saúde mental da criança e do adolescente 2005

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  • 8/8/2019 sade mental da criana e do adolescente 2005

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    MINISTRIO DA SADESecretaria de Ateno Sade

    Departamento de Aes Programticas Estratgicas

    Srie B. Textos Bsicos em Sade

    Braslia DF2005

    Sade MentalInfanto-juvenil

    Caminhos para uma Poltica de

  • 8/8/2019 sade mental da criana e do adolescente 2005

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    2005 Ministrio da Sade.Todos os direitos reservados. permitida a reproduo parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que

    no seja para venda ou qualquer fim comercial.

    Srie B. Textos Bsicos em Sade

    Tiragem: 1. edio 2005 3.000 exemplares

    Edio, distribuio e informaes:

    MINISTRIO DA SADE

    Secretaria de Ateno Sade

    Departamento de Aes Programticas Estratgicas

    rea Tcnica de Sade Mental

    Esplanada dos Ministrios, bloco G, Edifcio Sede,

    6. andar, sala 606

    CEP: 70058-900, Braslia DF

    Tels.: (61) 315 2313 / 315 3319Fax: (61) 315 2313

    E-mail: [email protected]

    Home page: http://pvc.datasus.gov.br

    Organizao:

    Alfredo Schechtman

    Luciano Elia

    Maria Cristina C. L. Hoffmann

    Maria Cristina Ventura

    Rita de Cssia Andrade Martins

    Rodrigo Nogueira

    Reviso final:

    Pedro Gabriel Delgado

    A obra da capa pertence ao Museu de Imagens do

    Inconsciente Rio de Janeiro/RJ

    Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    Ficha Catalogrfica

    Brasil. Ministrio da Sade. Secretaria de Ateno Sade. Departamento de Aes Programticas Estratgicas.

    Caminhos para uma poltica de sade mental infanto-juvenil / Ministrio da Sade, Secretaria de Ateno Sade, Departamento de Aes Programticas Estratgicas. Braslia : Editora do Ministrio da Sade, 2005.

    76 p. (Srie B. Textos Bsicos em Sade)

    ISBN 85-334-0946-X

    1. Sade Mental. 2. Poltica de Sade. 3. Criana. 4. Adolescente. I. Ttulo. II. Srie.

    NLM WM 105

    Catalogao na fonte Editora MS OS 2005/0379

    EDITORA MS

    Documentao e Informao

    SIA trecho 4, lotes 540/610

    CEP: 71200-040, Braslia DF

    Tels.: (61) 233 1774/2020 Fax: (61) 233 9558

    E-mail: [email protected]

    Home page: www.saude.gov.br/editora

    Equipe editorial:

    Normalizao: Gabriela Leito

    Reviso: Denise Carnib, Lilian Assuno

    Projeto grfico e capa: Marcus Monici

    Ttulos para indexao:

    Em ingls: Ways for a Policy of Child and Adolescent Mental Health

    Em espanhol: Caminos para una Poltica de Salud Mental Infantil y Juvenil

    http://pvc.datasus.gov.br/mailto:[email protected]://www.saude.gov.br/editorahttp://www.saude.gov.br/editoramailto:[email protected]://pvc.datasus.gov.br/
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    Sumrio

    Apresentao __________________________ 5

    1. Ateno em sade mental infanto-juvenil

    no SUS ______________________________ 7

    1.1 Antecedentes ____________________ 7

    1.2 O desafio da construo de uma poltica

    de sade mental infanto-juvenil _____ 9

    2. Princpios para uma poltica nacional de

    sade mental infanto-juvenil __________11

    3. Diretrizes operacionais para os servios

    de sade para crianas e adolescentes __15

    4. Frum nacional de sade mental

    infanto-juvenil ______________________17

    4.1 O que o Frum? _________________ 17

    4.2 Quem participa? __________________ 18

    4.3 Atribuies do Frum ______________ 20

    4.4 Caractersticas do funcionamento do

    Frum _________________________ 20

    5. I reunio temtica do Frum __________23

    6. Textos da I reunio temtica ___________25

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    Abordagem crtica da institucionalizao infanto-juvenil no Brasil ____31

    De volta cidadania proposta para uma nova poltica de incluso

    social dos portadores de deficincia em situao de abrigo ___________37

    Comisso intersetorial para promoo, defesa e garantia do direito de

    crianas e adolescentes convivncia familiar e comunitria _________43

    A rede da ateno na Sade Mental articulaes entre Caps e

    ambulatrios __________________________________________________49

    7. Referncias Bibliogrficas __________________________________________63

    8. Anexos __________________________________________________________67

    Anexo A Recomendao n. 01/2005 do Frum Nacional de Sade Mental

    Infanto-Juvenil ___________________________________________________ 67Anexo B Portaria n. 1.608, de 3 de agosto de 2004 _______________________71

    Anexo C mapeamento preliminar dos setores de assistncia criana e ao

    adolescente, elaborado a partir das informaes fornecidas pelas

    representaes do Frum ____________________________________75

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    Apresentao

    Estima-se que de 10% a 20% da populao

    de crianas e adolescentes sofram de transtor-

    nos mentais. Desse total, de 3% a 4% necessitam

    de tratamento intensivo. Entre os males mais fre-

    qentes esto a deficincia mental, o autismo, a

    psicose infantil, os transtornos de ansiedade. Ob-

    servamos, tambm, aumento da ocorrncia do

    uso de substncias psicoativas e do suicdio entre

    adolescentes.

    O quadro merece ateno especial do setor

    pblico. O Ministrio da Sade, aderindo idia

    proposta pela Organizao Mundial da Sade e

    pela Federao Mundial de Sade Mental, prioriza a

    construo de uma nova Poltica de Sade Mental,

    voltada para a infncia e adolescncia. Preenche,

    assim, uma lacuna histrica: a ausncia de uma po-

    ltica de sade mental voltada para esse pblico,

    e que tem tido como conseqncia mais trgica

    o tratamento ausente ou inadequado de crianas

    e adolescentes.

    Esta publicao o resultado do empenho

    de diversos profissionais da rea da Sade Mental

    Humberto Costa

    Ministro de Estado

    da Sade

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    e traa, alm das perspectivas histricas acerca do atendimento a crianas e adoles-

    centes, consideraes tcnicas fundamentais para a discusso e implementao dessa

    poltica no mbito do Sistema nico de Sade.

    Reafirma-se aqui a condio da criana e do adolescente como sujeitos de respon-

    sabilidades e direitos. Apresentam-se, ainda, as bases e os princpios para os protoco-

    los do atendimento a esse pblico, que s pode ser feito de forma eficiente se houver

    a participao e o acolhimento por parte da comunidade. Igualmente importante

    a ampliao e reforo dos laos sociais desses meninos e meninas, com instituies

    religiosas, escolares e jurdicas e servios comunitrios, em que esses pacientes j se

    encontrem includos e com os quais se identifiquem. Por isso, toda e qualquer ao

    voltada para a sade mental de crianas e jovens precisa estabelecer parcerias com

    outras polticas pblicas, como ao social, educao, cultura, esportes, direitos hu-

    manos e justia. No podemos tambm deixar de estabelecer interfaces com seto-

    res da sociedade civil e entidades filantrpicas que prestam relevante atendimento

    nessa rea.

    Nossa esperana que esta publicao possa contribuir para a consolidao de

    uma nova etapa na ateno em sade mental das crianas e dos jovens do nosso Pas.

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    1. Ateno em

    sade mentalinfanto-juvenil no

    SUS

    1.1 Antecedentes

    As aes dirigidas a crianas e adolescentes

    no Brasil atravessaram um sculo de histria cir-

    cunscritas a um iderio de proteo, que, parado-

    xalmente, redundou na construo de um modelo

    de assistncia com forte tendncia institucionali-

    zao e em uma concepo segmentada, no inte-

    gradora, da populao infanto-juvenil. Ao mesmotempo em que o incio do sculo XX propagou a

    importncia da assistncia a crianas e adolescen-

    tes, principalmente porque elas representavam

    um futuro diferenciado para a nao brasileira,

    engendrou-se um conjunto de medidas, calcadas

    na lgica higienista e de inspirao normativo-

    jurdica, que expandiu sobremaneira a oferta de

    instituies fechadas para o cuidado de crianase adolescentes, em sua maioria sob a tutela do

    campo filantrpico. O discurso hegemnico sobre

    a importncia da criana na organizao da socie-

    dade republicana no teve como corresponden-

    te a tomada de responsabilidade do Estado que,

    por outro lado, oficializava o modelo em curso e a

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    concepo da criana a ser assistida: a deficiente social (pobre), deficiente mental e

    deficiente moral (delinqente).

    O resultado desse longo processo que visava a assistir crianas e adolescentes

    foi, por um lado, a institucionalizao do cuidado e, por outro, a criminalizao da

    infncia pobre, gerando um quadro que, no limite, um quadro de desassistncia,

    abandono e excluso.

    Nas tramas desse processo, passaram silenciosas, mas no isentas de suas conse-

    qncias nefastas, uma legio de crianas e adolescentes portadores de transtornos

    mentais. Includas na rubrica de deficientes, como, alis, todas as outras, transforma-

    ram-se em objeto de excluso ou mesmo de puro desconhecimento por parte dasreas responsveis pelas aes oficiais de cuidado.

    O amplo movimento pela redemocratizao do Pas, no final da dcada de 70,

    deu visibilidade e ampliou as condies de possibilidade para que essas questes

    estruturais pudessem ser alteradas e superadas. Resultado de um amplo processo

    de debate por toda a sociedade brasileira, a promulgao da Carta Constitucional de

    1988, marco da democracia e dos direitos, teve o mrito de afirmar sem ressalvas a

    condio cidad de crianas e adolescentes, assegurando-lhes o direito vida, sa-

    de, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, aorespeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de

    toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso,

    conforme descrito no artigo 227 da Carta Magna. Esse mesmo processo de afirma-

    o da condio de sujeitos de direitos tributado a crianas e adolescentes resultou

    na promulgao de Lei n. 8.069, de 13/7/1990, conhecida como Estatuto da Criana

    e do Adolescente.

