modelo de trabalho em consonância com a Reforma Psiquiátrica.

Considerando que a Reforma Psiquiátrica é um movimento que se iniciou na década de 1980, propondo um novo modelo no sistema de tratamento da doença mental, eliminando gradualmente a internação como forma de exclusão social, bem como delineando políticas de inclusão, a partir de redes de cuidados que acolham as crises. Contudo, trabalhar em sintonia, em uma rede de serviços territoriais de Atenção Psicossocial, de maneira a inserir a pessoa que sofre de transtornos mentais à comunidade impõe que o gestor em Saúde Mental, além de buscar seguir e consolidar esta filosofia e modelo, deve ser capaz também de reconhecer e aprender a lidar com a política local e suas inerentes oscilações. O plano da política de saúde mental em um município deve ser pensado considerando um planejamento para curto, médio e longo prazos.

Ocupar o lugar e a função de gestor público nos provoca e estimula a desenvolver habilidades para gerir e conduzir um trabalho em equipe.

Vale lembrar que uma rede de saúde mental é composta pelos serviços de urgência/crise (CAPS – Centro de Atenção Psicossocial) e serviços voltados para ações territoriais junto à Atenção Primaria. A Atenção Primária oferece os primeiros cuidados à saúde, constituindo-se na porta de entrada para a rede de saúde mental, sendo o primeiro nível de contato dos usuários, de sua família e da comunidade com o sistema de saúde, levando esta atenção o mais próximo possível do local onde as pessoas vivem e trabalham, tornando-se o primeiro elemento de um processo de atenção continuada à saúde.

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A Reforma Sanitária Brasileira e a participação de muitos nas decisões de políticas públicas

Resgatando um pouco da história da saúde pública brasileira, pode-se dizer que há uma tendência de descentralização das políticas públicas, consolidada no Brasil através da Constituição Federal de 1988, que inaugura um novo marco no processo de gestão das políticas sociais do Estado.

Um dos grandes diferenciais é a participação popular na gestão pública, como bem destaca Silva (2003, p.1): “A questão da participação passa a ser um elemento fundamental no processo decisório das políticas públicas, especialmente no caso da política setorial de saúde”. A participação do gestor somada a do trabalhador, usuário e comunidade passa a ser uma prática cada vez mais frequente nas decisões de políticas públicas.

O processo de Reforma Sanitária Brasileira15 se caracteriza pelo conjunto de ideias que se tinha em relação às mudanças e transformações necessárias na área da saúde. Essas mudanças não abarcavam apenas o sistema, mas todo o setor Saúde, introduzindo uma nova ideia na qual o resultado final era entendido como a melhoria das condições de vida da população.

Sabemos que este movimento nasce dentro da luta contra a ditadura e, na década de 1960 e início da década de 1970, surge a base teórica do pensamento médico social, atravessado pela abordagem marxista da saúde.

Tal Reforma embasa os princípios do SUS, elencados a seguir: o princípio da universalidade - a promoção de saúde para todos, com base na máxima constitucional de que a saúde é um direito de todos e dever do Estado; o princípio da equidade - todos devem ter igualdade de oportunidade em usar o sistema de saúde em todos os níveis, buscando superar os obstáculos físicos, culturais, sociais ou individuais; e o princípio da integralidade – em que cada pessoa é um

15 Considerado “o eterno guru da Reforma Sanitária”, Sergio Arouca costumava dizer que o movimento da reforma sanitária nasceu dentro da perspectiva da luta contra a ditadura. Existia uma ideia clara na área da saúde de que era preciso integrar as duas dimensões: ser médico e lutar contra a ditadura... Essa mudança começou no final dos anos1960 e início dos 1970 – o período mais repressivo do autoritarismo no Brasil – quando se constituiu a base teórica e ideológica do pensamento médico-social, também chamado de “abordagem marxista da saúde” e “Teoria social da Medicina”. ... A forma de olhar, pensar e refletir o setor saúde nessa época era muito concentrada nas ciências biológicas e na maneira como as doenças eram transmitidas. Há uma primeira mudança quando as teorias das ciências sociais começam a ser incorporadas. Essas primeiras teorias, no entanto, estavam muito ligadas às correntes funcionalistas, que olhavam para a sociedade como um lugar que tendia a viver harmonicamente e precisava apenas aparar arestas entre diferentes interesses. A grande virada da abordagem da saúde foi a entrada da teoria marxista, o materialismo dialético e o materialismo histórico, que mostra que a doença está socialmente determinada.

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ser integral e, portanto, as ações, sejam individuais ou coletivas, preventivas ou curativas, básicas ou complexas, devem contemplar o ser humano de forma global. Citamos, ainda, o princípio da regionalização/hierarquização, que é a estratégia de organização do território com base em uma carteira de serviços a ser prestada nos vários níveis de hierarquização dos serviços de saúde; o princípio de descentralização, visando levar o cuidado em saúde o mais próximo possível do cidadão, facilitando o acesso aos dispositivos da atenção; o princípio do controle social/participação popular – os usuários participam da gestão do SUS por meio das Conferências de Saúde, que ocorrem a cada quatro anos em todos os níveis, e dos Conselhos de Saúde, que são órgãos colegiados também em todos os níveis. Nos Conselhos de Saúde ocorre a chamada paridade: enquanto os usuários têm metade das vagas, o Governo tem um quarto e os trabalhadores outro um quarto, promovendo uma nova matriz de gestão das políticas públicas. Estes eixos norteadores são importantes para sinalizar para o gestor de saúde mental, que ele está inserido no Sistema Único de Saúde – que acredita é na participação e no envolvimento de todos, para que ocorram mudanças e avanços.

Gestão Colegiada: porta aberta à participação nas decisões

Consideramos que o processo de gestão colegiada - na perspectiva e nos moldes propostos pelo Sistema Único de Saúde - viabiliza a possibilidade de construção de um novo fazer e agir políticos. Ou seja, que o engajamento e participação dos envolvidos são fundamentais para a educação em saúde e para o saber coletivo, onde mais pessoas dividem e multiplicam seus conhecimentos, ações e destinos.

Buscando a contribuição da educação com sua experiência na definição de Gestão Colegiada, podemos nos reportar a Wittmann & Cardoso (1993) com suas considerações. Para os autores, a Gestão Colegiada é um processo no qual todos os atores envolvidos estão em constante mudança:

Consideramos que “participar” envolve a ideia de aderir a um movimento no sentido de alcançar um objetivo comum, e que “partilhar” envolve a ideia de promover ou possibilitar essa adesão. Essas ideias são inseparáveis em relação à gestão compartilhada ou administração participativa: Nada é compartilhado se não há quem participe (WITTMANN & CARDOSO, 1993, p. 110).

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Ainda visitando estes autores, vamos recolhendo suas indicações:

(...) A participação tem função educativa em vários sentidos, [...], aprendizagem da própria participação; [...] oportuniza a convivência de pessoas e o trabalho em grupo, propiciando novas percepções e ampliando a consciência da pessoa em relação ao próprio meio (WITTMANN & CARDOSO, 1993, p. 115).

Para os autores, compartilhar a gestão significa compartilhar o poder; o que tem como implicação importante que este não fica restrito a uns poucos.

A gestão colegiada apresenta-se como uma importante ferramenta para a efetividade da política pública, pois incentiva a participação e comprometimento de todos os atores sociais envolvidos no processo. Quando consideramos a gestão em saúde mental, esta ferramenta pode causar nos seus participantes envolvimento e comprometimento importantíssimos para o amadurecimento tanto de quem está na liderança, quanto como para os liderados.

Prais (1994) no seu livro A administração Colegiada na Escola Pública, chama atenção para posição do gestor diante desta nova forma de gestão, na qual a construção e a divisão de responsabilidades vêm seguidas da dimensão política e pedagógica das ações construídas e transformadas:

A novidade da proposta reside em exigir do administrador-educador que ele compreenda a dimensão política de sua ação administrativa, que se respalda na ação colegiada, rompendo com a rotina alienada do mando impessoal e racional da burocracia, que permeia, ou melhor, cimenta a dominação das organizações modernas (PRAIS, 1994, p. 60).

Prais nos diz, ainda, que a administração colegiada pode ser entendida como fenômeno educativo, na exata medida em que se firma como exercício

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participativo do processo decisório escolar, efetivando uma prática de democratização institucional. Ainda segundo a autora:

A participação favorece a experiência coletiva ao efetivar a socialização de decisões e divisão de responsabilidades. Ela afasta o perigo das soluções centralizadas e dogmáticas desprovidas de compromisso com os reais interesses da comunidade escolar, efetivando-se como processo de cogestão. A participação constitui-se, pois, em elemento básico de integração social democrática” (PRAIS, 1994, p. 84).

Desta maneira, a gestão colegiada pode se constituir em uma mediação política necessária e importante ao amadurecimento e formação das pessoas envolvidas no processo de construção de uma prática que visa à autonomia, à inclusão e ampliação de percepção mais globalizada e, ao mesmo tempo, promove mudanças no dia a dia de cada trabalhador. Este processo acaba exigindo mudança no papel e na função do líder.

A reorganização e o desenvolvimento de uma estratégia de gestão dependem, pois, do envolvimento dos atores. Diante de uma nova proposta é necessário também esquecer alguns hábitos ultrapassados para aprender a redefinir melhor as suas potencialidades e seus objetivos, e assim ir além, para apreender toda uma proposta de gestão que busque estar em sintonia com a reforma psiquiátrica.

Com a participação do grupo gestor e dos trabalhadores da rede, os projetos, propostas, princípios e diretrizes do plano local de saúde mental serão conhecidos e reconhecidos por todos e, assim, garantindo que outras pessoas possam acompanhá-los e monitorá-los, para que as ações tenham continuidade.

Segundo Faria (2003) “...a gestão colegiada pressupõe que o grau de responsabilidade de um trabalho diante de suas atividades é proporcional ao seu grau de autonomia e de voz ativa”. Construir uma Gestão Colegiada possibilita delegar responsabilidades, o que provoca maior comprometimento com a proposta de trabalho por parte dos profissionais e a multiplicação desta para toda rede de saúde mental, o que pode tornar o organograma mais horizontal, além de sinalizar que, numa construção coletiva, o envolvimento dos usuários e seus familiares é de extrema importância para a construção de uma proposta de trabalho.

Planejamento Estratégico: instrumento de mudanças

Todo trabalho, toda ação a ser desenvolvida, deve contar com um

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planejamento. Para que isso ocorra, é necessário definir as prioridades e os objetivos a serem alcançados. O planejamento é um importante instrumento a ser utilizado quando se pretende fazer mudanças. A gestão em saúde mental deve ficar atenta no sentido de buscar recursos para estar, cada vez mais, ampliando a atenção e o cuidado aos seus usuários. O verdadeiro gestor deve estar sintonizado com o seu tempo e acompanhar a evolução, com o interesse de buscar alternativas que possam lhe dar subsídios de como trabalhar.

Lançar mão do planejamento estratégico nos remete a sermos protagonistas do nosso fazer, pois temos que responder e entender: “Quem somos? Onde queremos chegar? Qual a avaliação dos fatores externos? E como atingiremos nossos objetivos?”. Faz-se necessário que todas as pessoas envolvidas na organização participem deste processo e se sintam parte dele. A participação dos atores é de fundamental importância, independente da sua função, pois apenas desta maneira, os resultados esperados poderão ser alcançados.

Participar deste processo é se colocar disponível para viver uma mudança. Participar do planejamento estratégico nos permite lidar com questões complexas, trabalhar com as incertezas e fazer escolhas necessárias para que de fato façam diferença no trabalho desenvolvido. Definir a missão de tal forma que leve a também a definir os nossos objetivos, considerando um planejamento de curto, médio e longo prazos. Esta ferramenta institui um modelo que auxilia a organização a entender sua situação presente, como planejar o que deseja, mesmo vivenciando varias turbulências. Mas para que isso aconteça é necessário disciplina, continuidade e acompanhamento das ações.

Buarque (2006) alerta para o fato de que esta ferramenta pode contribuir na ordenação e sistematização de nosso fazer, e ressalta que:

O planejamento é uma ferramenta de trabalho utilizada para tomar decisões e organizar as ações de forma lógica e racional, de modo a garantir os melhores resultados e a concretização dos objetivos de uma sociedade, com os menores custos e no menor prazo possível (BUARQUE, 2006,p. 1).

O autor nos diz que o planejamento é também um processo ordenador e sistemático de decisão, o que lhe confere conotação técnica e racional de formulação e suporte para a escolha da sociedade. Segundo Buarque (2006), “o planejamento incorpora e combina uma dimensão política e uma dimensão

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técnica, constituindo uma síntese técnica-política” (BUARQUE, 2006, p. 3).As mudanças em um processo de trabalho podem ocorrer durante o

percurso, ou seja, não precisamos parar tudo para iniciarmos as mudanças. Na gestão pública, varias ações são focadas simultaneamente e aprendemos a lidar com estas variáveis. É importante planejar, definir as prioridades e buscar novos conhecimentos para ir sempre aperfeiçoando os novos planejamentos.

Participar do planejamento, da organização e execução da gestão colegiada significa assumir o espaço de autonomia, viabilizado por esta nova forma de gestão. O envolvimento do gestor local vai ser mais significativo, quanto mais forte for a organização da equipe e seu desejo de buscar um projeto coletivo que envolva o fazer local com uma compreensão global. Em uma gestão colegiada, com a descentralizado o poder, o empoderamento das pessoas no processo pode promover mudanças num grupo de trabalho e em toda uma comunidade.

Acredito que a gestão deve partir de um conhecimento claro e profundo do seu plano local de saúde mental e do contexto onde este se encontra inserido. Saliento que um dos fatores para o sucesso do planejamento está em dividir informações, multiplicar o envolvimento na elaboração e aplicabilidade do plano estratégico em todos os níveis, tanto para motivar quanto para que todos os envolvidos tenham clareza de seu papel e possam nortear seu comportamento em situações novas ou de crise.

A Gestão Colegiada como dispositivo

Pensar a Gestão Colegiada como um dispositivo é acreditar que esse modelo pode aumentar os laços entre os trabalhadores em saúde mental e o seu próprio trabalho, mostrando a eles a sua importância para o cumprimento global da missão institucional e democratizando as tomadas de decisões. Não somente o poder será compartilhado, mas também a responsabilidade e os meios para a resolução dos problemas. As pessoas passam a fazer parte de uma construção coletiva, que busca dividir e construir saberes e fazeres.

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Agambem (2009) nos traz a dimensão do que é um dispositivo e de sua função, a partir de Foucault:

O dispositivo em si mesmo é a rede que estabelece entre esses elementos. [...] tem sempre uma função estratégica. [...] resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber. (...). O dispositivo tem, portanto, uma função eminentemente estratégica [...] Um conjunto de estratégias de relações de forças que condicionam certos tipos de saber e por ele são condicionados (AGAMBEM, 2009, p. 26-28).

Ainda segundo o autor, tanto o uso comum quanto o foucaultiano parecem remeter a um conjunto de práticas que têm “o objetivo de fazer frente a uma urgência e de obter um eleito mais ou menos imediato” (AGAMBEM, 2009, p.34).

Para Agambem (2009), tanto quanto para nós, o dispositivo, deve levar em consideração as subjetividades e o sujeito:

Os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetividade, isto é, devem produzir o seu sujeito (AGAMBEM, 2009, p. 36). Na raiz de todo dispositivo está, deste modo, um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada, constituem a potência específica dispositivo (AGAMBEM, 2009, p.44).

O dispositivo tem, portanto, esta dimensão do envolvimento, da subjetividade e do desejo de “fazer parte”. Quando se propõe uma ação conjunta é necessário que os membros estejam envolvidos, bem informados, para que assim possam promover mudanças no processo. Mesmo representando serviços distintos, cada membro do colegiado pode, deve apoiar e sugerir soluções, a partir da experiência de cada serviço. Considerando que as propostas que combinam - de forma planejada - diferentes tipos de ações, podem ter melhores resultados do que aquelas desenvolvidas através de apenas um tipo de planejamento.

Resgatando a história da saúde mental em Ribeirão das Neves

Contextualizando a importância da gestão colegiada para a melhoria dos processos de trabalho, resgato a história e as mudanças organizacionais ocorridas

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na gestão de saúde mental do município de Ribeirão das Neves, após a implantação do modelo de Gestão Colegiada.

Para alcançar tal objetivo, foi realizado um estudo de caso neste município, localizado na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a 32 km da Capital e com 296.376 habitantes (IBGE, 2010). Os dados para a pesquisa foram coletados através de resgate histórico do processo de gestão em saúde mental da Secretaria de Saúde em documentos e registros internos.

Apesar da dificuldade de encontrar os registros, foi possível constatar que a gestão passou por três momentos distintos. Inicialmente, o modelo de gestão era fragmentado. Em 1992 existia uma equipe constituída por sete profissionais que elaboraram o primeiro Projeto de Saúde Mental Municipal. Neste período, o serviço encontrava-se assim estruturado: dois psicólogos atuando em dois serviços isolados; três psicólogos, um assistente social e um psiquiatra em outro serviço, que por alguns anos foi considerado referência em saúde mental por ser a única unidade de saúde que possuía uma equipe com este tipo de atendimento específico. Em 1996 foi criado o cargo de coordenador de saúde mental, passando a saúde mental a receber apoio da política municipal. Começou a ampliação da rede de saúde mental com o registro do Núcleo de atenção Psicossocial - NAPS junto ao Ministério da Saúde e a criação do Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil - CAPS I.

