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Nº76 | JANEIRO | 2013 Saudades de 1964 Instituto Millenium: A verdadeira face que a direita oculta Leandro Fortes Débora Prado

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Page 1: Saudades de 1964 - Cidadania & Cultura · o discurso liberal esconde um frequente flerte com o moralismo udenista, o discurso golpista e a desqualificação do debate público. Criado

1nº76 | JaneIro | 2013

Saudades de 1964Instituto Millenium: A verdadeira

face que a direita oculta

Leandro Fortes

Débora Prado

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A formação dos Estados constitucionais modernos consagraram os regimes representativos atra-vés dos partidos políticos. Não foi um processo automático e simultâneo. Os primeiros regimes constitucionais liberais eram pouco democráticos. O direito à organização partidária, assim como o sufrágio universal e a igualdade de gênero, só foram atingidos plenamente no século XX, após décadas de luta popular.

Ao longo do século passado, os partidos firmaram-se como os grandes canais de expressão e da vontade política coletiva de milhões de pessoas.

Apesar das diferenças históricas entre os vários países, consolidou-se um sistema de represen-tação proporcional ou majoritário através dos partidos, que se apresentam na sociedade como portadores de um ideário, de uma visão de mundo, de um programa de governo.

Os partidos apresentam-se aos eleitores com seu projeto próprio e, a princípio, são identificados em seu conteúdo ideológico no próprio nome. Daí chamam-se de liberais, conservadores, socia-listas, comunistas, social-democráticos, trabalhistas, etc.

Nos processos eleitorais e na adesão a um partido, o eleitor já teria uma identificação prévia para o voto e/ou filiação partidária, de acordo com sua vontade e identificação social.

A complexidade do processo democrático é que nem sempre a identificação teórica e ideológica combina com a prática e o comportamento dos eleitos e até dos partidos.

Estes deveriam observar coerência entre a intenção e o gesto e na sua função clássica, não só aglutinar cidadãos, selecionar e apresentar candidatos, elegê-los, mas, principalmente, controlar os eleitos. Mantê-los na orientação coletiva, garantir a coerência, formá-los doutrinariamente e fazer do próprio comportamento, pedagogicamente, o instrumento para se apresentar aos elei-tores, crescer e construir maioria. Ou seja, a consecução de sua razão de ser: a disputa do poder.

A realidade, a vida política, não é tão simples. Os sistemas eleitorais, o voto individual ou coletivo, o poder econômico e o financiamento das campanhas, o acesso aos meios de comunicação, as vantagens ou benefícios nos cargos públicos, enfim, tudo isso altera radicalmente aquilo que poderia parecer simples.

A identificação partidária, assim como o conhecimento científico de como funciona a sociedade, sofrem permanentemente do fenômeno ideológico, alienador e mistificador, inerente à própria ação política.

No Brasil, a grande maioria dos partidos identifica-se como partidos de ordem, do status quo capitalista, mas não se chamam “partido capitalista”. Ao contrário, adotam nomes mais palatá-veis, como social democracia, popular e socialista, democratas, apesar de todos serem partidos

Apresentação

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capitalistas neoliberais. Essa é a questão ideológica inerente à disputa política. A mistificação começa pela própria identificação do partido que não será cumprida na ação política, na vida real e nas políticas governamentais desenvolvidas.

Além disso, quando a história e a cultura democrática e partidária é débil ou recente, os meca-nismos de dominação expressam-se através de outras instituições que não se constituem dire-tamente como partidos. Grandes organizações de representação empresarial ou seus Fóruns nacionais e internacionais, os grandes meios de comunicação, grandes centros de difusão de ideias (universidades, igrejas, etc) cumprem papéis partidários na propaganda e organização de determinados pensamentos que se transformam em ação governamental. O Fórum Econômico Mundial é um exemplo disso. Reunindo-se em Davos (Suiça), durante décadas foi, e é, o grande mentor do projeto neoliberal e se constitui na expressão dos grandes grupos econômicos inter-nacionais, em especial o setor financeiro, que, junto com as lideranças dos grandes partidos conservadores dos centros do capitalismo mundial, difundiram e puseram em prática o modelo neoliberal a partir de Ronald Reagan (Estados Unidos) e Margareth Tatcher (Reino Unido) nos anos 1980.

Esse é o sentido do Instituto Millenium no Brasil. Sem disputar eleições, sem se apresentar como um partido político, sem ter que enfrentar a opinião pública ou ter a transparência exigida aos partidos ou aos sindicatos, é a instituição organizadora do pensamento da direita brasileira que se reproduz no conjunto dos partidos da ordem onde encontram seguidores e aderentes em graus variados de cumplicidade e adesão.

Sua força é multiplicada pelo poder econômico dos grupos empresariais que os organizam e sustentam, pelos grandes meios de comunicação oligopolistas que filtram e manipulam as infor-mações no país e por um exército de articulistas, colunistas, formadores de opinião, âncoras de rádio e TV que reproduzem a “voz do dono”.

A publicação dos artigos de Leandro Fortes (Carta Capital) e Débora Prado (Caros Amigos) objeti-va dar conhecimento de como se forma e qual o centro pensante que se multiplica, diariamente, nos partidos, nos legislativos e chega na opinião pública através das centenas de programas de rádio, TV, jornais e das redes sociais que reproduzem à exaustão os editoriais e as posições e opiniões políticas dominantes que formam o senso comum brasileiro.

As opiniões dos grandes meios se reproduzem através dos veículos regionais até a menor rádio e o menor jornal que pautam seu noticiário local pelas versões recebidas dessas redes mono-polizadas. É dessa forma que se reproduzem e mantém as ideias dominantes e o senso comum na sociedade.

