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São Tomé e Príncipe: Cultura(s)/Património(s)/Museu(s) Inês Filipa Abreu de Castaño Setembro 2012 Trabalho de Projecto de Mestrado em Museologia VOLUME 1

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  • So Tom e Prncipe: Cultura(s)/Patrimnio(s)/Museu(s)

    Ins Filipa Abreu de Castao

    Setembro 2012

    Trabalho de Projecto

    de Mestrado em Museologia

    VOLUME 1

  • Trabalho de Projecto apresentado para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre em Museologia realizado sob a orientao cientfica de:

    Professora Raquel Henriques da Silva e Professora Maria da Graa da Silveira Filipe.

  • minha av Celeste.

  • Agradecimentos

    Professora Graa Filipe, parceira e amiga, (des)orientadora e assertiva em momentos decisivos.

    Professora Raquel Henriques da Silva pelo voto de confiana.

    A todos os amigos de c e l que, do pouco (que dei), me deram tanto.

    Luisa, companheira de intuies!

    gorducha, minha irm, pelo exemplo e apoio de sempre.

    Ao Miguel, pelas discusses e pelo amor.

    Aos meus pais, por tudo.

  • Resumo

    Trabalho de projecto

    So Tom e Prncipe: Cultura(s)/ Patrimnio(s)/Museu(s)

    A independncia de So Tom e Prncipe, em 1975, precedida de um longo perodo de

    colonizao, constitui um momento crucial de mudana naquele territrio, que se reflecte a vrios

    nveis: econmico, social e cultural. Desde a independncia que o pas vem traando polticas de

    desenvolvimento e de consolidao das suas estruturas contando, para tal, com o apoio da

    cooperao internacional.

    Numa altura de mudana, os museus permitem estabelecer a conexo entre o passado e o

    presente e inspirar caminhos em direco ao futuro, contribuindo para o desenvolvimento do pas e

    beneficiando, assim, os membros da comunidade, individual e colectivamente.

    A trade cultura/ patrimnio /museu constitui uma delimitao conceptual que nos conduz a

    um campo temtico mais vasto onde se arquitecta uma teia de relaes construda pelas ideias de

    identidade(s) cultural, herana ou memria colectiva, permitindo-nos, quando vertidas para um

    territrio, analis-lo. O enquadramento geogrfico, histrico, social e poltico, bem como uma

    anlise aprofundada da cultura viva, onde se integra a lngua e outras manifestaes e prticas

    evolutivas, aspectos e propostas de aco patrimonial, permitiro configurar um estudo diagnstico

    da realidade santomense, com o intuito de definirmos os princpios programticos para uma aco

    que contribua para um projecto de desenvolvimento comunitrio, centrado no inventrio

    participativo como mtodo, em que a memria e a construo de referncias identitrias sejam

    vectores centrais.

    Palavras-chave: So Tom e Prncipe, cultura, patrimnio, museu, aco patrimonial, memria

    colectiva, desenvolvimento comunitrio, inventrio participativo

  • Abstract

    Project work

    So Tom and Prncipe: Culture(s)/ Heritage(s)/Museum(s)

    Preceded by long colonial period, the Independence of Sao Tome and Principe, in 1975,

    marks a rupture moment of change in that territory, reflected in multiple levels of the economic,

    social and cultural spheres. Since the independence, the country has been tracing development

    policies and consolidating its structures with the support of international cooperation.

    At a time of change, the museums can establish the connection between past and present,

    inspiring the paths to the future, contributing to the growth of a country and, therefore, acting

    beneficially for the community members, individually and collectively.

    The culture / heritage / museum triad supports a conceptual definition that leads to a broader

    thematic field, where a web of relationships built by cultural identity, inheritance or collective

    memory notions, allowing us, when poured into a territory, to analyze it. The geographic,

    historical, social and political framework, as well through a profound analysis of the living culture -

    which integrates the language and other manifestations and evolutive practices - and the aspects and

    proposals of patrimonial defense actions, will allow to set up a diagnostic study of the santomean

    reality, in order to define the programmatic principles for a action that contributes to a community

    development project, focused on the inventory - as a participatory method - in which memory and

    the construction of identity references are central vectors.

    Keywords: Sao Tome and Principe, culture, heritage, museum, patrimonial defense, collective

    memory, community development, participatory inventory

  • Lista de abreviaturas e acrnimos

    CPLP - Comunidade de Pases de Lngua Portuguesa

    CV- Cabo Verde

    EPA - Escola Patrimnio Africano

    FONG-STP - Federao de Organizaes No Governamentais em So Tom e Prncipe

    IC - Instituto Cames

    ICOM - International Council of Museums

    IPAD - Instituto Portugus de Apoio ao Desenvolvimento

    ISP - Instituto Superior Politcnico de So Tom e Prncipe

    MINOM - International Movement for a New Museology

    ONGD - Organizao No-Governamental para o Desenvolvimento

    STP - So Tom e Prncipe

    UNESCO - United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization

  • NDICE geral

    1. Introduo

    1.1. Definio do tema e objectivos

    1.2. Enquadramento conceptual e metodolgico

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    2. A prtica da teoria

    2.1. O social no binmio memria/patrimnio

    2.2. Da memria social ao impulso museal

    2.3. Museu em contexto

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    6

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    3. So Tom e Prncipe: conhecer o territrio e a histria como contexto

    de desenvolvimento

    3.1. Enquadramento geogrfico

    3.2. Razes histricas de uma sociedade crioula africana

    3.3 Sociedade e contexto poltico

    3.4. Cooperao e desenvolvimento

    3.5. Quadro legislativo

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    4. Cultura(s)/ Patrimnio(s)/ Museu(s) em So Tom e Prncipe:

    abordagem para um diagnstico a partir do terreno

    4.1. A Cultura Santomense: identidade cultural e Santomensidade

    4.1.1 Lngua e crioulos

    4.1.2 Manifestaes culturais

    4.2. Patrimnio(s)

    4.3 Aco Patrimonial

    4.4. Museu Nacional de So Tom e Prncipe

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  • 5. Via de aco patrimonial para So Tom e Prncipe

    5.1. Um olhar exgeno: Cabo Verde, relao inevitvel

    5.2. A experincia Soya Kutu

    5.2.1. Metodologia utilizada

    5.2.2. Locais

    5.2.3. Equipa de trabalho

    5.2.4. Repercusses imediatas e a longo prazo

    5.3. Proposta de aco: o inventrio do patrimnio para o

    desenvolvimento

    5.3.1 Equipa de trabalho

    5.3.2. Formao

    5.3.3. Metodologia

    5.3.4. Tentativa/erro

    5.3.5. Educao patrimonial

    5.3.6. Repercusses a curto, a mdio e a longo prazo

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    6. Consideraes finais

    Referncias bibliogrficas

    Apndices

    Anexos

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    110

    vol. 2

    vol. 2

  • 1. Introduo

    O Trabalho de Projecto que agora se apresenta sob o tema So Tom e Prncipe: cultura(s)/

    patrimnio(s)/museu(s) resulta das competncias adquiridas na componente lectiva do curso de

    mestrado em Museologia, aplicadas agora ao estudo de uma realidade a partir do qual se far uma

    proposta de aco com fins sociais e culturais.

    As motivaes que estiveram na base da nossa escolha prenderam-se com a inexistncia de

    estudos nesta rea centrados na realidades santomense, bem como as potencialidades que ali

    encontramos para desenvolver uma proposta inovadora mas, sobretudo, oportuna.

    Em seguida faremos uma breve apresentao do nosso objecto de estudo, apresentando os

    objectivos que nortearam a nossa pesquisa, bem como o enquadramento conceptual e metodolgico

    que lhe deram forma.

    1.1. Definio do tema e objectivos

    A independncia de So Tom e Prncipe, em 1975, precedida de um longo perodo de

    colonizao, constitui um momento crucial de mudana naquele territrio, que se reflecte a vrios

    nveis: econmico, social e cultural. Desde a independncia que o pas vem traando polticas de

    desenvolvimento e de consolidao das suas estruturas. No entanto, no momento em que o pas se

    abre ao multipartidarismo que se efectiva uma poltica de cooperao entre instituies

    internacionais e locais, fundamental no trabalho de terreno, com vista ao desenvolvimento do pas.

    A sociedade santomense, constituda pela coexistncia de diferentes culturas no mesmo

    territrio, pautada por um fenmeno de conflitualidade fruto desse mesmo passado histrico, que

    a caracteriza e define a sua identidade cultural. Os museus podem contribuir para transmitir/

    construir esta identidade, na medida em que tm como uma das suas funes essenciais

    proporcionar comunidade uma compreenso da sua identidade cultural, desenvolvendo nos

    indivduos o sentimento de pertena a essa comunidade.

    Numa altura de mudana, os museus permitem estabelecer a conexo entre o passado e o

    presente e inspirar caminhos em direco ao futuro. Deste modo entendemos que o contributo do

    museu para o desenvolvimento do pas pode beneficiar os membros da comunidade, individual e

    colectivamente. Por outro lado, as aces desenvolvidas pelos museus tambm esto dependentes

    das caractersticas da comunidade e da sua participao.

    Deste modo parece-nos fundamental partir da trade cultura(s)/patrimnio(s)/museu(s) na

    perspectiva de um projecto dirigido para o desenvolvimento de S. Tom e Prncipe. Para tal ser

    1

  • necessrio integrar neste processo a lngua e outras manifestaes e prticas evolutivas, aspectos e

    propostas de aco patrimonial, bem como definir princpios programticos para uma aco que

    contribua para um projecto de desenvolvimento local, em que a memria e a construo de

    referncias identitrias sejam vectores importantes.

    Com este trabalho pretendemos reflectir sobre as mudanas sociais e culturais em So Tom

    e Prncipe, bem como propor uma via de aco patrimonial adaptada realidade em que se insere,

    sublinhando a sua importncia para o desenvolvimento do pas.

    1.2. Enquadramento conceptual e metodolgico

    O nosso trabalho enquadra-se no mbito geral da museologia e, como tal, conduz-nos a uma

    linha de pensamento interdisciplinar, pela necessidade de compreendermos conceitos fundamentais

    e de assim os podermos articular.

    A trade cultura/patrimnio/museu que previamente traamos no mais que uma

    delimitao conceptual que nos conduz a um campo temtico mais vasto onde se arquitecta uma

    teia de relaes construda pelas ideias de identidade(s) cultural (culturais), herana ou memria

    colectiva. Esta herana cultural, que oscila num jogo entre a memria e o esquecimento, constitui o

    mbito do patrimnio cultural de determinada sociedade que enceta estratgias de significao do

    seu prprio patrimnio atravs de diferentes tipologias de preservao. Importa, por isso,

    compreender de que forma se d esta valorizao que implica a aplicao de medidas e polticas

    acertadas visando a gesto integrada e harmoniosa num quadro do desenvolvimento.