A gestão se apresentava centralizada na figura do Coordenador Municipal de Saúde Mental. Em 2003, foi criada a figura da referência técnica, apoiando e promovendo a ampliação da atuação da Coodenação.

Houve a implantação de mais um dispositivo, o Centro de Atenção Psicossocial para Usuários de Álcool e Outras Drogas (CAPS ad) - e a ampliação das ações de saúde mental na Atenção Primária. A gestão passa a ser organizada em um modelo de Gestão Colegiada, promovendo a aproximação com todos os gestores locais e com a rede. A metodologia utilizada foi a de reuniões locais e semanais nos dispositivos de saúde mental; reuniões quinzenais com os gestores locais; reuniões mensais com a equipe de matriciamento; e reuniões mensais com a toda a rede de saúde mental com o gestor municipal.

Esta experiência nos ensinou que, propor uma gestão colegiada é promover um espaço de construção, discussão e elaboração coletivas fundamentais para o amadurecimento da rede de saúde mental, garantindo a sustentabilidade de uma Política de Saúde Mental para o município.

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Gestão Colegiada como estratégia

Podemos tomar a gestão colegiada como um dispositivo de construção da Rede Pública da Saúde Mental. A Gestão Colegiada é uma estratégia fundamental para o fortalecimento das ações em saúde mental. É acreditar que pessoas trabalhando juntas por um mesmo objetivo podem contribuir para o fortalecimento da Política Nacional de Saúde Mental. Cada membro deste grupo de trabalho é peça fundamental para multiplicar as ações e garantir a continuidade do trabalho, construindo assim, uma verdadeira rede.

Para Zapata (2007, p. 16) “...redes são novos arranjos socioinstitucionais com características de articulação e participações sociais. As redes promovem novos relacionamentos políticos de um poder publico em ampliação”.

Com os novos arranjos, a gestão colegiada ganha dinamismo quando estabelece a troca e viabiliza a mediação entre autonomia relativa e necessidade de integração e de coordenação de cada parte com o todo. E para que a mudança se efetive, é necessário que a gestão colegiada estimule a descentralização do poder, à medida que amplia a corresponsabilidade pelos resultados e pelo uso dos recursos, assim como a expressão e criatividade dos sujeitos acerca de sua prática profissional.

Apostar em uma gestão colegiada atuante, com objetivos claros, onde os seus membros demonstram ter consciência de seu papel, de sua função e de qual é o seu poder de gestão, é potencializar avanços e o fortalecimento da rede de saúde mental. É também sair da posição centralizadora, solitária e angustiante, para promover uma saída democrática e participativa.

Considerações finais

A gestão colegiada, enquanto dispositivo de decisão coletiva, propicia maior força ao conjunto de ações implementadas em saúde mental e, por conseguinte, a perspectiva de continuidade destas ações. Ele coloca o gestor mais próximo do seu grupo de trabalho, minimizando assim o sentimento de solidão e isolamento.

Uma gestão planejada, organizada e com funções definidas tem mais chances de continuar a produzir efeitos para além da pessoa que ocupa a função de gestor. Para tanto, deve ter missão e objetivos claros, ser organizada de tal forma

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que a gestão seja reconhecida pelas pessoas que usufruem dos seus cuidados.Considerando que os lugares são passageiros, mas as funções ficam, quanto

mais planejada e sólida for a gestão, seu trabalho poderá permanecer - já que os gestores do SUS ao aventarem a possibilidade de substituir ou eliminar uma organização, terão antes de avaliar o desgaste político de enfrentar um grupo coeso e articulado e uma rede de cuidados bem tecida.

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MUDANÇA DO MODELO ASSISTENCIAL EM SAÚDE MENTAL: DESOSPITALIZAÇÃO E FORTALECIMENTO DA REDE

Luciana Santos16

RESUMO

Uma das dimensões da Reforma Psiquiátrica Brasileira é a substituição do hospital psiquiátrico por serviços substitutivos comunitários. Este estudo foi realizado com o intuito fr conhecer a assistencial destinada ao tratamento do portador de transtorno psíquico na região de Alfenas, que teve o descredenciamento pelo SUS de um hospital psiquiátrico. Como resultado da pesquisa, verificou-se a ampliação de serviços substitutivos no município-sede foram implantados oito serviços residenciais terapêuticos, um centro de convivência, oficinas terapêuticas nas unidades de estratégia de Saúde da Família e a disponibilização de um profissional de nível superior para ser referência no matriciamento das equipes de Atenção Primária à saúde. Ao final do estudo, pode-se concluir que os avanços foram muitos, porém, há ainda desafios a serem superados para a melhoria da qualidade da assistência ao portador de sofrimento psíquico. O estímulo dos gestores municipais de saúde para a implantação de serviços substitutivos tem se mostrado fundamental para a ampliação da rede.

Palavras-chaves: Saúde mental, Reforma Psiquiátrica Brasileira, serviços substitutivos, modelo assistencial de saúde.

16 Enfermeira, especialista em Política e Gestão da Saúde, referência técnica em saúde mental na Superintendência Regional de Saúde de Alfenas da SES/MG.

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Introdução

O processo de transformação das práticas no âmbito da saúde mental, assim como a efetivação dos pressupostos do Movimento de Luta Antimanicomial, a partir da Reforma Psiquiátrica, implicaram mudanças em diversos âmbitos: do teórico ao cultural, passando pelo campo de construção de políticas e modelos de atenção. Busca-se não só constituir novas práticas no campo da assistência à saúde mental como também produzir transformações no que diz respeito ao lugar social dado à loucura, ao diferente, questionando uma cultura que estigmatiza e marginaliza determinados grupos sociais (KODA & FERNANDES, 2007, p. 28).

A desinstitucionalização é um processo social complexo, que deve envolver todos os atores sociais, visando modificar a forma de organização das instituições psiquiátricas, criando estruturas que venham substituí-las. Isto requer, sem dúvida, a construção de uma nova política para a saúde mental no País (ROTELLI, 1992 apud SADIGURSKY& TAVARES 1998).

O portador de sofrimento psíquico foi atendido por muitos anos exclusivamente em hospitais psiquiátricos, que existiram como única alternativa de assistência para pacientes e familiares. Com a Reforma Psiquiátrica, o modelo hospitalocêntrico deu lugar a serviços extra-hospitalares e interdisciplinares de assistência, tendo objetivo a redução progressiva de leitos em hospitais psiquiátricos, substituição dos leitos em hospiais psiquiátricos pelos de hospitais gerais e a promoção da saúde mental com a integração com outros programas de saúde, por exemplo com a estratégia do Saúde da Família.

Estes serviços de atenção substitutivos ao hospital psiquiátrico são fundamentais ao portador de sofrimento psíquico visando à melhoria de sua qualidade de vida.

Este estudo tem como objetivo realizar um diagnóstico situacional da rede de saúde mental de uma região de saúde, que teve como característica principal o descredenciamento de um hospital psiquiátrico, e identificar as dificuldades encontradas para a implantação dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico e a articulação entre os mesmos.

Trata-se de um estudo descritivo no qual foi utilizada a análise de documentos existentes na Secretaria de Estado de Saúde em nível regional, sendo esta a principal fonte de dados. A coleta dos mesmos foi realizada pela própria pesquisadora em documentos na Secretaria de Estado de Saúde e em Portarias Ministeriais que credenciam serviços pelo Ministério da Saúde.

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O modelo de atenção ao portador de sofrimento psíquico

O modelo de atenção ao portador de sofrimento psíquico tem sido marcado por transformações, passando de um modelo centrado no hospital psiquiátrico para um de atenção diversificado com base territorial comunitária (ESCUDEIRO & SOUZA, 2009).

Estes serviços comunitários buscam aproximar, integrar e vincular afetivamente os equipamentos e trabalhadores da saúde às pessoas e comunidades, e priorizar práticas de promoção, prevenção e educação em saúde, visando romper com a centralização hospitalar e ambulatorial e com a inércia das práticas curativas (MONDONI, 2010 & ROSA, 2007).

A Reforma Psiquiátrica é definida como um processo político e social complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos governos federal, estadual e municipal, nas universidades, no mercado dos serviços de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoas com transtornos mentais e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário social e da opinião pública (BRASIL, 2005).

Lima & Silva (2004) indicam que a Reforma Psiquiátrica tem como meta importante a reorganização dos hospitais psiquiátricos, substituindo a prática assistencial do modelo clínico-biológico, hospitalocêntrico, de tradição asilar e segregadora do doente mental, para uma cultura de reabilitação do usuário por meio da construção dos serviços substitutivos voltados para a humanização do atendimento.

As autoras ainda ressaltam que, para a efetivação de mudanças, “torna-se fundamental a participação dos profissionais, a ênfase no trabalho em equipe multiprofissional e interdisciplinar” para a efetivação de um modelo de assistência orientado para a melhoria da qualidade da atenção à saúde, a garantia de acessibilidade aos serviços e a maior resolubilidade das ações de saúde.

Zambenedetti (2009) nos diz que o processo de substituição do hospital psiquiátrico por uma rede de atenção em saúde mental envolve muito mais do que o simples deslocamento dos espaços de cuidado, envolvendo uma complexa mudança de paradigmas e de práticas no campo da saúde mental.

A Reforma Psiquiátrica no Brasil é compreendida como “um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais”. Entre os

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principais desafios da reforma psiquiátrica está o fato de que 3% da população necessita de cuidados contínuos em saúde mental, em função de transtornos severos e persistentes, o que exige uma rede de assistência densa, diversificada e efetiva. Somado a isso, aproximadamente de 10% a 12% da população não sofre transtornos severos, mas precisa de cuidados em saúde mental na forma de consulta médico-psicológica, aconselhamento, grupos de orientação e outras formas de abordagem. Isso, consequentemente, demanda uma rede assistencial ampla e integrada.

Para Zambenedetti & Perrone (2008), diferentes estratégias atualizadas na construção da rede de atenção em saúde mental podem envolver a implementação de serviços substitutivos especializados; implementação de ações de saúde mental na Atenção Básica; construção de práticas como o apoio matricial, a supervisão de casos e o atendimento conjunto, realizado entre serviços especializados e de Atenção Básica; e, ainda, a criação de equipes volantes.

Desse modo, a inserção social do portador de sofrimento psíquico deve englobar a relação que se estabelece entre usuário, equipe e família, e entre estes e a comunidade. A mudança de papéis, a democratização das instituições, o envolvimento e responsabilização da comunidade devem somar-se aos objetivos técnicos do atendimento. O objeto de intervenção torna-se mais complexo, interdisciplinar, e as práticas e saberes tradicionais, que necessitam ser reconstruídos para responder a essa transformação (WETZEL& KANTORSKI, 2004).

Santos & Silveira (2009) assinalam que são criados os Programas de Saúde Mental para a implantação do novo modelo assistencial extra-hospitalar, composto por serviços agenciadores e estratégicos: os centros de saúde, os ambulatórios, os Núcleos/Centros de Atenção Psicossocial (NAPS/ CAPS), o hospital-dia e os serviços de urgência psiquiátrica em hospital geral, os quais são regulamentados pela Portaria 224/92 do Ministério da Saúde, tendo como diretrizes os princípios do SUS.

Os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS), redimensionados pela Portaria GM MS 336 de 19 de fevereiro de 2002, são instituições destinadas a acolher os portadores de sofrimento psíquico, com vistas a estimular a integração social e familiar com atenção médica e psicológica. O CAPS não é o único tipo de serviço de atenção em saúde mental, apesar de ser um serviço estratégico na área (BRASIL, 2004).

Tenório (2007) enfatiza que a ideia de rede multi-institucional e diversificada

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de atenção psicossocial realiza de maneira muito eficiente a tarefa do tratamento da doença mental grave, em especial a psicose, justamente por oferecer uma gama flexível de recursos diversos, como por exemplo consul ta, convivência, oficina, terapêutica, trabalho, lazer, internação, moradia, sociabilidade, auxílio financeiro, que respondem a tempos e necessidades diversos no curso da evolução da doença mental.

O contexto

Este estudo tem como cenário geográfico a área de abrangência da Superintendência Regional de Saúde de Alfenas, que possui em sua jurisdição administrativa 26 municípios situados no Sul de Minas Gerais, que possuiu, até setembro de 2007, um hospital psiquiátrico credenciado pelo SUS abrangendo população estimada, para 2008, de 460.477 habitantes.

O hospital psiquiátrico, que atendia a toda esta região de saúde, foi por muitos anos a única alternativa de assistência ao paciente portador de sofrimentos psíquicos graves. No momento do descredenciamento, havia cerca de 200 internados para tratamento crônico e agudo. Os pacientes, em sua maioria, pertenciam aos municípios da região de saúde pesquisada.

Em setembro de 2007, esse hospital psiquiátrico foi descredenciado pelo SUS. Os pacientes que estavam internados ficaram sem um serviço definido para a assistência. O descredenciamento ocorreu devido a três avaliações consecutivas do Programa Nacional de Serviços Hospitalares (PNASH), que ficaram abaixo do mínimo estabelecido pelo Ministério da Saúde.

Como serviço substitutivo no momento do descredenciamento, havia na região apenas um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no município-sede dessa região de saúde, implantado em 2002, que realizava atendimento aos clientes portadores de sofrimento psíquico apenas do município que estava devidamente habilitado pelo Ministério da Saúde. Em 2005, foi implantado o CAPS I em um município que se localiza a aproximadamente 100 quilômetros do município-sede do hospital psiquiátrico, que realiza atendimento da população do município.

Veremos a seguir, as ações desencadeadas por esse descredenciamento no ano de 2007.

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Resultados e análise

A Reforma Psiquiátrica na região de saúde pesquisada destacou-se pela ausência de serviços substitutivos no momento do descredenciamento do hospital psiquiátrico pelo SUS.

A partir do descredenciamento desse hospital psiquiátrico. iniciou-se o processo de implantação de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, principalmente no município- sede do hospital.

O processo de retirada dos pacientes que se encontravam internados no momento do descredenciamento deu-se de forma gradual, sendo os crônicos portadores de sofrimento psíquico os últimos a serem retirados.

Com este processo de descredenciamento, os portadores de transtornos mentais foram avaliados pela assistência social para localizar suas famílias e as condições das mesmas para cuidarem do paciente. Após a avaliação, os portadores de sofrimento psíquico que não tinham familiares que pudessem recebê-los tinham que ser acolhidos por um serviço capaz de estimular sua reinserção social. Os portadores de transtornos psíquicos agudos foram avaliados para a obtenção de alta ou continuidade da internação em outro hospital psiquiátrico para tratamento da doença.

Amorim & Dimenstein (2009) consideram a desinstitucionalização como desconstrução de saberes e práticas psiquiátricas, perspectiva que fundamenta o Movimento da Reforma Psiquiátrica e a Política de Saúde Mental Brasileira, com características de ultrapassar o valor universal desses saberes para colocar em questão o próprio conceito de doença mental que determina limites aos direitos dos cidadãos.

Para os pacientes egressos do hospital psiquiátrico que estavam cronificados foram implantados oito serviços residenciais terapêuticos, um centro de convivência e ainda um projeto de ações em saúde mental na Atenção Básica no município-sede do hospital psiquiátrico.

Observou-se que os demais municípios, por dificuldades de constituição de uma rede capaz de evitar a internação de portadores de transtornos psíquicos graves, não estavam organizados para implantação de serviços substitutivos e contavam ainda com dificuldades de implantação de ações de Atenção Básica.

A estratégia do Saúde da Família, ao considerar a família como uma unidade de cuidado, tem o desafio de manter no horizonte tais questões, no que se

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refere, inclusive, ao cuidado de pessoas com transtornos mentais. Além disso, a permeabilidade da Atenção Básica à participação popular tem a potencialidade de ampliar, na equipe, a capacidade de escuta e acolhimento, o que remete indiretamente à segunda questão acima elencada como de viabilizar o investimento na organização de grupos de técnicos/profissionais da própria equipe, assim como de usuários e familiares interessados em debater os desafios colocados para a luta antimanicomial (DALLA VECHIA& MARTINS, 2009).

Os autores dizem ainda que, com efeito, a diretriz da descentralização e hierarquização das ações e serviços de saúde consignada no SUS confere à dimensão regional um espaço privilegiado para a análise de experiências cuja implementação reflete a incorporação das estratégias substitutivas de cuidado às pessoas com transtornos mentais à rede de Atenção Básica.

Constatou-se, ainda, que o déficit de serviços indica como a região pesquisada não estava com a rede de saúde mental estruturada, necessitando da conscientização dos gestores municipais de saúde sobre a inserção de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico.

Quanto ao número de CAPS tipo I, não houve aumento no número de serviços, nem na população abrangida pelos mesmos.

O CAPS I tem potencial, segundo a Portaria GM MS 336 de 2002, para atendimento de uma população de 20.000 a 70.000 habitantes e tem papel fundamental na capacitação das equipes de saúde na Atenção Básica. Ao considerarmos esta Portaria, verifica-se que há seis municípios desta região com potencial para implantação de CAPS tipo I.