Os artigos devem servir para dar dimensão da força dos inimigos, da fragilidade e submissão dos partidos do campo conservador e das monumentais tarefas que a esquerda tem para se contra-por a essa dominação, sobreviver e manter a luta pela construção da democracia e na defesa dos avanços já alcançados na última década.

Boa leitura!Raul PontDeputado estadualJaneiro/2013

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Saudades de

Leandro forteS*

1964*Texto publicado originalmente em 02/01/2013 na revista Carta Capital

Em 1º de março de 2010, uma reunião de milionários em luxuoso hotel de São Paulo foi festejada pela mídia nacional como o início de uma nova etapa na luta da civiliza-ção ocidental contra o ateísmo comunista e a subversão dos valores cristãos. Auto-denominado 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, o evento teve como anfitriões três dos maiores grupos de mídia nacional: Roberto Civita, dono da Editora Abril, Otávio Frias Filho, da Folha de S.Paulo, e Roberto Irineu Marinho, da Globo.

O evento, que cobrou dos participantes uma taxa de 500 reais, foi uma das primeiras manifestações do Instituto Millenium, organização muito semelhante ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), um dos fomentadores do golpe de 1964 (quadro à pág. 28). Como o Ipes de quase 50 anos atrás, o Millenium funda seus princípios na liberdade dos mercados e no medo do “avanço do comunismo”, hoje personificado nos movimentos bolivarianos de Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales. Muitos de seus integrantes atuais engrossaram as marchas da família nos anos 60 e susten-taram a ditadura. Outros tantos, mais jovens, construíram carreiras, principalmente na mídia, e ganharam dinheiro com um discurso tosco de criminalização da esquerda, dos movimentos sociais, de minorias e contra qualquer política social, do Bolsa Famí-lia às cotas nas universidades.

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Há muitos comediantes no grupo. No seminário de 2010, o “democrata” Arnaldo Ja-bor arrancou aplausos da plateia ao bradar: “A questão é como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo?” Isso, como? A resposta é tão clara como a pergunta: com um golpe. No mesmo evento brilhou Marcelo Madureira, do Casseta & Planeta. Como se verá ao longo deste texto, há um traço comum entre vários “especialistas” do Millenium: muitos se declaram ex-comunistas, ex-esquerdistas, em uma tentativa de provar que suas afirmações são fruto de uma experiência real e não da mais tacanha origem conservadora. Madureira não foge à regra: “Sou forjado no pior partido político que o Brasil já teve”, anunciou o “arrependido”, em referência ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), o velho Partidão. Após a autoimolação, o piadista atacou, ao se referir ao governo do PT de então: “Eu conheço todos esses caras que estão no poder, eram os caras que não estudavam”. Eis o nível.

O símbolo do Millenium é um círculo de sigmas, a letra grega da bandeira integralista, aquela turma no Brasil que apoiou os nazistas. Jabor e Madureira estão perfilados em uma extensa lista de colaboradores no site da entidade, quase todos assíduos frequentadores das páginas de opinião dos principais jornais e de programas na tevê e no rádio. Montado sob a tutela do suprassumo do pensamento conservador nacio-nal e financiado por grandes empresas, o instituto vende a imagem de um refinado clube do pensamento liberal, uma cidadela contra a barbárie. Mas a crítica primária e o discurso em uníssono de seus integrantes têm pouco a oferecer além de uma nar-rativa obscura da política, da economia e da cultura nacional. Replica, às vezes com contornos acadêmicos, as mesmas ideias que emanam do carcomido auditório do Clube Militar, espaço de recreação dos oficiais de pijama.

Meio empresa, meio quartel, o Millenium funciona sob uma impressionante estrutura hierárquica comandada e financiada por medalhões da indústria. Baseia-se na disse-minação massiva de uma ideia central, o liberalismo econômico ortodoxo, e os con-ceitos de livre-mercado e propriedade privada. Tudo bem se fosse só isso. No fundo, o discurso liberal esconde um frequente flerte com o moralismo udenista, o discurso golpista e a desqualificação do debate público. Criado em 2005 com o curioso nome de “Instituto da Realidade”, transformou-se em Millenium em dezembro de 2009 após ser qualificado como Organização Social de Interesse Público (Oscip) pelo Ministério da Justiça. Bem a tempo de se integrar de corpo e alma à campanha de José Serra, do PSDB, nas eleições presidenciais de 2010. Em pouco tempo, aparelhado por um batalhão de “especialistas”, virou um bunker antiesquerda e principal irradiador do ódio de classe e do ressentimento eleitoral dedicado até hoje ao ex-presidente Lula.

O batalhão de “especialistas” conta com 180 profissionais de diversas áreas, entre eles, o jornalista José Nêumanne Pinto, o historiador Roberto DaMatta e o economista Rodrigo Constantino, autor do recém-lançado Privatize Já. A obra é um libelo privati-zante feito sob encomenda para se contrapor ao livro A Privataria Tucana, do jornalista

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Amaury Ribeiro Jr., sobre as privatizações nos governos de Fernando Henrique Cardo-so que beneficiaram Serra e seus familiares. E não há um único dos senhores envolvi-dos com as privatizações dos anos 1990 que hoje não nade em dinheiro.