    Entretanto, a promulgao de um texto legal no operaria por si as mudanas

    necessrias. Para tal, era imprescindvel a efetiva mudana do curso da histria, ope-rao que requer a consolidao de um novo modelo de assistncia de base comu-

    nitria e no mais institucionalizante , dirigido a novos cidados: sujeitos de direitos

    e de responsabilidade, no mais deficientes.

    Estava posto o desafio para o campo da Sade Mental, igualmente atravessado

    pelos debates democrticos que queriam expurgar os malefcios do asilamento e que,

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    por fora do Movimento da Reforma Psiquitrica Brasileira, viu-se obrigado a redese-

    nhar suas diretrizes, a base de seu modelo assistencial e o objeto de sua interveno.

    Foi sob a gide desse novo iderio que se constituiu no Brasil a gesto da sade mentalno SUS, cuja responsabilidade principal promover a efetiva substituio do antigo

    modelo asilar por uma rede de cuidados de base territorial e comunitria.

    A base normativa e poltica do atual campo da Sade Mental vem, h muito,

    apontando a necessidade de ser construdo um novo patamar de aes para o cui-

    dado de crianas e adolescentes portadores de transtorno mental. A 2. Conferncia

    Nacional de Sade Mental, realizada em 1992, apontou os efeitos perversos da institu-

    cionalizao de crianas e jovens e a 3. Conferncia Nacional de Sade Mental (2001)foi contundente sobre o tema, determinando que no fossem postergadas as aes

    poltico-assistenciais necessrias para que um novo tempo se instaurasse no que diz

    respeito ao cuidado e tratamento da populao infanto-juvenil. A institucionalidade

    para todas as mudanas est materializada na Lei n. 10.216, de 6/4/2001, que dispe

    sobre a proteo e os direitos das pessoas portadoras de transtorno mental e redire-

    ciona o modelo assistencial em sade mental.

    No campo especfico da Sade Mental Infanto-Juvenil, essa prioridade se materia-

    lizou na instituio do Frum Nacional de Sade Mental Infanto-Juvenil, que teve suaimplantao concretizada graas ao esforo de representantes de diferentes setores,

    do mbito governamental e no-governamental, garantindo que este se fortalea a

    cada dia como um importante espao de dilogo e construo de consensos possveis

    sobre o tema, consolidando as redes de servios, de forma que possam fazer frente

    aos diferentes problemas apresentados pelas crianas e pelos adolescentes portado-

    res de transtornos mentais

    1.2 O desafio da construo de uma poltica de sade mental infan-to-juvenil

    Hoje, um dos maiores desafios para a rea de Sade Mental, sem dvida, a

    construo de uma poltica voltada para a populao de crianas e adolescentes que

    considere suas peculiaridades e necessidades e que siga os princpios estabelecidos

    pelo SUS.

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    At recentemente, a lacuna existente no setor pblico favoreceu a criao e o

    fortalecimento de instituies totais, cujo modelo de ateno no focaliza aes e

    propostas teraputicas que visem a uma ateno integral, voltada para a reinserofamiliar, social e cultural.

    Historicamente, o vazio no campo da ateno pblica para crianas e jovens por-

    tadores de transtornos mentais e a falta de uma diretriz poltica para instituir o cuidado

    nesta rea foram preenchidos por instituies, na sua maioria de natureza privada e/ou

    filantrpica, que, durante muitos anos, foram as nicas opes de acompanhamento,

    orientao e/ou ateno dirigidas s crianas, aos jovens e aos seus familiares.

    Para se promover um desenvolvimento saudvel para os cidados nesse perodoespecial de suas vidas e alcanar o pleno desenvolvimento de suas potencialidades,

    a sociedade, por meio do Estado, precisa assegurar mecanismos de educao, pro-

    teo social, incluso, promoo e garantia de direitos da criana, do adolescente e

    da famlia.

    No campo especfico da Ateno Sade Mental, as diversas instituies

    implicadas com esses grupos, no raro, desenvolvem iniciativas que se super-

    pem ou se contrapem, dispersando esforos, apontando assim para a neces-

    sidade de constituio de uma rede ampliada de ateno em sade mental paraa criana e o adolescente, sendo fundamental que essa rede seja pautada na

    intersetorialidade e na co-responsabilidade.

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    2. Princpios para

    uma poltica nacionalde sade mental

    infanto-juvenil

    As linhas gerais de ao que caracterizam

    as polticas pblicas da rea da Sade Mental, es-

    pecificamente no segmento da sade mental de

    crianas e adolescentes, fazem-se reger por claros

    princpios que encontram suas bases em uma tica

    e em uma lgica do cuidado. Tais princpios preci-

    sam ser explicitados.

    Antes e primeiro que tudo, preciso adotarcomo princpio a idia de que a criana ou

    o adolescente a cuidar um sujeito

    Tal noo implica, imediatamente, a de res-

    ponsabilidade: o sujeito criana ou adolescente

    responsvel por sua demanda, seu sofrimento, seu

    sintoma. , por conseguinte, um sujeito de direitos,

    dentre os quais se situa o direito ao cuidado. Mas,

    a noo de sujeito implica tambm a de singula-ridade, que impede que esse cuidado se exera

    de forma homognea, massiva e indiferenciada.

    Finalmente, no se tomar o que se diz desses

    sujeitos como substituto de sua prpria palavra,

    o que implica que as demandas formuladas por

    outros sobre a criana ou jovem (pais, familiares,

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    professores, etc.) sejam ouvidas como demandas desses sujeitos que as formulam.

    preciso, pois, dar voz e escuta s crianas e aos jovens dos quais se trata. Reconhece-

    se, assim, o sofrimento mental da criana ou do adolescente como prprios, o queno a prtica corrente, caracterizada por uma leitura moral em que o outro sempre

    fala pelo sujeito ao qual nunca se d voz.

    preciso respeitar a subjetividade desse ser nico, localizar tanto o sujeito no seu

    sofrimento, quanto sua implicao nos eventos psquicos de que se queixa. Incluir, no

    centro das montagens institucionais, a criana ou o adolescente como sujeitos, com

    suas peculiaridades e responsabilidades sobre o curso de sua existncia, o nico

    modo de garantir que no se reproduza na sua assistncia o ato de se discursar sobre

    ela, de saber, por ela, o que melhor para ela. Acolhimento universal

    Este princpio significa que as portas de todos os servios pblicos de sade

    mental infanto-juvenil devem estar abertas a todo aquele que chega, ou seja, toda e

    qualquer demanda dirigida ao servio de sade do territrio, deve ser acolhida, isto

    , recebida, ouvida e respondida.

    O servio no pode fechar suas portas sob qualquer alegao de lotao, inade-

    quao entre demanda e capacidade tcnica do servio. O acolhimento universal no

    implica, portanto, na exigncia, que seria milagrosa ou tirnica, e em todo caso absur-da, de que todo aquele que procurar o servio ter que ser necessariamente absorvido

    nos modos de tratamento existentes no servio em questo (o que obviamente no

    possvel), mas na idia de que acolher, ouvir e reconhecer a legitimidade da procura

    j uma forma de cuidado,sempre possvel, que pode dar lugar a diferentes encami-

    nhamentos, segundo o caso. Recebida e ouvida a demanda, preciso que se d uma

    resposta. Trata-se de acabar com as barreiras burocrticas que dificultam o acesso ao

    servio e romper com a lgica do encaminhamento irresponsvel, que faz com que

    aquele que procura atendimento percorra, infinitamente, uma srie de servios e no

    encontre acolhida em nenhum. Como h situaes em que o encaminhamento paraoutros servios se impe, essa postura implica um novo princpio, que concerne ao

    modo de conceber e praticar o encaminhamento, quando o caso.

    Encaminhamento implicado

    Na forma de cuidado que aqui se prope, a prpria noo de encaminhamento

    redefinida e podemos denomin-la de encaminhamento implicado.

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    Essa redefinio exige que aquele que encaminha se inclua no encaminhamen-

    to, se responsabilize pelo estabelecimento de um endereo para a demanda, acom-

    panhe o caso at seu novo destino. Muitas vezes, o servio que encaminha tem defazer um trabalho com o servio para o qual o caso encaminhado, que consiste em

    discutir as prprias condies de atendimento do caso. Esse trabalho se insere na

    concepo de rede e sua construo ser abordada adiante. Existe ainda a possibi-

    lidade da desconstruo da demanda como demanda de tratamento. Nesses casos,

    o servio dever realizar o trabalho de desconstruo, que muitas vezes implica em

    uma interveno junto a outras instncias, a escola, por exemplo, quando encaminha

    situaes de indisciplina ou os freqentssimos problemas de aprendizagem como

    se fossem questes de sade mental que necessitassem de tratamento. Nesse caso,alm da construo de rede, o princpio aqui implicado o da intersetorialidade,de

    que se tratar mais adiante.

    Construo permanente da rede

    A idia de rede se desloca de uma acepo emprica, positivista, na qual significa

    um conjunto concreto de servios interligados, para situar-se no plano de uma forma

    de conceder e agir o cuidado. Se o servio no limita suas aes e intervenes ao

    plano meramente tcnico (aes teraputicas, medicao, atividades diversas), mas

    inclui no escopo de suas competncias e obrigaes o trabalho com os demais ser-vios e equipamentos do territrio, ento ele est permanentemente construindo a

    rede, mesmo na ausncia concreta de servios tecnicamente adequados ao caso.

    Tal concepo de rede articula a ao do cuidado para com o que se situa para

    fora e para alm dos limites da instituio e implica a noo de territrio.

    Territrio

    uma das categorias nocionais mais importantes com que trabalhamos no cam-

    po da Sade Mental. Podemos entend-lo como um campo que ultrapassa em todosos sentidos o recorte meramente regional ou geogrfico, que, no entanto, importa

    nele. O territrio tecido pelos fios que so as instncias pessoais e institucionais que

    atravessam a experincia do sujeito, incluindo: sua casa, a escola, a igreja, o clube, a

    lanchonete, o cinema, a praa, a casa dos colegas, o posto de sade e todas as outras,

    incluindo-se centralmente o prprio sujeito na construo do territrio. O territrio

    o lugar psicossocial do sujeito.

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    Intersetorialidade na ao do cuidado

    Um trabalho clnico no pode deixar de ampliar-se tambm no servio, de seus

    portes para fora, para a rede que inclui outros servios de natureza clnica (outros

    Capsis e Caps, ambulatrios, hospitais, PSFs, etc.), mas tambm outras agncias so-

    ciais no clnicas que atravessam a vida das crianas e jovens: escola, igreja, rgos

    da justia e da infncia e adolescncia, conselho tutelar, instituies de esporte, lazer,

    cultura, dentre outros.