Delfini et al (2011) ressaltam que o CAPS é responsável pela saúde mental de toda a área territorial de sua referência e um de seus desafios consiste em conseguir sair da instituição e tornar-se um lugar que não só atenda bem as pessoas, mas que promova a articulação social e intersetorial. Suas ações e espaços precisam sempre ser ampliados e estruturados de forma a ocupar outros territórios.

Houve a implantação de oficinas terapêuticas nas unidades de estratégia do Saúde da Família no município-sede do hospital descredenciado e cada profissional de nível superior do CAPS ficou responsável por um território no qual há uma unidade de estratégia do Saúde da Família, constituindo assim o processo de matriciamento com corresponsabilização dos casos (BRASIL, 2003).

Para Brasil (2003), o apoio matricial constitui um arranjo organizacional que visa outorgar suporte técnico em áreas específicas às equipes responsáveis

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pelo desenvolvimento de ações básicas de saúde para a população. A equipe por ele responsável compartilha alguns casos com a equipe de saúde local. Esse compartilhamento se produz em forma de corresponsabilização pelos casos, que pode se efetivar através de discussões conjuntas de caso, intervenções conjuntas junto às famílias e comunidades ou em atendimentos conjuntos.

Tenório (2007) faz uma análise da Reforma Psiquiátrica Brasileira, ressaltando que é necessário abordar os novos problemas e questões trazidos pelo próprio avanço da Reforma. Em seu discurso, relata que na gestão é preciso “enfrentar os problemas novos trazidos pelo amadurecimento da Reforma em todas as suas dimensões - Reforma esta que deixou de ser uma iniciativa alternativa ou promissora para se instituir como determinação legal, ancorada em sólido arcabouço normativo e em mecanismos eficientes de financiamento, abarcando um escopo maior de problemas e segmentos de clientela, e gozando de expressiva adesão da imensa maioria dos setores envolvidos”.

O mesmo autor ainda considera e enumera os diversos desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil. O processo de desinstitucionalização é lento, devido a diversos fatores, dentre eles a resistência do setor hospitalar contratado, as dificuldades das famílias e as dificuldades operacionais do Estado brasileiro. Os ambulatórios de saúde mental têm dificuldades em administrar os casos de transtornos mentais realizando a priorização dos casos. Outro desafio se encontra na finalidade do CAPS em ter uma função mais abrangente dentro da saúde pública. A definição do papel do hospital psiquiátrico na reforma psiquiátrica e o tratamento dos usuários de álcool e outras drogas, de crianças e adolescentes também são colocados como desafios. Finaliza acrescentando, a falta de adesão efetiva dos psiquiatras em trabalhar com os pressupostos da Reforma, a falta de articulação com a Atenção Básica e os problemas de gestão.

Considerações finais

Muitos foram os avanços na saúde mental na Superintendência Regional de Saúde de Alfenas com a implantação de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, visto que a organização da rede de saúde mental ainda está em construção. Verifica-se que há muito interesse em implantar serviços que acolham o portador de sofrimento psíquico nos municípios, porém a dimensão de “rede” de atenção é pouco interligada dentro de um mesmo município.

A efetividade das ações estabelecidas para a atenção à saúde mental requer

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a incorporação nas práticas cotidianas do cuidado em saúde. Esse cuidado se dá a partir de uma noção ampliada de saberes clínicos e epidemiológicos, muitas vezes desconhecidos pelos profissionais e gestores municipais de saúde.

A Reforma Psiquiátrica possibilitou até aqui, a implantação de vários serviços substitutivos que devem atuar de modo interligado entre si, e não isolados, para que o portador de transtorno psíquico tenha assistência integral à saúde mental evitando assim as crises frequentes.

Porém, destacou-se a ausência de serviços substitutivos no momento de descredenciamento do hospital psiquiátrico e, em decorrência disso, a rede teve de aumentar o número e a diversidade de serviços substitutivos para o atendimento aos portadores de sofrimento psíquico. Percebe-se hoje, que há necessidade de estimular os gestores municipais de saúde a implantar uma rede capaz de atender ao portador de sofrimento psíquico e de gerir, de forma ética e competente, os serviços existentes.

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2- POLÍTICA, CLÍNICAE SAÚDE MENTAL

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QUEM SÃO AS CRIANÇAS E ADOLESCENTES QUE CHEGAM A UM SERVIÇO DE SAÚDE MENTAL INFANTOJUVENIL?

Wagner Prazeres dos Santos17

RESUMO

Com a Reforma Psiquiátrica e o consequente processo de implantação de serviços substitutivos, tornou-se importante o conhecimento da realidade epidemiológica desses serviços, principalmente das demandas em saúde mental infantojuvenil. Este artigo é resultado de um estudo retrospectivo de tipo quantitativo, realizado em um serviço de saúde mental infantojuvenil, do município de Sabará, interior do Estado de Minas Gerais, cujo objetivo foi conhecer algumas características sociodemográficas e clínicas de seus usuários. Foram utilizados para o estudo das variáveis os prontuários dos pacientes, escolhidos de forma aleatória, totalizando 375. Constatou-se a predominância de crianças e adolescentes do gênero masculino, a maioria dos usuários situou-se na faixa etária de sete a 10 anos. As crianças foram encaminhadas ao serviço principalmente pelas Unidades Básicas de Saúde (40,5%), pela família (28,3%) e pela escola (12,8%) procedentes em maior número e frequência da sub-região 1 (26,4%), que inclui o centro da cidade e bairros adjacentes. Quanto aos sintomas apresentados, a maior parte foi de natureza socioafetiva, de natureza funcional e, por fim, de natureza cognitiva, sendo que os sintomas socioafetivos obtiveram as maiores taxas em todas as faixas etárias. Observou-se uma associação significativa no Teste Qui-quadrado, entre gênero e tipos de sintomas (p<0,05) e entre tipos de sintomas e faixas etárias (p<0,001). Conclui-se que a realização de estudos de caracterização das crianças que procuram o serviço de saúde mental possibilita conhecer indicadores de prevalências dos diferentes transtornos psicológicos existentes, além de orientar práticas e intervenções no serviço e no território.

Palavras-chave: Serviço de saúde mental, atenção psicossocial infantojuvenil, sintomas.

17 Psicólogo clínico, especialista em Psicologia Educacional pela PUC/MG, coordenador municipal de Saúde Mental de Sabará-MG

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Introdução

A Reforma Psiquiátrica Brasileira, movimento social e humanitário iniciado no final dos anos 1970, no esteio da Reforma Sanitária, propunha uma nova orientação de assistência dispensada aos portadores de transtornos mentais e logrou várias conquistas no campo da saúde mental através da desinstitucionalização dos pacientes internados, tratamento de base territorial e reinserção sociocomunitária, criando desta forma, dentre outros, novos dispositivos de cuidado – os chamados Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

As diretrizes e princípios fundamentais para a implantação desta nova política produziram mudanças substanciais no modelo assistencial até então vigente, consolidando os CAPS como mecanismos eficazes na diminuição das internações e como ordenadores da demanda em saúde mental nos municípios (BRASIL, 2004).

Assim, de acordo com os recursos disponíveis, os municípios, a partir desta política pública, foram implantando serviços ambulatoriais de saúde mental e, progressivamente, adequando-se à nova lógica assistencial de “(...) realizar prioritariamente o atendimento de pacientes com transtornos mentais severos e persistentes...” (BRASIL, 2004, p.125).

Esta conceituação revestiu-se de um caráter muito amplo, uma vez que existem transtornos mentais “severos e persistentes” para além das psicoses – o que foi indicado pela edição da Portaria de número GM 189/2002 (BRASIL, 2004), que especifica e nomina todos os tipos de transtornos mentais passíveis de serem atendidos nas diferentes modalidades de CAPS, tendo como referência a CID-10.

No entanto, não raro no cotidiano dos serviços de saúde mental, quando determinada demanda não se apresenta com as feições clássicas da psicose e se enquadra em outras dimensões da nosologia psiquiátrica, seja das neuroses ou dos chamados transtornos mentais menores (COUTINHO, ALMEIDA-FILHO & MARI, 1999), os profissionais fixam-se num “perfil” supostamente advindo da Portaria GM 336/200218 do Ministério da Saúde para poder absorver ou não tal demanda.

18 Esta Portaria estabelece a implantação das diferentes modalidades de serviços substitutivos, ou seja, CAPS I, CAPS II ou CAPS III, segundo critérios populacionais, dirigidos ao atendimento público em saúde mental e priorizando portadores de transtornos mentais “severos e persistentes” de determinado território.

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Em termos ideais, a implantação de serviços de saúde mental deveria ser acompanhada ou antecedida de estudos epidemiológicos de base populacional, para serem conhecidas as taxas de prevalências e incidências dos diferentes transtornos mentais de um território, conforme proposto pela III Conferência Nacional de Saúde Mental.

Mesmo nas situações em que os serviços já foram implantados, os estudos serviriam de subsídios para a sua reformulação (BRASIL, 2002). “O conhecimento das taxas de transtornos mentais na população auxilia no planejamento dos serviços de saúde pública oferecidos à comunidade” (FLEITLICH & GOODMAN, 2000, p.2).

Considerando que os estudos de base populacional são extremamente onerosos, muitos autores optam por conhecer as características da demanda registrada em determinado serviço. Estudos desse tipo podem fornecer subsídios para elaboração de estratégias de intervenção adequadas à clientela e promover possíveis reestruturações no serviço que tornem o atendimento mais efetivo (GRAMINHA & MARTINS, 1993).

Vários estudos têm sido realizados no Brasil com objetivo de tornar conhecido o perfil e a demanda, as especificidades dos transtornos e a dinâmica de funcionamento dos serviços de saúde mental (CARVALHO & TERZIS, 1989; GONGORRA & SILVARES, 1991; GRAMINHA & MARTINS, 1993; LOPES, 1983; LINHARES, PARREIRA, MARTURANO & SANT’ANNA, 1993; SANTOS 1990; PELISOLI E MOREIRA, 2005; HOFFMANN, SANTOS & MOTA, 2008).

No que diz respeito ao conhecimento da saúde mental infantojuvenil, a situação reveste-se de maior complexidade tendo em vista os aspectos evolutivos da criança e a apresentação dos sintomas. Junte-se a isto, o fato de que quando se trata de crianças e adolescentes, inicialmente, tem sempre um “outro” falando por eles, queixando-se por eles. Fato que, muitas vezes, dificulta na determinação daquilo que realmente lhes concerne.

O serviço de saúde mental infantojuvenil, onde o presente estudo foi realizado, está em fase de credenciamento como CAPS I, junto ao Ministério da Saúde, quando irá adequar-se às orientações da Portaria 336/2002 (BRASIL, 2002). Deste modo, torna-se imprescindível conhecer o serviço no que diz respeito a algumas características clínicas e sociodemográficas de sua demanda, objetivo do presente trabalho19.

19 Agradeço aos psicólogos Montserrat Zapico Alonso, Aline Cristina da Silva e José Aloísio da Silva pela colaboração na coleta dos dados nos prontuários.

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Do método

Trata-se de um estudo documental e retrospectivo (GIL, 1998), para o qual foram utilizados os prontuários de um serviço de saúde mental infantojuvenil, (fonte secundária), compostos por uma ficha de dados pessoais, roteiro de entrevista clínica e registros de evolução. O serviço de saúde mental localiza-se em Sabará, cidade do interior de Minas Gerais, com população aproximadamente de 126.000 habitantes (IBGE, 2010). Para composição da amostra sorteou-se aleatoriamente 375 prontuários de um universo de dois mil, referentes ao período de dezembro de 2004 a dezembro de 2008. Foram pesquisadas as seguintes variáveis: sexo, faixa etária, fonte de encaminhamento, região de moradia do usuário e tipos de queixas apresentadas. Foi aplicado o Teste Qui-quadrado para verificação da relação de dependência entre tipo de queixa e gênero e entre tipo de queixa e faixa etária, com valor alfa de p<0,05. O sigilo dos usuários foi assegurado.

Notas sobre os resultados

A amplitude de idade da amostra variou de três a 18 anos. Na Tabela 1 (Anexo 1), observa-se que a maior parte da amostra foi composta por crianças e adolescentes do sexo masculino (60%). Quanto à faixa etária, no geral predominou a de sete a 10 anos (36,0%), sendo que a proporção de meninos nessa faixa etária é maior que a das meninas (38,3% e 32,4%, respectivamente).

A faixa etária de 11 a 14 anos também alcançou expressiva proporção (27,73%), sendo que a proporção de meninas foi levemente superior a dos meninos (29,7% e 26,4%, respectivamente).

Neste estudo, o sistema de saúde pública foi quem mais encaminhou crianças e adolescentes para o serviço de saúde mental infantojuvenil (40,5%), seguido pela família (28,3%) e pela escola (12,8%). A maioria (28,0%) dos usuários procedeu da sub-região 1, referente ao centro e bairros adjacentes.

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Região de Moradia %

Sub-região 1 105 (28,0)

Sub-região 2 99 (26,4)

Sub-região 3 91 (24,3)

Sub-região 4 80 (21,3)

Fonte: Serviço de Saúde Mental Infantojuvenil de Sabará

Para estudar os sintomas referidos pelas mães ou responsáveis, na primeira entrevista de acolhimento, foi utilizada a classificação dos problemas infantis de Anthony adaptada (apud MARTURANO et al, 1993). Esta classificação pressupõe três categorias de queixas/sintomas, a saber: 1) sintomas socioafetivos – ansiedade, nervosismo, agressividade, comportamento opositor, medos/fobias, alteração do humor, isolamento social, rebaixamento da autoestima, desinteresse/desmotivação e transtornos de conduta; 2) problemas cognitivos – dificuldade de aprendizagem, baixo rendimento escolar, dificuldade de atenção/concentração e de memória, lentidão para aprender e atraso no desenvolvimento cognitivo, e; 3) problemas funcionais – agitação motora, tiques e manipulações, alterações do sono, alterações da alimentação, manifestações somáticas (dores, cefaleia, etc.) e queixas de ordem neurológica.

Consideraram-se todas as queixas/sintomas relatados sobre uma mesma pessoa, o que resultou em 720 queixas, conforme Tabela 2 (anexo 1), onde consta a relação dos tipos de queixa com os gêneros. Nota-se que, no geral, é maior a incidência de queixas de natureza socioafetivas (61,1%) que as funcionais (23,5%) e cognitivas (15,4%). Considerando os gêneros, prevaleceram em primeiro lugar os sintomas socioafetivos em ambos os sexos (57,7% e 66,6%) e, em segundo lugar, os sintomas funcionais (24,0% e 22,8%). Os sintomas cognitivos foram mais prevalentes nos meninos (18,3%). As proporções das queixas socioafetivas, cognitivas e funcionais foram todas maiores para o gênero masculino (não demonstradas na Tabela 2).

A Tabela 3 (anexo 1) relata a apuração da relação do tipo de queixa com as quatro faixas etárias estudadas. As queixas socioafetivas também foram as mais

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prevalentes em todas as faixas etárias, com destaque para a de 15 a 18 anos (70,5%). Por outro lado, as queixas cognitivas obtiveram sua maior proporção na faixa etária de sete a 10 anos (21,4%) e as queixas funcionais na faixa etária de zero a seis anos (33,7%). Considerando o total de cada tipo de queixa, as maiores proporções concentraram-se na faixa etária de sete a 10 anos (não demonstradas na Tabela 3).

Considerações sobre os dados da pesquisa

A predominância de crianças e adolescentes do sexo masculino em serviços de saúde mental infantojuvenil é um dado recorrente em outros trabalhos (PELISOLI & MOREIRA, 2005; LOPEZ, 1983; SANTOS, 2006; SANTOS & ALONSO, 2004) e tem corroborado com o presente estudo, onde verificou-se que 60% da amostra era do sexo masculino e tinha até 10 anos (59,2%), coincidindo com os anos críticos da escolarização fundamental. Esses dados também se assemelham aos de uma pesquisa realizada em sete Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil de diferentes cidades do Brasil, com amostra total de 1.456 crianças e adolescentes, verificando que 62,8% eram demanda do sexo masculino, com idade média de 11 anos (HOFFMANN, SANTOS & MOTA, 2008).

Nos resultados obtidos quanto ao perfil das queixas apresentadas, prevaleceram as de natureza socioafetivas, sendo que a diferença observada entre os gêneros e os tipos de queixas foi estatisticamente significativa no Teste Qui-quadrado (p<0,05), o que significa dizer que houve associação entre o gênero e os diferentes tipos de queixas, isto é, meninos e meninas apresentaram diferenças nas proporções das queixas socioafetivas, funcionais e cognitivas.

Em uma pesquisa realizada no mesmo município, porém em um ambulatório de Psicologia de um hospital geral, verificou proporções semelhantes, ou seja, 54,20% de queixas socioafetivas, 23,05% de queixas funcionais e 22,76% de queixas cognitivas (SANTOS & ALONSO, 2004).

Outros estudos estimam taxas que variam de 14% a 22% de transtornos do desenvolvimento e/ou problemas afetivo-emocionais na população infantojuvenil (BIRD & DUARTE, 2002; FLEITLICH & GOODMAN, 2000).