Os “especialistas” são todos, curiosamente, brancos. Talvez por conta da adesão fu-riosa da agremiação aos manifestantes anticotas raciais. A tropa é comandada pelo jornalista Eurípedes Alcântara, diretor de redação da revista Veja, publicação onde, semanalmente, o Millenium vê seus evangelhos e autos de fé renovados. Alcântara é um dos dois titulares do Conselho Editorial da entidade. O outro é Antonio Carlos Pereira, editorialista de O Estado de S. Paulo.

Alcântara e Pereira não são presenças aleatórias, tampouco foram nomeados por fil-tros da meritocracia, conceito caríssimo ao instituto. A dupla de jornalistas representa dois dos quatro conglomerados de mídia que formam a bússola ideológica da entida-de, a Editora Abril e o Grupo Estado. Os demais são as Organizações Globo e a Rede Brasil Sul (RBS).

O Millenium possui uma direção administrativa formada por dez integrantes, entre os quais destaca-se a diretora-executiva Priscila Barbosa Pereira Pinto. Embora seja a principal executiva de um instituto que tem entre suas maiores bandeiras a defesa da liberdade de imprensa e de expressão – e à livre circulação de ideias –, Priscila Pinto não se mostrou muito disposta a fornecer informações a CartaCapital. A execu-tiva recusou-se a explicar o formidável organograma que inclui uma enorme gama de empresas e empresários.

Entre os “mantenedores e parceiros”, responsáveis pelo suporte financeiro do institu-to, estão empresas como a Gerdau, a Localiza (maior locadora de veículos do País) e a Statoil, companhia norueguesa de petróleo. No “grupo máster” aparece a Suzano, gigante nacional de produção de papel e celulose. No chamado “grupo de apoio” es-tão a RBS, o Estadão e o Grupo Meio & Mensagem.

Há ainda uma lista de 25 doadores permanentes, entre os quais, se incluem o vice-presidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho, o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga e o presidente da Coteminas, Josué Gomes da Silva, filho do falecido empresário José Alencar da Silva, vice-presidente da República nos dois man-datos de Lula. O organograma do clube da reação possui também uma “câmara de fundadores e curadores” (22 integrantes, entre eles o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco e o jornalista Pedro Bial), uma “câmara de mantenedores” (14 pes-soas) e uma “câmara de instituições” com nove membros. Gente demais para uma simples instituição sem fins lucrativos.

Uma das atividades fundamentais é a cooptação, via concessão de bolsas de estudo no exterior, de jovens jornalistas brasileiros. Esse trabalho não é feito diretamente pelo

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instituto, mas por um de seus agregados, o Instituto Ling, mantido pelo empresário William Ling, dono da Petropar, gigante do setor de petroquímicos. Endereçado a pro-fissionais com idades entre 24 e 30 anos, o programa “Jornalista de Visão” concede bolsas de mestrado ou especialização em universidades dos Estados Unidos e da Europa a funcionários dos grupos de mídia ligados ao Millenium.

Em 2010, quando o programa se iniciou, cinco jornalistas foram escolhidos, um de cada representante da mídia vinculada ao Millenium: Época (Globo), Veja (Abril), O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e Zero Hora (RBS). Em 2011, à exceção de um repórter do jornal A Tarde, da Bahia, o critério de escolha se manteve. Os agraciados foram da Época (2), Estadão (1), Folha (2), Zero Hora (1) e revista Galileu (1), da Edi-tora Globo. Neste ano foram contemplados três jornalistas do Estadão, dois da Folha, um da rádio CBN (Globo), um da Veja, um do jornal O Globo e um da revista Capital Aberto, especializada em mercado de capitais.

Para ser escolhido, segundo as diretrizes apresentadas pelo Instituto Ling, o interes-sado não deve ser filiado a partidos políticos e demonstrar “capacidade de liderança, independência e espírito crítico”. Os aprovados são apresentados durante um café da manhã na entidade, na primeira semana de agosto, e são obrigados a fazer uma espécie de juramento: prometer trabalhar “pelo fortalecimento da imprensa no Brasil, defendendo os valores de independência, democracia, economia de mercado, Estado de Direito e liberdade”.

O Millenium investe ainda em palestras, lançamentos de livros e debates abertos ao público, quase sempre voltados para assuntos econômicos e para a discussão tão obsessiva quanto inútil sobre liberdade de imprensa e liberdade de expressão. Todo ano, por exemplo, o Millenium promove o “Dia da Liberdade de Impostos” e organiza os debates “Democracia e Liberdade de Expressão”. Entre os astros especialmente convidados para esses eventos estão Marcelo Tas, da Band, e Diogo Mainardi e Rei-naldo Azevedo, ambos de Veja. Humoristas jornalistas. Ou vice-versa.

O que toda essa gente faz e quanto cada um doa individualmente é mantido em segre-do. Apesar da insistência de CartaCapital, a diretora-executiva Priscila Pinto mandou informar, via assessoria de imprensa, que não iria fornecer as informações requisita-das pela reportagem. Limitou-se a enviar nota oficial com um resumo da longa apre-sentação reproduzida na página eletrônica do Millenium sobre a missão do instituto. Entre eles, listado na rubrica “código de valores”, consta a premissa da transparência, voltada para “possibilidade de fiscalização pela sociedade civil e imprensa”. Valores, como se vê, bem flexíveis.

Josué Gomes e Gerdau também não atenderam aos pedidos de entrevista. O silêncio impede, no caso do primeiro, que se entenda o motivo de ele contribuir com um ins-

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tituto cuja maioria dos integrantes sistematicamente atacou o governo do qual seu pai não só participou como foi um dos mais firmes defensores. E se ele é contra, por exemplo, a redução dos juros brasileiros a níveis civilizados. O industrial José Alencar passou os oito anos no governo a reclamar das taxas cobradas no Brasil. A turma do Millenium, ao contrário, brada contra o “intervencionismo estatal” na queda de braço entre o Palácio do Planalto e os bancos pela queda nos spreads cobrados dos consu-midores finais.