    Importa ento compreender de que forma a ideia de patrimnio evoluiu, transitando de

    estanque a verstil, abrangente e mutvel, consoante o seu contexto social, consumo e

    reconhecimento das suas tipologias de valor. O alargamento da noo de patrimnio vem reflectir-

    se na proliferao de espaos de activao cultural onde figuram os museus e consequentemente na

    redefinio de objecto museolgico, na participao da comunidade na definio e gesto das

    prticas museolgicas, na museologia como factor de desenvolvimento.

    As prticas museolgicas contemporneas decorrem assim sob influncia da mudana de

    paradigma da funo social do museu, doravante atento s constantes transformaes da sociedade.

    Neste contexto, tentaremos ocupar-nos do conceito designado por Nova Museologia, considerado

    renovador no meio museolgico, uma vez que se vincula comunidade num dado territrio, em

    detrimento do enquadramento tradicional num edifcio, fazendo do territrio o objecto museolgico,

    2

  • propondo-se a identific-lo, a conhec-lo, a estud-lo e a apresent-lo. Esta mudana de paradigma,

    que centra a actividade museolgica no cidado consciente integrado numa comunidade enquadra-

    se na concepo Freiriana de educao popular, a qual Hugues de Varine considera integrar-se no

    trabalho comunitrio dos museus de territrio, encarando-a como um instrumento para o

    desenvolvimento da comunidade. Ao permitir libertar a capacidade criadora dos indivduos, leva-os

    a ocupar um lugar de actor cultural, social e econmico, na sua comunidade e no seu territrio. Este

    processo de consciencializao d ento lugar a uma cultura da iniciativa, expressa na capacidade

    de aco, condio fundamental do desenvolvimento comunitrio.

    Depois de estabelecido o campo conceptual da nossa pesquisa prosseguimos com uma

    anlise to aprofundada quanto possvel, tentando compreender as implicaes do enquadramento

    geogrfico, histrico, social e poltico na realidade em estudo. Concomitantemente, procedeu-se ao

    levantamento de entidades e instituies a actuar em S. Tom e Prncipe na rea da cooperao e do

    desenvolvimento e, para tal, tentaremos compreender ainda, de forma sucinta, o mbito da

    cooperao internacional e suas estratgias para o desenvolvimento. Uma breve anlise do quadro

    legislativo seguir-se-, procurando encontrar os meios legais de actuao em torno da trade cultura/

    patrimnio/museu.

    Enquadrada e caracterizada, pudemos ento tomar contacto com a realidade santomense,

    permitindo-nos compreender aquela realidade sob o ponto de vista cultural e patrimonial,

    considerando a lngua e outras manifestaes e prticas evolutivas, aspectos e propostas de aco

    cultural e patrimonial bem como enquadrar a nica estrutura museolgica existente em So Tom e

    Prncipe, criada no mbito das medidas de patrimonializao encetadas aquando da formao do

    novo pas.

    A abordagem ao panorama cultural santomense resultou da pesquisa realizada no terreno

    atravs de uma recolha plurimetodolgica, recorrendo-se a contactos informais e exploratrios e

    entrevistas semi-dirigidas conduzidas com base num guio-indicativo, direccionado a diferentes

    actores da vida cultural santomense, o estudo de caso intensivo, bem como a observao directa, da

    qual um caso exemplar o I Frum da Cultura de So Tom e Prncipe, atravs do qual nos foi

    possvel compreender o panorama cultural, bem como a teia de relaes que se estabelece entre os

    diferentes actores da cena cultural santomense. Paralelamente procedeu-se ainda recolha

    bibliogrfica, da qual destacamos o esplio do Arquivo Histrico de So Tom e Prncipe, onde

    tivemos acesso imprensa local, fonte fundamental para a compreenso desta nossa matria.

    3

  • No que diz respeito metodologia utilizada, gostaramos de focar que, embora tenhamos

    cumprido em parte o que nos propusemos, no nos foi possvel recolher maior nmero de opinies

    junto de informantes que nos pareceriam importantes. Este facto deve-se, em grande parte, apesar

    dos vrios contactos e tentativas sucessivas, indisponibilidade destes para connosco colaborarem.

    Importa ainda referir a dificuldade que tivemos em abarcar todas as questes a que nos

    propusemos, motivo pelo qual alguns assuntos no puderam ser to aprofundados ou sequer

    trabalhados. De facto, reflectindo sobre a necessidade que sentimos de abarcar todas as questes

    com as quais nos fomos deparando, devido tipologia de trabalho pela qual decidimos enveredar,

    assumimos que possa ter sido um aspecto pouco vantajoso pela disperso conceptual que dele

    advm.

    A especificidade do tema em estudo, em muito influenciado pela zona geogrfica, levou-nos

    a valorizar a prtica interdisciplinar enquanto sistema relacional de disciplinas cientficas,

    fundamental na necessidade de articular a complexa teia rizomtica de temas em anlise. A

    correlao entre as diferentes formas de recolha de informao e do seu tratamento permitiram a sua

    anlise de forma mais abrangente, afastando-nos de uma interpretao unvoca da realidade em

    estudo.

    Importa referir que a proposta que havamos traado inicialmente para uma via de aco

    patrimonial adequada realidade santomense acabaria por ser alterada substancialmente, em

    virtude da nossa experincia no terreno. Sob pena de incorrermos numa proposta incongruente e

    desajustada quele territrio procuraremos ento apresentar um contributo capaz de repensar o

    processo de inventrio participativo, integrando diferentes entidades num processo em que as

    comunidades locais tm um papel preponderante no reconhecimento do patrimnio. A nossa

    proposta decorre ainda de um olhar atento a outras realidades semelhantes, a fim de identificar

    estratgias e campos de actuao.

    Pretende-se assim que a nossa proposta, por meio de patrimnio, promova um processo de

    mudana com vista ao desenvolvimento comunitrio.

    4

  • 2. A prtica da teoria1

    Mas, quando nada subsiste de um passado antigo, aps a morte dos seres, aps a destruio das coisas, apenas o cheiro e o sabor, mais frgeis mas mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiis, permanecem ainda por muito tempo, como almas, a fazer-se lembradas, espera sobre a runa de tudo o resto, a carregar sem vacilaes sobre a sua gotinha quase impalpvel o edifcio imenso da memria (Proust, 2003:54).

    Comecemos por delimitar o permetro terico deste trabalho, embora nos parea quase

    tarefa impossvel pelas constantes derivaes a que a nossa temtica nos leva. Importa,

    primeiramente, compreender alguns conceitos bem como a forma como podem estar articulados

    com a linha de pensamento que gostaramos de traar, integrada no mbito geral da museologia.

    Ao abordarmos conceitos como cultura, patrimnio e museu, rapidamente estamos

    enredados num universo interminvel de perspectivas de anlise e, por isso, indissociveis de outras

    reas disciplinares das cincias sociais, sendo por isso imprescindvel adoptarmos uma abordagem

    interdisciplinar ao longo da nossa pesquisa. No campo conceptual importa, sobretudo, compreender

    como se constri e caracteriza a identidade(s) cultural que se pode perspectivar como uma herana

    e, por isso, capaz de criar uma ideia, mais ou menos abrangente, de memria colectiva. Esta herana

    cultural, que oscila num jogo entre a memria e o esquecimento, constitui o mbito do patrimnio

    cultural de determinada sociedade que enceta estratgias de significao do seu prprio patrimnio

    atravs de diferentes tipologias ou modos de preservao. Importa, por isso, compreender de que

    forma se d esta valorizao que implica a aplicao de medidas e polticas acertadas visando a

    gesto integrada e harmoniosa num quadro do desenvolvimento. Por outro lado, tanto do ponto de

    vista micro (organizao familiar) como macro (comunidades) das estruturas sociais, interessa

    compreender como se processa esta vontade de patrimonializao, ainda que nem sempre se d de

    forma consciente.

    A memria colectiva condiciona a definio de contedo do(s) patrimnio(s), mantendo ou

    acrescentando uma herana cultural. O processo de patrimonializao decorre assim,

    fundamentalmente, das atitudes e da conscincia expressas pelas comunidades e o principal critrio

    em que assenta traduz-se na conscincia ntima do grupo social de que um dado objecto pertence

    efectivamente ao seu patrimnio.

    O alargamento da noo de patrimnio vem reflectir-se na redefinio de objecto

    museolgico, na participao da comunidade na definio e gesto das prticas museolgicas, na

    5

    1 A partir dos ttulos de Amlcar Cabral: A prtica revolucionria e A arma da teoria.

  • museologia como factor de desenvolvimento, nas questes de interdisciplinaridade, na museografia

    como meio autnomo de comunicao (Moutinho, 1993:5). So estes alguns exemplos das questes

    decorrentes das prticas museolgicas contemporneas, em tudo influenciadas pela mudana de

    paradigma da funo social do museu, doravante atento s constantes transformaes da sociedade.

    2.1. O social no binmio memria/patrimnio

    Interessa perceber, deste modo, como so gerados os sistemas de significao com que se

    constri uma ideia de identidade colectiva, assumindo que:

    o reconhecimento de uma herana cultural e sua transmisso no se relacionam somente com preocupaes polticas, eles supem a continuidade de uma representao da histria, tanto das ideias quanto dos

    acontecimentos. Assim, a prpria ideia de patrimnio, ainda que nem sempre de modo consciente, perdura desde a Revoluo Francesa como modo de reproduo das mentalidades colectivas. (Jeudy, 1990:5)

    Neste contexto, e segundo uma perspectiva dialgica de interpretao, tentaremos analisar

    ainda o papel do museu e outras estruturas patrimoniais enquanto construes culturais resultantes

    de um processo que articula contextos polticos, econmicos, sociais e histricos especficos, como

    uma necessidade de constante preservao de uma memria colectiva.

    Partindo, por isso, de uma ideia de memria colectiva, hoje largamente explorada por vrios

    autores, importa aqui compreender, e segundo Halbwachs (apud Anico, 2008:24; apud Jeudy,

    1990:32), a funo primordial da memria, enquanto imagem partilhada do passado que promove

    um lao de filiao entre os membros de um grupo com base no seu passado colectivo, conferindo-

    lhe uma iluso de imutabilidade, ao mesmo tempo que cristaliza os valores e acepes

    predominantes do grupo ao qual as memrias se referem (Peralta, 2007:5). Deste modo, a memria

    colectiva o locus de ancoragem da identidade do grupo, precedendo-a, e assegurando a sua

    continuidade no tempo e no espao. Apesar de o passado ser utilizado, pelos diferentes grupos

    (sociais e polticos), por motivos instrumentais, a relao entre eventos do passado e do presente

    uma relao mais complexa que deriva do facto da memria ser um sistema cultural de atribuio

    de significado que se produz ao longo do tempo. De facto, como resultado desta relao entre

    passado e presente, confere-se memria uma caracterstica que a inclui nos mecanismos de

    atribuio de significado prprios da cultura.