Em termos de transtornos mentais, um pioneiro estudo epidemiológico registrou a prevalência de 23,5% em crianças de cinco a 14 anos (ALMEIDA-FILHO, MARI & COUTINHO, 1992). Outro estudo desta mesma natureza apresentou taxas que variaram de 12,7% a 23,3% (FERRIOLI, MARTURANO & PALUCCI, 2007),

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sendo mais freqüentes os transtornos de conduta, de atenção/hiperatividade e os emocionais (FLEITLICH & GOODMAN, 2002).

Considerando as características diagnósticas, de acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID-l0), 44,5% dos usuários apresentaram transtornos de comportamento e transtornos emocionais e 19,8% apresentaram transtornos neuróticos (HOFFMANN, SANTOS & MOTA, 2008).

Neste estudo observou-se também a associação positiva entre faixa etária e os tipos de queixas, sendo estatisticamente significativa a diferença entre os tipos de queixas nas quatro faixas etárias (p<0,001). Independentemente da faixa etária, as queixas de natureza socioafetivas foram as que obtiveram as proporções mais expressivas. ANEXO 1

Tabela 1 – Frequência e porcentagem da amostra, segundo moradia, gênero e faixa etária (n=375)

Masculino f (%) Feminino f (%) Total f (%)

0 a 6 anos (23,2) 59 (22,0) 28 (18,9) 87

7 a 10 anos (36,0) 87 (38,3) 48 (32,4) 135

11 a 14 anos (27,7) 60 (26,4) 44 (29,7) 104

15 a 18 anos (13,1) 21 (9,3) 28 (18,9) 49

TOTAL 227 (60,0) 148 (40,0) 375

Tabela 2 – Frequência e porcentagem do tipo de queixa segundo o gênero (n=720)

Tabela 2 – Frequência e porcentagem do tipo de queixa segundo gênero

Tipos de Queixas Masculino F (%) Feminino F (%) Total F (%) Socioafetivas 258 (57,7) 182 (66,6) 440 (61,1)Cognitivas 82 (18,3) 29 (10,6) 111 (15,4)Funcionais 107 (24,0) 62 ( 22,8) 169 (23,5)Total 447 (100,0) 273 (100,0) 720 (100,0)

GÊNEROFAIXA ETÁRIA

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Fonte: Serviço de Saúde Mental Infantojuvenil de Sabará

Tabela 3 – Frequência e porcentagem do tipo de queixa segundo faixas etárias.

Tipos de queixasFaixa etária

Total0 – 6f (%)

7 – 10f (%)

11 – 14f (%)

15 – 18f (%)

Socioafetivas 95 (55,2)146 (55,7)

(61,1)137 (69,2) 62(70,5) 440

Cognitivas 19 (11,1) 56 (21,4)

(15,4)32 (16,2) 4 (4,5) 111

Funcionais 58 (33,7)60 (22,9)

(23,5)29 (14,6) 22 (25,0) 169

Total 172 262 198 88 720

Fonte: Serviço de Saúde Mental Infantojuvenil de Sabará

Considerações finais

Pode-se dizer que o serviço tem acolhido demandas compatíveis com os princípios da saúde mental, que se enquadram mais especificamente nos casos de transtornos neuróticos, representados aqui pela alta prevalência de transtornos socioafetivos e funcionais. Sendo o único serviço existente no município destinado a esse público, fica evidente a necessidade de seu efetivo credenciamento como CAPS I, ampliando suas condições de trabalho com o aumento de casos graves, conforme o modelo teórico-conceitual dos serviços substitutivos.

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ESTRATÉGIAS PARA A REDUÇÃO DE DANOS SOCIAIS E À SAÚDE DE USUÁRIOS DE DROGAS INJETÁVEIS NO BRASIL: EXPERIÊNCIAS E PERSPECTIVAS

Yuri Lemos Mansur20

RESUMO

Esse trabalho buscou reunir de forma sistemática as principais ideias sobre a Política de Redução de Danos Sociais e à saúde de usuários de drogas injetáveis no Brasil e sua implantação nos grandes centros. Em geral, os programas de redução de danos contam com o apoio de alguma ONG e suas ações são reguladas pelo Ministério da Saúde. A redução de danos tem como objetivo minimizar os prejuízos causados pelo uso de substâncias que causam dependência e promover a inclusão social de usuários de drogas ao oferecer informações e apoio aos mesmos na busca pelo cuidado de si e manejo do seu uso de drogas, conscientizando-os sobre os riscos e danos à saúde do uso inadequado e indiscriminado. No País, o uso de drogas injetáveis e o compartilhamento de seringas têm aumentado o número de infecções pelo vírus HIV. Os estudos mostram que as ações devem ser pautadas pela educação em saúde junto à população de risco e que o apoio de outros segmentos da sociedade é fundamental para a efetivação da política de redução de danos enquanto estratégia de saúde pública.

Palavras-chaves: Drogas, redução de danos, usuários, drogas injetáveis.

20 Fisioterapeuta, referência técnica em saúde mental da Superintendência de Saúde de Uberaba da SES-MG.

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Introdução

A redução de danos no Brasil tornou-se uma estratégia de saúde pública ao considerar a urgência em diminuir os índices da infecção do vírus HIV e hepatites B e C entre usuários de drogas injetáveis. Buscou também controlar as possíveis consequências adversas ao consumo de psicoativos, lícitos ou ilícitos, sem necessariamente exigir a interrupção desse consumo, promovendo inclusão social e cidadania para os usuários de drogas. Os Programas de Redução de Danos existentes no País contam com o apoio do Ministério da Saúde, que regulamenta as ações de saúde voltadas a usuários de álcool e outras drogas.

Para a Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos – ABORDA, a redução de danos, hoje, constitui-se em um conjunto de políticas públicas ligadas ao enfrentamento dos eventuais problemas relacionados ao uso de drogas, articula distintas realidades, a prevenção ao HIV/Aids e hepatites, a promoção integral de saúde às pessoas que usam drogas e a diminuição da violência. Tal articulação consiste no apoio e incentivo ao protagonismo das pessoas que usam drogas na busca pelo cuidado de si e manejo do seu uso de drogas.

Hoje, a redução de danos pode ser considerada mais como uma estratégia de intervenção do que como um programa. A diferença entre estratégia e programa está na apropriação do conceito como um dispositivo para pensar a intervenção no campo das toxicomanias e na ampliação do seu raio de ação (PINHEIRO, 2006).

A proposta de redução de danos surgiu incentivando formas de auxílio cujo principal objetivo não era eliminar o uso de substâncias psicoativas, mas melhorar o bem-estar físico e social dos usuários, minimizando os prejuízos causados pelo uso das substâncias. A impossibilidade - temporária ou não - de um dependente abandonar o uso de drogas é aceita como fato (MARLATT apud MOREIRA et al, 2006).

Diante desse panorama, o objetivo deste estudo foi fazer a revisão das estratégias adotadas pelos Programas de Redução de Danos desenvolvidos no Brasil, buscando identificar quais são os benefícios proporcionados aos usuários de drogas injetáveis e as principais dificuldades enfrentadas para o desenvolvimento dos programas.

Realizou-se a revisão da literatura sobre a política e os principais Programas de Redução de Danos no Brasil. Foram consultados artigos das bases de dados Medline e Scielo, pubicados no período de 2005 a 2010.

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Redução de danos X guerra às drogas

A redução de danos tem se constituído como uma abordagem ao consumo de drogas ilícitas e também lícitas, alternativa às tradicionais políticas de guerra às drogas. É considerada medida de saúde pública que consiste em minimizar as consequências adversas do uso de drogas, sem necessariamente diminuir ou interromper o seu consumo.

O I Fórum Nacional Antidrogas, realizado no final de 1998, teve resultados favoráveis às políticas de redução de danos e críticas às abordagens de julgamento moral, de repressão policial e de intolerância social. Diferente da abordagem tradicional que pauta a abstinência como única meta, a política de redução de danos reconhece que é legítima a coexistência de diferentes modos de vida e que deve se adotar medidas práticas para minorar os riscos às pessoas e à sociedade como um todo. A abstinência do uso de drogas é vista como a melhor meta, porém não a única alternativa.

A redução de danos é uma política de saúde que propõe reduzir os prejuízos de natureza biológica, social e econômica do uso de drogas, pautada no respeito ao indivíduo e no seu direito de consumir drogas (ANDRADE E FRIEDMAN apud MOREIRA et al, 2006). A maneira convencional de tratar a questão das drogas, até a chegada da epidemia de Aids, baseava-se a interrupção do consumo, segundo Wodak ( 1998), “Com a redução de danos a gente aceita o uso da droga e parte do princípio de que para alguns usuários de drogas a diminuição não é possível, mas é possível diminuir os danos ao indivíduo e à comunidade”.

Histórico da Redução de Danos no Brasil

O primeiro Programa de Redução de Danos realizado no País contou com o apoio do Ministério da Saúde e aconteceu em Salvador (BA). Coordenado pelo Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas - CETAD, um serviço de extensão permanente da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, com o apoio do Governo Estadual e da Prefeitura de Salvador, o programa, desde o seu início, vem progressivamente ampliando suas ações, alcançando novas áreas de atuação e novas populações de usuários de drogas, a exemplo dos usuários de crack, de cocaína e dos de anabolizantes. Os redutores de danos, como são chamados os profissionais, atuam em diversas frentes: trabalham em postos de saúde, articulam

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com as associações de moradores de bairros, contatam os próprios usuários de drogas nas ruas e nos locais onde eles costumam se reunir para as suas atividades de uso de drogas, promovendo discussões relacionadas ao uso de drogas e riscos e danos à saúde decorrentes dessa prática, o que inclui distribuição de material educativo, equipamentos de prevenção, preservativos masculinos e femininos, exibição de filmes educativos e debates com os participantes. Posteriormente, outras cidades como Porto Alegre (RS), Cuiabá (MT) e Rio de Janeiro (RJ) também implantaram PRDs, os quais desenvolveram programas similares, de acordo com as realidades locais.

O Brasil tem apresentado uma importante influência nas políticas internacionais de prevenção à Aids. Na 49ª Sessão da Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas, realizada em 2006, o País reafirmou sua aposta nas estratégias de redução de danos como resposta no âmbito da saúde pública à epidemia nessa população específica.

Na visão de quem aborda o fenômeno drogas com o olhar de redução de danos, o usuário é um cidadão como qualquer outro e com a mesma capacidade de desempenhar papéis importantes na sociedade em que vive. Desta forma, muitos dos programas de redução de danos, sobretudo os de prevenção, são conduzidos por pessoas que estão em pleno uso de drogas.

Estratégias de redução de danos

De acordo com o Ministério da Saúde (2001), a redefinição das redes sociais é uma estratégia para a advocacia da redução de danos. Dentre as prioridades citadas destacam-se as ações de comunicação social que são fundamentais para a obtenção de apoio político e social à atuação dos Programas de Redução de Danos - PRD e dos serviços de Saúde. Educando a comunidade, os formuladores de políticas e os formadores de opinião, as ações de redução de danos retiram a abordagem do uso prejudicial de drogas do contexto da criminalidade, trazendo-as para o âmbito da saúde pública.

Os Programas de Redução de Danos são formas predominantes de implantação da estratégia de redução de danos no Brasil, consistindo em uma variedade de ações desenvolvidas nas comunidades por agentes comunitários especiais, chamados “redutores de danos”.

Estes programas têm como princípio fundamental o respeito à liberdade

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de escolha de cada um, mesmo em se tratando dos usuários de drogas mais comprometidos, a exemplo dos usuários de drogas injetáveis. Além disso, tais programas proporcionam oportunidade única de contatar uma população de difícil acesso e de implementar, de forma integrada, diversas medidas de saúde pública, como a distribuição de preservativos, aconselhamento, vacinação para a hepatite B e encaminhamento dos usuários de drogas a serviços de tratamento.

O apoio e a solidariedade da comunidade aos usuários também são fundamentais para o desenvolvimento do Programa de Redução de Danos, uma vez que os redutores não estão o tempo todo no território.

As ações de redução de danos

As ações básicas dos Programas de Redução de Danos - PRD implantados no Brasil incluem o contato com o usuário, principalmente aquele que está fora da rede de serviços de saúde, no local de moradia ou de uso; a maior proximidade dos profissionais com a comunidade, o treinamento e supervisão de agentes de saúde, muitos deles usuários ou ex-usuários que fazem o trabalho de multiplicadores e são conhecidos como redutores de danos.

Dentre as ações propriamente ditas que podem ser desenvolvidas, destacam-se a troca de seringas usadas por novas e a distribuição de outros equipamentos de injeção (algodão com álcool para higiene local, água destilada e colheres plásticas para diluição da droga) entre os UDIs, distribuição de preservativos e de material educativo, orientação sobre sexo seguro e outros cuidados com a saúde, os quais estão diretamente ligados ao uso indevido e indiscriminado de drogas injetáveis.

Comportamento de risco

Os usuários de drogas injetáveis em sua maioria desconhecem formas seguras de uso. Compartilham seringas usadas, não lavam as mãos antes de iniciar o preparo da droga, não limpam a pele no local da picada, não esterilizam os outros equipamentos de uso, como colheres e potinhos, além de outros cuidados previstos antes do uso.

Os danos mais comuns entre os usuários de cocaína injetável são as

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infecções decorrentes da inoculação de sujeira contida nas mãos que manuseiam os aparatos de uso (copinho, seringa, filtro e água) ou de bactérias da própria pele, no ponto de injeção, que são levadas para dentro da veia pelo ato de se picar a pele sem antes limpa-lá. Essas bactérias podem causar absessos no ponto da injeção, infecções no coração (endocardites) ou em outros órgãos internos aonde venham se instalar, além de poderem se reproduzir no próprio sangue e causar infecção generalizada (septicemia) principalmente em pessoas debilitadas (PINHEIRO, 2006).

Aids entre usuários de drogas injetáveis

Cerca de 16 milhões de pessoas no mundo consomem drogas por via intravenosa, das quais três milhões estão infectadas pelo vírus da Aids, de acordo com a Federação Internacional da Cruz Vermelha.

Em relatório, a Federação considera que os obstáculos que impedem os usuários de drogas injetáveis de aderirem às medidas de prevenção e tratamento de Aids não só contribuem para propagar a doença, mas também constituem violação aos Direitos Humanos. Dentre as barreiras, o documento cita a detenção dos viciados e a falta de acesso a tratamentos de reabilitação e programas de troca de agulhas e seringas.

O aumento das taxas de infecção pelo HIV entre os consumidores de drogas injetáveis não só identifica uma urgência em matéria de saúde pública, mas testemunha a negligência do usuário e a discriminação a esses indivíduos vítimas de uma dependência dramática (TADATERU KONOE, 2010).

No Brasil, de 1980 a 2005, o uso de droga injetável foi responsável por 21,5% de casos de HIV/Aids em homens e 10,5% em mulheres. Entretanto, segundo dados epidemiológicos da FIOCRUZ, a frequência de uso de drogas injetáveis tem caído entre os novos injetadores. “Eles temem contrair HIV e costumam injetar de forma descontínua, variando as drogas injetáveis com outros tipos de alucinógenos” - afirmou o médico Francisco Inácio Bastos, no 5º Simpósio Brasileiro em Pesquisa sobre HIV/Aids. O menor compartilhamento de seringas está associado a Programa de Redução de Danos e isso pode ser confirmado nos municípios que adotaram o programa como Salvador e Rio de Janeiro.

Várias hipóteses foram levantadas para explicar a prevalência mais baixa de HIV entre os novos usuários de drogas injetáveis. A redefinição das redes sociais é uma delas. Como os novos usuários não têm o costume de se injetar junto com os antigos, a transmissão de HIV de um grupo para outro ocorre com menor

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frequência. Também é possível que tenha havido uma saturação, ou seja, quem poderia se infectar foi infectado. No entanto, usuários “pesados”, após anos de consumo e sem treinamento em técnicas de punção venosa, acabam por provocar fibrose e desaparecimento (colabamento) das veias superficiais, restando as de mais difícil acesso - o que pode levar à punção de veias em locais inadequados, aumentando o risco para outros problemas de saúde. Os próprios usuários de drogas fazem redução de danos de maneira espontânea e que por isso representam uma barreira ao acesso aos serviços de saúde (FONTANELLA E TURATO, 2005).

Perspectivas e análises futuras

Apesar de todas as possibilidades e avanços, ainda é preciso que se instaure a perspectiva de redução de danos em todas as situações em que se constate a presença de UDI, em especial nos serviços básicos de saúde (centros e postos de saúde, ambulatórios, etc.), sendo, no entanto, necessário que eles se adequem às peculiaridades dessa população específica, para incluí-la entre suas clientelas.

Os principais desafios enfrentados pela Política de Redução de Danos no Brasil incluem as resistências dos segmentos da sociedade civil que atuam no tratamento da dependência química à implantação de políticas de RD, a necessidade de intensificar as discussões com instâncias e instituições que trabalham com o uso de drogas e educação, a interface com outras populações como presidiários e profissionais do sexo.

O Projeto AJUDE - Brasil desenvolvido pela Coordenação Nacional de DST/Aids em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG recomenda a ampliação dos programas de forma intersetorial possibilitando a interface com algumas instituições, como a universidade, mas também abranger outros setores como a saúde mental, a Justiça, a assistência Sacial, os direitos humanos, entre outros.