No caso de Gerdau, seria interessante saber se o empresário, integrante da câmara de gestão federal, concorda com a tese de que a tentativa de redução no preço de energia é uma “intervenção descabida” do Estado, tese defendida pelo instituto que ele financia. Gerdau e Josué se perfilam, de forma consciente ou não, ao Movimento Endireita Brasil, defensor de teses esdrúxulas como a de que os militares golpistas de 1964 eram todos de esquerda.

O que há de transparência no Millenium não vem do espírito democrático de seus diretores, mas de uma obrigação legal comum a todas as ONGs certificadas pelo Mi-nistério da Justiça. Essas entidades são obrigadas a disponibilizar ao público os dados administrativos e informações contábeis atualizadas. A direção do instituto se negou a informar à revista os valores pagos individualmente pelos doadores, assim como não quis discriminar o tamanho dos aportes financeiros feitos pelas empresas associadas.

A contabilidade disponível no Ministério da Justiça, contudo, revela a pujança da re-ceita da entidade, uma média de 1 milhão de reais nos últimos dois anos. Em três anos de funcionamento auditados pelo governo (2009, 2010 e 2011), o Millenium deu prejuízos em dois deles.

Em 2009, quando foi certificado pelo Ministério da Justiça, o instituto conseguiu ar-recadar 595,2 mil reais, 51% dos quais oriundos de doadores pessoas físicas e os demais 49% de recursos vindos de empresas privadas. Havia então quatro funcioná-rios remunerados, embora a direção do Millenium não revele quem sejam, nem muito menos quanto recebem do instituto. Naquele ano, a entidade fechou as contas com prejuízo de 8,9 mil reais.

Em 2010, graças à adesão maciça de empresários e doadores antipetistas em geral, a arrecadação do Millenium praticamente dobrou. A receita no ano eleitoral foi de 1 mi-lhão de reais, dos quais 65% vieram de doações de empresas privadas. O número de funcionários remunerados quase dobrou, de quatro para sete, e as contas fecharam no azul, com superávit de 153,9 mil reais.

Segundo as informações referentes ao exercício de 2011, a arrecadação do Millenium caiu pouco (951,9 mil reais) e se manteve na mesma relação porcentual de doadores (65% de empresas privadas, 35% de doações de pessoas físicas). O problema foi fe-

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char as contas. No ano passado, a entidade amargou um prejuízo de 76,6 mil reais, mixaria para o volume de recursos reunidos em torno dos patrocinadores e mante-nedores. Apenas com verbas publicitárias repassadas pelo governo federal, a turma midiática do Millenium faturou no ano passado 112,7 milhões de reais.

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que a direitaa verdadeira faceInstituto Millenium:

débora prado*

oculta*Texto originalmente publicado na revista Caros Amigos de agosto de 2012.

“Direito de propriedade, liberdades individuais, livre iniciativa, afirmação do individua-lismo, meritocracia, transparência, eficiência, democracia representativa e igualdade perante a lei”. São os valores e princípios que o Instituto Millenium (IMIL) afirma pro-mover “com base na filosofia que combina respeito pelas virtudes das democracias de mercado com sólido compromisso com os indivíduos que por deficiências, idade, despreparo, infortúnios ou políticas públicas inadequadas, permanecem à margem da sociedade”. Disfarçado de inofensivo, em sua carta de princípios, o IMIL já adianta um pouco a que veio: defende a liberdade do mercado acima de todas as outras, faz apologia ao individualismo e considera que a existência de marginalizados é fruto de infortúnios da vida, peças pregadas pelo destino ou má sorte – omitindo relações com o pro-cesso histórico e contexto social. Ignora a desigualdade estrutural existente no Brasil e propõe princípios que devem ter validade universal , aplicáveis mesmo nas mais diferentes condições.

Apesar de listar a transparência entre um dos seus princípios norteadores, ironica-mente a entidade parece não segui-la ao pé da letra. O que as entrelinhas do conteúdo veiculado pelo Millenium guardam é seu papel protagonista na reorganização de um

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projeto de extrema direita, que busca reafirmar a agenda neoliberal em um momento no qual a crise econômica global poderia incentivar a busca por novos modelos. Nesse sentido, privatizações, defesa do sistema financeiro mesmo quando ele entra em co-lapso, campanha permanente contra a regulamentação das comunicações, redução dos direitos sociais e combate a qualquer tipo de política afirmativa por parte do Es-tado seriam, talvez, princípios mais honestos a serem listados pela entidade, avalia o historiador da Universidade Federal Fluminense Demian Bezerra de Melo, que desde 2009 acompanha o IMIL. Para ele, a atuação do instituto tem um sentido histórico: a contenção. Seu papel é fazer frente a emergência de governos com vínculos no campo da esquerda na Amé-rica Latina. “Ele surge no contexto de governos como Lula no Brasil, Hugo Chávez na Venezuela e do Evo Morales na Bolívia. Esses governos são polêmicos, mas seja lá o que eles forem na prática, do ponto de vista da vontade popular significam o fracasso de uma hegemonia que o neoliberalismo chegou a ter na América Latina. Nesse con-texto, o IMIL faz parte de um movimento de reorganização dessa direita neoliberal que perdeu a gestão direta dos Estados”, explica o pesquisador. Nessa seara, o instituto faz oposição pela direita e uma vasta gama de posições políticas, desde a social-democracia, ao keynesianismo, até claro, ao socialismo. “O pensamento liberal surge associando o comunismo ao estado de bem estar social e tudo isso ao totalitarismo. Com isso, oligopólios que sempre se beneficiaram querem garantir seus privilégios na América Latina e impedir que, das contradições, emerjam lutas que questionem a ordem”, afirma Demian. Se a análise do historiador se confirmar, não será a primeira vez que um instituto emperra o avanço do pensamento progressista no Brasil. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), fundado em 1961, integrou oposicionistas do presidente João Goulart e criou bases para o golpe de 1964, que instaurou a Ditadura Militar no Brasil.