    Uma concepo de cultura como dimenso simblica constitutiva de todos os processos

    sociais (Peralta, 2007:15) , a atribuio de uma perspectiva temporal e a conjugao das abordagens

    6

  • sincrnica e diacrnica, conferem um carcter mais claro aos mecanismos de incorporao do

    passado pelo presente (Peralta, 2007:16). Deste modo, e partindo da concepo de cultura que

    Geertz2 apresenta, poderemos conceber uma ideia de memria enquanto parte integrante de um

    sistema cultural articulado de atribuio de significados. Assim, e num sistema dialctico constante

    entre passado, presente e futuro, as vrias percepes postas no plano da partilha podem

    corresponder ao mapa conceptual comum de um grupo, constituindo um mecanismo de produo de

    significado cultural. A evocao de um passado presentificado, constitui-se como uma interpretao

    criativa que permite mediar os dois tempos, entre a experincia e a recordao, num processo que

    converte o passado em memria. O passado consiste, assim, num sobrevivente que se concretiza no

    presente e se perpetua no futuro, num sistema de criao de esquemas prticos de memrias e

    identidades, organizando a forma como os indivduos entendem o mundo e nele actuam, ainda que

    conceda espao para a maleabilidade e a improvisao, permitindo, nesta medida, a adaptao

    mudana social. O passado no , portanto, uma entidade fixa e rgida (Peralta, 2007:17). Perante

    tal acepo, a memria colectiva afigura-se-nos como um mutvel sistema cultural de atribuio de

    significados, configurando-se como um processo dinmico de redefinio cultural, mediante o qual

    a sociedade mantm a estabilidade e a identidade enquanto se adapta mudana.

    No possvel esquecer que a identidade estruturalmente etnocntrica: o indivduo o que

    ou o que pretende ser devido sua integrao num grupo, instalado num territrio prprio, que se

    define no s pela sua estrutura especfica, mas tambm pela diferena que o separa do outro. O

    territrio define-se por isso pela relao que sustenta com a histria, e que se exprime no s na

    presena dos espritos dos antepassados, mas pela acumulao de sinais e de marcadores, uns

    criados pela natureza e reinterpretados pelos homens, outros provindo do imaginrio do indivduo e

    da sua sociedade. Um homem define a sua identidade por meio de alguns suportes: primeiro pelo

    facto de pertencer a uma famlia, a qual est integrada num cl, numa comunidade, numa nao.

    Esta aparente dependncia do indivduo e da famlia em relao s unidades superiores, no deve

    contudo enganar-nos: a soma das pequenas identidades que autoriza a construo global da

    identidade, a qual est historicamente ligada a um territrio (Henriques, 2003).

    Apesar de se constituir como uma construo social, numa relao de partilha cultural no

    seio de um grupo social, a memria depende tambm da sua dimenso individual, i.e., pode ser

    entendida num quadro de referncia partilhado de recordaes individuais, onde memrias

    individuais, comummente partilhadas, integram um passado comum aos membros do colectivo,

    7

    2 Segundo Clifford Geertz (1973), a cultura definida como uma organizao de padres simblicos atravs dos quais a experincia individual adquire um significado colectivo.

  • fornecendo assim as bases para a construo de uma significao colectiva. Desta forma, a

    construo da memria lidar sempre com o binmio individual/colectivo, uma vez que o

    indivduo, embora integrado num universo cultural especfico, no deixa de estar moldado pelas

    suas experincias e expectativas individuais. No subestimando o lado colectivo da vida consciente

    do indivduo, mas sob pena de lhe retirar autonomia passivamente obediente vontade colectiva

    interiorizada (Fentress e Wickham, 1992:7), adoptemos, ento, e abandonando uma ideia de

    memria colectiva, a expresso memria social3.

    O consenso existente em torno da conservao dos patrimnios abalado pela diversidade e

    contradies das representaes do devir da memria das sociedades. Ser exactamente da

    organizao e tratamento da memria social que poder surgir uma crtica da ideia de patrimnio,

    preterindo uma ideia de conservao pela de apreenso das suas funes sociais dentro de uma

    sociedade em mudana. Segundo Henri-Pierre Jeudy, uma nova concepo de patrimnio poderia

    ser articulada com as ideias de antigo e novo, em que o mesmo conceito faria a passagem entre

    os dois tempos, ao contrrio da ideia de monumento, vinculada a um tempo passado. Este

    reencontro entre tradio e modernidade ter-se- dado com o papel crescente da etnologia regional,

    a qual faz com que novas concepes do patrimnio se fundamentem numa dinmica de memria

    colectiva (Jeudy, 1990:8).

    Deste modo, e como vimos anteriormente, a ideia de patrimnio muda de dimenso consoante

    o seu contexto social, consumo e reconhecimento das suas tipologias de valor. Segundo Franoise

    Choay (2010), o patrimnio visto como algo que estava, na sua origem, ligado s estruturas

    familiares, econmicas e jurdicas. Requalificada com o tempo, a ideia de patrimnio admite agora

    uma pluralidade de adjectivos (histrico, artstico, material, imaterial, virtual, digital), admitindo-se

    como um conceito verstil, abrangente e mutvel. Contudo, a noo de patrimnio continua a ser

    indissocivel, ainda que com diferentes contornos na sua acepo, de outras categorias de

    pensamento como as de tradio, herana e cultura. A noo antiga, embora a sistematizao dos

    estudos sobre o tema remontem aos finais do sc.XVIII com a formao dos Estados-Nao. Sob

    este ponto de vista, o conceito de patrimnio cultural aplicado para designar um bem destinado

    ao usufruto de uma comunidade, com o objectivo de se conservar num mesmo espao elementos

    8

    3 No decurso do texto apropriar-nos-emos ainda da expresso memria colectiva apenas no recurso a referncias externas, afirmando, contudo, a expresso memria social como uma alternativa mais pertinente.

  • que permeiam a identidade e a memria social. Nesse sentido, gera-se a preposio de que preservar

    os diferentes patrimnios culturais consubstancia a preservao da memria social.

    A aspirao social preservao dos bens patrimoniais acabaria por se tornar um subsdio

    importante, quer o impulso quer o bem em si, para a consolidao da cidadania. Deste modo, a

    preservao dos patrimnios cultural, histrico e natural no tardaria a ser promovida pelas

    instncias pblicas. No ensejo da Revoluo Francesa, e com a formao dos Estados-Nao, o

    poder pblico forja modelos institucionais que se destinam, de entre outros objectivos, a preservar a

    memria colectiva. Com a criao da Comisso de Monumentos Histricos em 1837 em Frana,

    institucionaliza-se um modelo operativo, embora existam evidentes discrepncias entre os conceitos

    de monumento e patrimnio:

    Toda a interrogao actual acerca do sentido de patrimnio no se inscreve na perspectiva exclusiva de monumentalidade. Ao contrrio ela busca uma nova via para traduzir uma valorizao das memrias

    colectivas. Mesmo que a consagrao dos signos culturais que servem de referncia no seja abandonada, a ideia de monumentalidade sofre uma mutao do seu sentido usual. Havia castelos, igrejas, obras de arte..., e,

    doravante, h tambm prdios industriais, fundies, curtumes, cafs e lavatrios e uma quantidade infinita de objectos artesanais, industriais e agrcolas. E os modos de vida, de pensamento, de comunicao vm

    completar as novas representaes do patrimnio. Ao invs de ser considerado uma aquisio, o patrimnio apresenta-se como uma conquista e apropriao social, desafiando assim a regularidade burocrtica da

    classificao em Monumentos histricos. (Jeudy, 1990)

    Uma nova abordagem acerca da funo tradicional do monumento pressupe que o

    patrimnio seja o objecto de um investimento no tempo presente e que no consista em recordar ou

    consagrar o passado. Em virtude desse entendimento, percebemos que a mesma Comisso de

    Monumentos Histricos se centrara numa ideia que visava a conservao e preservao de valores

    ligados ao passado. Contudo, a premissa inicial da mesma comisso, bem como de outras que

    emergiram neste contexto ou subsequentemente, visa a fundamentao de ideias de nacionalidade e,

    ao mesmo tempo, procura assegurar o acesso informao social atravs da preservao dos bens

    patrimoniais. Note-se porm que, embora se opte por uma aco que vise a preservao, muitas

    vezes ela diz respeito a uma classe dominante, que valoriza a sua memria atravs dos seus

    antepassados, pretendendo com isso que todos se identifiquem com os seus acontecimentos

    histricos, com a sua forma de agir e pensar, presentes na materialidade de alguns patrimnios,

    constituindo tudo isto manifestaes de afirmao de uma elite.

    S mais tarde, aps a Segunda Guerra, na dcada de 50 do sculo XX, viriam a ser

    acrescentados s categorias daquela comisso outros objectos considerados de menor valor, mas j

    indicativos de uma ampliao na noo de patrimnio para a sociedade (Choay, 2010). Neste

    9

  • sentido, aos objectos criados no presente e decorrentes de manifestaes culturais, ou ainda, de

    espaos naturais, -lhes enfim atribudo valor patrimonial. Em virtude da sua valorizao simblica,

    assim se traduz uma nova concepo de patrimnio na sociedade. Na realidade, importante

    considerar outros elementos que permeiam o entendimento, aceitao e compreenso desses

    valores. Retomamos assim uma ideia de identidade e de memria social.

    A ambivalncia entre a destruio e a conservao no se resolve por uma lgica de

    patrimnio. Pelo contrrio, ela ocultada pelas regras dos monumentos histricos que definem

    uma ordem simblica do passado. A ameaa de desaparecimento de um patrimnio no suscita at

    estes ltimos anos resistncias sociais importantes, pois a regularidade com a qual o processo de

    conservao se impe baseia-se num reconhecimento implcito da sua necessidade. A ideia de

    patrimnio apresenta-se como uma evidncia. Assim como todo o indivduo viveria mal sem

    memria, tambm uma colectividade precisa de uma representao constante do seu passado.

    Apenas a gesto de um patrimnio e as escolhas da sua representatividade ainda escapam

    colectividade que no entanto a sua origem (Jeudy, 1990).

    Na base dos movimentos associativos de preservao dos lugares marcados por uma histria

    recente, permanece, ento, a tentativa de gesto de uma memria colectiva. A reconverso de um

    patrimnio em objecto de museu, arrisca a que, neste processo, se perca a memria colectiva que

    lhe est associada, pela demonstrao de signos que dela se quer fazer. Este momento de mediao

    pode promover uma ruptura entre memria e patrimnio, pela perda de carga aurtica4 de que se

    reveste este processo, no se configurando, porm, enquanto sintomas de uma dessacralizao da

    conservao, mas, pelo contrrio, uma oportunidade de renovao do seu papel com uma finalidade

    museogrfica.