É necessária a capacitação continuada de todos os elementos que compõem um PRD, a partir da sensibilização da necessidade de estudos periódicos epidemiológicos além da concentração de esforços no sentido de manter os PRD existentes e apoiar os emergentes. No entanto, a baixa cobertura das ações em municípios com maior número de casos de Aids pertencentes à categoria de exposição UDI justifica a existência de dificuldades na implantação dos programas (CN-DST/Aids, 2004).

Para isso é também necessário o apoio do poder público local para que os gestores estejam sensíveis à causa e acreditem no trabalho dos profissionais. Na

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maioria dos municípios, a redução de danos iniciou-se pelo trabalho voluntário, geralmente de alguma ONG. Comumente, esta é uma fase de inserção das ações na qual é priorizada a sensibilização de gestores e equipes de saúde, além do trabalho de mapeamento de locais e necessidades no campo em questão.

Considerações finais

Com a implantação dos Programas de Redução de Danos entre usuários de drogas injetáveis, há uma maior conscientização sobre os riscos associados ao uso indevido de drogas. O ponto de partida para qualquer intervenção entre usuários de drogas deve ser a educação em saúde. Demonstrar atenção e preocupação com a saúde dos usuários de drogas representa uma ação de promoção à saúde e cidadania. Se a política de repressão às drogas não surtiu efeito é porque suas diretrizes não beneficiavam os usuários. A Política de Redução de Danos tem uma particularidade: a oportunidade do usuário decidir e refletir sobre as condições do uso e o conhecimento sobre os danos causados à sua saúde.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E A ASSISTÊNCIA PRESTADA AOS USUÁRIOS DE ÁLCOOLE OUTRAS DROGAS

Virgínia Maria Neves Vitral Chung21

RESUMO

Os problemas relacionados ao uso abusivo de álcool e outras drogas preocupam familiares, trabalhadores da saúde, Governo e Justiça. Por se apresentar como um grave problema de saúde pública requer, por parte do Ministério da Saúde, políticas públicas efetivas. Os profissionais da saúde estão sujeitos a enfrentar cada vez mais situações decorrentes desse uso abusivo. Neste artigo, objetivamos identificar os impasses das políticas públicas que sustentam a assistência ao portador de transtorno mental em decorrência do uso prejudicial de álcool e outras drogas. Constatamos que há falta de capacitação dos profissionais da saúde, precarização dos vínculos trabalhistas, ausência de regulamentação das propagandas relativas a drogas e descumprimento das políticas públicas existentes. Essas dificuldades criam uma lacuna entre as políticas públicas e a demanda existente, muitas vezes preenchida pelas chamadas comunidades terapêuticas. Concluímos que os serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde não são suficientes no que se refere ao atendimento de usuários em uso abusivo de álcool e outras drogas, necessitando de implementação das políticas públicas atuais.

Palavras-Chave: Álcool, drogas, políticas públicas, saúde mental.

21 Psicóloga, especialista em Saúde Mental e em Dependência Química.

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Introdução

Este artigo surgiu da necessidade de reflexão sobre as diretrizes da Política Nacional sobre Drogas na assistência prestada aos usuários de substâncias psicoativas. Os problemas clínicos e sociais relacionados ao uso prejudicial de álcool e outras drogas têm aumentado significativamente preocupando familiares, trabalhadores da saúde, Governo e Justiça. De acordo com o Ministério da Saúde (2004), a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que aproximadamente 10% da população mundial consome abusivamente substâncias psicoativas, independente de sexo, idade, grau de instrução e classe social. Dentre as drogas lícitas e ilícitas, o álcool e o tabaco são os de maior prevalência e também os que causam as maiores consequências para a saúde pública. A Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais (2007) considera que 12% da população adulta, em algum momento da vida, tem problemas associados ao uso de álcool – destes, 6% são dependentes. Para Laranjeira (2010), a tendência mundial é proibir ou controlar progressivamente o álcool e o tabaco através de leis e restrições ao uso.

O consumo de substâncias psicoativas, sejam elas lícitas ou ilícitas, faz parte da cultura humana desde as épocas mais remotas como instrumento de estímulo, consolo, diversão, devoção e intensificação do convívio social (CARNEIRO, 2009). O uso abusivo, por se apresentar como um grave problema social (violência, perdas afetivas e produtivas, morte) e de saúde pública, requer, por parte do Ministério da Saúde, políticas públicas efetivas que contemplem ações de prevenção, promoção e tratamento, devendo a responsabilidade dessas ações ser compartilhada com os diversos setores para que não recaia apenas sobre o sistema de saúde.

Assim, esse artigo quer contribuir com elementos para uma discussão sobre as diretrizes políticas e sua consonância ou não com a verdadeira realidade dos serviços que a executam, assim como para pensar a necessidade de ações intersetoriais.

Revisando a história

Este artigo visa contribuir com uma reflexão acerca das políticas públicas, aqui compreendidas como “decisões de consenso tomadas por governantes na forma de leis, regras ou regulações, compreendendo ações em resposta a demandas da população.” (LONGEST apud LARANJEIRA, ROMANO, 2004, p.69).

Na Constituição brasileira, a saúde é direito de todos e dever do Estado (BRASIL, 1988 art. 196), mas durante muito tempo a saúde pública brasileira não

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possuía políticas públicas voltadas aos dependentes de álcool e outras drogas oferecendo aos usuários com consumo prejudicial uma assistência inadequada. Faria (2006) aponta que a prioridade em saúde mental foi dada aos egressos de hospitais psiquiátricos, aos psicóticos e aos neuróticos graves, sendo que os alcoólatras e toxicômanos ficaram à margem dos serviços ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O tratamento era mais relacionado com os modelos de prevenção do que de assistência propriamente dita (PINHEIRO, 2006).

Essa situação criou lacunas e as associações religiosas assumiram esse tratamento, não raro, em regime fechado, com base na abstinência, predominando práticas de cunho religioso, disciplinar e laboral, contrariando assim os princípios da Reforma Psiquiátrica22.

As comunidades terapêuticas, que provavelmente são os serviços mais antigos e numerosos, propõem, em geral, uma abordagem religiosa e mantêm um caráter moral partindo do tripé: oração, trabalho e disciplina (PINHEIRO, 2006 p.29). (...) as clínicas e comunidades ‘terapêuticas’ têm se proliferado, organizadas por agremiações religiosas (notadamente as evangélicas), pelo setor privado, filantrópico ou Terceiro Setor. (VASCONCELOS, 2010, p.53).

Algumas dessas comunidades terapêuticas são conveniadas e recebem financiamento público, mas muitas vezes não são fiscalizadas pelo setor público havendo denúncias de violência contra seus usuários em algumas delas, além de não estarem integradas com a rede de atenção psicossocial para garantir a continuidade do projeto terapêutico após a alta, facilitando a reincidência (VASCONCELOS, 2010). Totugui et al (2010) defendem a prioridade da ampliação de ações de saúde mental para diminuir o déficit de acesso dessa população no SUS.

Em 1998, foi criada a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) e foi realizado o I Fórum Nacional Antidrogas com a finalidade de elaborar a Política Nacional Antidrogas (PNAD). Mas somente no II Fórum Nacional Antidrogas, em 2001, esta política foi instituída por meio do Decreto n° 4.345 de 26 de agosto de 2002 (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICAL, 2002).

22 A Reforma Psiquiátrica, foi iniciada no final dos anos 1970, devido por um lado à ineficiência do hospital psiquiátrico e, por outro, de movimentos sociais, tendo a frente o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental. Visa essencialmente garantir os direitos de cidadania aos portadores de transtorno mental. Substitui gradativamente o modelo hospitalocêntrico de assistência para serviços territoriais abertos, garantindo ao usuário a possibilidade de “ir e vir”, conviver, trabalhar, etc.

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Ainda em 2001 foi regulamentada e sancionada a Lei Federal 10.216/01 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004), que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Em 2002, o Ministério da Saúde instituiu o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e Outras Drogas através da Portaria GM 816/2002 (MINISTÉRIO DA SAÚDE), com ênfase na reabilitação e reinserção social.

Em 2003, o SUS assumiu a responsabilidade pela atenção e prevenção de danos associados ao consumo abusivo das substâncias psicoativas articulando ações intersetoriais, inclusive com outros ministérios.

Devido às transformações sociais, políticas e econômicas, a SENAD desenvolveu - em 2004 - um processo de realinhamento da política existente através de um seminário internacional de políticas públicas, seis fóruns regionais e um fórum nacional sobre drogas. As deliberações foram apresentadas ao Conselho Nacional Antidrogas (CONAD) que as aprovou em 2005. Também em 2005, foram criados incentivos para subsidiar os Centros de Atenção Psicossocial em Álcool e Drogas – CAPS ad, através da Portaria 1059/05 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005).

Em 2006, a legislação brasileira sobre drogas foi atualizada através da Lei Federal n° 11.343/2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas responsável por articular, integrar, organizar e coordenar as atividades de prevenção, tratamento e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e também mais rigor quanto às penas aplicadas pela Justiça devido ao tráfico dessas drogas.

Em 2009, o Ministério da Saúde lançou o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso do Tratamento para Usuários de Álcool e Drogas e o Governo brasileiro estabeleceu, em 2010, o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, em 2010, em resposta à pressão social.

Impasses na assistência

É necessário lembrar que nos serviços de atenção aos usuários, profissionais da saúde estão sujeitos a enfrentar cada vez mais situações difíceis, decorrentes do uso e abuso de álcool e outras drogas, que se apresentam quando os pacientes estão muito graves, dificultando uma intervenção resolutiva. A formação dos profissionais da saúde nessa área é deficiente, recaindo a assistência sobre o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Este, por sua vez, nem sempre conta com equipe mínima conforme preconiza a Portaria n° 336/GM/2002 (BRASIL, 2004).

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Os CAPS foram autorizados a cobrar do SUS os atendimentos aos usuários que apresentem transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas caracterizados pelos códigos diagnósticos F10 (transtornos mentais e comportamentais por uso de álcool) até F19 (transtornos mentais e comportamentais por uso de substâncias psicoativas) do Código Internacional de Doenças, 10ª edição (CID-10), através da Portaria SAS 384/05 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005). Os municípios de pequeno porte são, de certo modo, praticamente obrigados a dar assistência a esses pacientes por não existir outros dispositivos disponíveis.

Os profissionais do CAPS, por sua vez, não são capacitados para trabalhar com essa clientela. Muitos não conseguem seguir a lógica de redução de danos23 proposta pelo Ministério da Saúde, qual seja, diminuir as complicações advindas do consumo de substâncias psicoativas através de uma série de procedimentos, tais como distribuição de seringas descartáveis, reposição de vitaminas e substituição das drogas pesadas por drogas mais leves, sem a preconização imediata da abstinência. A redução de danos, segundo Lancetti:

(...) no plano da proposta e na sua preciosa simplicidade, é redutiva, mas, quando analisada na sua capilaridade, é menos uma diminuição do risco e mais uma ampliação da vida (LANCETTI, 2008, p. 80)

Pinheiro (2006) aponta que a maioria dos usuários em uso abusivo de álcool e outras drogas tem dificuldade em aderir a tratamentos em que a abstinência é a única possibilidade e a cura consiste na interrupção total de seu uso. Esta também é a posição de Cruz (2006) ao afirmar que essa proposta de assistência se contrapõe à abstinência imediata para que o paciente possa aderir ao tratamento.

A estratégia de redução de danos é de âmbito mundial e tem sido vista não apenas como uma proposta preventiva, mas também como a base que fundamenta a assistência aos usuários de drogas no Brasil (BRASIL, 2004). Alguns profissionais como médicos, religiosos e do Poder Judiciário questionam esse modelo de assistência e defendem a exigência de abstinência como fator essencial de cura – modelo que tem se mostrado ineficiente (CRUZ, 2006).

23 Redução de danos é “uma estratégia de saúde pública que busca controlar possíveis consequências adversas ao consumo de psicoativos – lícitos ou ilícitos – sem, necessariamente, interromper esse uso, e buscando inclusão social e cidadania para usuários de drogas” (Ministério da Saúde, 2004)

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Essas dificuldades criam uma lacuna entre as políticas públicas e a demanda existente, o que é preenchido novamente com as associações religiosas através das comunidades terapêuticas que, por sua vez, pregam a interrupção total do uso como condição de início de “tratamento”. Muitas destas comunidades terapêuticas, como dissemos, prestam assistência aos usuários sem considerar as normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - RDC ANVISA 101/01, ou seja, sem estrutura física e equipe mínima adequadas.

Outro aspecto importante refere-se às providências ainda necessárias quanto à questão da tolerância com os conteúdos de anúncios publicitários e as pressões do mercado de bebida alcoólica. Para Carneiro (2009), os consumos de álcool, o tabaco e as drogas da indústria farmacêutica são estimulados através da publicidade. Para Medeiros (2006), a mídia coloca as substâncias psicoativas ou como úteis ao cidadão, ou seja, importantes no lazer como elemento estruturador e mediador das relações sociais ou como responsável pela maioria dos atos de violência enquanto elemento que justifica o controle social.

A mídia deve ser incentivada a realizar campanhas de redução dos danos à saúde provocados pelo consumo do álcool:

O eixo norteador de campanhas pela redução dos problemas provocados pelo álcool deve ser a estratégia de redução de danos, devendo haver a crítica de estereótipos relacionados ao uso do álcool, e incentivados pela propaganda de bebidas alcoólicas, como a associação do uso do álcool com a virilidade, a sensualidade, a diversão etc. Produtores, distribuidores e estabelecimentos que vendem bebidas devem ser implicados no desenvolvimento da campanha de prevenção, por meio de suas associações (BRASIL, 2004).

O Ministério Público Federal, o Congresso Nacional, o Serviço de Proteção ao Consumidor (PROCON) e a Vigilância Sanitária têm trabalhado com o objetivo de regulamentar as propagandas que tratam desse conteúdo. Entretanto, as agências publicitárias se organizam para que sejam autorregulamentadas. Em contrapartida, as pessoas têm o direito a receber informações reais sobre os efeitos desse consumo, possibilitando assim o uso responsável e com autonomia.

A precarização dos vínculos de trabalho e a não estabilidade das equipes dos CAPS e da Estratégia de Saúde da Família (LIMA, 2010, p.82) com constante troca de profissionais, geralmente devido às políticas locais, são obstáculos que

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os trabalhadores, não só da saúde mental, mas dos SUS como um todo, têm enfrentado.

No período mais recente, nos últimos anos, há sinais de excessiva institucionalização e burocratização dos novos serviços na rede de Saúde Mental, com forte precarização dos vínculos de trabalho e entrada maciça de uma nova geração de gestores e trabalhadores, muitos dos quais sem contato com a história e a experiência política e profissional que marcou o período de experimentação e mobilização dos períodos anteriores (VASCONCELOS, 2010, p.21).

O SUS em geral e, especialmente, os serviços de saúde mental passam por dificuldades de financiamento que, aliadas aos fatores já mencionados da precarização dos vínculos trabalhistas, da constante troca no quadro de profissionais e da falta de capacitação, acarretam uma assistência precária com baixa resolutividade.

O modelo de atenção em saúde mental, a partir da Reforma Psiquiátrica, deixou de ser hospitalocêntrico e passou a ser promovido no território, em regime aberto e articulado com ações intersetoriais, garantindo uma rede de atenção integral. O Ministério da Saúde reconhece que a assistência aos usuários com uso abusivo de álcool e outras drogas não deva ser apenas no campo da saúde, mas deve envolver uma abordagem amplamente intersetorial, que trate dos problemas da violência urbana, das injustiças sociais, das graves desigualdades de acesso à educação, ao trabalho, ao lazer e à cultura (MINAS GERAIS, 2007).

A intersetorialidade implica o reconhecimento de que o abuso de álcool e outras drogas é um problema transversal a outras áreas além da saúde, como a Justiça, a educação e o desenvolvimento social: exige, portanto, intensa articulação entre esses campos (CIRINO, 2006, p.41).

O uso de substâncias psicoativas é um fenômeno complexo e requer ações intersetoriais além do campo da saúde mental que considerem as necessidades de cada usuário garantindo a reinserção social, o que na prática depara-se com os obstáculos do preconceito, da ausência de capacitação e, porque não dizer, de vontade política.

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Considerações finais

Trabalhar a prevenção em todos os níveis tais como na família, escola e sociedade é essencial para a saúde pública. Práticas educativas devem estimular a reflexão acerca do consumo de substâncias psicoativas.

Podemos dizer que os serviços oferecidos pelo SUS não são ainda suficientes no que se refere ao atendimento de usuários com uso abusivo de álcool e outras drogas, necessitando de implementação das políticas públicas atuais, pois é de fundamental importância para a saúde pública no nosso País.

A formação continuada aos profissionais do CAPS para atender a necessidade da população, promovendo uma melhoria na qualidade da assistência oferecida, torna-se fundamental e os esforços neste sentido ainda são incipientes.