Além de servirem como barricada de setores conservadores, IPES e IMIL guardam ainda outras importantes semelhanças. O IPES foi fundado por empresários e contava com o financiamento de companhias brasileiras e multinacionais. Reuniu também intelectuais e jornalistas conservadores, os formadores de opinião, e atuou com cam-panhas, manifestações e propagandas buscando direcionar a opinião pública. Os prin-cípios que assumiam defender eram a propriedade privada, a livre iniciativa, a defesa da morale dos bons costumes, a apologia ao investimento estrangeiro no Brasil e o combate ao comunismo. Ou seja., ambos possuem uma estratégia, uma formulação política, um projeto de poder para o País e adotam princípios semelhantes buscando ter inserção em uma certa camada da sociedade.

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Como Funciona o Millenium

1.EXÉRCITO DE ESPECIALISTAS Um dos pontos chaves para o IMIL disseminar suas ideias e viabilizar o projeto de poder que almeja para o Brasil é contar com um verdadeiro exército de “especialis-tas”, analistas e formadores de opinião com statu de oráculo, que serão consultados em temas variados como economia, política, relações internacionais , empreendedo-rismo, competitividade, finanças pessoais , entre outros. Para tal, o instituto articula intelectuais e pesquisadores ligados a universidade, economistas, cientistas políticos, nomes proeminentes da área da cultura, das comunicações e grandes empresários.

Alguns nomes bem conhecidos dos corredores do poder estão atuando diretamen-te na estrutura organizativa do instituto. O Gestor do Fundo Patrimonial é ninguém menos que Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso , que também já atuou junto ao mega-investidor norte-americano George Soros. O Conselho de Governança já contou com nomes como Gustavo Franco (ex-presidente do Banco Central na gestão de FHC), Jorge Gerdau Jo-hannpeter (Grupo Gerdau), Sérgio Foguel (Odebrecht), Salim Mattar (Localiza) Marcos Amaro (Amaro Participações e TAM) e Washington Olivetto (Publicitário W/Brasil). O Conselho de Fundadores e Curadores reuniu nomes como Armando Castelar Pinheiro (Professor do Instituto de Economia da UFRJ, membro da Comissão de Economia da Federação Brasileira de Bancos – Febraban) e Guilherme Fiuza (jornalista e autor do livro Meu nome não é Johnny).

“O IMIL dispõe ainda de uma extensa lista de articulistas que, em conjunto com os

entre as instituições nacionais e estrangeiras que o IMIL lista entre seus ‘parceiros’ estão:

Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão): reúne proprietários do setor de telecomu-nicações, foi criada em 1962 para fazer oposição ao governo de João Goulart.Andes Libres: associação liberal peruana ao estilo do IMIL, defende a liberdade individual e a economia de mercado.Instituto Liberal: criado no Rio de Janeiro, em 1983, com o objetivo de produzir e difundir textos sobre o liberalismo.Instituto Liberdade: tem raízes no Instituto Liberal do Rio Grande do Sul, que foi criado em 1986. Se define como um “produtor de ideias e construtor de influências”.Movimento Endireita Brasil: a associação tem como princípio, segundo seu próprio site, “endireitar o Brasil, escorada no pensamento da Nova Direita liberal, e no compromisso de luta pela diminuição do Estado e pelo fim de todos os mecanismos que limitam ou ferem a liberdade do cidadão.”AMCHAM: Câmara de comércio dos Estados Unidos no Brasil.Latinoamerica Libre: site de notícias sobre a América Latina, apoiadores do ‘papa do neoliberalismo’ norte-americano Milton Friedman.

INSTITUIÇÕES LIGADAS AO MILLENIUM

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membros da estrutura organizativa, escrevem regularmente em seu site na internet e tem espaço cativo nos principais veículos da mídia. Intelectuais que, não por acaso, aparecem com a identificação ‘neutra’ de ‘especialistas’ ”, aponta Demian, da UFF. Entre eles figuram nomes como Demétrio Magnoli, sempre chamado para falar mal das políticas de ação afirmativa – em especial das cotas; Carlos Alberto Sardenberg, comentarista de economia do Jornal da Globo, e comentarista de tudo na Globo News; Ali Kamel, editor chefe de jornalismo da Rede Globo, autor de Não somos racistas; Roberto Damatta, antropólogo e defensor intransigente da cultura norte-americana como “igualitária”; Roberto Romano, filósofo e professor da Unicamp, chamado regu-larmente a opinar sobre os problemas de “corrupção na política brasileira” em diver-sas emissoras de TV e rádio. “A lista de articulistas envolvem ainda figuras clássicas da direita brasileira, como Sandra Cavalcanti, ex-secretária do governador Carlos Lacerda e presidente do BNH durante o primeiro governo ditatorial após o golpe de 1964, além do escritor peruano Alvaro Vargas Llosa e a militante anticastrista Yoani Sanchez, autora do livro De Cuba, com carinho”, conta Demian. Para além de reunir um pool de especialistas com tradição na direita, chama aten-