    O trabalho dos servios de sade mental infanto-juvenil deve incluir, no con-

    junto das aes a serem consideradas na perspectiva de uma clnica no territrio, as

    intervenes junto a todos os equipamentos de natureza clnica ou no que, deuma forma ou de outra, estejam envolvidos na vida das crianas e dos adolescentes

    dos quais se trata de cuidar.

    Concluindo, a Poltica Pblica de Assistncia em Sade Mental aponta para a ne-

    cessidade de destituir, do lugar de referncia e de modelo de cuidado e assistncia, as

    instituies baseadas na ideologia do reparo, de carter excludente, isolacionista. O eixo

    passa a ser definido pelos direitos de cidadania, definindo a esfera pblica como um

    lugar de excelncia de ao protetiva, de cuidados ticos emancipatrios das pessoas

    em situao de risco social. Tal direo impe mudanas que se traduzem na articu-lao de novos dispositivos de cuidado vinculados ao processo de desinstitucionali-

    zao. Esse processo baseia-se no princpio de que a pessoa portadora de sofrimento

    mental, de alguma deficincia e sua famlia devem ser protagonistas do seu processo

    de emancipao, devendo assumir os seus lugares na vida de sua cidade.

    Em suma, os servios de sade mental infanto-juvenil, dentro da perspectiva que

    hoje rege as polticas de sade mental no setor, devem assumir uma funo social que

    extrapola o afazer meramente tcnico do tratar, e que se traduz em aes, tais como

    acolher, escutar, cuidar, possibilitar aes emancipatrias, melhorar a qualidade devida da pessoa portadora de sofrimento mental, tendo-a como um ser integral com

    direito a plena participao e incluso em sua comunidade, partindo de uma rede de

    cuidados que leve em conta as singularidades de cada um e as construes que cada

    sujeito faz a partir de seu quadro.

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    3. Diretrizes

    operacionais para os

    servios de sade para

    crianas e adolescentes1

    As diretrizes operacionais colocadas neste

    item tem por objetivo de apresentar alguns pon-

    tos considerados norteadores para todo e qual-

    quer servio de sade que se proponha a prestar

    ateno a crianas e adolescentes. Este material

    foi elaborado por grupo de consultores, conforme

    nota de rodap.

    Os servios pblicos de sade mental infan-to-juvenis, em particular os de base territorial e

    voltados para a ateno intensiva, devero seguir

    as seguintes diretrizes operacionais em suas aes

    de cuidado:

    reconhecer aquele que necessita e/ou

    procura o servio seja a criana, o ado-

    lescente ou o adulto que o acompanha ,

    como o portador de um pedido legtimo aser levado em conta, implicando uma ne-

    cessria ao de acolhimento;

    tomar em sua responsabilidade o agen-

    ciamento do cuidado, seja por meio dos

    procedimentos prprios ao servio procu-

    1 Este documento foi elaborado porAna Pitta, Luciano Elia, Maria CristinaHoffmann e Maria Cristina VenturaCouto, por solicitao da rea Tcnicade Sade Mental do Ministrio da Sade,em 13/2/04.

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    rado, seja em outro dispositivo do mesmo campo ou de outro, caso em que o

    encaminhamento dever necessariamente incluir o ato responsvel daquele

    que encaminha;

    conduzir a ao do cuidado de modo a sustentar, em todo o processo, a con-

    dio da criana ou do adolescente como sujeito de direitos e de responsa-

    bilidades, o que deve ser tomado tanto em sua dimenso subjetiva quanto

    social;

    comprometer os responsveis pela criana ou adolescente a ser cuidado se-

    jam familiares ou agentes institucionais no processo de ateno, situando-

    os, igualmente, como sujeitos da demanda; garantir que a ao do cuidado seja o mais possvel fundamentada nos re-

    cursos terico-tcnicos e de saber disponveis aos profissionais, tcnicos ou

    equipe atuantes no servio, envolvendo a discusso com os demais membros

    da equipe e sempre referida aos princpios e s diretrizes coletivamente esta-

    belecidos pela poltica pblica de sade mental para constituio do campo

    de cuidados;

    manter abertos os canais de articulao da ao com outros equipamentos

    do territrio, de modo a operar com a lgica da rede ampliada de ateno. As

    aes devem orientar-se de modo a tomar os casos em sua dimenso territo-

    rial, ou seja, nas mltiplas, singulares e mutveis configuraes, determinadas

    pelas marcas e balizas que cada sujeito vai delineando em seus trajetos de

    vida.

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    4. Frum nacional

    de sade mentalinfanto-juvenil

    Visando ao fortalecimento das diferentes

    iniciativas e diante da necessidade de concentrar

    esforos no campo da Ateno em Sade Mental

    Infanto-Juvenil e de otimizar as aes propostas

    e desenvolvidas pelos diferentes setores gover-

    namentais e no-governamentais, o Ministrio da

    Sade, por meio da Portaria GM n. 1.608, de 3 de

    agosto de 2004, institui o Frum Nacional de Sa-

    de Mental Infanto-Juvenil.

    Prope-se que este Frum esteja calcado na

    intersetorialidade e na constituio de redes de

    ateno como diretrizes gerais norteadoras de uma

    poltica de ateno em sade mental da criana

    e do adolescente, tornando-se dessa forma um

    importante instrumento de gesto nesta rea, no

    mbito federal.

    4.1 O que o Frum?

    O frum um espao de debate coletivo con-

    siderando as diferentes interfaces necessrias para

    o fortalecimento de uma poltica de ateno em

    sade mental que tenha como uma de suas diretri-

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    zes responder grave situao de vulnerabilidade, em contextos especficos, levando

    dessa forma a realizao de aes que tenham por objetivo a incluso social.

    Esse frum ter carter representativo e deliberativo, sendo um importante ins-

    trumento de gesto, possibilitando dar visibilidade e resolutividade s diversas difi-

    culdades que durante muito tempo ficaram em um segundo plano ou at mesmo

    totalmente ignoradas.

    4.2 Quem participa?

    O frum composto por representantes de instituies governamentais, setores

    da sociedade civil e entidades filantrpicas que atuam de forma relevante na rea, ca-

    bendo-lhe convocar e/ou convidar outros segmentos representativos quando sentira necessidade.

    Tero assento permanente as seguintes instncias, conforme determina a Porta-

    ria GM n. 1.608, de 3 de agosto de 2004:

    I rea Tcnica de Sade Mental Dape/SAS, que o coordenar;

    II rea Tcnica de Sade Mental Poltica de lcool e Outras Drogas Dape/

    SAS;

    III rea Tcnica de Sade da Criana Dape/SAS;

    IV rea Tcnica de Sade do Adolescente e do Jovem Dape/SAS;

    V rea Tcnica de Sade da Pessoa com Deficincia Dape/SAS;

    VI Departamento de Aes Programticas Estratgicas/SAS;

    VII Departamento de Ateno Bsica SAS;

    VIII Programa Nacional de DST/Aids/SVS;

    IX Representantes dos Centros de Ateno Psicossocial Infanto-Juvenil, sen-do um representante por regio brasileira;

    X Frum Nacional de Coordenadores de Sade Mental;

    XI Representantes de Coordenadores de Sade Mental, sendo um represen-

    tante por regio brasileira;

    XII Conselho Nacional de Sade;

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    XIII Ministrio da Justia e Secretaria Nacional da Segurana Pblica;

    XIV Ministrio da Educao;

    XV Ministrio da Cultura;

    XVI Ministrio dos Esportes;

    XVII Conselho Nacional de Procuradores Promotoria de Defesa Sade,

    do Ministrio Pblico;

    XVIII Associao Brasileira de Magistrados e Promotores de Justia da In-

    fncia e Juventude;

    XIX Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome;XX Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) PR;

    XXI Conselho Nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente (Conan-

    da) SEDH/PR;

    XXII Coordenadoria Nacional para a Integrao da Pessoa Portadora de

    Deficincia (Corde) SEDH/PR;

    XXIII Federao Brasileira de Entidades para Excepcionais (Febiex);

    XXIV Federao Nacional das Apaes;

    XXV Federao Nacional das Instituies Pestalozzi;

    XXVI Associao Brasileira de Autismo;

    XXVII Comisso de Assuntos Sociais do Senado Federal;

    XXVIII Comisso de Seguridade Social e Sade da Cmara dos Deputados;

    XXIX Associao Juzes para a Democracia (AJD);

    XXX Frum Nacional de Conselheiros Tutelares;

    XXXI Associao Brasileira de Neurologia e Psiquiatria da Infncia e Adoles-

    cncia (Abenepi);

    XXXII Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua; e

    XXXIII Movimento de Adolescentes Brasileiros.

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    4.3 Atribuies do Frum

    Podemos definir cinco grandes eixos referentes s principais atribuies do F-

    rum Nacional sobre Sade Mental Infanto-Juvenil:

    I funcionar como espao de articulao intersetorial e discusso perma-

    nente sobre as polticas para esta rea; incentivando a criao de fruns

    estaduais para a rea da Sade Mental da Criana e do Adolescente;

    II estabelecer diretrizes polticas nacionais para o ordenamento do conjunto

    de prticas que envolvam o campo da Ateno Sade Mental Infanto-

    Juvenil;

    III promover a integrao, a articulao e a interlocuo entre as diversas

    instituies que atuam no campo da Ateno Sade Mental dessa po-

    pulao;

    IV produzir e disseminar conhecimento e informaes que subsidiem as

    instituies responsveis pelas polticas pblicas nessa rea, nos diversos

    mbitos de gesto; e

    V elaborar recomendaes e deliberaes a serem adotadas sempre que

    possvel pelos gestores pblicos da rea da Sade Mental da Criana edo Adolescente, nos diversos nveis de gesto, de forma a serem retrans-

    mitidas e implementadas na rede intersetorial de assistncia.

    4.4 Caractersticas do funcionamento do Frum

    Coordenao: Coordenao Nacional de Sade Mental/Dape/SAS/MS.

    Foco de atuao: Sade Mental Infanto-Juvenil.