Desse modo, para que a política pública seja consonante com a verdadeira demanda de usuários em uso prejudicial de substâncias psicoativas e de seus familiares, muito há que se caminhar. É preciso não apenas refinar os princípios que definem a Política de Redução de Danos, mas também investir na intersetorialidade e, principalmente, na formação continuada de profissionais bem como na estrutura material e humana para que possamos dizer, no futuro – esperamos próximo - que o tamanho dos esforços governamentais e sociais são proporcionais à magnitude do problema do álcool e drogas no nosso País, em diferentes classes sociais.

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OFICINAS E ADOLESCENTES EM USO E ABUSO DE DROGAS:O QUE SE TRATA AQUI?

Adriana Condessa Torres24

RESUMO

Este artigo propõe discutir condições mínimas a serem consideradas para que o uso das atividades nas intituladas oficinas ou programas socioeducativos seja tomado enquanto espaço de produção subjetiva e de exercício da cidadania, quando utilizadas como estratégia de abordagem para adolescentes em uso abusivo de drogas. Valendo-nos de alguns conceitos psicanalíticos sobre o funcionamento psíquico iremos caracterizar o fenômeno da adolescência, abordar as condições subjetivas e socioculturais envolvidas no encontro de adolescentes com as drogas e, finalmente, fazer uma análise do uso das diversas atividades artísticas, socioculturais e esportivas, de modo a identificar a construção de ações que potencializem o maior número possível de saídas individuais e singulares.

Palavras-chaves: Adolescentes, uso de drogas, trabalho terapêutico.

24 Terapeuta ocupacional. Especialista em Psicanálise Aplicada à Saúde Mental (UNILESTE-MG). Coordenadora do CAPS II de Coronel Fabriciano - MG. E-mail: [email protected].

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Introdução

Utilizar substâncias como álcool e drogas para alterar o psiquismo se constitui numa realidade histórica e cultural, que se manifesta de diferentes formas, sempre de acordo com o status ocupado por estas e a função de seu uso em cada sociedade e período histórico. Já em 1930, no texto intitulado O Mal-Estar na Civilização, Freud escreve que:

O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhe concederam um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações’ é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade (Freud, [1930] 1976, p. 97).

No mundo ocidental atual, onde a droga também entra como um objeto de consumo, esta situação tem se tornado uma questão que demanda ações intersetoriais, face à complexidade dos problemas advindos do uso abusivo destas substâncias. Tais problemas relacionam-se tanto com questões sociais e econômicas, como também com as formas de reações e saídas de cada sujeito frente ao uso abusivo de drogas.

Esta realidade tem provocado várias reflexões em diferentes setores sociais como Justiça, saúde, assistência social, educação e outros. Frente a esta conjuntura atual percebe-se o surgimento de um discurso - altamente disseminado entre os atores de políticas públicas e privadas, que investem na lógica dos programas sociais -, que utiliza atividades de arte, cultura, esporte e outros, como instrumentos de educação, prevenção e tratamento dos problemas advindos do uso abusivo de drogas.

Sabemos que é inegável a contribuição psicossocial destas atividades no sentido de viabilizar espaços de expressão criativa, de reflexão da realidade, da criação de laços sociais, de produções socialmente valorizadas e até mesmo de certos efeitos subjetivos. Entretanto, não podemos deixar de refletir sobre as modalidades de tratamento propostas frente a um problema tão complexo e sobre os limites de práticas que se pautam apenas na reprodução de uma ordem social, voltadas somente para a ocupação e a capacitação, sem contextualizar a droga como um dos objetos de consumo da modernidade e o adolescente como um ser

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de desejo e também um sujeito, como um consumidor que não está excluído do circuito mercadológico atual.

Este artigo propõe discutir condições que precisam ser minimamente consideradas para que as atividades nas intituladas oficinas ou programas socioeducativos sejam tomados enquanto espaço de produção subjetiva e de exercício da cidadania. O enfoque etário será dado para o uso e abuso destas substâncias no período da adolescência, pois a aproximação precoce do adolescente com a droga pode acarretar efeitos drásticos que afetam a sociedade e a família destes indivíduos.

É preciso, então, questionar quais instrumentos teóricos e práticos podem se aliar para que efeitos singulares façam parte destes programas de atenção ao adolescente em uso prejudicial ou abusivo de drogas, apostando mais na ética das diferenças que em proposições fixas e universais.

Valendo-nos de alguns conceitos psicanalíticos sobre o desenvolvimento psíquico, iremos caracterizar sumariamente o fenômeno da adolescência, abordar as condições subjetivas e socioculturais envolvidas no encontro de adolescentes com as drogas e, finalmente, fazer uma análise reflexiva sobre o uso das diversas atividades artísticas, socioculturais e esportivas, de modo a identificar a construção de ações que potencializem o maior número possível de saídas individuais.

A adolescência, o adolescente e o encontro com a droga

A psicanálise nos ensina que todo ser humano se constitui a partir do discurso do outro, ou seja, desde antes do nascimento é iniciado um processo de constituição subjetiva a partir das marcas que a demanda do outro inscreve no corpo real. No texto Os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905), Freud discorre sobre o desenvolvimento da sexualidade infantil. Sua tese é a de que a primeira infância é determinante para a orientação da libido e que a puberdade se apresenta como o momento em que se dará o verdadeiro encontro com o objeto sexual propriamente dito. Afirma que sempre haverá repercussões da escolha objetal infantil nessa fase, pois

a afeição infantil pelos pais é sem dúvida o mais importante, embora não os únicos, dos vestígios que, reavivados na puberdade, apontam o caminho para a escolha do objeto (Freud, 1905, p. 215).

Baseado nisto se afirma que a adolescência é o momento de “reavivar” o Édipo, ou seja, de trazer à tona uma fase pré-histórica de conflitos recalcados, de uma remota infância.

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Tem-se assim na adolescência, um tempo de reencontro com a sexualidade infantil, onde tanto o corpo como a relação com os pais passa por profundas transformações, que são por sua vez necessárias a todo o desenvolvimento posterior da vida adulta.

As vivências de separação dos pais são então experimentadas de formas variadas nesta fase e não necessariamente se configuram como sinônimo de rebeldia ou conflitos mais graves. Fazer parte de um novo grupo, de um novo jeito de se vestir e de falar, experimentar novas situações e vivências se apresenta enquanto condição de desenvolvimento psíquico, de separação simbólica, e trazem consigo angústias que exigirão sempre algum trabalho psíquico, maior para uns, menor para outros.

Partindo-se destas considerações iniciais, indagamos se a adolescência pode ser considerada como um tempo de maior vulnerabilidade não só para o encontro com a droga, como também para o início de um uso mais abusivo para alguns, pois o adolescente, imerso em situações de angústia, responderá a este momento de acordo com os recursos psíquicos que possui. Entre experimentar a droga e escolher utilizá-la de forma mais sistematizada tem-se um tempo de acomodação, onde o peso da estrutura psíquica do sujeito entra em questão, ou seja, se neurótico ou psicótico, determinará diferentes recursos para lidar com a questão. Assim sendo, o efeito da droga em um adolescente neurótico se diferenciará do efeito da mesma para um psicótico, mesmo sabendo que “desde sempre, em todos os lugares, as drogas, sejam elas lícitas ou proibidas, terão por função tratar a dor de existir” (CLASTRES, 2000, p.107).

Para os psicóticos a droga poderá estar funcionando como objeto de estabilização ou de desencadeamento, servindo “tanto para regular um excesso que invade a estrutura psicótica, quanto para reafirmar o papel, já estabelecido, de empuxo a uma desagregação da subjetividade” (GROSSI, 2000, p. 21).

Para os neuróticos há que ser considerada toda uma gama de oportunidades e projetos que o adolescente conseguiu construir em sua vida até o momento, além do seu contexto sociofamiliar. Todos estes fatores precisam de especial

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atenção, de modo a se verificar caso a caso, qual função tem o objeto droga, pois muitas vezes,

o ato toxicomaníaco serve como anteparo para amortecer este choque produzido pelo encontro do sujeito com o real, na insuficiência do aparelho psíquico traduzir simbolicamente as figuras do intolerável que se apresentam a ele (Bittencourt, 1997, p. 111).

Por fim, podemos verificar que o encontro com o objeto droga na adolescência é muito frequente, pois sendo a droga um dos objetos de consumo da contemporaneidade, estará lá a todo o momento sendo ofertado. Já o adolescente, que por sua vez se esforça na operação de separação (ou não) dos pais, lançará mão de variados recursos para afrouxar ou estreitá-los.

Após considerar sumariamente como se dá o encontro com o objeto droga na adolescência, podemos nos perguntar sobre este encontro em diferentes espaços sociais.

Sabemos que o uso de drogas ocorre em todas as classes sociais, mas, no que diz respeito aos fatores socioculturais da aproximação adolescência/droga, podemos nos perguntar em que medida a convivência em comunidades próximas ao tráfico (onde encontraremos pessoas em situação de maior vulnerabilidade social) se apresenta enquanto oportunidade de geração de renda e de identificação a meninos e meninas que possuem vidas marcadas por intensa privação financeira e fragilidade de definição de papéis e funções familiares. Há também que se considerar situações nas quais o uso de drogas é funcional à vida nas ruas, onde manter-se atento é quase condição para manter-se vivo.

Portanto, se juntarmos a vulnerabilidade psíquica própria do sujeito na adolescência com a vulnerabilidade familiar e social característica de cada um, podemos entender que esta somatória de fatores aumenta o risco de uso abusivo de drogas, iniciada em fase precoce da vida, com maior poder de desenvolvimento de dependência.

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As oficinas como recurso de tratamento

Este encontro precoce e, por vezes, altamente comprometedor do desenvolvimento psíquico e social dos adolescentes tem levado serviços governamentais e não governamentais de variadas instâncias a tomarem esta parcela populacional como fonte de intervenções, com o intuito do afastamento da droga e até mesmo com vistas a um poder de prevenção a estas.

Para tanto, muitos serviços oferecidos lançam mão de estratégias e instrumentos que utilizam atividades variadas, com a intenção de oferecer um fazer que agrupe os adolescentes em torno de um ritual menos nefasto para suas vidas. Na maioria das vezes, estas atividades possuem cunho meramente ocupacional, através de projetos sem capacidade real de sustentabilidade, desenvolvidos dentro da lógica de que o adolescente tem pouco a fazer e por isto usa drogas. Pressupõe-se então, que ao ocupar o seu tempo, esta lógica se dissolveria.

Atualmente, alguns programas sociais intitulam de oficinas a oferta de atividades artesanais, de expressão artística, esportivas e culturais, sem avaliação prévia da importância de tal prática para a vida real dos adolescentes, seus interesses, habilidades, seu entorno cultural e possibilidades de sustentabilidade dos projetos. Há uma aposta, ingênua, de que estas práticas, por si só, possuem potencial de resposta aos problemas sociais e subjetivos que derivam do uso abusivo de drogas na adolescência. Assim, como parte da lógica que compreende o uso e abuso de drogas entre adolescentes como decorrente de sua “desocupação”, estas atividades são apresentadas como saídas para esta problemática complexa, desconsiderando muitos fatores em jogo e, mais especialmente, desconsiderando o uso de drogas como uma resposta sintomática do sujeito, segundo sua estrutura psíquica, que exige tratamento e variadas ações conjuntas, articuladas intersetorialmente.

Guerra (2004) descreve o espaço das oficinas e as define enquanto um local que busca “entrelaçar a subjetividade com a cidadania, ou seja, entrelaçar o sujeito em suas dimensões psíquicas com o sujeito em suas dimensões políticas”. Poderíamos pensar, então, que os espaços criados para abordar adolescentes em uso abusivo de drogas deveriam estar minimamente pautados nessa lógica, de uma ligação entre a subjetividade (visto que as soluções nunca tendem a ser universais) e o exercício de cidadania. Não há, portanto, como desconsiderar a história pessoal, o contexto familiar e social em que vive o adolescente, segundo sua estrutura psíquica, a lógica do consumo reinante em nossa sociedade contemporânea e a tendência em tratar a questão do abuso de drogas por um viés moral ou patológico, pois tudo isto é o que dá complexidade à questão.

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Considerações finais

No que diz respeito ao encontro do adolescente com o objeto droga podemos então entender que simplesmente considerar o adolescente em uso de droga como um dependente é precipitar a leitura dos fatos, pois há vários fatores subjetivos e socioeconômicos que irão ajudar a determinar a questão da dependência. Ao tentar institucionalizar a questão através de programas e estratégias de reclusão destes adolescentes com sua segregação em grupos para tratamento e outros, se tende também a cair em erros históricos de nosso passado recente. Portanto, os espaços que se propõem a abordar esta problemática necessitam estar pautados em preceitos éticos e clínicos, por estratégias que façam parte do contexto dos adolescentes, onde o significante droga deixe de circular o máximo possível, além de minimamente situados sobre o momento histórico e cultural em relação ao uso de drogas em que vivemos.

Assim sendo, os projetos desenvolvidos para adolescentes em uso abusivo de drogas se beneficiarão quando as ações engajadas culturalmente forem mais sólidas e quando os coordenadores forem previamente capacitados para realizar uma escuta mais particularizada dos casos ali em questão, com a finalidade última de perceber, no um a um, o que “faz pega”, o que pode estar apontando para uma saída e para a eleição de um novo destino. Há que se considerar que não se trata de ocupar o tempo para que a droga não ocupe a cabeça do adolescente, mas de levá-lo a se questionar sobre outros caminhos que possam auxiliá-lo na busca de projetos em que pelo menos um rastro de seu desejo possa ser identificado. Enfim, oferecer-lhe a palavra e a escuta.

Talvez não se trate tanto de questionar o que se tem feito nestes espaços, mas de questionar como estas práticas têm se efetivado. Sabe-se que a arte, o esporte, a cultura e variadas atividades são de fundamental importância para somarem-se a outras muitas ações e tratamentos que respondam à questão do adolescente e o uso abusivo de drogas. O que estas atividades não podem, em absoluto, é tomar o lugar central numa problemática tão extensa e sabidamente multifatorial, que vai exigir, por sua vez, a somatória de esforços clínicos, culturais e sociais, através de práticas intersetoriais, que ainda se encontram em construção na história da saúde mental em nosso País.

O espaço das oficinas para o adolescente em uso abusivo de drogas servirá então como um recurso terapêutico, que entrará como uma estratégia de tratamento ou abordagem em um intrincado problema. Faz-se necessário, portanto, que as ações de vários setores governamentais e não governamentais (ONGs), até agora dispersas, busquem a construção de uma rede de cuidados, a partir da intersetorialidade e da interdisciplinaridade. As atividades artísticas

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e culturais podem e devem ser utilizadas como recursos de tratamento - suas contribuições são inegáveis - mas não podem ser tomadas de forma desavisada. As oficinas são espaços de criação de saídas subjetivas, que neste caso, podem acolher o sujeito adolescente que busca ressignificar suas vidas; a eles devem ser oferecidos, portanto, novos caminhos, outras opções, novos destinos.

Em suma, qualquer prática que se paute em um legado ético não pode prescindir da informação histórica, técnica e subjetiva em questão, nem desconsiderar a capacidade de criação de saídas de cada sujeito ali presente. É como nos sinaliza Guimarães Rosa a respeito da condição inacabada do ser humano quando escreve: “O senhor... Mire, veja: o mais importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.”

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Referências bibliográficas

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3. SAÚDE MENTAL E TRABALHO

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ENTRE O TRABALHO, A LOUCURA E A DOENÇA: UM OLHAR PARA A SAÚDE PSÍQUICA DO TRABALHADOR DA SAÚDE MENTAL EM UM CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

Samira Neheme25

RESUMO

Nos serviços de saúde mental, os profissionais das equipes ou os assistentes, trabalham diretamente com a loucura e adoecem gravemente pela maior exposição e vulnerabilidade em relação aos outros profissionais da área da saúde. Foram observados 20 funcionários do CAPS de Três Pontas - MG e analisadas as suas condições de trabalho. Constatou-se a ausência de uma política em relação ao cuidado com estes profissionais. Verificou-se também que a pressão exercida pelo setor público em relação à produtividade interfere na qualidade do atendimento. Conclui-se que é de extrema importância a formação de equipes coesas que possam acolher e tratar suas angústias no âmbito coletivo e individual.

Palavras-chaves: Trabalhador, saúde mental, doença mental, CAPS, equipe.

25 Psicóloga graduada pela FUMEC – Belo Horizonte/MG. Pós-graduada em Gerência de Empresas – FACECA – Varginha/MG. Coordenadora do CAPS I – Três Pontas/MG. Centro de Atenção Psicossocial Pref. Manoel Jacinto de Abreu Filho - rua Oswaldo Campos Reis, 13, bairro São Francisco de Assis, na cidade de Três Pontas/MG, CEP 37.190.000. E-mail: [email protected]

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Introdução

O trabalho em saúde tem a característica de se realizar nas relações por meio de atos entre sujeito-trabalhador de saúde e usuários. As práticas de cuidado não são naturais, mas se constroem e se modificam ao longo da história. Desenvolvem-se no âmbito das relações sociais e, portanto, modificam-se e produzem subjetividades diferenciadas, no entendimento do que seja saúde e doença e na forma de seus enfrentamentos. Toda atividade de trabalho pode então ser entendida como um encontro entre corpos, atravessamentos múltiplos que se agenciam, se interconectam, demandam escolhas e decisões, e, portanto, tornam todo este trabalho uma atividade de criação. Mais do que um mero executor de tarefas, o trabalhador constitui e é constituído pela sua atividade, sendo ao mesmo tempo produtor e produto, estando sempre presente a capacidade de afetar e de ser afetado. Assim, essas relações acontecem pela criação de um espaço de interação, que são momentos de produção e realização de ações de saúde.