Confira alguns dos temas que mobilizaram a estrutura e analistas do IMIL nos últimos anos:

2009: Conferência Populismo no Brasil e na América Latina – Como resultado, foi escrito o “Manifesto à Na-ção Brasileira Contra o Totalitarismo Bolivariano”, assinado por João Ricardo Moderno (professor de filosofia da UERJ e presidente da Academia Brasileira de Filosofia), Heitor de Paola (psicanalista e delegado da Uno América), Maria das Graças Salgueiro (psicóloga, delegada brasileira da UnoAmérica e colunista do “Mídia Sem Mascara” de Olavo de Carvalho), Alejandro Peña Esclusa (um dos principais opositores da direita ao governo Chávez, da UnoAmérica e presidente da Fuerza Solidaria) e Jorge Roberto Pereira (presidente do Farol da Democracia, ONG a qual pertence Olavo de Carvalho).

2010: 1º Fórum democracia de liberdade de expressão – Seminário reuniu os representantes dos principais veículos de comunicação contrários à implementação de políticas públicas na área. Associaram qualquer tentativa de regulamentação à censura, gerando protestos de movimentos pela democratização das comu-nicações. A inscrição: R$500 por cabeça.

2011: 2º Fórum democracia e liberdade – No Centro de Convenções da FAAP, em São Paulo, no dia 3 de maio. A mensagem de boas-vindas ficou a cabo de Roberto Civita, presidente do conselho do Grupo Abril e conselheiro do Instituto Millenium.

2011: Dia da liberdade de impostos – Terceira edição do evento, que vendeu 4 mil litros de gasolina sem os 53,03% de impostos. O objetivo declarado pelo instituto é chamar a atenção da sociedade para a alta carga tributária. Em todos os anos, a campanha é amplamente divulgada na grande imprensa, mas geralmente não aparecem as entidades patrocinadoras. É retratado como um movimento espontâneo de alguns “em-preendedores da sociedade civil”.

Para ver mais, visite o site do Instituto Millenium: http://www.imil.org.br/

O QUE FEZ O INSTITUTO MILLENIUM NOS ÚLTIMOS ANOS

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ção que muitos nomes hoje vinculados ao IMIL são ‘ex-esquerdistas’, como Demétrio Magnoli, que já integrou uma organização trotskista, a Liberdade e Luta (Libelu), ou a cubana insurgente Yoani Sanchez. A esquerda convertida tem especial valor para o Millenium na disputa de ideias, segundo o historiador fluminense. “Isso serve a um mito, o de dizer que a esquerda é uma coisa infantil, imatura, que quando a pessoa amadurece ela abandona suas posições”, aponta o historiador.

2. AMIGOS NA MÍDIA

A liberdade de ir e vir nos grandes veículos de comunicação é outra questão central na atuação do instituto. Organizações Globo, Grupo Abril, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo as principais emissoras, revistas e jornais estão articuladas ao instituto. Nomes como Reinaldo Azevedo (articulista da revista Veja), José Nêumanne Pinto (Co-lunista do Estadão) e Ricardo Amorim (colunista da Revista Isto É, comentarista da rádio Eldorado e do programa Manhattan Connection) aparecem como especialistas e articulistas ligados ao instituto. Pedro Bial (TV Globo) está na Câmara de Fundado-res e Curadores da entidade, enquanto João Roberto Marinho (Organizações Globo), Roberto Civita (Grupo Abril) e Roberto Mesquita (Grupo Estado) figuram na Câmara de mantenedores. O conselho Editorial é composto por Antonio Carlos Pereira (Estado de São Paulo), Eurípedes Alcântara (foi de O Globo e trabalha há 25 anos na Veja). Isso sem contar o exército de ‘especialistas’ e ‘analistas’ de diferentes áreas que são vin-culados ao instituto e aparecem diariamente como fontes na grande imprensa. Segundo o relatório de atividades da própria entidade, sua exposição nos principais jornais, TVs e rádios vem crescendo ano a ano: eram 36 matérias veiculadas em 2009, saltaram para 186 em 2010 e atingiram 290 em 2011. No ano passado, as páginas do site tiveram 1 milhão e 100 mil visitas.

Isso talvez seja uma das explicações para que uma das bandeiras do IMIL seja o combate contra qualquer tentativa de regulamentação das comunicações no Brasil,

Gerdau(Siderúrgica)

Thomson Reuters(conglomerado de comunicação)

Grupo M&M(eventos)

Suzano(papel e celulose)

Máquina Public Relations(relações públicas)

Instituto Ling(associação ligada a Petropar)

Localiza(aluguel de carros)

Instituto Mises Brasil(associação de cunho liberal)

Grupo RBS(grupo comunicação afiliado á Globo)

Estadão(jornal)

Vale(mineradora)

Statoil(energia)

EMPRESAS APOIADORAS

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conforme previsto na Constituição de 1988. Para o jornalista e sociólogo Venício Lima, o instituto expressa uma concepção de liberdade traduzida em termos de comunica-ção na discussão sobre liberdade e expressão. “Para essa tradição, a liberdade é a ausência de restrição externa, onde qualquer política pública que signifique interferên-cia do Estado significa tolhimento. Então eles não conseguem e também não querem, porque é conveniente pra eles, compreender que essa não é a única concepção de liberdade”, explica.