    As representaes existentes nas formas simblicas de valorizao patrimonial delineiam o

    entendimento das prticas sociais de proteco e preservao do patrimnio, enquanto testemunho

    da vida humana que perpetua os saberes, valores, hbitos, costumes, etc. A preservao da

    10

    4 Utilizamos aqui uma expresso de Walter Benjamin. Segundo o autor, as tcnicas de reproduo em massa acabam por comprometer a obra de arte, uma vez que a transformam em objecto de consumo e transformam o seu valor caracterstico em valor de exposio. O conceito de aura permite resumir essas caractersticas: o que se atrofia na era da reprodutibilidade tcnica da obra de arte a sua aura (Benjamin, 1992:79). Porm, o valor de exposio comea a afastar, em todos os aspectos, o valor de culto (Benjamin, 1992:79). Como consequncia favorvel a este desencantamento, a obra passvel de reproduo, assume, contudo, um carcter mais democrtico e prximo das massas (apesar da ambiguidade que circunda tal relao). Neste ponto, Benjamin acredita que a tcnica pode transformar-se em ferramenta para viabilizar caminhos mais prsperos para a humanidade.

  • identidade e memria patrimonial testemunho da prtica da cidadania. Cada vez mais, polticas

    preservacionistas esto integradas numa parceria entre o pblico e o privado. Este processo resulta,

    assim, da relao entre sujeito, estado e patrimnio. A preservao, neste sentido, resulta de um

    processo colectivo dado num contexto especfico. No obstante, a ampla compreenso da noo de

    patrimnio um factor indispensvel no processo de fortalecimento da identidade e da cidadania

    individual e colectiva.

    2.2. Da memria social ao impulso museal

    A ideia de novo patrimnio5, anteriormente mencionada, equvoca pois baseia-se na

    salvaguarda de smbolos que a conservao cultural tradicional no levava em conta. A ideia

    apresenta-se como um desafio, embora reproduza a lgica do processo de conservao patrimonial.

    Se o museu clssico permanece na ordem da monumentalidade, os polimuseus, os ecomuseus, as cidades de museus...traduzem a vontade de estimular a criatividade e a inovao para alm de um simples cuidado de

    restituio. Assim a promoo dos novos patrimnios coincidiria com a universalizao de um conhecimento activo e pluridimensionado que transforma a operao museal no eixo social da

    comunicao. (Jeudy, 1990:10 e 11)

    Relativamente a esta questo, acompanhamos ainda as palavras de Henri-Pierre Jeudy:

    Um patrimnio uma vez constitudo no mais que um museu do social. Ele necessita de uma teatralizao

    permanente que no redutvel ao espectculo que uma estrutura museogrfica oferece. Dois tipos de teatralidade se confrontam ento, uma est presente na descoberta dos mltiplos elementos que constituem

    virtualmente um patrimnio, a outra refere-se a um retorno cena que se efectiva nos limites de um museu. As duas teatralidades esto em contradio pois a segunda, apesar de ser objecto das animaes culturais

    mais subtis, consagra totalmente o princpio da conservao. A primeira corresponde ao ritmo e ao entusiasmo colectivo do desvelamento das memrias colectivas, e participa, mesmo voltando-se para o

    passado, de um histria em actos. No entanto, a museofilia que parece cada vez mais estimular

    colectivamente os laos constitutivos dos patrimnios e das memrias colectivas. (Jeudy, 1990:13 e 14)

    Em consonncia, o mesmo autor adianta que a tendncia colectiva para a museografia - isto o

    desejo de reavivar os espaos da memria, recolhendo e preparando objectos, reunindo relatos e

    imagens que evocam aspectos da vida passada - une os poderes polticos que procuram a

    consagrao da sua imagem junto de grupos sociais especficos construindo museus, pelo papel que

    adquire no reconhecimento de uma identidade.

    11

    5 Embora o autor (Jeudy, 1990) se refira especificamente ao patrimnio industrial, aqui ser com um sentido mais amplo, englobando todo e qualquer tipo de patrimnio, smbolo da memria social.

  • Interessa pois perceber o sentido de tal pulso musefila colectiva (Jeudy, 1990). De facto,

    de uma relao estranha entre lembrana/esquecimento e uma teatralidade que valoriza os

    objectos que nasce uma concepo quase religiosa da imutabilidade do mundo. A museofilia

    encontra-se, assim, num jogo da cientificidade ficcionada tentando gerir, porm, este seu impulso

    conservacionista. Esta acumulao de signos do passado depara-se, ento, com as mltiplas

    questes relativas compreenso do mpeto de conservar. Importa, por isso, compreender o que

    conservar, porque conservar e como conservar. Tudo poderia ser conservado, porm tal acumulao

    de objectos e signos culturais acaba por ultrapassar o prprio sentido da conservao, perturbando,

    at, o papel das aces mais dinmicas da multiplicidade das construes da memria, concedido,

    por exemplo, aos museus. precisamente contra um impulso preservacionista, pela vontade, quase

    libertria, de manuteno de todas as memrias, que o empreendimento patrimonial luta, na

    premente necessidade de gerir os patrimnios. Ora, o papel do esquecimento, toma aqui um papel

    fundamental, enquanto elemento de higienizao da sociedade semelhana do que acontece com o

    corpo humano, combatendo o perigo de petrificao das culturas. A lgica da salvaguarda dos

    patrimnios no ser mais ameaada pela decomposio ou desaparecimento eventual dos traos,

    objectos e signos, mas pelo poder destruidor das memrias (Jeudy, 1990). Mais do que conservar,

    preservar, salvaguardar e classificar finamente, preciso tambm deixar esquecer para que o lugar

    da memria possa ser ocupado por outras memrias, estas contemporneas.

    Por via da patrimonializao atribuem-se novos valores, sentidos, usos e significados a

    objectos, formas, modos de vida, saberes e conhecimentos sociais. Neste processo, os especialistas

    (arquelogos, antroplogos, arquitectos, historiadores da arte, etc.) so vitais, sobretudo enquanto

    criadores de uma legitimidade patrimonial selectiva. Os especialistas certificam o valor dos

    elementos culturais patrimonializveis e reconhecem como bem de tutela pblica o que antes no

    estava reconhecido como tal. Porm, a patrimonializao , acima de tudo, o processo pelo qual

    certos bens ou elementos so apreendidos pelos membros de uma comunidade ao ponto de

    decidirem salvaguard-los ou preserv-los, assegurando-lhes continuidade, passando ou no a

    integr-los num museu e a atribuir-lhes um estatuto particular como patrimnio - o de objecto

    museolgico (Filipe, 2000).

    Acompanhando as mudanas da sociedade contempornea - resultantes dos processos de

    urbanizao, industrializao e massificao da cultura, das migraes e transnacionalizao dos

    bens (materiais e simblicos), da globalizao e das formas de integrao econmica a evoluo e

    12

  • o alargamento do conceito de patrimnio, a que se associou o de objecto museolgico, repercute-se

    nas polticas de investigao e de aquisies dos museus, no seu mbito funcional e, evidentemente,

    na sua programao (Filipe, 2000).

    De facto, a ampliao do campo de referentes culturais a recordar e a preservar evidenciaria

    a proliferao de espaos de activao cultural, como os museus, monumentos, arquivos,

    bibliotecas ou outros rituais pblicos de recordao e comemorao, que permitem sustentar

    identidades colectivas.

    A existncia de diferentes sensibilidades culturais e sociais est intrinsecamente dependente

    de um contexto, influenciando assim o desenvolvimento da museologia e imputando-lhe, em certa

    medida, a necessidade de tomar conscincia da realidade social e cultural em que se insere,

    dependente, por isso, das idiossincrasias de cada momento. O director geral da Unesco, Federico

    Mayor, na sesso de abertura da XV Conferncia Geral do ICOM, 1972, resumiu este esforo de

    adequao das estruturas museolgicas s condies da sociedade contempornea da seguinte

    forma:

    A instituio distante, aristocrtica, olmpica, obcecada em apropriar-se dos objectos com fins taxonmicos vai dando lugar cada vez mais a uma entidade aberta ao meio, consciente da sua relao orgnica com o seu

    prprio contexto social. A revoluo museolgica do nosso tempo - que se manifesta pelo aparecimento de museus comunitrios, de museus sem muros, de ecomuseus, de museus itinerantes ou museus que exploram

    as possibilidades aparentemente infinitas da comunicao moderna - tem as suas razes nesta nova tomada de conscincia orgnica e filosfica.

    Os museus foram registando, assim, diferentes transformaes no contexto das sociedades

    em mudana como as ps-industriais, ps-coloniais e ps-modernas. Depois do seu entendimento

    como mausolus ou santurios ou depsitos onde se guardam coisas antigas6, os museus

    converteram-se em lugares de interpretao, estudo e investigao e, mais tarde, em centros de

    educao. De smbolo de modernidade e progresso de uma civilizao ocidental, o museu foi

    adquirindo uma posio menos estanque, numa diversificao das formas e contedos, das suas

    teorizaes e prticas, bem como revendo as suas fronteiras relativamente a outras instituies

    culturais. O objectivo da aco do museu foi-se ento alterando ao longo dos tempos, assim como a

    sua caracterizao e funes. De coleces de objectos passou a tratar dos testemunhos materiais

    13

    6 Referimo-nos a uma ideia de Museu tradicional que, a partir de uma aproximao historicista e positivista, se focava nas coleces, potenciando, atravs destas, as funes museolgicas de adquirir, conservar, investigar e difundir. Aqui, e segundo Stephen Weil, pode definir-se um tipo de museologia formalista, centrada no papel fundamental do muselogo/conservador (capacitado para interpretar o objecto), em detrimento do visitante, o qual ocupa um papel passivo dentro da esfera museolgica, sem qualquer tipo de protagonismo (Hernandz, 1994:155).

  • da natureza e do Homem e, em 1972, falava-se j em testemunhos representativos da evoluo da

    natureza e do Homem7.

    Constatou-se ento a desvalorizao cultural do objecto e uma consequente valorizao do

    discurso, levando Tomislav Sola (apud Hernandz, 1994) a afirmar que os museus no mais existem

    para os objectos que contm mas para os conceitos e ideias que os mesmos podem transmitir.