    Tipo de reunies: o frum ter reunies plenrias, que ocorrero de quatro

    em quatro meses, grupos de trabalho, debates por meio da rede mundial de

    computadores, seminrios, encontros temticos, dentre outras modalidades

    dependendo do entendimento e necessidades surgidas.

    Localizao dos encontros: as reunies plenrias ocorrero em todas as re-

    gies brasileiras, de forma intercalada, visando a contemplar a participao

    de todos os interessados, em todo territrio brasileiro.

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    Temas: os assuntos das reunies temticas sero escolhidos previamente, sen-

    do convidados expositores e debatedores, dependendo do tema escolhido.

    Resultados esperados: dos encontros temticos sero retiradas orientaes,

    deliberaes e/ou recomendaes, que tero por objetivo ampliar a discus-

    so e propor diretrizes para a poltica nacional, alm de produzir importantes

    conhecimentos e informaes que subsidiem os diferentes nveis de gesto,

    no campo da Sade Mental Infanto-Juvenil.

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    5. I reunio

    temtica doFrum

    O formato das reunies plenrias do Frum

    Nacional incluem espao de amplo debate sobre o

    tema escolhido previamente, sendo este momento

    aberto a todos os interessados.

    Um segundo momento reservado a discusso

    interna, em que os integrantes oficiais do frum,

    conforme estabelecido em portaria, renem-se, e

    tm por objetivo elaborar diretrizes, orientaese/ou deliberaes sobre o tema em questo. Este

    momento poder contar coma presena de con-

    vidados.

    Reproduzimos a seguir o registro da I Reunio

    Temtica do Frum Nacional de Sade Mental In-

    fanto-Juvenil, ocorrida no dia 17 de dezembro de

    2004, na sede da Organizao Pan-Americana da

    Sade (Opas), em Braslia.

    A referida reunio contou com a participao

    de 48 representantes de instituies governamentais

    e no-governamentais. A mesma teve como eixo

    temtico:Institucionalizao e a Desinstituciona-

    lizao de Crianas e Adolescentes Brasileiros.

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    Para fomentar as discusses foram convidados os seguintes expositores: Alfredo

    Schechtman (assessor da rea Tcnica de Sade Mental/Dape/SAS/MS) abordando

    sobre Histria da Psiquiatria Infantil no Brasil; Irene Rizzini (presidente do Ciespi/PUCRJ) sobre Abordagem Crtica da Institucionalizao Infanto-Juvenil no Brasil; Neli

    Almeida(diretora de Projetos do Instituto Franco Basaglia IFB) sobre Experinciade Desinstitucionalizao no Centro Educacional Deolindo Couto; Ana Ligia Gomes

    (secretria Nacional de Assistncia Social/MDS) sobre O Sistema nico de Assistncia

    Social (SUAS) e o Direito a Convenincia Familiar e Comunitria; Luciano Elia (consul-

    tor MS para Sade Mental Infanto-Juvenil) sobre A Rede da Ateno na Sade Mental

    Articulaes entre Caps e Ambulatrios.

    Como produtos dessa reunio foram elaborados dois documentos, que estaro

    descritos na ntegra no espao reservado aos anexos:

    A Recomendao n. 01/2005, do Frum Nacional de Sade Mental Infanto-

    Juvenil, intitulado Diretrizes para o Processo de Desinstitucionalizao

    de Crianas e Adolescentes em Territrio Nacional.

    C E um Mapeamento Preliminar de Instituies de Atendimento Criana

    e ao Adolescente.

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    6. Textos da I reunio temtica

    Exortao s Mes: uma Breve

    Considerao Histrica sobre

    Sade Mental Infantil no Brasil

    Gostaria de trazer uma contribuio a este

    frum, a partir da apresentao de um momento

    relevante da histria da psiquiatria no Brasil, de-

    senvolvendo uma anlise sumria da abordagem

    feita por uma importante instituio psiquitrica

    brasileira, a Liga Brasileira de Higiene Mental, atu-

    ante no contexto terico e assistencial dos anos

    20 e 30 do sculo passado, enfocando o tema da

    assistncia infncia. Espero que esta anlise pos-sibilite desdobrar concluses e caminhos para os

    avanos, dilemas e impasses com que nos defronta-

    mos hoje ao pensarmos a poltica de sade mental

    para a infncia e adolescncia em nosso Pas. Ou

    seja, trata-se de pensar em como construir uma po-

    ltica e uma rede de ateno que sejam inclusivas,

    sem desconsiderar o passado repressivo (mesmo

    quando bem intencionado) que caracteriza a in-

    terveno pblica na sociedade brasileira.

    As primeiras dcadas do sculo 20 assinalam

    um crescente interesse pela situao da infncia

    no mundo, pelas questes demogrficas e pela

    sade das populaes. A criana passa a ser pro-

    blema de Estado.

    Alfredo Schechtman1

    1 Assessor da rea Tcnica de SadeMental/Dape/SAS/MS.

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    A partir dos anos 20, inicia-se a expanso das instituies psiquitricas nos prin-

    cipais centros urbanos brasileiros. A instituio psiquitrica busca legitimar-se como

    uma das instncias reguladoras do espao social, extrapolando os limites do asilo cls-sico, construindo um saber psiquitrico preventivo ao qual se vincula o surgimento

    da psiquiatria infantil.

    A psiquiatria se fantasia de higiene mental, que se define como moral universal

    do amanh. Em todos os aspectos da vida social, passando a ser merecedores supos-

    tamente da ateno higienista, passa a ser fundamental o incio de um trabalho edu-

    cativo junto s novas geraes com o fito de moldar na criana daquele momento o

    futuro homem higienizado.

    O olhar sobre a criana justifica e sanciona a interveno e o controle sobre ospais, cabendo higiene mental o papel de orientao cientfica das famlias.

    A descrio dos moldes propostos para o funcionamento do ambulatrio de sa-de mental da Liga Brasileira de Higiene Mental, que se inicia em 1925, evidencia o altointeresse presente na abordagem das questes relativas sade mental infantil.

    Por todo o perodo de atuao da Liga perpassa a tenso entre medidas de inter-

    veno de cunho educativo e medidas de matiz mais radical referidas chamada cin-

    cia eugnica, ento hegemnica (e de trgica evocao). Sem descuidar dessa ltima,

    tratando-se da criana, impunha-se um olhar normalizador sobre a educao, a qual era

    vista como exercendo uma indiscutvel influncia na evoluo mental da infncia.

    No primeiro nmero dos Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, um longo artigoaborda a questo da higiene e da educao, defendendo a necessidade de se ensinar

    s mes como formar os primeiros hbitos de seus filhos, adaptando-os da melhor

    maneira possvel aos problemas iniciais da vida. Abrangendo toda a populao, o re-

    sultado desse processo seria uma mentalidade corretamente desenvolvida, traduzidaem comportamentos mais adequados ao ajustamento do indivduo ao meio fsico e

    social, sinnimo de sade mental. Educao mais preveno: um casamento feliz.

    O autor do artigo sugeria que a Liga assumisse a propagao das diretrizes dessetrabalho educativo de higiene mental, dando conselhos e consultorias s organizaesatuantes nessa rea, ressaltando a necessidade de se organizar o ensino de psicolo-

    gia nas escolas normais, propagando-se os princpios que assentam na educao os

    fundamentos da higiene mental.

    Aquele era um perodo de forte presena da questo educacional no cenrio bra-

    sileiro, assim um dos mecanismos estratgicos para a interveno psiquitrica sobre

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    a criana ser dado pela atuao dos mdicos na assistncia escolar, pelos servios

    de higiene e sade escolar. Esta atividade teria uma finalidade dupla, pois, alm de

    detectar possveis distrbios degenerativos, serviria tambm para classificar e separaras crianas conforme sua evoluo psicolgica individual.

    Em 1932, a Liga inaugura a Clnica de Eufrenia, voltada para atender a criana

    pr-escolar e escolar, destinada a prevenir as doenas nervosas da infncia, corrigir

    as reaes psquicas anormais e sublimar o carter da juventude.

    A eufrenia, definida como a cincia da boa formao do psiquismo, subdividia-seem genealgica e mdico-pedaggica. Assim, sem abrir mo dos postulados radicais

    da eugenia, a eufrenia permitia psiquiatria incorporar uma via complementar de ex-

    plicao do psiquismo pela via da compreenso mdico-pedaggica do desenvolvi-mento mental. S no pequeno infante se conseguiria inculcar idias e hbitos eufreni-zantes, que penetrariam fundo no psiquismo infantil, formando pontos de resistnciaque anulariam at certo grau o efeito malfico das chamadas taras hereditrias.

    A Clnica de Eufrenia propunha-se a atuar na prpria formao da mente infantil,atendendo crianas dos primeiros meses de vida aos 12 anos de idade. Em parale-

    lo a essa atividade clnica, a Liga desenvolveu forte ao de propaganda de higiene

    mental, por meio de artigos em jornais, conferncias tcnicas e publicaes avulsas

    ou peridicas.

    interessante a leitura de um folheto que teve ampla circulao, cuja leitura cer-

    tamente levaria cada me a concluir que provavelmente seu filho poderia ser porta-

    dor de algum problema psquico, sendo recomendvel consultar um especialista, ou

    seja, criava-se um novo mercado.

    Vamos ler Exortao s Mes:

    Ests certa de que teu filho no possui nenhuma predisposio nervosa? A crian-a normal geralmente alegre, sorridente, ativa, chora pouco e gosta de brincar. Se o

    teu filho tristonho e aptico, ou excessivamente excitado e brigo, se chora muito e

    tem ataques de raiva, cuidado com a predisposio nervosa que o pode transformar,no futuro, em uma criana doente e infeliz (...)

    Teu filho tmido, ciumento, desconfiado? teimoso, pugnaz, exaltado? Cuidado

    com esses prenncios de constituio nervosa.

    Teu filho tem defeitos na linguagem, gago? Manda-o examinar para saber sua

    verdadeira causa.

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    Teu filho tem vcios de natureza sexual? Leva-o ao especialista para que te ensi-

    ne a corrigi-lo.

    Teu filho mentiroso ou tem o vcio de furtar? Trata-o sem demora, se no qui-

    seres possuir um descendente que te envergonha.