A tática adotada para defender sua posição é tentar confundir publicamente qualquer tentativa de regulamentação da comunicação como censura ou uma medida autoritá-ria. A rigor, segundo o professor, até mesmo as sociedades capitalistas de democracia liberal representativa, como os EUA, têm adotado uma posição contrária a essa ao longo das últimas décadas. “É uma visão conservadora mesmo dentro do capitalismo. Existem autores, inclusive liberais, que não adotam essa posição que é predominante no Brasil, porque é a mais conveniente para os grupos de mídia. Eles não querem que se altere o status quo porque se beneficiam.”

3. RECRUTAMENTO

Em seu site, o Millenium afirma: “para manter sua independência e autonomia é im-portante que o IMIL tenha como sua maior fonte de financiamento os recursos de indivíduos que se identificam com a nossa causa.”. De forma semelhante ao funcio-namento de um partido político, a pessoa que crê nos princípios defendidos pode se associar ao instituto. Mas, para isso, deve pagar uma cota, que vai desde R$50,00 até R$1.000,00, dependendo do status a ser adquirido pelo associado: simples, prata, ouro ou diamante.

E engana-se quem pensa que a associação se dá de maneira apenas espontânea. O trabalho de “recrutamento” é feito de maneira profissional. De acordo com uma fon-te que trabalhou no instituto, profissionais contratados atuam buscando ativamente pessoas que demonstrem um pensamento conservador, seja nas redes sociais ou mesmo em espaços de comentários de leitores nos meios de comunicação. Uma vez identificada uma afinidade em potencial, o instituto faz uma abordagem, convidando a pessoa para conhecer seu site e ideias.

Com isso, e com a doação das empresas apoiadoras, o IMIL garante a receita necessá-ria para desenvolver suas atividades, conta com profissionais liberados para trabalhar suas ideias, realiza eventos, mantém um site e uma sede no centro do Rio de Janeiro. Em 2011, as receitas do instituto alcançaram R$965.030,00, sendo R$860.429,00 somente em doações.

4. PILARES

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Além de defender as privatizações e o ‘não me toque’ nas comunicações, alguns ou-tros temas são caros ao IMIL. Um deles é a saída da crise por dentro, já que muitos dos proeminentes empreendedores ligados ao instituto apresentam vínculos com o sistema financeiro e não lhes interessa mudar as regras do jogo nessa área.

Outro ponto fundamental é a campanha pela redução dos impostos e, também, dos gastos públicos. “Isso representa a pauta liberal mesmo, um encolhimento do Estado no sentido da redução de investimentos nas áreas sociais, porque a face do Estado, que é a da violência, não sofre restrição por parte desse tipo de projeto. Com o au-mento da polícia, do choque, do ‘caveirão’, eles não tem nenhum problema”, avalia Demian Bezerra.

Outro ponto defendido é a necessidade de se honrar a dívida pública no Brasil. “O Es-tado paga metade do nosso orçamento para os banqueiros e eles não têm problema nenhum com a dívida pública, até porque, como são integrados ao capital financeiro, muitos são proprietários dos títulos da dívida”, aponta.

Cotas raciais na universidade e políticas afirmativas, por sua vez, são prontamente rechaçadas, posição personificada pelo especialista Demétrio Magnoli, autor de inú-meros livros, um deles inclusive recomendado no site do instituto.

Para além dos pontos que o IMIL aborda, os assuntos que ele não trata também são fundamentais para o seu êxito. Temas com potencial de dividir opiniões entre o públi-co conservador no campo econômico devem ser evitados. Uma fonte que trabalhou no instituto conta que, por exemplo, a união civil entre homossexuais ou a legalização das drogas são pontos sensíveis.

Na formulação de ideias, não é incomum ainda que o instituto se aproprie de expres-sões das lutas populares (solidariedade, liberdade, participação, igualdade), descola-das no contexto histórico social, para servir aos seus propósitos.

5. PARTIDO DOS PARTIDOS

O apartidarismo é necessário ao IMIL, já que assim o instituto se torna livre para de-fender seu projeto de poder, independente da sigla que ocupe o executivo. Entretanto, para o historiador da Universidade Federal Fluminense, o instituto atua como verda-deiro partido político no sentido que Antonio Gramsci definiu: o grande articulador intelectual de um projeto muitas vezes não pertence a nenhuma das frações mani-festas em partidos, mas opera como se uma fosse uma força dirigente em si mesma, superior a partidos e, às vezes, reconhecida como tal pelo público.

Demian, que pesquisou o IPES em seu doutorado, conta que o Instituto Millenium cha-mou sua atenção, em 2009, quando lhe pareceu ser um think tank (espécie de centro

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formulador de ideias) tucano. “Mas, em 2010, eu fiz um levantamento pensando no processo eleitoral e me chamou a atenção que nas eleições presidenciais eles se posi-cionaram de maneira independente pela direita, chegaram até a criticar o (Jose) Serra (candidato pelo PSDB) por não defender as privatizações do FHC”, relembra.

Desse modo, mesmo na gestão do PT, alvo constante de críticas no instituto, figuras chaves do Millenium se fazem presentes. É o caso, por exemplo, do megaempresário Jorge Gerdau, que transita pelos corredores do Planalto e foi chamado em janeiro desse ano pela presidente Dilma Rousseff como consultor especial do governo para ‘a adoção de um modelo empresarial na máquina pública’, segundo noticiou o jornal O Estado de S. Paulo.