A assistência à saúde mental se organiza a partir de um sujeito que apresenta um sofrimento mental, com a finalidade de aliviar seu sofrimento e integrá-lo socialmente. Neste contexto, serão abordadas questões dos trabalhadores de saúde mental, o seu adoecimento e a importância da equipe nesse processo dentro do Centro de Atenção Psicossocial – CAPS.

Com a proposta de desinstitucionalização26, essa assistência redimensiona o conceito de saúde mental. O portador de sofrimento psíquico passa a ser acolhido por uma equipe multidisciplinar e recebe um tratamento mais abrangente. O sujeito é considerado na sua subjetividade, nas experiências da loucura em particular, por um modelo assistencial mais humanizado, voltado para o seu cotidiano e suas necessidades, resgatando sua dignidade e autonomia. O modelo hospitalar passa a ser substituído por outros e novos dispositivos, dentre eles o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), regulamentado e financiado pelo Ministério da Saúde, através de diversas portarias.

Assim, a equipe multidisciplinar27 é constituída por um conjunto de profissionais que atendem à diversidade de necessidades sobre a realidade dada, e tem por objetivo viabilizar esse tratamento/reabilitação que vai muito além das técnicas profissionais. Realiza ações centradas no sujeito e dentro das formas de organização dos processos de trabalho e política. As equipes precisam de uma mínima coesão ideológica e ética.26 A desinstitucionalização de pessoas com longo histórico de internação passa a tornar-se política pública no Brasil a partir dos anos 1990, e ganha grande impulso em 2002 com uma série de normatizações do Ministério da Saúde. Este processo se dá pela redução de leitos em hospitais psiquiátricos (macro-hospitais) através de mecanismos claros, eficazes e seguros.27 A equipe do CAPS Três Pontas é composta por: psiquiatra, dois neurologistas, três psicólogos, assistente social, terapeuta ocupacional, enfermeira, técnico de educação e seis técnicos de enfermagem.

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A organização do trabalho, que fragmenta as tarefas e os trabalhadores, reafirma as características da subjetividade moderna, individualista e competitiva, que atravessam a rede de relações. Podemos falar numa ética ligada ao bom atendimento ao paciente, noção que prioriza a ciência, a técnica e o tratamento humano, atencioso, capaz de dar suporte às angústias e às dores do doente e de sua família. Mas as estratégias adotadas pelos trabalhadores para fazer frente à sobrecarga acabam por prejudicar essa possibilidade de atribuição de sentido e prazer no trabalho. Essas estratégias são de alto custo psíquico e não colaboram em nada para a formação de equipes coesas e nem para a produção de novos modos de atuar. Tais atitudes mesclam-se com sentimentos de injustiça frente à ausência de soluções institucionais para os problemas. Para que o vínculo na equipe se instale e perdure, devem ser asseguradas condições mínimas de trabalho, como estabilidade, salário condizente, segurança do ponto de vista trabalhista.

No cotidiano, são mais frequentes as referências às condições gerais de trabalho, às relações intra ou interequipes, às relações com os pacientes e suas famílias e aos sentimentos que essas relações acarretam. As limitações salariais também são mencionadas, porém há facilidade de produzir momentos de reflexão coletiva sobre o trabalho, tendo como caminho possível as reuniões clínicas semanais da equipe.

O trabalho em saúde mental fundamentou-se com o objetivo de analisar as concepções de agentes sob o sentido do trabalho em equipe multiprofissional e as evidências empíricas de caráter coletivo desse trabalho.

O interesse por esse trabalho origina-se de minha experiência como psicóloga e coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no município mineiro de Três Pontas, por 20 anos. Durante esse tempo, observei períodos de adoecimento individual e coletivo em função das condições de trabalho e a proximidade com a loucura e doença. Através de observação direta do cotidiano do trabalho em situações distintas e análise da prática desses profissionais do CAPS e suas reações, pretendo demonstrar a negligência e a falta de cuidado com esse trabalhador de saúde mental, suas fragilidades e vulnerabilidades no difícil trabalho cotidiano, e a ausência do suporte e de assistência a esses profissionais e equipes, que geram consequências como fadiga, depressão, sentimento de incapacidade, desmotivação, licenças, absenteísmo e consumo de psicofármacos.

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Breve relato do cotidiano do trabalhador de saúde mental na sua lida no CAPS de Três Pontas

A coordenadora entra no CAPS I trazendo questões da Secretaria de Saúde, como ofícios, cobranças e normas. A prioridade é reduzir gastos e aumentar a produtividade.

A auxiliar de enfermagem dá seu recado: - “Olhe aqui, não tem mais vagas e o usuário diz que não vai embora sem ser atendido”. A coordenadora contorna a situação e acalma a auxiliar de enfermagem.

O tumulto na recepção é frequente. A coordenadora tenta falar algo, ninguém a escuta. Entre prontuários, receitas, medicamentos e telefonemas, as auxiliares de enfermagem se desdobram para atender usuários e profissionais.

Um técnico anuncia: - “Assim não dá. O carro não veio de novo! Estou com inúmeras visitas pendentes. Quando vamos ter o nosso carro?” - A coordenadora responde: “Acredito que um dia teremos o nosso veículo!”. Promessas é que não faltam!

- “Ah! Ganhamos quatro computadores, doação de um banco estrangeiro! Vamos cuidar para que chegue realmente ao CAPS I”.

Outro técnico chega e diz à coordenadora: “Conversa com a equipe, olha essa triagem, as urgências estão ficando para trás!”. - “O que está chegando pode esperar! Precisamos esclarecer o que é urgência novamente”, diz a coordenadora.

Um técnico há pouco tempo no serviço pede para falar em particular: “Tem um tempo prá mim? Não dou conta desse caso, está me angustiando, me ajude!”. E a coordenadora tenta acolher e orientar o profissional.

“A equipe já ouviu falar que a supervisão clínica existe, mas nunca foi contemplada!”- queixa-se outro.

É comum que a sala da coordenação fique de porta aberta para usuários e profissionais, daí o motivo de chegarem um a um com seus problemas, questões, avanços ou para desabafar simplesmente.

Um técnico diz em tom consternado, revelando sua frustração: “Quando o material vem para as oficinas é sempre com atraso e não é suficiente.” A outra diz animada: “Vamos dar um jeito!”. Assim, juntas, inventam alguma atividade.

A coordenadora comunica que a Secretaria de Saúde vai oferecer ginástica laboral e ioga por um mês, para usuários e profissionais. A equipe recebe bem, mas, na prática, poucos profissionais participam e o ambiente de trabalho não favorece as atividades.

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Ao mesmo tempo, a Secretaria exige mais produção, maior quantidade de atendimentos. A equipe questiona o tempo, demonstrando frustração e preocupação com a qualidade do atendimento.

Muitas questões são levadas para reuniões semanais. A “turma antiga”, com 20 anos de serviço, conforta a “turma nova”, com três anos de trabalho: - “Antes era bem pior. Hoje, pode-se dizer que estamos no paraíso!” As angústias são levadas e busca-se apoio na equipe e, na maioria das vezes, são acolhidas.

Outro técnico interpela: “O que faremos com tantos usuários de álcool e drogas no CAPS I?” A coordenadora insiste: - “Vamos levar para a reunião.”

E a reunião semanal é insuficiente para tanta angústia, faltas e desgastes. Embora seja suporte para muitas angústias e frustrações, a carga emocional recebida pelos profissionais não se desfaz ali, causando sofrimento e adoecimento e, muitas vezes, culminando em licenças e uso de psicotrópicos.

O Centro de Atenção Psicossocial

Os CAPS são serviços complexos, por isso há necessidade de um campo interdisciplinar de conhecimento e prática. Apresentam extrema importância no cenário de práticas em saúde mental para a reversão do modelo hospitalar. Percebe-se que surgem problemas na mudança do modelo asilar para a prática dos princípios da Reforma Psiquiátrica. Essa prática pretende modificar o sistema de tratamento clínico e psicossocial do sofrimento psíquico doença mental, eliminando gradualmente a internação como forma de exclusão social.

Neste lugar onde se aposta no novo, mas se está diante da permanente tensão entre o novo e o velho fazer psiquiátrico e/ou seus equivalentes, as repercussões subjetivas do atendimento a psicóticos nos trabalhadores desses serviços advindas da lida com o sofrimento psíquico e a loucura podem originar muitas questões. Intensas demandas de cuidados por parte dos usuários são sentidas como “peso” nos ombros dos trabalhadores, que experimentam sensações tensas, construindo situações paradoxais, cobrando de si estados de ânimo difíceis de serem mantidos. Essas repercussões subjetivas manifestam-se em exaustão, tristeza, incapacidade de acolher o outro, frente à cobrança de estarem disponíveis, alegres e prontos a escutar o tempo todo. De acordo com Emerson (2004), “por estas manifestações, tão sofridas e dúbias, situações como lugares de polaridades, constitutivas do ‘olho do furacão’, no qual os CAPS e seus trabalhadores se encontram”.

As exigências postas aos profissionais pelo processo de trabalho levam em

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conta um modo como os próprios trabalhadores as vivenciam, o que entendemos por carga de trabalho. Os recursos materiais que o trabalhador deve dedicar à tarefa, ou seja, a quantidade de informações que ele deve considerar na sua realização, seu grau de complexidade, os recursos de memória de que deverá lançar mão, entre outros aspectos, entende-se por carga cognitiva ou mental. Os recursos afetivos relacionados ao sentido atribuído à tarefa e outros aspectos da relação que os trabalhadores, individual e coletivamente, mantêm com seu trabalho, entendem-se por carga psíquica. Esta se encontra fortemente relacionada ao conteúdo do trabalho e às possibilidades de atribuir a ele um sentido positivo.

O sentido do trabalho para o trabalhador é o que o insere no mundo, o que possibilita o encontro consigo mesmo e com o outro. Quando os limites são tantos que os desenvolvimentos coletivos e singulares ficam impedidos, os custos psicológicos são altos: entra em cena o sofrimento psíquico.

Corpo que sente do doente, corpo que sente do trabalhador, no entanto, corpo ausente da pretensa “arte” de cuidar, preterido por um mecanismo biológico abstrato sobre o qual se exerce uma atividade fragmentada e fragmentante, gerando ações que, se individuais e individualizantes, são, no entanto totalizantes quando abstraem do cuidado aquilo que, aliando-nos a Foucault (2004), entendemos vir antes do cuidado com o outro, que é o cuidado de si (OSORIO).

A noção de exaustão do trabalhador no sentido de produtor de novas possibilidades de vida consome a sua própria; se não produzi-las o tempo todo, se exaure.

Os trabalhadores que procuram encaminhar de modo produtivo o seu próprio fazer interrogam o que lhes entristece e exaure, e assim abrem oportunidades de se (re)situarem em relação a novas possibilidades antimanicomiais.

Um trabalhador exaurido que encontra apoio na equipe e é acolhido pode abrir novas possibilidades e acolher os usuários, gerando novas e inovadoras ações. Coloca como uma grande tarefa a construção cotidiana de alívios para o trabalho gerar novos caminhos.

O trabalhador é regulado pela organização e suas relações pessoais. Observa-se a realidade do sofrimento no corpo, na alma, direcionando a fragilidade ao adoecimento. “Lidar com o sofrimento implica, muitas vezes, reviver momentos pessoais de sofrimento. Implica se identificar com a pessoa que sofre e sofrer junto com ela. Ou seja, conviver com o sofrimento gera sofrimento” (CAMPOS, 2005).

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Surgem muitas questões: como é trabalhar com a loucura? Que lugar é esse onde os profissionais são lançados e também adoecem no ato de cuidar dos pacientes? E quando a sua doença o coloca em condição de igualdade com seu paciente? Como o serviço responde a esse adoecimento? Que função exercem os profissionais que mais adoecem nesse contexto?

No campo da saúde mental, podemos acrescentar: a angústia em notar alguns usuários sendo estigmatizados pela sociedade, até mesmo por alguns profissionais; a família desistindo do tratamento, e, o que é pior, do usuário; e a falta de comprometimento da rede social.

Um dos fatores desencadeantes do processo de adoecimento psíquico característicos das gestões públicas é a alta exigência pela produtividade em detrimento da qualidade do atendimento.

O trabalhador da área de saúde mental, como qualquer outro, possui uma história individual constituída a partir das relações estabelecidas, primeiro entre figuras parentais, depois no ambiente social. A diferença, no entanto, é que o trabalhador da área de saúde mental vale-se desta rede de relações intersubjetivas como ferramenta de trabalho, com uma clientela que ali se encontra justamente por falência ou desagregação de suas relações. Este perfil permite que o trabalhador em saúde mental fique sem sustentação frente a forte carga emocional a que está exposto.

Não é raro trabalhadores se reunirem na tentativa de formar, inconscientemente, um grupo catártico. Há casos de trabalhadores que passam à automedicação psicotrópica como forma de aliviar a tensão e ansiedade. Muitos psicólogos e psiquiatras, então, buscam ajuda psicoterápica e da supervisão, para não deteriorare, as relações e preservarem sua saúde mental.

A falta de investimentos em recursos humanos no setor da saúde mental gera falta de profissionais qualificados, o achatamento salarial e a não reposição de pessoal. Este fato contribui para o aumento da sobrecarga de trabalho sentida pela equipe, altos níveis de estresse, burnout e sintomas depressivos e ansiosos.

Os serviços de saúde mental são avaliados constantemente pelos órgãos responsáveis e pacientes, familiares e equipes são enfatizados como parte integrante e necessária na avaliação, recebem atenção privilegiada em detrimento das repercussões sentidas pela equipe de profissionais e os custos emocionais e as necessidades que envolvem a saúde mental dos trabalhadores da área de saúde.

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Para haver excelência no atendimento e qualidade nos serviços prestados, é necessário ter profissionais satisfeitos e que gozem de boa qualidade de vida.

O poder não é considerado como algo que o indivíduo cede a um soberano (concepção contratual jurídico-política), mas sim como uma relação de forças. Ao ser relação, o poder está em todas as partes, uma pessoa está atravessada por relações de poder, não pode ser considerada independente delas. O poder não somente reprime, mas também produz efeitos de verdade e saber, constituindo verdades, práticas e subjetividade (FOUCAULT,1926).

Considerações finais

Na formação acadêmica e nos serviços de saúde mental, as preocupações são voltadas para o sofrimento psíquico do usuário, raramente ocorrem discussões referentes às angústias que o profissional poderia vir a ter no contato com o sofrimento do outro.

Tendo conhecimento da existência de poucas ações voltadas à preservação da saúde mental dos profissionais, verifica-se a necessidade de investimentos e ações que privilegiem tal cuidado e integrem uma política pública voltada ao servidor de saúde. Assinalamos a importância de espaços para grupos de discussão e reflexão desta temática objetivando novas instrumentalizações de trabalho. Quem sabe, assim, os CAPS possam, finalmente, ser um lugar de conforto e cuidado tanto para aquele que busca o acolhimento humano para o seu sofrimento, quanto para aquele que acolhe o sofrimento, já que, como vimos, os dois polos dessa relação parecem enfraquecidos no âmbito dos serviços em saúde mental.

Com esse trabalho esperamos ter contribuído para indicar a necessidade não apenas de modificar as relações de pacientes com o CAPS I e serviços de saúde mental, mas também com a sociedade, além de indicar a necessidade de buscar a coerência administrativa da gestão pública nesse sentido. Considera-se de fundamental importância a reflexão que se pretendeu iniciar aqui sobre as condições a partir das quais este trabalho se realiza e também sobre a organização de trabalho e a saúde/doença dos trabalhadores em saúde mental.

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Referências bibliográficas

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O IMPACTO DO TRABALHONA SAÚDE MENTAL

Marina Saraiva de Almeida28

RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar as contribuições da Psicanálise ao debate em torno do impacto advindo do trabalho em saúde mental sobre os trabalhadores. A partir do conceito de trabalho na Psicanálise articulando-o à prática em saúde mental, tentaremos lançar luz sobre o trabalho nos serviços de saúde mental no cotidiano dos trabalhadores.

Palavras-chaves: trabalho, psicanálise, trabalhadores, saúde mental.

28 Psicóloga graduada pela PUC-MG – Betim. Pós-graduada em Psicanálise nas Instituições de Saúde pela PUC-MG – Betim. Psicóloga do CAPS II – Pará de Minas e PSF – Santos Dumont/Pará de Minas

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Introdução

São oito horas da manhã. A recepcionista do Centro de Atenção Psicossocial – CAPS II de Pará de Minas abre suas portas e Diego e Pedro29 já estão aguardando. São pacientes de outros municípios do interior de Minas Gerais que estão em tratamento em regime de permanência-dia. O motorista os deixou na porta, esperando o serviço iniciar suas atividades. Diego está alcoolizado e o técnico em enfermagem já começa a intervir. Pedro está completamente sujo, se recusa a tomar banho e também a tomar café. O psicólogo que está de plantão tenta levá-lo ao refeitório, sem sucesso. Os outros pacientes acabam de chegar. Alguns vieram no transporte do CAPS, outros foram trazidos por familiares e Lucas veio sozinho. Hoje temos 24 pacientes na permanência-dia. Alguns com diagnóstico de psicose e, outros, de neurose; todos graves. Alguns são usuários de álcool e drogas.