    Teu filho tem muitos tiques ou cacoetes? um hipermotivo. Procure evitar a des-

    graa futura do teu filho, que poder ser candidato ao suicdio.

    Teu filho pouco progride nos estudos? Antes de culpar o professor, submete-o a

    um exame psicolgico. Conhecers ento, o seu nvel mental, o seu equilbrio emoti-

    vo, e ters, assim, elementos para melhor o encaminhar na vida.

    L e reflete. A felicidade do teu filho est em grande parte nas tuas prprias mos.

    No esperes, portanto, que o teu filho fique nervoso, ou atinja as raias da alienao

    mental; submete-o quanto antes, a um exame especializado, a fim de que, amanh,

    no te doa, nem de leve, a conscincia. esta a exortao que te faz a Liga Brasileira

    de Higiene Mental, que somente deseja ver felizes todas as mes, para que felizes se-

    jam tambm todos os filhos deste querido Brasil.

    Enfim, na dvida, melhor consultar. Afinal a clnica no se destinava a tratar dos

    grandes quadros, mas a rastrear anomalias incipientes, a prevenir alteraes futuras,

    a aperfeioar os mecanismos psquicos.

    Em 1934, a clnica foi incorporada ao servio ambulatorial do Centro Psiquitrico

    Nacional, ganhando foro de instituio assistencial pblica.

    Em 1942, a Liga difundia a seguinte proclamao: A educao de uma criana

    deve sempre ser feita de um modo cientfico, e a famlia dever sempre recorrer ao

    seu mdico para que a oriente.

    Percebe-se a permanente busca de consolidao de um espao social ampliado

    de interveno especializada, de constituio de um campo de trabalho: criar e edu-

    car os filhos transforma-se em misso cientfica complexa, difcil, seno impossvel,

    de ser cumprida a contento por meros e leigos pais.

    o que tambm reafirmava eminente psiquiatra e psicanalista em srie de pales-

    tras proferidas em rede pblica de rdio, em 1945: Dia vir em que os pais se compe-

    netraro de que educar um filho a tarefa mais difcil deste mundo. Talvez nesse dia

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    existiro cursos especiais para pais e mes e poucos sentiro coragem de ter filhos

    sem possuir seu diploma. Viveremos ento numa sociedade cientfica.

    Utopia autoritria de uma educao cientfica e obediente aos preceitos salva-

    dores da higiene mental.

    Essas questes, ainda que sob novas roupagens, seguem atuais. Assim, espero

    que esta breve imerso nas guas revoltas da histria possa trazer alguma contribui-

    o para os dilemas contemporneos da poltica de sade mental infantil.

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    Abordagem crtica da

    institucionalizao

    infanto-juvenil no

    Brasil

    A histria da institucionalizao de crianas

    e adolescentes no Brasil tem repercusses impor-

    tantes at os dias de hoje. A anlise da documen-

    tao histrica sobre a assistncia infncia dos

    sculos XIX e XX revela que as crianas nascidas

    em situao de pobreza e/ou em famlias com difi-

    culdades de criarem seus filhos tinham um destino

    quase certo quando buscavam apoio do Estado:

    o de serem encaminhadas para instituies como

    se fossem rfs ou abandonadas. O atendimento

    institucional sofreu mudanas significativas na

    histria recente, particularmente no perodo que

    sucedeu a aprovao do Estatuto da Criana e do

    Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990).

    No entanto, muitos de seus desdobramentos so

    ainda marcados por idias e prticas do passado.

    O Brasil possui uma longa tradio de inter-

    nao de crianas e jovens em instituies asilares.

    Muitos filhos de famlias ricas e dos setores paupe-

    rizados da sociedade passaram pela experincia de

    serem educados longe de suas famlias e comuni-

    dades. Colgios internos, seminrios, asilos, esco-

    Irene Rizzini1

    1Presidente do Ciespi/PUC RJ

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    las de aprendizes artfices, educandrios, reformatrios, dentre outras modalidades

    institucionais surgidas ao sabor das tendncias educacionais e assistenciais de cada

    poca, foram sendo criados no Pas desde o perodo colonial.

    O interesse desta anlise centra-se nas iniciativas educacionais entrelaadas

    com os objetivos de assistncia e controle social de uma populao que, junto com

    o crescimento e reordenamento das cidades e a constituio de um Estado nacional,

    torna-se cada vez mais representada como perigosa. A ampla categoria jurdica dos

    menores de idade (provenientes das classes pobres) assume, a partir da segunda me-

    tade do sculo XIX, um carter eminentemente social, passando a caracterizar parte

    da populao infantil e juvenil pobre como alvo privilegiado da interveno forma-

    dora/reformadora do Estado e de outros setores da sociedade, como as instituiesreligiosas e filantrpicas.

    Aps a segunda metade do sculo XX, o modelo de internato cai em desuso para

    os filhos dos ricos, a ponto de praticamente serem inexistentes no Brasil h vrios anos.

    Essa modalidade de educao, na qual o indivduo gerido no tempo e no espao pe-

    las normas institucionais, sob relaes de poder totalmente desiguais, mantida para

    os pobres, at bem recentemente, e, em certo grau, at os dias de hoje. Para certos

    grupos considerados como ameaadores sociedade, como, por exemplo, os autores

    de infraes penais, as mudanas so ainda mais difceis e lentas.O Pas adquiriu uma tradio de institucionalizao de crianas, a que nos refe-

    rimos como o estabelecimento de uma cultura da institucionalizao, implantada a

    partir do final do sculo XIX at meados da dcada de 1980 (PILOTTI, 1995; RIZZINI,

    1997). As instituies do tipo internato de menores atendiam a grupos diversifica-

    dos, de acordo com as prescries de gnero, mas consideravam ainda as especifici-

    dades tnicas. Meninos e meninas, ndios e filhos de escravas e ex-escravas passaram

    por asilos, casas de educandos, institutos e colgios, entretanto, os meninos pobres

    e livres das cidades constituram o grande alvo da interveno das polticas de inter-

    nao (RIZZINI, 2004; VALENTE, 2004).

    As conseqncias da vida institucional so hoje bem conhecidas. No caso espe-

    cfico da criana, so graves os efeitos sobre seu processo de socializao e seu de-

    senvolvimento como um todo (RIZZINI, 1985; ALTO, 1985). A conjuntura poltica da

    dcada de 1980 possibilitou o amplo questionamento a essas instituies, to onerosas

    para os cofres pblicos e, no entanto, to prejudiciais criana. Com base no Estatuto

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    da Criana e do Adolescente (BRASIL, 1990) e na Conveno Internacional sobre os

    Direitos da Criana (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1989), a tendncia que o

    nmero de crianas internadas diminua progressivamente. Mas, ser que o problemafoi resolvido? A situao da criana pobre melhorou? A resposta no to simples.

    As crianas que ontem estavam internadas, hoje esto em diferentes situaes

    de desamparo, em comunidades desprotegidas que, com freqncia, no oferecem

    condies adequadas socializao saudvel da criana; elas esto nas ruas, em es-

    colas e hospitais pobremente aparelhados. Apesar dos muitos avanos testemunha-

    dos nos ltimos anos e da crescente conscincia da gravidade do problema, h ainda

    muito por fazer visando implementao de polticas e prticas capazes de assegurar

    os direitos bsicos de cidadania de toda a populao jovem brasileira.

    Apontando caminhos2

    A anlise da literatura sobre a questo da institucionalizao de crianas e adoles-

    centes, bem como nossa experincia de trabalho nessa rea, nos leva a tecer as seguin-

    tes consideraes sobre caminhos para a mudana de enfoques e prticas corrente.

    Sabemos que crescer em instituies no bom para crianas. Um incontvel

    nmero de estudos bem divulgados no sculo XX apontou as conseqncias desas-

    trosas dessa prtica para o desenvolvimento humano. No entanto, o tema vem tona

    no incio do terceiro milnio com a constatao de que uma parcela significativa decrianas ainda hoje vive em instituies. De acordo com relatrio realizado pelo gover-

    no sueco seriam entre oito e dez milhes de crianas no mundo (SWEDEN, 2001).

    Como explicar? Em muitos pases, as principais causas da institucionalizao

    assemelham-se s nossas: ela constitui uma alternativa s famlias pobres, que vem

    nas instituies a chance de que seus filhos se alimentem, estejam seguros e tenham

    acesso educao. Portanto, a situao de pobreza continua levando s instituies

    crianas que no precisariam ser afastadas de suas famlias e comunidades. Estima-

    se que um quinto da populao mundial sobreviva com menos de um dlar. Dessegrupo, cerca de 600 milhes so crianas (Ibid., 2001).

    Outros motivos mais comumente apontados esto ligados aos seguintes fatores:a) mudanas rpidas em diversas sociedades, conduzindo s condies de vida adver-

    sas, com elevados ndices de deslocamento e imigrao de populaes; b) busca de

    instituies como forma de proteger os filhos da violncia, principalmente em situa-

    2 Essas idias foram desenvolvidas em Rizzini (2004).

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    es de guerra, instabilidade social e conflitos familiares; c) crianas com deficincias

    fsicas ou mentais; d) crianas com doenas graves, como a aids, ou que perderam os

    pais devido aids3; (e) Segundo o relatrio do governo sueco, as instituies tambmso mantidas porque atraem doadores e lhes d visibilidade. Este afirma que para mui-

    tos predomina a idia de que as instituies resolvem o problema de crianas com

    dificuldades familiares. Porm, fato constatado mundialmente que o atendimento

    institucional caro e ineficaz e que custa at seis vezes mais do que prover formas de

    apoio famlia no cuidado dos filhos (Ibid., 2001).

    Crianas no deveriam ser institucionalizadas por serem pobres, mas ainda so.

    Isso no deveria ser tolerado, mas ainda . Trata-se de uma questo da esfera das po-

    lticas pblicas. H que se criar alternativas, respeitando as necessidades das crianase seus direitos. Outras formas de cuidado s crianas precisam ser desenvolvidas.