    Num momento identificado por alguns autores como uma crise de identidade (Anico,

    2008), os anos 60 e 70 do sculo XX foram particularmente marcantes no campo da museologia,

    pelo debate que se assistia acerca do papel dos museus que deixavam de ser um factor determinante

    na vida das sociedades. Por outro lado, a inexistncia de uma perspectiva sustentvel da instituio

    museolgica, tornando-a, por isso, pouco rentvel, v a sua credibilidade perder-se, de forma

    acelerada, junto dos poderes polticos. Por conseguinte, Tony Bennet (1990) identificou dois

    princpios nos discursos polticos acerca da reforma do museu: primeiro, o princpio do direito

    pblico, que se sustenta na exigncia de que os museus devem ser igualmente abertos e acessveis a

    todos; e, em segundo lugar, o princpio da adequao da representao, sustentado pela exigncia de

    que os museus devem representar adequadamente as culturas e os valores dos diferentes grupos da

    populao.

    As novas acepes tericas colocavam em causa a museologia tradicional, a favor de uma

    museologia voltada para a comunidade e preocupada com o seu papel social. no fulgor deste

    debate que, nos anos 1980, aparece o conceito designado por Nova Museologia8, considerado

    renovador no meio museolgico. A nova museologia corresponde a uma museologia activa que

    segue princpios operativos, tais como: participao da populao, territrio, memria colectiva,

    14

    7 Mesa Redonda organizada pela Unesco em Santiago do Chile, 1972.

    8 Um movimento de nova museologia tem a sua primeira expresso pblica e internacional em 1972 na Mesa-Redonda de Santiago do Chile organizada pelo ICOM, influenciada pelas discusses promovidas pela UNESCO sobre o papel e funo do patrimnio na sociedade e pelos questionamentos do Maio de 68 acerca do papel dos museus numa sociedade em transformao. Produz-se ento um documento inovador e de extrema importncia para a museologia, que apela a um museu de aco comprometido com questes sociais, econmicas, educacionais e polticas, constituindo-se assim, os princpios de base para um museu integral. ainda focado o papel poltico do muselogo e o reconhecimento da importncia do cidado em todo o processo de preservao, entendimento e divulgao do patrimnio cultural.Seguindo esses pressupostos elaborada em 1984 a Declarao de Quebec, na qual feito o reconhecimento da Nova Museologia. Ainda em 1984, a Declarao de Oaxtepec que assume um trinmio de base para uma nova aco museolgica: patrimnio/territrio/populao e pela primeira vez refere o Ecodesenvolvimento. O termo viria a propagar-se atravs da criao de dois grupos: o MNES (Association Muselogie Nouvelle et Exprimentacion Sociale, fundado em 1982) e o MINOM (Movimento Internacional da Nova Museologia, fundado em 1985).Em 1992, vinte anos aps a Mesa Redonda de Santiago, elaborada a Declarao de Caracas, um documento que procura actualizar os conceitos do documento de Santiago.

  • objecto social, interdisciplinaridade, o desenvolvimento comunitrio, criatividade, qualidade de

    vida (Nabais, 1993:47).

    Deste modo, o interesse museolgico centrado no objecto transfere-se para a comunidade,

    dando lugar a um novo conceito de museu entendido como um instrumento necessrio e ao servio

    da sociedade (Hernandz, 1994).

    Assim, a Nova Museologia vincula-se comunidade num dado territrio, em detrimento do

    enquadramento tradicional num edifcio, fazendo do territrio o objecto museolgico, propondo-se

    a identific-lo, a conhec-lo, a estud-lo e a apresent-lo. A noo de coleco, , por sua vez,

    substituda pela de patrimnio (material, imaterial, natural e cultural). A nova amplitude do conceito

    de patrimnio inclui o que se encontra dentro e fora do museu. Com isto queremos referir que a

    salvaguarda, estudo e divulgao j no se restringem s coleces, racionalmente organizadas,

    fruto do pensamento moderno, mas alargam-se a todo uma patrimnio constitudo pela cultura

    material, que tanto pode passar pela arquitectura civil, religiosa, militar ou outra, como por toda a

    tradio no material, como por exemplo a cultura oral (Magalhes, 2003).

    A ideia principal desta nova corrente , segundo Hernndez (1999), o facto de o museu ser

    visto como uma entidade social capaz de se adaptar s necessidades de uma sociedade que est em

    constante mutao. a partir deste ponto de vista que se tenta desenvolver um museu vivo e

    participativo, que se define pelo contacto directo entre o pblico e os objectos que se mantm no

    seu contexto original, nomeadamente atravs da conservao in situ, resultado do alargamento da

    noo de patrimnio e, consequentemente, de museu. A Nova Museologia consistir, ento, numa

    filosofia, num sistema de valores e numa atitude ou predisposio para uma interveno de cariz

    social (Filipe, 2000:5).

    O movimento que se gerou, em torno da renovao das teorias e prticas museolgicas,

    segundo Marc Maure (apud Fernndez, 1999:82), criou um novo e triplo paradigma que resultou na

    triangulao de trs categorias: da unidisciplinaridade multidisciplinaridade, do pblico

    comunidade e do edifcio ao territrio. A nova viso processual da museologia encontra assim

    sentido na participao das pessoas e dos diferentes grupos na comunidade.

    assim que, a partir dos anos 70, os ecomuseus surgem integrados na nova museologia como

    uma forma de museologia activa; devendo antes de mais preocupar-se com o desenvolvimento das

    populaes, eles devem ter uma aco social interventiva (Nabais, 1993:46,47). Considerando o

    15

  • ecomuseu como uma das tipologias enquadradas pela Nova Museologia, este designa a nova forma

    de museu de tipo activo (interventivo) que tem por objectivo a salvaguarda e a divulgao do

    patrimnio natural e cultural (material e imaterial), num territrio mais ou menos vasto, envolvendo

    concomitantemente a comunidade nessas actividades.

    A ecomuseologia traz consigo um novo entendimento de museu, em oposio ao museu

    tradicional, considerando o territrio e a comunidade local o seu objecto museolgico, atravs da

    interpretao do patrimnio cultural e natural em toda a extenso territorial e investigando as

    relaes ocorridas ao longo do tempo atravs de uma abordagem interdisciplinar, realizando

    actividades com e para as pessoas da populao, tendo como objectivo o desenvolvimento global da

    comunidade.

    O novo paradigma da museologia, ao deslocar o conceito de museu, do edifcio para o

    territrio e do pblico para a comunidade, derrubou radicalmente os muros do museu, dando

    lugar a processos museolgicos que emergem da comunidade. Nesta perspectiva, coleccionar/

    recolher, preservar e difundir so operaes que um museu de novo tipo assume em parceria com a

    comunidade em processos socializantes que contribuem para a qualificao da cultura (Victor,

    2005). O museu e os muselogos passam a ser sujeitos sociais comprometidos com o

    desenvolvimento e os membros da comunidade seus parceiros. A especificidade dos saberes

    profissionais contribuem para a gesto de conhecimento e a criao de novos dilogos com a

    comunidade. Segundo Alonso Fernndez (1999:108), o funcionamento do museu baseia-se na

    participao activa dos membros da comunidade, segundo um processo museal baseado numa

    relao dialgica estabelecida entre o museu/muselogo e os membros da comunidade. Nesta

    relao a comunidade toma ento um papel preponderante e activo e os sujeitos, especialistas sobre

    questes relativas sua prpria histria e meio ambiente. Ora, neste contexto, o muselogo ganha

    um novo papel, o qual implica dotar os membros da comunidade dos instrumentos conceptuais e

    materiais que lhes permitam fazer parte do processo de recolha, preservao, investigao e difuso

    do seu prprio patrimnio. Para Hugues de Varine (1991), os profissionais dos ecomuseus devem

    encontrar estratgias que levem toda a comunidade a participar no desenvolvimento do territrio,

    com e pelo seu patrimnio, ou seja, a participar no seu prprio desenvolvimento. Nesta mudana, o

    muselogo deve abster-se de assumir uma postura paternalista ou de imposio de um poder

    institucional.

    , sem dvida, desta mudana de paradigma, que centra a actividade museolgica no cidado

    consciente integrado numa comunidade, que a nova museologia originria. Trata-se, porm, de

    16

  • uma mudana consciente, fruto de um longo processo reflexivo apoiado nas doutrinas e convices

    de intelectuais e pedagogos como o brasileiro Paulo Freire que, atravs da sua teoria de educao

    como prtica de liberdade (Freire, 1987), aplicou como pedagogo o conceito consciencializao,

    isto a mudana de papel do cidado enquanto homem-objecto (concebida pela sociedade de

    consumo) para homem-sujeito. Ora, desta mudana de paradigma no processo educativo que,

    agora centrado no indivduo, um novo modelo de ensino se cria, a partir dos saberes e das memrias

    individuais, facilitando, assim, o processo de ensino-aprendizagem. Num processo de libertao, a

    educao popular pretende que o indivduo (educando) crie as suas prprias ferramentas que lhe

    permitam, autonomamente, reflectir acerca da sua condio. Esta tomada de conscincia acerca do

    seu papel na sociedade - papel este, muitas vezes, socialmente imposto - pressupe as condies

    necessrias para lidar com esta sua condio, procurando sadas, ou melhor, alternativas de

    melhoria de suas condies sociais, alcanando, assim a liberdade. Porm, este processo no pode

    acontecer por uma via impositiva, mas antes por um processo de auto-descoberta, de

    consciencializao, ainda que nele esteja implicado o educador-facilitador. Dessa forma, e

    segundo Paulo Freire o processo de libertao no pode ser feito de forma impositiva sobre os

    oprimidos(Freire, 1984:9).

    Hugues de Varine (2004), na sequncia da concepo Freiriana de educao popular,

    considera que esta metodologia educativa9 se enquadra no trabalho comunitrio dos museus de

    territrio, encarando-a como um instrumento para o desenvolvimento da comunidade e que, desta

    forma, se formula dentro do pressuposto da animao consciente10, permitindo libertar a

    capacidade criadora dos indivduos e de os levar a ocupar um lugar de actor cultural, social e

    17

    9 Por oposio Educao Popular - cujo objectivo o desenvolvimento da comunidade atravs do envolvimento participado dos indivduos da populao local, num processo que considera os sujeitos como recursos na seleco, valorizao, recuperao e partilha dos patrimnios, e que julgam ser identitrios dessa comunidade - temos a Educao Patrimonial que, atravs de uma seleco prvia do patrimnio, o toma como instrumento estratgico de promoo e vivncia da cidadania, seguindo as demandas das polticas culturais e trabalhando numa literacia cultural, essencialmente com as escolas, de forma a responsabilizar os elementos mais novos da populao pela herana colectiva e pela sua perpetuao no tempo. Note-se, porm, que o que decorre da Educao Popular assim como da Educao Patrimonial nada mais que um processo. Da mesma forma que um educador no pode pressionar o educando a libertar-se, no cabe ao mesmo, ou ao Estado, ditar o que patrimnio. Antes de qualquer coisa preciso possibilitar ao educando que perceba a sua condio na sociedade, assim como a hiptese de escolher o que deve ser ou no patrimnio.