“O Millenium é um partido mesmo, no sentido que o Gramsci colocava de organização de uma visão de mundo, de um projeto de poder e dos subsídios para viabilizá-lo. Eles organizaram instituições de cunho liberal, como o Instituto Liberal, do Rio de Janeiro, que existe desde os anos 1980, o Endireita Brasil, Instituto da Liberdade, do Rio Gran-de do Sul, entre outros”, analisa Demian.

Além dos vínculos no Brasil, o IMIL tem conexões com outras entidades na América Latina, como a organização de extrema-direita União das Organizações Democráticas das Américas (UnoAmérica). O presidente da organização, o venezuelano Alejandro Peña, já veio a convite do IMIL para diversos eventos. Ele esteve, por exemplo, na con-ferência “O Totalitarismo Bolivariano contra o Estado Democrático de Direito Latino-americano”, realizado pelo IMIL em abril de 2009 no Rio de Janeiro. O delegado da UnoAmérica no Brasil, Heitor de Paola, também é figura constante nos encontros e publicações do IMIL.

IMPLICAÇÕES

Para Maria Orlanda Pinassi, professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, o Instituto Millenium é uma importante fábrica de ide-ologias necessárias aos estragos causados pela ordem neoliberal.

Ela contextualiza: “O fim do período ascendente do sistema do capital, marcado pela aplicação do receituário neoliberal em todo o planeta, vai se basear numa lógica de produção e de acumulação essencialmente destrutiva”. Dados significativos sobre isso são fornecidos pela FAO (Organização das Nações Unidas Para Agricultura e Ali-mentação), por exemplo, ao declarar que a crise global provocará um aumento supe-rior a um bilhão de famintos no mundo. “Isso vem a comprovar o absoluto fracasso de todas as ideologias que defenderam (e teimam em defender) o processo histórico controlado pelo capital como forma de minimizar a desigualdade social e garantir qua-lidade de vida”.

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Entretanto, para os beneficiados por esse sistema, é necessário encontrar justificati-vas para mantê-lo. É neste quadro que se constitui o significado mais efetivo do Insti-tuto Millenium. Entidade que se coloca em defesa explícita da propriedade privada e, neste sentido, da liberdade individual, da meritocracia do indivíduo competente para os jogos do mercado, do estado de direito do proprietário privado, da responsabilidade individual, da economia de mercado e da democracia submetida a ela.

“Se essa ordem é essencialmente destrutiva e irracional do ponto de vista humano, a defesa dela não é somente conservadora, como foram os positivistas, apologetas do capitalismo no período de sua ascensão histórica. Ser conservador e apologeta hoje é ser fundamentalmente reacionário, como foram os fascistas no período imperialista”, conclui Maria Orlanda.

Para o historiador fluminense, Demian Bezerra, uma vitória desse ideário represen-tado pelo Millenium significa, atualmente, uma restrição democrática. “Nós tivemos um processo de transição muito conservador e limitado na Ditadura Militar para de-mocracia. E uma aceleração das medidas neoliberais significa jogar o pouco que con-

Câmara de Fundadores e CuradoresAmaury de SouzaAntonio Carlos PereiraArmando Castelar PinheiroAugusto Teixeira de FreitasCarlos PioEduardo ViolaEurípides AlcântaraGuilherme FiuzaGustavo FrancoGustavo MariniHéctor LeisHelio BeltrãoJoão AcciolyJorge MaranhãoLuiz Eduardo VasconcelosMarcelo Viveiros de MouraMaria José QueirozOdemiro FonsecaPatrícia Carlos de AndradePaulo AreasPaulo GuedesPaulo ContijoPedro BialRaphael Tosti de Almeida VieiraRoberto DaMattaRodrigo Constantino

Câmara de MantenedoresArmínio FragaDaniel FefferGustavo MariniHelio BeltrãoJoão Roberto MarinhoJorge Gerdau JohannpeterJosé Carlos de Salles Gomes NetoJosué Gomes da SilvaMaristela MafeiNelson SirotskyPedro Henrique MarianiRicardo DinizRoberto CivitaRoberto MesquitaSalim MattarSergio FoguelWashington OlivettoWilliam Ling

DoadoresAlexandre LourençoAntonio Carlos VidigalArminio FragaAugusto Teixeira de FreitasEduardo Henrique Costa Braga de OliveiraGustavo Guillaumon

Gustavo MariniHelio BeltrãoHenrique FarahJayme GarfinkelJoão B. Portella PereiraJosé Celso Macedo SoaresJosé Francisco de Lacerda Schia-voJosué Gomes da SilvaJoão Roberto MarinhoLeandro JardimLeandro NarlochMarcio David Silva de MattosMarcos Amendola ZaidanMarcos Buckentin BruzziMarcelo Henrique de BritoMiguel NagibPatricia Castello StefaniPedro Henrique MarianiRicardo LagaresRoberto CivitaSamuel Y. O KinoshitaThiago Jabor PinheiroTiago Pechutti MedeirosValter Police Junior

Diretora-executivaPriscila Barbosa Pereira Pinto

QUEM COMPÕE O IMIL

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seguimos de conquista pelo ralo”, caracteriza. Isso significa retirar direitos previstos na Constituição de 1988 e aumentar a criminalização dos movimentos sociais. “E, infelizmente, o IMIL tem dado passos importantes no sentido da instalação de um projeto neoliberal mais cru”, lamenta.

A reportagem de Caros Amigos entrou em contato por email com a assessoria de im-prensa do instituto solicitando entrevista com um porta-voz do IMIL, mas não recebeu retorno até o fechamento da edição.

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Publicação do gabinete do deputado estadual Raul Pont - PT/RS - Nº76 Janeiro/2013 - (51) 3210.1300 - www.raulpont.com.br