    Para os casos em que o atendimento institucional ainda se faz necessrio, em

    carter provisrio, devido a situaes de violncia domstica com risco de vida para a

    criana, ato infracional, abandono da criana, abandono da casa pela criana, impos-

    sibilidade de retornar comunidade ou a casa, a instituio no pode pretender ocu-

    par o lugar da famlia ou privar a criana do convvio social. Sistemas alternativos aos

    internatos e j amplamente testados no Pas e no exterior so preferveis, tais como,

    formas de apoio no mbito da famlia e da comunidade, colocao em famlia substi-tuta, adoo. O que no pode acontecer a omisso do Estado no planejamento e na

    execuo das polticas, deixando a situao nas mos da ao policial, como ocorria

    na passagem do sculo XIX para o XX, com os meninos recolhidos nas ruas.

    O atendimento de crianas em instituies deve ser visto como parte de uma

    gama de servios que podem ser oferecidos a crianas e adolescentes em circuns-

    tncias excepcionais. Ele no pode ser um fim em si, mas um recurso a ser utilizado

    quando necessrio. Esta uma recomendao afinada com os princpios estabeleci-

    dos pela Conveno das Naes Unidas pelos Direitos da Criana e pelo Estatuto da

    Criana e do Adolescente. De acordo com essa orientao, quando o atendimento

    fora da famlia inevitvel, medidas devem ser tomadas para assegurar que ele seja

    o mais adequado possvel s necessidades da criana ou do adolescente, levando,

    inclusive em considerao, sua opinio e seus desejos.

    3 O problema vem sendo divulgado nos ltimos anos, sendo alarmante na frica e em diversos pases da sia. Estima-se que no ano2000, mais de 13 milhes de crianas perderam um ou ambos os pais devido aids (SWEDEN, op. cit, p.7).

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    Enfrentando o problema

    A seguir, apresentamos algumas sugestes e recomendaes que podem con-

    tribuir para o enfrentamento do problema.

    Colocar a questo na pauta de prioridades da agenda poltica nacional.

    Discutimos neste texto o estabelecimento de uma forte cultura institucional que

    persistiu em muitos aspectos at o presente e assinalamos importantes mudanas

    ocorridas a partir da dcada de 80. Mostramos como os questionamentos foram se

    formando e, surgido o momento poltico propcio, como se processaram os movimen-

    tos de presso para reformas no mbito da legislao e do atendimento institucional.

    O momento atual de novo impulso para reavaliar o problema e tomar decises paracombat-lo. preciso coloc-lo na pauta da agenda poltica nacional.

    Por onde comear?

    Uso da pesquisa e da experincia acumulada para subsidiar a ao.

    importante no subestimar o que j se sabe e levar em considerao toda a ex-

    perincia acumulada historicamente no Pas para decidir como enfrentar o problema,

    e utilizar as informaes disponveis, assim como as reflexes e anlises por parte de

    inmeros profissionais que conhecem o problema.

    Outro desdobramento necessrio a realizao de pesquisas que possibilitem

    o dimensionamento da situao no presente. Que instituies esto operando em

    todo o Pas? Quem so as crianas hoje institucionalizadas e porqu? Que outras al-

    ternativas precisam ser criadas para evitar que crianas sejam internadas desneces-

    sariamente?

    Participao na busca de solues.

    Uma outra questo, hoje bastante discutida, o estabelecimento de processos

    participativos na identificao e gesto de questes que preocupam determinadosgrupos e localidades. Por exemplo, de que forma envolver diferentes atores, no m-

    bito da famlia e da comunidade, na busca de solues de problemas relacionados

    educao e criao dos filhos? No um desafio fcil. Seu enfrentamento implica na

    mudana de atitudes e prticas assistencialistas e autoritrias que vigoraram no Pas

    por sculos. Porm, esta uma tendncia que vem se fortalecendo e abrindo novas

    perspectivas na busca de solues.

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    Formulao e implementao de polticas e prticas.

    Ao se pensar em mudanas de polticas e prticas, algumas perguntas so es-

    senciais; dentre elas: as instituies so necessrias? Para quem? Quando inevitveis,

    como assegurar um atendimento humanizado s crianas? Que alternativas existem

    ou devem ser criadas? Sejam quais forem as perguntas e que formas se escolha para

    respond-las, no se tem como fugir da necessidade de estabelecer as diretrizes de

    uma poltica ampla que promova o desenvolvimento integral de crianas e adoles-

    centes. O problema no ser resolvido focalizando apenas a questo do atendimento

    institucional. Ele est ligado a circunstncias macroeconmicas e polticas que pre-

    cisam ser paralelamente enfrentadas para que internatos deixem de constituir uma

    opo atraente para crianas e para pais que no encontram sada para as dificuldades

    em manter seus filhos. De acordo com o relatrio anteriormente citado (Ibid., p. 12), o

    desenvolvimento econmico que gera crescimento e recursos, associado a polticas

    de distribuio de renda, reduz a necessidade de instituies para crianas. Espera-

    mos que isso seja feito sem condenar a populao ao sofrimento e sem que crianas

    sejam sacrificadas. Seu desenvolvimento pessoal depende dessas medidas no

    justo que continuem sendo prejudicadas.

    Sobre a autoraIrene Rizzini (Universidade de Chicago e Instituto Universitrio de

    Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ - Doutorado) professora e

    pesquisadora da PUC-Rio e diretora do CIESPI (Centro Internacional

    de Estudos e Pesquisas sobre a Infncia). Em mbito internacional,

    Presidente da Rede internacional de intercmbio de pesquisa na

    rea da infncia (Childwatch International Research Network, No-

    ruega). Irene Rizzini tem coordenado diversos projetos de abran-

    gncia nacional e internacional. Entre suas principais publicaes,

    esto: O Sculo Perdido (1997); A criana e a lei no Brasil: revisitando

    a histria (1822-2002); Desenhos de famlia (2001); Children and glo-

    balization (Kluwer, NY, USA, 2002); From street children to all children:

    improving the opportunities of low income urban children and youth

    in Brazil(Cambridge University Press- USA, 2002); Vida nas ruas: tra-

    jetrias de vida de crianas e adolescentes nas ruas do Rio de Janeiro

    (2003); A institucionalizao de crianas no Brasil: percurso histrico

    e desafios do presente (2004).

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    De volta cidadania proposta para uma

    nova poltica de inclusosocial dos portadores dedeficincia em situaode abrigo

    1 Introduo

    O projeto De Volta Cidadania, idealizado pela

    Funlar2 em parceria com o Instituto Franco Basaglia3,

    foi elaborado para ser um dispositivo tcnico de

    interveno em aparatos manicomiais destinados

    a pessoas portadoras de deficincia fsica e mental.

    Na sua concepo, os preceitos ticos e epistmicos

    apontam a necessidade de se deslocar o centro daassistncia mdica hospitalar para aquele respal-

    dado nos direitos de cidadania, definindo a esfera

    pblica como um lugar por excelncia da ao pro-

    tetiva e emancipatria de populaes em situao

    de risco social. Impe mudanas paradigmticas

    no trato com a deficincia e, se por um lado, faz

    entrar em fora de coliso uma srie de modelos

    e interesses institudos, por outro lado, inauguranovos dispositivos de cuidados vinculados ao pro-

    cesso de desinstitucionalizao.

    2 Um Breve Histrico

    A Funlar, por ordem judicial em novembro de

    1998, assumiu a direo tcnica de um asilo psiqui-

    Neli Maria Castro de

    Almeida1

    O problema

    fundamental em

    relao aos direitos

    do homem, hoje, no

    tanto o dejustific-los, mas o de proteg-

    los. Trata-se de um

    problema no filosfico,

    mas poltico.

    Noberto Bobbio

    1 Diretora de Projetos do Instituto FrancoBasaglia (IFB).

    2 Fundao Municipal Lar Escola Franciscode Paula rgo da Secretaria Municipalde Desenvolvimento Social Rio deJaneiro.

    3 IFB organizao da sociedade civil, semfins lucrativos, de defesa dos direitos dospacientes psiquitricos.

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    trico infanto-juvenil, localizado na zona norte da cidade do Rio de Jan eiro, por terem

    sido constatados maus-tratos e negligncia na assistncia prestada aos 51 usurios

    internos. A sentena judicial previa que a interveno fosse feita na forma do projetoDe Volta Cidadania, em parceria com o Instituto Franco Basaglia. A concepo insti-

    tucional do projeto De Volta Cidadania se fundamentou a partir de uma estratgia

    de intersetorializao (ALVES, 2001) das polticas pblicas o que se mostrou bas-

    tante eficaz ao longo de sua implantao , definindo-se um pacto poltico entre as

    diversas secretarias municipais a fim de atender s inmeras demandas dos usurios

    residentes no referido asilo psiquitrico. As Secretarias Municipais de Educao e de

    Sade tornaram-se parceiras importantes e indispensveis para o delineamento das

    estratgias de ateno psicossocial desenvolvidas pelo projeto.

    3 O projeto De Volta Cidadania, hoje

    A experincia do projeto De Volta Cidadania vem permitindo a acumulao de

    conhecimento terico e prtico sobre novas tecnologias de cuidado aos portadores

    de deficincia fsica e mental e portadores de patologias graves em regime de aten-

    dimento aberto no campo da reabilitao psicossocial.

    A inovao organizacional refere-se s alternativas de atendimento que pres-

    cindem das estruturas hospitalares pesadas (dispositivos asilares com caractersticasmanicomiais), gerando novos dispositivos embasados no trabalho de reabilitao nas

    comunidades e nos dispositivos de residncias teraputicas para usurios que no

    possuem referncias familiares.

    Atualmente, o projeto De Volta Cidadania conta com trs casas lares no bairro do

    Graja, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, onde residem 33 pessoas portadoras

    de deficincias e patologias graves. Integra um conjunto de aes sistemticas de de-

    sinstitucionalizao operacionalizadas pela Funlar, constituindo-se em um programa

    pblico municipal de assistncia criana e ao jovem portadores de deficincia.

    4 Para fundamentar uma nova poltica...

    O projeto De Volta Cidadania uma experincia pioneira na cidade do Rio de

    Janeiro, sendo uma referncia para a implantao de programas de residncia assisti-

    da, e tem por objetivo contribuir para a consolidao e expanso de uma nova poltica

    de assistncia aos portadores de deficincias que vivem em regime asilar.