    10 Segundo Hugues de Varine a animao consciente, acompanha o desenvolvimento comunitrio atravs do apelo participao activa e criativa dos indivduos, em vez da animao promocional, vulgarmente divulgada nos museus e que relaciona um produto a um pblico-alvo proclamando a ilusria satisfao dos pblicos, pois o seu nico fim a promoo do produto. Para Varine, h duas outras motivaes principais na opo pela realizao deste tipo de animao: por um lado, justificar a existncia da instituio museolgica e, por outro, a valorizao do patrimnio (Varine, 1978).

  • econmico, na sua comunidade e no seu territrio. Chega-se assim, e de forma algo surpreendente,

    a passar muito rapidamente da tomada de conscincia tomada de confiana em si mesmo, em

    seguida iniciativa, e da organizao colectiva (Varine, 2004).

    Impe-se agora como necessria uma breve interrupo, para assim compreendermos alguns

    conceitos que at aqui referimos e que doravante se tornaro fundamentais no exerccio de anlise

    que faremos. Adoptando ento o sistema de significao de Hugues de Varine (1991), entendemos

    por comunidade uma populao que vive num territrio, consciente das afinidades e diferenas

    existentes entre os seus elementos, assim como das relaes destes com o seu ambiente, e cujo

    futuro , pelo menos parcialmente, comum. As comunidades podem depender de estruturas

    institucionais (de natureza poltica, tcnica, econmica - colectividades locais, empresas, etc.) ou

    formar estruturas espontneas (agrupamentos de indivduos, podendo estar ou no constitudos

    legalmente, cujo objectivo social seja definido livremente), podendo tomar diferentes dimenses, de

    carcter mais ou menos local (de vila, regio, pas, nacional; de empresa, religio, escolar, familiar,

    etc.). No esqueamos que cada indivduo pode fazer parte de mais de uma comunidade, embora

    umas possam depender das suas escolhas individuais e outras no, estando por isso condicionada

    toda a sua existncia s comunidades a que pertence.

    Embarcados que estamos, aproveitamos o ensejo para abordar a definio que o mesmo autor

    faz de desenvolvimento comunitrio, construindo-a enquanto ideia agregadora de conceitos, actos,

    esforos que visam promover o crescimento social, cultural, econmico e humano em geral de

    determinada comunidade, por iniciativa dos seus membros, que actuam individual ou

    colectivamente. Baseando-se assim no dilogo entre conceitos como o de desenvolvimento no seu

    sentido mais lato (no restringindo apenas ao sentido economicista do termo, mas ao

    desenvolvimento harmonioso do homem e da sociedade mediante o equilbrio constante entre a

    tradio e a inovao espiritual e tecnolgica), quadro comunitrio natural (espao crescente que

    engloba sucessivamente a famlia, o ambiente profissional, a rua, a cidade, o pas, etc.) ou ainda de

    um desenvolvimento procurado pelas comunidades (sucessivas e simultneas) que seja desejado e

    planeado, atravs de uma postura crtica, por estas comunidades e seus membros, quer

    individualmente quer colectivamente (Varine, 1991). certo que as diferentes comunidades devem

    dialogar, concorrer, completar-se, a fim de executarem modelos de desenvolvimento compatveis.

    O desenvolvimento comunitrio configura, ento, a dimenso poltica da via cultural,

    entendendo-se por cultura o conjunto de solues encontradas pelo homem e pelo grupo para os

    problemas que o meio natural e social apresenta. Assim sendo, a cultura tem um carcter

    18

  • essencialmente comunitrio, afastando-se de uma definio tanto generalista quanto individualista e

    limitativa do campo cultural que considera apenas os feitos de genialidade do homem e da

    humanidade.

    cultura da criao-deciso, reservada a uma elite e a profissionais graduados, e suportada

    pela tecnocracia e legitimada por uma democracia descomprometida, dever suceder-se, nas

    palavras de Hugues de Varine, uma cultura da iniciativa. Tornando-se num acto criador por

    excelncia, apesar de no se constituir num devaneio intelectual sem qualquer aplicabilidade, mas

    na capacidade dos membros de uma sociedade de encontrar solues originais para os problemas

    com que se deparam. A iniciativa , assim, a gnese da mudana por se constituir enquanto uma

    resposta baseada na identificao e anlise de um problema com as suas complexidades, seguido-se

    de uma definio de estratgias e, por conseguinte, a delimitao de um objectivo, isto , a

    concepo de um projecto. As motivaes que lhe deram origem so pouco importantes, se

    espontneo ou planeado, essencial ser a ser a gnese comunitria da iniciativa, alimentada por

    elementos provenientes do capital da experincia colectiva, caractersticos da comunidade ou

    exterior a ela. A iniciativa constitui, assim, a condio fundamental do desenvolvimento

    comunitrio. Contudo, se a iniciativa pode ser o impulso, na aco que se concretiza esta vontade

    primeira.

    A aco (enquanto pedagogia e libertao) a linguagem privilegiada da cultura uma vez que

    um meio de exprimir, provavelmente melhor que as palavras, a relao que mantemos com o meio

    e com os outros. Isto porque a aco (da forma como a entendemos) tem por objectivo mudar uma

    dada situao, resolver um problema preciso. A aco no , portanto, importante per si, mas pelo

    facto de ser a concretizao de uma iniciativa. Ela deve obter resultados mnimos, como o de

    alcanar os objectivos definidos pela iniciativa; aumentar a experincia e por isso o nvel de

    conhecimento do indivduo ou do grupo que tomou a iniciativa, contribuindo para o enriquecimento

    do capital comunitrio; ou ainda constituir uma etapa no seio da evoluo colectiva que pode

    encetar novas iniciativas. Assim resulta uma pedagogia de libertao envolvendo todos os actores

    de desenvolvimento, tornando, atravs da consciencializao, o indivduo ou o grupo social em

    sujeito consciente, e no mais uma vtima da sua vida e do seu futuro.

    E assim retomamos uma ideia que havia sido interrompida, na tentativa que foi, atravs deste

    breve enquadramento, uma aproximao aos conceitos relacionados com a utilizao social e com o

    bem estar dos cidados, que apresentam os museus como instituies sociais ao servio da

    comunidade. Segundo este modelo, o museu ter um papel fundamental na compreenso do

    19

  • territrio e da identidade, servindo para promover a valorizao social, econmica e cultural

    localizada numa perspectiva de desenvolvimento global e equilibrado do territrio. Num processo

    democrtico, por excelncia, na sua abordagem multi, inter e transdisciplinar do territrio,

    concebendo o museu como uma componente importante do seu desenvolvimento. Corroborando

    Alice Semedo (2006:79), para alm do museu como recurso identitrio, o que tambm

    fortemente proposto j no tanto o museu-animador mas sim o museu-curativo, ou museu-

    til: propem-se projectos que deveriam tentar responder s ansiedades da sua comunidade,

    apoiando-a na sua questionao e encorajando a descoberta de solues para estas questes. Para

    que tal ambio se cumpra, ser ento necessrio adoptar uma museologia dinmica e de aco,

    centrada na comunicao de ideias e problemas. A interveno cultural significava agora que a

    populao era envolvida no processo de criao e fruio, nomeadamente atravs da apropriao

    do seu prprio patrimnio. Territrio e populao, identidade e desenvolvimento comearam a ser

    apresentados como fazendo parte integrante de alguns projectos museolgicos (Semedo, 2006:79).

    2.3. Museu em contexto

    Apresentando-se o museu com o propsito de fornecer smbolos culturais destinados a

    conferir um sentimento de pertena, permanncia e continuidade em relao ao passado, encerrando

    em si mesmos a capacidade de se metamorfosearem no sentido da redefinio dos seus significados

    no presente, com o propsito instrumental de construo de identidades colectivas, particularmente

    importantes no quadro dos movimentos de globalizao em que culturas e identidades se

    complexificaram e desterritorializaram (Anico, 2008). A construo deste sentimento de pertena e

    da redefinio de uma identidade colectiva tanto mais evidente em sociedades ps-coloniais,

    vidas de encontrarem o seu cunho identitrio cultural, num perodo conturbado e de profundas

    mudanas sociais e polticas, em que uma grande utopia libertria passou a ser o mote para a

    construo das identidades dos povos de frica (Augustoni e Viana, 2010:189). Porm, aps a

    descolonizao, h uma nova crise identitria que se configura. Aps dcadas sob o jugo colonial, o

    prprio sujeito precisa de se reconhecer e legitimar a si prprio.

    Segundo Alda do Esprito Santo (1978), o continente Africano e as reas do chamado

    Terceiro Mundo constituem as reas do planeta que, conhecendo a dominao poltica e econmica

    e a usurpao dos seus recursos naturais e humanos, foram efectivamente afectadas na sua evoluo

    cultural. Contudo a violncia do capitalismo e do imperialismo conduziram paradoxalmente os

    povos africanos a contraporem a sua resistncia, como poderosa fora de resistncia, como analisou

    20

  • Amlcar Cabral na obra A arma da teoria. Constituindo a luta de libertao um processo

    cultural (Cabral, 1976:221), a luta dos povos africanos, pela sua verdadeira emancipao conferiu

    a esses povos um sentido novo de anlise das suas culturas, dissecando com objectividade os

    aspectos positivos e negativos do seu patrimnio, conscientes de que a permuta recproca, sem

    ambivalncias e sem tentar implantar o imperialismo cultural, uma forma de intercmbio vlido e

    de cooperao universal.

    Neste contexto, e voltando a ateno para a questo da construo das identidades culturais

    na contemporaneidade, dificilmente se escapa da problemtica da configurao identitria do

    sujeito que se situa num tempo e num espao marcado pela descolonizao tardia. No sculo XX,

    vrios pases de frica ainda se encontravam sob a gide de naes ocidentais, mormente

    europeias. Vitimizado por grandes equvocos no trato, nos conceitos e no referencial quanto ao que

    seria frica e quem ou como seriam as gentes africanas, o continente, durante sculos, foi visto

    como um bloco nico composto de gente brbara, designada de forma simplista como africano

    ou negro, signos identitrios que na contemporaneidade so reconhecidamente insuficientes para

    dar conta da diversidade tnica, cultural e racial dos povos e naes africanas. Esta questo torna-se

    tanto mais complexa quando, no quadro africano, nos deparamos com So Tom e Prncipe, uma

    sociedade inventada (Henriques, 2000), construda atravs de um longo processo de aculturao

    dos povos transferidos, das culturas transportadas, das lnguas postas em convvio, originando

    importantes snteses, que deram lugar a um outro povo (Neves, 1989:189).