A técnica percebe dois novatos e pergunta: - Por que estão aqui? Leda, uma mulher de uns 31 anos, responde que sua perícia está vencendo “e a depressão voltou também” (sic). Jonas responde que sente dores no peito e que fez vários exames, mas nada constou “acho que vou morrer” (sic). Neste momento se exalta, começa a agredir outros pacientes, mostra-se irritado, pega o telefone celular, liga para a mãe, pergunta onde ela está e segue gritando: - “Você está me enganando, não está em casa! Volte pra casa já!” (sic) Desliga o telefone, pede desculpas aos pacientes com quem gritou e diz que seu problema é a mãe.

Neste instante, David vem correndo e diz: “Ela tomou “chumbinho!”. “Está morrendo no chão do pátio” (sic). A equipe de enfermagem já estava a postos. Neuza foi encontrada no chão próximo ao banheiro e na lixeira foi encontrado chumbinho enrolado em um papel. A paciente é levada ao pronto atendimento. Os funcionários da cozinha estão atordoados. A recepção desconsolada, pois em meio ao tumulto, Lucas, um paciente que é usuário de drogas, evadiu-se do serviço.

O plantonista estava atendendo a um detendo da penitenciária quando foi informado sobre a tentativa de autoextermínio dentro do CAPS e sobre a evasão de Lucas.

29 Todos os nomes usados neste artigo são fictícios para resguardar o sigilo dos pacientes atendidos.

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Entre choros, Eunice pergunta para a enfermeira se não sobrou chumbinho, “quero morrer também” (sic). A coordenadora administrativa entra em contato com o médico do hospital psiquiátrico, que diz não ter saído a vaga de Antônio, um paciente que está contido no leito após inúmeras intervenções medicamentosas e psicológicas sem êxito. Uma técnica liga dizendo que está de atestado e não irá ao CAPS hoje.

Este movimentado dia a dia desafia-nos a constituir algum suporte possível para uma desordem que não se pode organizar à força: o humor, o chiste, a presença, a atenção, o cuidado, o convívio são os instrumentos que bem operam nesta lida (LOBOSQUE, 2001, p.27).

O trabalho no CAPS

Os Centros de Atenção Psicossocial foram criados a partir da Reforma Psiquiátrica, constituindo-se uma realidade praticamente recente. Com novas propostas de atuação, os profissionais são levados, todo momento, a reflexões sobre suas práticas e a uma construção diária do cotidiano do serviço (FERRER, 2007).

Se analisarmos historicamente a assistência em saúde mental, constatamos práticas de violências explícitas ou não, pela exclusão social, pelo poder do profissional sobre o usuário e a repressão moral, guiados por um referencial de modelo biológico que priorizava o manicômio como o único local para o tratamento (FERRER, 2007).

A partir da década de 1980, a Reforma Psiquiátrica brasileira permitiu a legitimação dos Centros de Atenção Psicossocial, que funcionam como equipamentos substitutivos aos hospitais psiquiátricos.

Os primeiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) foram criados a partir de 1987 em São Paulo e Santos (SP), respectivamente, regulamentados pelo Ministério da Saúde através das Portarias 189, de 1991 e 224, de 1992, e se tornaram referência para a implantação de serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos em todo o País. Os CAPS e NAPS propõem a desconstrução do manicômio e a construção de um novo projeto de saúde mental em uma instituição, que não segregue e não exclua. Visam superar a lógica da assistência em direção à lógica da produção de saúde (FERRER, 2007).

Os CAPS são definidos como unidades de saúde, comunitárias e regionais, compostas por equipe multiprofissional responsável por oferecer

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atendimentos individuais e/ou grupais, visitas domiciliares, atendimento à família e desenvolvimento de atividades comunitárias, com enfoque na integração do doente mental na comunidade e sua inserção social (MINISTÉRIO DA SAÚDE / BRASIL, 1994).

Se por um lado, o redirecionamento das políticas públicas denuncia e ampara as mudanças propostas, por outro, ele é insuficiente para efetivar a desinstitucionalização. Não é apenas a normatização que irá garantir o seu sucesso. Essa mudança de paradigma traz consigo o desafio de sua execução, no dia a dia, nos espaços em que deve ser sustentada. Para que isso seja possível, é necessária uma nova postura perante a vida: há que se ter abertura para o inusitado, para o inacabado, para o incontrolável, para que seja possível construir dispositivos coerentes com essa nova forma de pensar. Acreditamos que é nos espaços da prática cotidiana, com o que ela apresenta de singular, que a desinstitucionalização pode, de fato, se dar por meio da invenção de novas formas de relacionamento entre as pessoas, portadoras de transtorno mental ou não (CAMPOS & ROMAGNOLI, 2007).

Ao convocar os profissionais da saúde mental a rever seu entendimento a respeito da loucura, podemos sair da ideia de “cura” para a de “cuidados”, e da ideologia do “reparo” para a de “direitos” (SARACENO,1999).

A Reforma Psiquiátrica contribui para a desconstrução de saberes e certezas, e exige um novo trabalhador – que agora não mais trabalha sob a proteção dos muros dos hospitais, mas deve circular pela cidade; que não mais trabalha com “loucos de todo o gênero”, mas com “cidadãos”. Transição do hospital para a cidade: do conhecimento, da legislação, dos serviços, dos usuários, dos trabalhadores. Interstício recheado por angústias, dúvidas, sofrimentos e resistências, mas também por possibilidades de criação e vida (NARDI e RAMMINGER, 2007).

A Reforma Psiquiátrica, enquanto movimento social organizado, evidencia a importância de refletir sobre os modos e processos de subjetivação, quando argumenta que não deve ser reduzida à mera desospitalização (passagem do hospital psiquiátrico para a cidade), definindo que sua luta é pela desinstitucionalização, ou seja, por outras formas de se relacionar com a loucura. Formas que não se reduzam a discursos médicos, psicológicos e científicos que identificam a loucura com a falta: de juízo, de potência, de entendimento, de consciência, de vontade. Impossibilidade de vida.

O trabalhador, por sua vez, também é jogado na falta e impossibilidade na medida em que, enquanto principal agenciador da Reforma Psiquiátrica, não possa perguntar-se sobre os saberes que o subjetivam como trabalhador ou, mais ainda, sobre a forma de se relacionar com a loucura, a saúde e o trabalho em sua vida (NARDI & RAMMINGER, 2007).

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O profissional envolvido na dinâmica do CAPS é considerado como uma peça chave para a consolidação deste novo paradigma de cuidado em saúde mental. No entanto, será que estes profissionais têm conseguido trabalhar com a complexidade de fatores que envolvem o cuidado em saúde mental? Como estes profissionais lidam diariamente com a loucura e a segregação social? (FERRER, 2007).

O sofrimento no trabalho

O trabalho no campo da saúde mental pode ser identificado como um “trabalho de cuidados”, que envolve respeito e inclusão. É fundamental acolher quem sofre, escutá-lo com atenção e incluí-lo em dispositivos que visem atenuar o sofrimento. Porém, não é em todos os casos que o tratamento é bem sucedido. Se avaliarmos alguns acompanhamentos em saúde mental podemos verificar, além de casos que exigem trabalho mas têm um efeito interessante de melhora e inclusão, uma realidade difícil: pacientes cronificados em CAPS; alto índice de tentativas de autoextermínio; uso irregular de medicamentos; falta de aderência ao tratamento. Diante dessa problemática, o que emerge como uma primeira resposta é a desmotivação dos trabalhadores.

Este artigo busca refletir sobre esta problemática trazendo alguns elementos de uma experiência em um CAPS II, no município de Pará de Minas que, segundo o Censo de 2010 do IBGE, possui 84.252 habitantes, localizado na região Centro-Oeste de Minas Gerais. Ali se realiza um protocolo de atendimento aos pacientes que solicitam o serviço. Inicialmente, é realizado um acolhimento30 por um dos técnicos de uma equipe multidisciplinar: psicólogo, terapeuta ocupacional, enfermeiro ou psiquiatra. Durante o acolhimento, são analisadas as possibilidades de tratamentos e encaminhamentos possíveis ao caso. Porém, o que se percebe, é a angústia demonstrada por alguns profissionais diante de casos complexos e de difícil tratamento.

É nítido o sofrimento de alguns profissionais. O que se observa em comum entre os que procuram o CAPS não diz respeito apenas às questões psíquicas, de graves conflitos, mas também uma realidade social assustadora: falta de comida, péssimas condições de moradia, questões assistenciais quase impossíveis de se resolverem e também problemas que envolvem violência doméstica ou mesmo outros tipos de agressões, nas quais não se tem possibilidade de “sair” do ambiente de vulnerabilidade.

30 Acolhimento: escuta ofertada por um técnico do serviço ao usuário que procura pelo CAPS, com o intuito de dar uma primeira resposta ao paciente, avaliar seu quadro psíquico e fazer encaminhamentos necessários, seja para os dispositivos de atenção no próprio CAPS, seja na rede de cuidados intersetorial.

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Surgem assim o sofrimento e a angústia em ter tão pouco a fazer. Como lidar com a angústia frente aos pacientes? Assim surgem os problemas com a equipe, ou melhor, o sintoma-equipe. Diante dos problemas dos pacientes, os obstáculos no tratamento muitas vezes são lidos como limites ou mesmo como sintomas da equipe. A instituição fica completamente afetada diante do fracasso, do não ter expectativas, da cobrança em querer fazer mais do que o possível.

O trabalhador dos serviços de saúde mental propostos pela Reforma Psiquiátrica convive com a tensão entre habitar um lugar rico para a criação e invenção, de um lado, e de outro, com a desvalorização de seu papel de servidor público, com a falta de investimentos e de ações intersetoriais, que impõem limites para a prática e sobrecarregam o trabalhador. É neste jogo que temos a subjetivação do trabalhador de saúde mental, considerando que é no confronto com o sofrimento – seja valendo-se dele para criar, seja lutando para não adoecer – que se dá o cotidiano de sua atividade (NARDI & RAMMINGER, 2007).

O trabalho no campo da saúde mental – que se dirige para desinterditar a produção do desejo e, ao mesmo tempo, gerar redes inclusivas na produção de novos sentidos para o viver no âmbito social, é de alta complexidade, múltiplo, interdisciplinar, intersetorial e interprofissional; que, em última instância, só vinga se estiver colado a uma “revolução cultural” do imaginário social, dos vários sujeitos e atores sociais, ou seja, se constitui também, como gerador de novas possibilidades anti-hegemônicas de compreender a multiplicidade e o sofrimento humano, dentro de um campo social de inclusividade e cidadanização (MERHY, 2004).

Ressalto que este trabalho humano tem que ser portador da capacidade de vivificar modos de existências interditados e antiprodutivos, tem que permitir que a vida produza vida, implicação última de qualquer trabalho em saúde enquanto trabalho que opera na sua dimensão tecnológica, centralmente, modo em ato de trabalho vivo, que podem e devem, na minha concepção, adquirir sentido à medida que a sua “alma” seja a produção de um cuidado em saúde dirigido para ganhos de autonomia e de vida dos seus usuários. Para que a vida, como utilidade, faça muito sentido (MERHY, 2004).

Apostar alto deste jeito é se permitir usufruir de seu lugar do novo e do acontecer em aberto e experimental, é construir um campo de proteção para quem tem que inventar coisas não pensadas e não resolvidas, para quem tem que construir suas caixas de ferramentas, muitas vezes em ato, para quem, sendo cuidador, deve ser cuidado, se cuidar (MERHY, 2004).

Todo processo de trabalho que captura plenamente o trabalho vivo em ato na produção, impede a construção do alívio produtivo pelo trabalhador e pela equipe. Dá-lhes grau zero de liberdade para ressignificarem seus atos e inventarem

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novas possibilidades e sentidos para os seus fazeres produtivos. Organizar CAPS que acolham os demandantes, que se constituam em mecanismos descapturantes do trabalho vivo em ato, possibilita o trabalho em saúde mental. Isto se coloca como uma grande tarefa: a construção cotidiana de alívios para o trabalho vivo deverá gerar novos caminhos, sem receitas.

Creio que cada coletivo deve problematizar, no seu fazer, a implicação com o agir antimanicomial e a construção de tempo real de trabalho no interior da equipe, dirigindo-o, intencionalmente, para fabricar novos sentidos para o viver do louco e da loucura na sociedade, abrindo novas pistas, em cada lugar onde os CAPS são construídos (MERHY, 2004).

Do mal-estar à produção

O relacionamento nas organizações de trabalho é permeado por trabalhadores que chegam e pelos que já estão na organização - cada um traz a sua história de vida e adversidades. Assim dizemos que “o mal-estar psíquico” envolve condicionantes particulares e sociais. É essencial olharmos para os trabalhadores por outro ângulo, dar sentido às pequenas coisas, buscar compreensão do que talvez não é dito.

Sendo o trabalho em saúde mental uma tarefa árdua e complexa, é fundamental estar disposto a “aprender a aprender” ou aprender com o outro, seja este outro: um mestre, um colega de trabalho, um paciente, um familiar, “um...”.

Aprende-se a lidar com o inusitado, aceitar pontos de não saber, o que para alguns profissionais pode parecer uma tarefa impossível em decorrência de desconhecimento ou mesmo de questões narcísicas que podem dificultar o avanço do trabalho em equipe. Lidar com psicoses e neuroses graves é um desafio que deve ser construído com criatividade e desejo, porém, sem garantias.

Atender pacientes com estas estruturas clínicas não é uma tarefa simples, já que esta experiência nos remete à história pessoal ou mesmo a limitações de cada profissional, o que pode propiciar e facilitar o aparecimento de falhas durante o tratamento dos pacientes. E é justamente através das nossas limitações e das dificuldades com o trabalho que surgem os conflitos com a equipe de trabalho, o que acarreta o adoecimento dos próprios colaboradores.

Há aqueles que buscam estratégias para lidar com a situação: buscam tratamentos, supervisões, conhecimentos de diversas formas, mas há aqueles que continuam queixosos, criticando a tudo e a todos sem força de se movimentar

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ou posicionar para futuras mudanças. Diante dos nossos próprios fracassos, lidar com uma equipe frágil e provocar questões para que todos se impliquem tornam-se um desafio. Muitas vezes, torna-se mais fácil, ou menos difícil, tratar de um paciente, do que lidar com um colega de trabalho.

Constatamos, com esta reflexão, que quando se trabalha com estruturas clínicas tão complexas, nos deparamos com nossas questões mais íntimas e este exercício é fundamental para conseguirmos nos movimentar para melhorarmos a nossa própria saúde mental, o que consequentemente propiciará um atendimento mais humanizado ao paciente. Porém, apesar de existir muitas dificuldades e situações angustiantes e geradoras de sofrimento, existe uma implicação destes trabalhadores motivada também pelo prazer de se trabalhar no CAPS, pelo produto do trabalho, que mantém estas pessoas ligadas às tarefas e responsabilidades que assumem.

Lacan é quem nos indica um caminho: “sejam pacientes”! Aqui, a dupla via que se abre é preciso escutar.

Contudo, interrogamos se não é também dever do Estado, assim como assegurar as condições para uma melhor qualidade do trabalho em saúde mental, a criação de uma política de valorização do trabalhador e de uma política de saúde do trabalhador. É preciso que os trabalhadores se organizem para que isso se mova.

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Referências bibliográficas

BRASIL, Ministério da Saúde. Reorientação do Modelo Assistencial em Saúde Mental – Relatório Final, 1994.CAMPOS, Adriana Pezzini; ROMAGNOLI, Roberta Carvalho. Os encontros entre os agentes comunitários de saúde e as famílias dos portadores de transtorno mental. Mental – ano V – n.9 – Barbacena – nov. 2007 – p.77-99.FERRER, Ana Luiza. Sofrimento Psíquico dos trabalhadores inseridos no Centro de Atenção Psicossocial: Entre o prazer e a dor de lida com a loucura. Campinas, SP: (s.n.),2007.FERREIRA, Tânia. Laço Social e Trabalho ou uma outra razão. XI Jornada do Simpósiodo Campo freudiano, Belo Horizonte: 1998.INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE) - Censo Populacional 2010. (29 de novembro de 2010). Página visitada em 11 de dezembro de 2010.LOBOSQUE, Ana Marta. Experiências da Loucura. Rio de Janeiro: Garamond, 2001.MERHY, Emerson Elias. OS CAPS e seus trabalhadores: o olho do furação antimanicomial. Alegria e Alívio como dispositivos analisadores, 2004.NARDI, Henrique Caetano; RAMMINGER, Tatiana. Modos de Subjetivação dos Trabalhadores de Saúde Mental em Tempos de Reforma Psiquiátrica. PHYSIS: Ver. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 17(2):265-287,2007.SARACENO, B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Rio de Janeiro: Te Corá, 1999.

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