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    Neste artigo, pretendemos aprofundar, um pouco mais, a discusso acerca do

    projeto6 e dos seus entornos polticos, ticos e epistmicos, com o intuito de delimitar

    melhor seu potencial na condio de agenciador de polticas pblicas consistentes.Verificamos que os dispositivos manicomiais so hegemnicos, no por serem muitos

    ou resistentes (que tambm o so), mas por estarem fortemente legitimados dentro

    de uma lgica e de valores compatveis com a organizao social, em suas construes

    simblicas. A sustentao do manicmio e o seu poder esto nas relaes isomrfi-

    cas quelas existentes no mundo extramuros (MOREIRA, 1983). Qualquer interveno

    que pretenda, de fato, produzir novas significaes, inaugurar novos campos simb-

    licos para a temtica da deficincia, conduzindo os sujeitos reais a um outro nvel de

    bem-estar individual e social, deve levar em conta o grande cenrio social, poltico ecultural, que nos envolve e afeta a todos os atores sociais (BEZERRA; ROTELLI, 1994,

    1990). Para visualizar o campo do projeto e dos seus fundamentos, podemos faz-lo

    girar sobre dois eixos: um referente concepo da natureza da ao do Estado nas

    formulaes de polticas pblicas e outro de carter mais poltico-instrumental para

    a implementao de estratgias e programas pblicos. No primeiro eixo, identifica-

    se uma concepo de Estado como regulador de bens e servios, vinculado ao mo-

    delo institucional-redistributivo (ROSRIO, 1997)2, tendo como noo importante a

    de justia distributiva. O suporte financeiro, denominado bolsa-cidad, oferecido s

    famlias para cuidarem dos seus filhos em casa, se insere nesta perspectiva. As aesintersetoriais e comunitrias localizam-se no segundo eixo e so definidas como im-

    prescindveis para a consecuo de polticas sociais mais eficazes.

    5 Poltica e mandato social

    Introduzimos aqui a questo do mandato social, por ser evidente que grande

    parte da fora propulsora de acionamento do projeto, ora em anlise, provm de

    pessoas, das suas motivaes, da tica condutora dos seus afazeres no campo das

    aes sociais. claro tambm que essas pessoas no agem fora de um contexto ins-titucional. Em um determinado nvel, suas aes acumulam e revelam um percurso

    histrico que soma contribuies de movimentos sociais reivindicatrios, experincia

    tica compartilhada entre os pares, patamares de suportabilidade do que se consi-

    dera tico ou no tico. Ou seja, so atitudes pessoais, mas no destitudas de uma

    6 Ao longo desta publicao, utilizaremos a grafia projeto, como forma simplificada, para designar o projeto De Volta Cidadania.2 O autor, neste livro, em referncia obra de Titmuss, assinala que (neste modelo) a proteo social concebida como iniciativa de

    integrao sociedade, provendo servios de modo universal, independente do mercado, sob o princpio da eqidade.

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    produo histrica, ainda que se permanea o nvel idiossincrtico de resposta diante

    da violncia institucional.

    Franco Basaglia (1968) estabelece um ponto de ruptura com a psiquiatria asi-

    lar, posicionando-se claramente contra as prticas repressivas e mortificadoras da

    ordem mdica no trato das pessoas acometidas pelo sofrimento psquico. Em suas

    palavras:

    Para comear, torna-se necessrio negar tudo o que est nossa

    volta: a doena, o nosso mandato social, a nossa funo. Negamos, assim,

    tudo que possa dar um sentido predefinido nossa conduta. Ao mesmo

    tempo em que negamos nosso mandato social, negamos a rotulao do

    doente como irrecupervel e, ao mesmo tempo, nossa funo de simplescarcereiros, tutores da tranquilidade da sociedade; negando a irrecupe-

    rabilidade do doente negamos sua conotao psiquitrica; negando sua

    conotao psiquitrica negamos sua doena como definio cientfica;

    negando a sua doena, despsiquiatrizamos nosso trabalho, recomean-

    do-o em um territrio ainda virgem, por cultivar.

    (Ao ser perguntado pelo ponto de partida do seu posicionamento)

    Partiu-se do encontro com a realidade do manicmio, que, sendo opres-

    siva, trgica. No era possvel que centenas de homens vivessem emcondies desumanas somente por serem doentes. No era possvel que

    ns, na qualidade de psiquiatras, fssemos os artfices e os cmplices de

    uma tal situao. O doente mental doente sobretudo por ser um ex-

    cludo, um abandonado por todos; porque uma pessoa sem direitos e

    em relao a quem pode-se tudo. Por isso negamos dialeticamente nosso

    mandato social, que exigia que considerssemos o doente como um no-

    homem, e, ao neg-lo, negamos a viso do doente como um no-homem.

    Do ponto de vista prtico, negamos a desumanizao do doente como

    resultado ltimo da doena, atribuindo o grau de destruio violnciado asilo, da instituio, de suas mortificaes, desmandos e imposies,

    que derivam da violncia, dos abusos e das mortificaes que so o esteio

    de nosso sistema social. Tudo isso foi possvel porque a cincia, sempre a

    servio da classe dominante, decidira que o doente mental era um indiv-

    duo incompreensvel e, como tal, perigoso e imprevisvel, impondo-lhe,

    como nica alternativa, a morte civil (BASAGLIA, 1985, p. 29).

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    Diante da negao do mandato social, torna-se necessria a construo de um

    novo papel social para o profissional de sade, significando estabelecer um novo tipo

    de contrato com a populao atendida (DELGADO, 1987). No h dvida de que setrata de uma questo tica, mas isso no quer dizer que se restrinja a uma tica do

    indivduo, de algo que se refira ao frum ntimo de cada um nas predilees das pr-

    ticas teraputicas assumidas. Isolar no campo das convices pessoais a atitude da

    resistncia passiva (DELGADO, op.cit., p. 157) destituir-lhe do seu poder de agencia-

    mento para mudanas importantes no campo da assistncia. Da mesma forma que a

    ausncia de discusso sobre os determinantes histricos, econmicos e polticos em

    torno dos processos de excluso social despotencializa aes que pretendam garantir

    os direitos de cidadania. Vejamos na afirmativa de Bobbio:

    A efetivao de uma maior proteo os direitos dos homens est li-

    gada ao desenvolvimento global da civilizao humana. um problema

    que no pode ser isolado, sob pena, no digo de no resolv-lo, mas de

    sequer compreend-lo em sua real dimenso. Quem o isola j o perdeu

    (BOBBIO, op.cit., p. 45).

    Ou seja, a construo desse novo papel passa necessariamente por uma dis-

    cusso mais ampla, por uma maior interlocuo dos iderios da reforma psiquitricacom os atores concretos implicados, produzindo novos campos simblicos para o

    lidar com a diferena.

    Para se abalizar a potencialidade do projeto De Volta Cidadania para a produ-

    o de polticas pblicas emancipatrias, pensamos ser fundamental proceder a uma

    anlise crtica sobre a rede filantrpica, privada e pblica de assistncia destinada aos

    portadores de deficincia. Uma crtica que possa incidir a sua anlise sobre a organi-

    zao do Estado e da sua comunidade epistmica (ROSRIO, 1997, apud HAAS, 1992)

    no que tange formulao de polticas no campo da assistncia social. Quem so seus

    autores? Quais os grupos de interesse que definem essas polticas? Sob que processo

    se verificou a expanso de um mercado filantrpico da assistncia asilar? Quem so os

    seus financiadores? Que relaes so estabelecidas entre o pblico e o privado? So

    demasiadas as perguntas necessrias para tirar da opacidade institucional a vigncia

    vigorosa dos asilos de estrutura manicomial para os portadores de deficincia.

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    A questo dos dispositivos jurdicos ganham sentido nesta perspectiva: consti-

    tuir um campo de saber que venha a situ-los na sua relao com o tipo de modelo

    de poltica pblica exercido pelo Estado. Problematizar o conceito de cidadania, ana-lisando a excluso das pessoas diferentes a partir da sua prpria formulao histrica.

    Vale para este estudo a recomendao feita por Bezerra (1994, p. 189) ... aos adeptos

    da reforma... a tarefa que se impe tanto epistmica quanto tica. Certamente, esta-

    mos diante de um desafio que a produo de novas significaes para o campo da

    deficincia, e o projeto De Volta Cidadania demonstrou que, se por uma lado, ne-

    cessrio fazer um longo percurso terico e epistemolgico para uma descrio mais

    acurada da potencialidade das suas aes, por outro lado, fica a resposta, claramente

    dada, de que possvel inaugurar um novo paradigma no trato das pessoas em suaexperincia com a deficincia fsica e mental.

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    Comisso intersetorial para

    promoo, defesa e garantia

    do direito de crianas eadolescentes convivncia

    familiar e comunitria

    Ana Lgia Gomes1 1 Direito convivncia familiar e comu-nitria de crianas e adolescentes

    1.1 Marco legal

    A Constituio Federal de 1988 determina,

    no artigo 227, que

    dever da famlia, da sociedade

    e do Estado assegurar criana e aoadolescente, com absoluta prioridade,

    o direito vida, sade, alimentao,

    educao, ao lazer, profissionaliza-

    o, cultura, dignidade, ao respeito,

    liberdade e convivncia familiar e

    comunitria (...). (BRASIL, 1988)

    Assim, o direito a ter uma famlia , para a

    legislao brasileira, um dos direitos fundamen-

    tais da pessoa em desenvolvimento, sendo a fa-

    mlia pensada como ncleo bsico de criao e

    manuteno de laos de afeto e autoridade, por

    meio dos quais que se torna possvel proteger,

    socializar e mediar o pertencimento comunitrio

    1 Secretria Nacional de Assistncia SocialInterina Ministrio do DesenvolvimentoSocial e Combate Fome

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    e social dos indivduos. O direito convivncia familiar e comunitria perpassa o fato

    simples de se nascer e viver em uma famlia, mas se expressa, sobretudo pelo direito

    a ter vnculos pelos quais, e com os quais, o pequeno cidado se introduz em umacultura e em uma sociedade.

    Em seu captulo III, o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) tambm aborda

    o direito convivncia familiar e comunitria, definindo, no artigo 19:

    Toda criana ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio

    da sua famlia e, excepcionalmente, em famlia substituta, assegurada a

    convivncia familiar e comunitria, em ambiente livre da presena de

    pessoas dependentes de substncias entorpecentes (BRASIL, 1990).