    Se certo que a cultura um valor universal, que o intercmbio forado ou consequente

    influi na estratificao de determinadas reas culturais, contudo cada povo conserva a sua

    identidade especfica, delimitada pelos sistemas econmicos e sociais, que entravaram a sua

    projeco, ou concorreram para a sua evoluo (Santo, 1978).

    Se, de facto, o problema da identidade do indivduo, duma comunidade ou de um povo for um problema de particularidades individuais ou de um conjunto de elementos intrnsecos ao indivduo ou comunidade,

    elementos esses que, os permitiu distinguir dos demais, ento, os museus devem ser um veculo de transmisso de conhecimentos e um meio atravs do qual preservamos o que nosso, portanto que nos difere dos outros.

    (Cardoso, 1991:29)

    Os museus so ento chamados a cumprir essa funo sobretudo quando tomamos em

    considerao a prpria dinmica da cultura, que um elemento de expanso, em desenvolvimento,

    cuja caracterstica fundamental a sua ntima ligao, da dependncia e de reciprocidade, com a

    realidade econmica e social do meio, com o nvel das foras produtivas e o modo de produo da

    sociedade que a cria (Cardoso, 1991:29). O museu torna-se num centro onde se exprime uma

    21

  • dinmica social de grupos que trabalham sobre a sua identidade, filiao e legitimidade, utilizando a

    memria e o passado como motores de tal reflexo. O social torna-se, assim, o objecto

    privilegiado da gesto cultural e a museologia e a educao popular legitimam-se, demonstrando o

    drama do deslocamento e do tecido social e da desintegrao dos corpos sociais no decorrer das

    grandes transformaes da sociedade (Jeudy, 1990:32).

    Deparamo-nos ento com a questo que, j em 1991, no III Encontro de Museus de Pases e

    Comunidades de Lngua Portuguesa, se tentava compreender, subordinado que estava ao tema Que

    museus para os pases africanos de lngua portuguesa?.

    Natlia Correia Guedes, admitindo que a soluo do museu tradicional nas zonas urbanas,

    atravs da reformulao de coleces j existentes e completando as que so embrionrias, bem

    como da constituio de uma Rede de Museus Nacionais e regionais, seja uma urgncia, questiona-

    se(nos) porm:

    Interessar provocar o aparecimento de museus locais ou ser mais sensato aproveitar a experincia e infra-estruturas de um museu regional mais prximo para fazer aces de sensibilizao, de inventrio, de registo

    grfico e sonoro, mantendo os objectos no local de origem em plena utilizao, sem a preocupao de constituir oficialmente antenas? (...) a prpria comunidade local africana encontrar o caminho certo na

    conservao do seu patrimnio se o Museu Regional a elucidar devidamente sem a pretenso de impor nenhum modelo pr-estabelecido. (Guedes, 1991:195)

    Apesar da independncia dos pases, outrora sob jugo colonial, parece-nos fundamental

    contemplar o papel da cooperao, pela importncia que ser estabelecer um dilogo com os pases

    que exerceram soberania nesses territrios ou os que possam ter interferido na construo das

    identidades culturais de modo a que a respectiva representao esteja assegurada na devida

    proporo temporal e sobretudo na identificao e conservao das memrias. A lngua, e por

    conseguinte o espao da Comunidade de Pases de Lngua Portuguesa (CPLP), ser um veculo

    fundamental para uma cooperao de ampla abrangncia atravs quer de recursos tcnicos quer

    financeiros.

    neste quadro que nos importa arquitectar um esquema conceptual e operativo centrado na

    instituio museu enquanto um instrumento suplementar e complementar para acompanhar e

    alimentar as dinmicas do desenvolvimento do territrio, como o define Hugues de Varine,

    complementando:

    22

  • O museu testemunho da implicao da comunidade, que se empenha pelo seu patrimnio num movimento colectivo. Enquanto museu de territrio, o nico dispositivo que permite mobilizar globalmente o patrimnio

    do territrio como recurso, de federar sua volta os respectivos proprietrios, de sensibilizar a populao, de trabalhar eficazmente com a escola e as estruturas de educao popular. (Varine, 2005:11)

    Do conceito de ecomuseu interessa-nos, assim, uma ideia de mutabilidade e consequente

    capacidade de adaptao s mudanas inesperadas decorrentes da cada sociedade e,

    fundamentalmente, da capacidade de adequao sociedade em que est inserido. Na sua definio,

    Georges Henri Rivire estabelece que esta tipologia de museu um instrumento que o poder

    poltico e a populao concebem, fabricam e exploram conjuntamente. Ele deve ser tambm um

    espelho, onde a populao se contempla para se reconhecer, onde procura a explicao do territrio

    no qual est enraizada e no qual viveram todos os povos que a precederam, na continuidade e

    descontinuidade das geraes (Soares, 2006).

    Ancorados nesta perspectiva, ser mediante uma colaborao entre a comunidade e a

    instituio que esta, estando ao seu servio, com ela concebe as estratgias de gesto patrimonial.

    Parece-nos fundamental aqui referir a gnese do processo do Ecomuseu do Seixal, pela adequao

    que dela gostaramos de fazer. Acerca deste ponto, Graa Filipe, aponta:

    O que particularizou, em primeiro lugar, a poltica patrimonial e o processo museolgico do Seixal, foi o patrimnio identificado, num dado meio social e natural, e as circunstncias que levaram sua seleco,

    interpretao e apropriao colectiva, sob a aco de elementos que se tornaram protagonistas daquele processo e de cuja interveno, ancorada numa estreita relao com a comunidade, mas em crescente

    aproximao museologia profissional, emergiu a necessidade de recorrer programao museolgica. (...) Importa-nos compreender como se processa a apropriao e o reconhecimento de certos bens, em particular

    os casos que contam com a interveno directa ou indirecta do museu com a comunidade a assumir a responsabilidade ou a atribuir aos seus representantes a incumbncia de gesto do patrimnio ou dos bens

    que, por essa via, se configuram como tal. Pensamos que ao museu cabe um papel da maior importncia no processo de patrimonializao que implica mtodos cada vez mais exigentes e onerosos, com suporte tcnico

    e cientfico adequado, quer do ponto de vista dos objectos preservados, quer na perspectiva dos projectos de salvaguarda a que se associam certos saberes indispensveis gesto do patrimnio, com vista a manter

    vivos traos culturais a que a comunidade reconhece valor especfico. (Filipe, 2000)

    O percurso que at aqui tramos, nada mais que uma tentativa de definirmos as

    ferramentas operativas com que trabalharemos em seguida e, por isso, indispensveis para

    23

  • compreendermos o nosso campo de anlise, bem como para a definio de um projecto cultural11

    que nele se baseia. Deste modo, o que faremos ser uma anlise preliminar de uma dada realidade

    que se configura num diagnstico, consubstanciado pela caracterizao geogrfica, histrica e

    social do territrio, bem como pela anlise das estruturas culturais nele existentes e da estreita

    relao do pas com o exterior, nomeadamente atravs dos agentes de cooperao internacional.

    Esta fase preliminar ser fundamental pela necessidade de planeamento que configure um

    subsequente projecto de aco e de desenvolvimento sustentado. Embora a sua operacionalidade

    dependa deste estudo prvio, ser da sua constante rectificao processual que o mesmo poder

    alcanar resultados satisfatrios.

    A inexistncia de uma poltica cultural para o patrimnio, engajada e comprometida com

    todas as comunidades e traada com objectivos a longo prazo, leva-nos a compreender aqui o

    museu como um instrumento institucional cujas ferramentas organizativas possibilitaro envolver

    toda a comunidade e estruturas existentes no pas, na necessidade premente que promover a

    participao, a nvel nacional, na aco patrimonial que, longe de se confinar ideia de conservao

    do passado, necessita da memria e de elementos geradores e activadores dessa memria, que

    reforcem os sentimentos de pertena das comunidades (Filipe, 2000:23).

    Entendemos ento que este processo trata, principalmente, da identificao do patrimnio

    nacional santomense atravs de uma iniciativa encetada por uma fora motriz, de estrutura

    museolgica, traduzida pela constituio de um inventrio (participativo), onde todas as

    comunidades sero chamadas a intervir, numa iniciativa que ser tambm sua. Concomitantemente,

    o museu desenvolver a funo de investigao e estudo da recolha que ser levada a cabo, sem

    esquecer o papel da educao que dever acompanhar todo o processo em parceria com as

    estruturas de educao j existentes.

    A funo investigao a base estruturante de todas as actividades museolgicas, desde a conservao difuso e aco cultural. Dela decorrem orientaes fundamentais, no s para a poltica de incorporao

    do museu e para a definio do estatuto de objecto museal (objecto-documento), como tambm para o sistema de documentao. Este abarcar quer os bens tornados museais, quer a diversidade de dados resultantes do

    24

    11 Um projecto cultural uma ferramenta de desenvolvimento que procura definir os conceitos matriz acerca da vocao do museu, a sua misso, os seus objectivos, o seu papel, cultural, social e econmico. Constitui a estrutura de referncia para a consequente programao museolgica, considerada em todas as suas vertentes: programa institucional, programa de coleces, programa arquitectnico, programa de exposies, programa de difuso e comunicao, programa de segurana, programa de recursos humanos, e programa econmico. O programa geral do museu , concretamente, o conjunto de parmetros, inerentes disciplina ou s disciplinas de base do museu, sua dimenso e mbito de interveno e posio que ocupa territorialmente, numa regio, num pas ou no mundo, dotando-o de uma poltica estrutural (Rasse e Necker, 1997; Filipe, 2000).

  • seu registo utilizando os instrumentos documentais mais adequados e uma ampla documentao relacionada com o estudo e interpretao de tais bens e contextos, assim como com a sua

    comunicao. (Filipe, 2005).

    Numa fase posterior, naturalmente, no seu tempo prprio, o museu nascer (Guedes, 1991).

    3. So Tom e Prncipe: conhecer o territrio e a histria como contexto de desenvolvimento

    Deixaram nas ilhas um legado/ de hbridas palavras e ttricas plantaes

    engenhos enferrujados proas sem alento/ nomes sonoros aristocrticos/ e a lenda de um naufrgio nas Sete Pedras

    Aqui aportaram vindos do Norte/ por mandato ou acaso ao servio do seu rei:/ navegadores e piratas/ negreiros ladres contrabandistas/ simples homens/ rebeldes proscritos tambm/ e infantes judeus/ to tenros que feneceram/ como espigas queimadas

    Nas naus trouxeram/ bssolas quinquilharias sementes/ plantas experimentais amarguras atrozes/ um padro de pedra plido como o trigo/ e outras cargas sem sonhos nem razes/ porque toda a ilha era um porto e uma estrada/ sem regresso/ todas as mos eram negras forquilhas e enxadas

    E nas roas ficaram pegadas vivas/ como cicatrizes - cada cafeeiro respiga agora um/ escravo morto.