    O direito a estar dentro de uma famlia, a ter uma convivncia cotidiana com seus

    pais, irmos e outros familiares mais do que estar fisicamente dentro de quatro pare-

    des de uma habitao. Inclui poder ultrapassar essas paredes como um pequeno cida-

    do, protegido e orientado, para ser includo na linguagem, nos valores e nas formas

    de agir que vo aos poucos sendo reconhecidos como aqueles que compem sua

    cultura e lhe atribui identidade social. A famlia uma passagem para o mundo. Estar

    dentro de uma famlia, alm da casa, estar no mago de um mundo a se conhecer

    e se apropriar a partir dos direitos de cidadania.

    1.2 Histrico

    A cultura de institucionalizao de crianas e adolescentes das classes popula-

    res remonta do incio da colonizao brasileira. Assim, a despeito de diversos estudos

    terem demonstrado as graves conseqncias da institucionalizao prolongada para

    o desenvolvimento psicolgico, afetivo e cognitivo de crianas e adolescentes, ainda

    est profundamente enraizada em nosso Pas a idia de que a institucionalizao de

    longo prazo protegeria essas crianas das ms influncias do seu meio, alm de prote-

    ger a sociedade de sua presena incmoda. Por outro lado, a institucionalizao tem

    constitudo uma alternativa s famlias pobres, que vem nas instituies a chance de

    que seus filhos se alimentem, estejam seguros e tenham acesso educao.

    Essa cultura de institucionalizao tem impregnado, no decorrer do tempo,

    no apenas o discurso e a prtica governamental, mas tambm o da sociedade

    como um todo.

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    Esse modelo tradicional de atendimento, aceito socialmente como uma soluo

    para o problema das crianas e dos adolescentes pobres, persistiu por mais de um

    sculo e caracteriza-se por:

    - no respeitar a individualidade nem a histria do usurio;

    - no estar inserido na comunidade, nem preservar laos familiares e co-

    munitrios;

    - revitimizar, ao invs de reparar; e

    - violar direitos, ao invs de proteger.

    1.3 Situao atual

    A despeito da legislao vigente, a situao de pobreza continua levando s ins-

    tituies crianas que no precisariam ser afastadas de suas famlias e comunidades.

    Isso vem significando, para muitas crianas e adolescentes, a marginalizao, o iso-

    lamento social, a vulnerabilidade a doenas psicossomticas, um dficit geral de de-

    senvolvimento, dificuldades de insero no mercado de trabalho e, em muitos casos,

    o ingresso em instituies criminais. Vale ressaltar, ainda, que no h, no Brasil, dados

    nacionais relativos quantidade e qualidade das instituies que abrigam crianas e

    adolescentes, nem tampouco o nmero e o perfil dessas crianas.

    1.4 Dados obtidos pelo levantamento do Ipea

    O Levantamento da Rede de Abrigos, feito pelo Ipea, resultou das negociaes

    entre o ento DCA/MJ, o Conanda e a antiga Seas/MPAS para viabilizar a avaliao da

    Rede de Servios de Ao Continuada, co-financiada com recursos federais. O governo

    federal nunca havia, at ento, realizado acompanhamento dessa rede, cujas institui-

    es, quase na totalidade, ainda eram as mesmas herdadas da extinta Legio Brasileira

    de Assistncia (LBA) e do Centro Brasileiro para a Infncia e a Adolescncia (CBIA), notendo, portanto, conhecimento aprofundado das instituies por ele financiadas.

    Conforme o levantamento acima citado, h 19.373 crianas e adolescentes nos

    abrigos da rede SAC, com as seguintes caractersticas: 58,5% so meninos; 61,3% tem

    entre 7 e 15 anos; 63,6% so afro-descendentes; 52,6% esto no abrigo h mais de

    dois anos; e 86,7% tm famlia.

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    Um dado importante levantado na pesquisa foi o de que 50,1% das crianas so

    abrigadas por motivos relacionados pobreza, o que se contrape claramente ao que

    determina o Estatuto da Criana e do Adolescente, que diz que a carncia materialno motivo suficiente para a decretao de tal medida, devendo a famlia, nesses

    casos, ser encaminhada a programas de assistncia social.

    2 Sobre a comisso intersetorial

    2.1 Breve histrico

    Em agosto de 2002, foi realizado o I Colquio Tcnicosobre a Rede Nacional de

    Abrigos, a partir do qualfoi criado o Comit Nacional para o Reordenamento dosProgramas, Aes e Servios da Rede de Abrigos. O atual governo aprofundou esse

    debate, situando a questo dos abrigos no contexto mais amplo do direito convi-

    vncia familiar e comunitria, e criando, por meio de decreto presidencial, de 19 de

    outubro de 2004, a Comisso Intersetorial para Promoo, Defesa e Garantia do Di-

    reito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria. A comisso

    coordenada conjuntamente pelo MDS e pela SEDH/PR, tendo por finalidade oferecer

    subsdios elaborao de diretrizes e de um plano de ao para promoo, defesa e

    garantia do direito de crianas e adolescentes convivncia familiar e comunitria, a

    serem apresentados ao CNAS e ao Conanda.

    2.2 Composio

    A Portaria Conjunta n. 1, de 12/11/2004, designa os membros e convidados per-

    manentes da referida comisso, que conta com a participao dos principais rgos

    federais afetos rea, rgos representativos de gestores da assistncia social nas

    esferas estadual e municipal, conselhos, entidades da sociedade civil, representantes

    do Judicirio e Legislativo e organismos internacionais.

    Membros: MDS; SEDH; Ministrio da Educao; Ministrio da Sade; Ipea; Cona-de; Conanda; CNAS; Associao Nacional dos Defensores Pblicos.

    Convidados permanentes: frente parlamentar de defesa dos direitos da crian-

    a e do adolescente; frente parlamentar da adoo; Unicef; ABMP; Frum Colegiado

    dos Conselheiros Tutelares; Fonseas; Congemas; Frum DCA; Associao Nacional dos

    Grupos de Apoio Adoo (ANGAAD); e a Rede Nacional de Instituies e Programas

    de Servios de Ao Continuada (Renipac).

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    Alm dos acima mencionados, outras entidades e especialistas acompanharam

    os trabalhos da comisso, como convidados eventuais.

    2.3 Funcionamento

    Para fins de organizao interna durante o desenvolvimento dos trabalhos, a co-

    misso optou pela criao de trs cmaras tcnicas, voltadas para o aprofundamento

    de cada uma das seguintes reas temticas:

    1. a proteo social bsica, por meio de polticas e programas de apoio socio-

    familiar;

    2. a situao das instituies que acolhem crianas e adolescentes afastados desuas famlias e formas de proteo alternativas institucionalizao;

    3. a questo do abandono e da adoo, nacional e internacional.

    Durante o perodo de trabalho da comisso, sero realizadas quatro reunies or-

    dinrias, sendo trabalhado, em cada uma, um dos quatro eixos temticos propostos

    para o Plano de Ao:

    1. anlise da situao e sistemas de informao;

    2. atendimento;3. marcos normativos e regulatrios; e

    4. mobilizao, articulao e participao.

    3 Proposta de atuao

    A criao dessa Comisso Intersetorial ocorre em um momento histrico para

    a assistncia social, com a aprovao da nova Poltica Nacional de Assistncia Social

    (PNAS), a qual reorganiza os projetos, programas, servios e benefcios da assistn-

    cia social, apontando para a implementao do Sistema nico de Assistncia Social

    (SUAS), cujo objetivo assegurar a concretude aos preceitos da Loas.

    A PNAS tem a famlia e o territrio como referncias, valorizando a intersetoria-

    lidade das aes, na busca da ampliao da atuao da assistncia social em todo o

    Pas.Um dos objetivos dessa poltica , justamente, assegurar que as aes tenham

    centralidade na famlia e que garantam a convivncia familiar e comunitria.

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    Trata-se da mudana do olhar e do fazer, no apenas das polticas pblicas foca-

    lizadas na infncia e juventude, mas tambm extensiva aos demais atores do chama-

    do Sistema de Garantia de Direitos e de Proteo Social, implicando a capacidade dever as crianas e adolescentes de maneira indissocivel do seu contexto sociofamiliar,

    percebendo e praticando a centralidade da famlia enquanto objeto da ao e do in-

    vestimento. Desafio de dimenses estratgicas, sem dvida, de cujo enfrentamento

    eficaz depende a viabilidade de qualquer projeto de nao e de Pas que se deseje

    implementar agora e no futuro.

    Essa mudana de paradigma da assistncia social, a ampliao de sua atuao

    em todo o Pas, com a implantao de um Sistema nico, com nveis de proteo dife-

    renciados e articulado entre os trs esferas de governo, como est proposto no SUAS,

    certamente ir contribuir para a garantia do direito convivncia familiar e comuni-

    tria de crianas e adolescentes.

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    A rede da ateno

    na Sade Mental

    articulaes entre

    Caps e ambulatrios

    Luciano Elia1 1 O Caps e a Reforma Psiquitrica

    O que um Caps Centro de Ateno Psi-

    cossocial? Poderamos dar a essa pergunta algu-

    mas respostas combinadas: unidade de base da

    Reforma Psiquitrica Brasileira, servio de aten-

    o diria, diurna e intensiva, de base territorial,

    pelo que se entende que ele no se define como

    um mero estabelecimento de sade mental ondese aplicam tcnicas e tratamentos diversos, mas

    como um plo de encaminhamento de demandas

    psicossociais diversas em determinado territrio,

    do qual emanam, igualmente, no s respostas a

    essas demandas que atingem as suas fontes, mas

    tambm aes e intervenes dirigidas a diferen-

    tes instncias e dispositivos do territrio, que o

    modificam, sempre visando a um grau cada vez

    maior de sade mentalpara os viventes neste ter-

    ritrio. O Caps vem sendo a base do processo de

    substituio do manicmio nos ltimos 15 anos,

    da constituir-se como a referncia primordial no

    que se intitulam os servios substitutivos.1 Consultor do Ministrio da Sade,

    supervisor de Capsi.

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    Caracterizado dessa forma, o Caps no se reduz a um tipo de servio entre ou-

    tros, mas constitui a encarnao de diretrizes da poltica de sade mental em deter-

    minado territrio. Como tal, ele representa um conjunto de concepes de ateno,de modos de interveno, regidos por uma determinada lgica do cuidado. Essa lgi-

    ca trata-se d