    E nas ilhas ficaram/ incisivas arrogantes esttuas nas esquinas/ cento e tal igrejas e capelas/ para mil quilmetros quadrados/ e o insurrecto sincretismo dos paos natalcios./ E ficou a cadncia palaciana da ssua/ o aroma do alho e do zt dochi/ no tempi e na ubaga tla/ e no calulu o louro misturado ao leo de palma/ e o perfume do alecrim/ e do mlajincon nos quintais dos luchans

    E aos relgios insulares se fundiram/ os espectros - ferramentas do imprio/ numa estrutura de ambguas claridades/ e seculares condimentos/ santos padroeiros e fortalezas derrubadas/ vinhos baratos e auroras partilhadas

    s vezes penso em suas lvidas ossadas/ seus cabelos podres na orla do mar/ Aqui, neste fragmento de frica/ onde, virado para o Sul,/ um verbo amanhece alto/ como uma dolorosa bandeira. (Lima, 2004)

    25

  • 3.1. Enquadramento geogrfico

    Situadas no Golfo da Guin12, as ilhas de So Tom e Prncipe fazem parte do outrora

    conhecido arquiplago composto tambm pelas ilhas de Fernando P13 e Ano Bom14 e vrios ilhus,

    num conjunto disposto na bissectriz do golfo (cf. fig.1 em anexo), num alinhamento com mais de

    2000Km de extenso. Dada a orientao do alinhamento vulcnico, as ilhas vo-se afastando

    progressivamente da costa africana a partir da mais setentrional: contabilizam-se apenas 20 milhas

    (37 km) de mar at primeira ilha, Fernando P, seguindo-se, a 160 milhas (296Km), a ilha do

    Prncipe, a 180 milhas (330 km) a ilha de So Tom e, por fim, a mais afastada, Ano Bom, a pouco

    mais de 200 milhas (370 Km).

    As ilhas So Tom e Prncipe so as mais prximas entre si, distando apenas 82 milhas

    (150km) e com uma superfcie de 859 km2 e 142 km2, respectivamente, perfazendo um total de

    cerca de 1000km2. As ilhas com maior e menor superfcie so Fernando P, com 2034Km2 e Ano

    Bom, com apenas 17km2.

    O clima das ilhas fortemente influenciado pela sua situao geogrfica no vale

    depressionrio do equador e na zona de convergncia intertropical (ZCIT)15, assim como pela

    corrente quente do golfo. Todavia, embora prximas, distam o suficiente para nelas se verificarem

    retoques climticos que lhes davam cor e paisagem particulares (Tenreiro, 1961:15). Ano Bom

    define-se por ser menos hmida e mais baixa em altitude; o Prncipe apresenta-se com um relevo

    mais caprichoso; So Tom, com um nordeste baixo um pouco rido durante uma parte do ano e um

    sul de relevo dissecado, assemelhando-se ilha do Prncipe; Fernando P, pela proximidade que

    estabelece com o continente, em muito se assemelha com a vegetao e fauna da frica Ocidental.

    26

    12 O Golfo da Guin uma grande reentrncia na costa ocidental de frica, portanto, parte do Oceano Atlntico. O seu nome provm da denominao que os europeus deram quela parte do continente africano: Baixa Guin, mas dois dos pases africanos que actualmente detm aquele nome - a Repblica da Guin e a Guin-Bissau - no partilham a costa deste golfo; apenas a Guin Equatorial se encontra nesta regio. Os pases que partilham a costa do Golfo da Guin (de noroeste para sueste) so: Costa do Marfim, Gana, Togo, Benim, Nigria, Camares, Guin Equatorial e Gabo (parte norte). Neste golfo, encontram-se ainda vrias ilhas: Bioko e Ano Bom, que fazem parte da Guin Equatorial, e as ilhas de So Tom e Prncipe. E nele drenam trs grandes rios: Nger, Volta e Congo. No Golfo da Guin cruzam-se a Linha do Equador (0 de latitude) e o meridiano de Greenwich (0 de longitude).

    13 Actual Bioko, Guin Equatorial.

    14 Actual Annobn, Guin Equatorial.

    15 A Zona de Convergncia Intertropical (ZCIT) a rea que circunda a Terra, prxima ao equador, onde os ventos originrios dos hemisfrios norte e sul se encontram. Entre os anos 1920 e 1940 a ZCIT era denominada por Frente Intertropical (FIT), porm, com o reconhecimento, nos anos 1940 e 1950, da relevncia da convergncia de ventos para a determinao do clima tropical, o termo foi substitudo por ZCIT.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Linha_do_Equadorhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Linha_do_Equadorhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Clima_tropicalhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Clima_tropical

  • Ainda no que respeita s caractersticas especficas das ilhas, So Tom e Prncipe definem-

    se pela existncia de duas estaes, a das chuvas (de Outubro a Maio, coincidindo com a poca de

    mais calor) e a seca ou gravana (de Junho a Setembro), com temperaturas mdias anuais que variam

    entre os 22 e os 30 C. A temperatura varia em funo da altitude e da pluviosidade, sendo

    caracterstica uma forte densidade de humidade, quase sempre superior a 75%. Fernando P, por

    exemplo, apesar de partilhar a influncia da frente intertropical, nem as pocas de chuva nem os

    perodos secos (de Novembro a Maro, onde se inclui o perodo de temperaturas mais elevadas),

    so coincidentes.

    Ambas as ilhas, tendo em vista o seu aspecto primitivo, esto descaracterizadas, pelo tanto

    que foram remexidas pelo homem. As ilhas de So Tom e Prncipe so quase que constitudas por

    vegetao introduzida desde os primrdios da colonizao, principalmente no que se refere a

    plantas alimentares (Tenreiro, 1961:15). Percorrendo as ilhas, no meio de uma vegetao

    exuberante, entrecortada por numerosos cursos de gua e riachos, distinguem-se relevos

    acidentados de altitudes diferentes, originando a existncia de variados microclimas. A ilha de S.

    Tom extremamente montanhosa, culminando com uma aguda escarpa que comea na cratera de

    um extinto vulco a 1480m (Lagoa Amlia) at ao Pico de S. Tom (2024 m) e alguns fonolitos16

    escarpados, como o Co Grande (663 m) e o Co Pequeno (390 m), de muito difcil acesso; num

    sistema bastante dissimtrico, que cai bruscamente para o mar no quadrante oeste, contrapondo com

    um terreno que desliza suavemente na restante costa. O relevo da ilha do Prncipe , em termos

    gerais, menos pronunciado do que o da ilha de So Tom, dividindo-se em duas zonas orogrficas

    bastante distintas, a regio Norte, que apresenta uma plataforma de altitude situada entre os 120-180

    metros e um relevo pouco pronunciado, com pequenas elevaes e declives que do para o mar; a

    regio Sul mais acidentada, com numerosos picos mais ou menos agudos, sendo o Pico do

    Prncipe (948 m) o mais alto, inserindo-se numa Cadeia de Serranias de Leste para Oeste que se

    dilata ainda um pouco para norte com os Picos Papagaio, Joo Dias Pai e Joo Dias Filho. As ilhas

    apresentam vegetao tropical luxuriante, inclusive nos picos mais altos, uma vez que o pas

    atravessado pelo Equador, no ilhu das Rolas. nestes picos e montanhas que a floresta equatorial

    hmida17 primitiva ainda preservada est actualmente confinada pela sua inacessibilidade.

    27

    16 Rocha vulcnica.

    17 Plurisilva a designao da floresta tropical que se caracteriza pela alta pluviosidade (2000 a 5000 milmetros por ano) e temperatura mdia elevada. As florestas tropicais esto localizadas prximo do Equador da Terra, Amrica do Sul, frica e sia. Trata-se de um ecossistema dotado de extrema riqueza, devido variedade de espcies ali existentes e, de grande interesse, uma vez que, devido sua biodiversidade, se apresenta como fonte de inmeros recursos.

  • 3.2. Razes histricas de uma sociedade crioula africana

    Embora no seja consensual a data do descobrimento das ilhas do golfo da Guin - no

    consideremos que este seja o espao indicado para descortinar tal matria, quer pela falta de

    competncia acadmica quer pelo desviado que est da nossa questo fulcral - importa, porm,

    adiantar algumas datas para assim balizar o perodo cronolgico e histrico de relevo para o nosso

    estudo. Tal como adiantam os autores santomenses Carlos Agostinho das Neves e Maria Nazar de

    Ceita (2004:11) tudo comeou com Lopes Lima, um estudioso da expanso portuguesa que, nos

    meados do sculo XIX, ao escrever sobre o assunto, ter aventado a hiptese daquelas ilhas terem

    sido descobertas por Joo de Santarm e Pero Escobar, nos finais de 1470 e princpios de 1471;

    ainda segundo os mesmos autores ter sido a partir desta tese que se comeou a assumir estas datas

    como uma possibilidade para a descoberta das ilhas.

    Um ponto que parece consensual o que diz respeito aos protagonistas do descobrimento

    das ilhas e condies da explorao. Corroborando a tese dos mesmos autores, Carlos Esprito

    Santo (1998:15) adianta Joo de Santarm e Pero Escobar, encarregados por Ferno Gomes

    [arrendatrio das terras africanas herdadas pelo rei portugus D. Afonso V, cujo contrato por cinco

    anos o obrigava a desbravar a costa a partir da Serra Leoa] de prosseguirem a explorao da referida

    costa [Africana] alm do Cabo das Palmas18, atravessarem o reino do Benim no recncavo do Golfo

    da Guin, e no dia 21 de Dezembro de 1470 viram o prolongamento da cordilheira dos Camares

    uma ilha de 857 Km2 aproximadamente, que decidiram chamar So Tom, em memria do apstolo

    celebrado nessa data. A ilha do Prncipe seguir-se-ia em 1471, no dia 17 de Janeiro, dia de Santo

    Anto, nome primitivo da ilha do Prncipe.

    No que ao processo de colonizao diz respeito, importa referir as diferentes pocas em que

    este se deu. Se, por um lado, a ilha de So Tom foi elevada a capitania por carta rgia de Setembro

    de 1485, outorgando o primeiro foral de privilgios a Joo de Paiva - o qual, aps um ano (1486)

    havia de ser responsvel pelo desembarque dos primeiros colonos, na enseada de Ana Amb, perto

    de Ponta Figo, no noroeste da ilha, onde fundam uma pequena povoao - a ilha do Prncipe s se

    v povoada quase vinte anos mais tarde, em 1502, depois de outorgada a sua capitania, em 1500,

    28

    18 O Cabo Palmas um cabo no extremo sudeste da Libria, e o ponto ma