são paulo e buenos aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

232
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PROGRAMA DE INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA ALESSANDRA MELLO SIMÕES PAIVA São Paulo e Buenos Aires: “cidades-suporte” para a nova arte urbana SÃO PAULO 2014

Upload: phamkien

Post on 10-Feb-2017

249 views

Category:

Documents


7 download

TRANSCRIPT

Page 1: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA

ALESSANDRA MELLO SIMÕES PAIVA

São Paulo e Buenos Aires: “cidades-suporte” para a nova arte urbana

SÃO PAULO 2014

Page 2: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

2

ALESSANDRA MELLO SIMÕES PAIVA

São Paulo e Buenos Aires: “cidades-suporte” para a nova arte urbana

SÃO PAULO 2014

Tese apresentada ao Programa de Integração da América Latina da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutora em Ciências de Integração da América Latina.

Linha de pesquisa: Comunicação e Cultura

Orientadora: Prof.ᵃ Dr.ᵃ Lisbeth Ruth Rebollo Gonçalves

Page 3: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

3

ALESSANDRA MELLO SIMÕES PAIVA

São Paulo e Buenos Aires: “cidades-suporte” para a nova arte urbana

Membros da banca:

___________________________________________________________________________

Nome: Instituição: Assinatura:

___________________________________________________________________________

Nome: Instituição: Assinatura:

___________________________________________________________________________

Nome: Instituição: Assinatura:

___________________________________________________________________________

Nome: Instituição: Assinatura:

Tese apresentada ao Programa de Integração da América Latina da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutora em Ciências de Integração da América Latina.

Linha de pesquisa: Comunicação e Cultura

Orientadora: Prof.ᵃ Dr.ᵃ Lisbeth Ruth Rebollo Gonçalves

Data: ___/___/___

Page 4: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

4

À Luísa, Carolina e Isabela.

Page 5: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

5

AGRADECIMENTOS

- À Prof.ᵃ Dr.ᵃ Lisbeth Ruth Rebollo Gonçalves, pelo apoio a esta pesquisa e incentivo a

minha produção como crítica de arte;

- À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela concessão

de bolsa para esta pesquisa;

- À Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG) da Universidade de São Paulo, pelo apoio

financeiro para a realização de pesquisa de campo;

- Ao PROLAM, pelo apoio para participação em eventos científicos e demais estruturas

para a efetivação deste trabalho, especialmente, à Secretaria;

- A todos os professores participantes da banca de defesa;

- Ao Prof. Dr. Rodrigo Valverde, pelas dicas inestimáveis;

- À Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e à Associação Internacional de Críticos

de Arte (AICA), pelo reconhecimento de meu trabalho;

- A Sandro Monari Paiva e toda grande família, pelo apoio incondicional.

Page 6: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

6

Grupo Rundontwalk, Buenos Aires, 2012

Epígrafe

“O museu torna os pintores tão misteriosos para nós como os polvos e as lagostas.”

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 92.

Page 7: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

7

RESUMO

Quais as relações entre as artes visuais e a cidade? Como isto ocorre especialmente na

América Latina? Como podemos situar conceitualmente o lugar deste fenômeno artístico no

panorama geral da arte contemporânea? Essas questões pontuam as preocupações basilares

deste trabalho, que aborda os inúmeros aspectos da nova arte urbana a partir de um estudo

comparativo entre São Paulo e Buenos Aires. Utilizando o conceito de “cidades-suporte”,

que remonta à origem do termo “suporte” nas artes e sua ligação com a materialidade da

obra, a pesquisa está ancorada em um corpus teórico multidisciplinar. A proposta é analisar

o caráter simbólico da cidade e a relação da nova arte urbana com os campos da História, da

Teoria e da Crítica da Arte, e sua condição frente às problemáticas apresentadas pela arte

contemporânea. Sobretudo, procura-se enfatizar que a arte realizada no suporte da cidade

reafirma o caráter presencial e transformador da experiência estética.

Palavras-chave: Arte Contemporânea, Arte Urbana, Grafite, Teoria da Arte, Crítica de Arte.

Page 8: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

8

ABSTRACT

What are the relationships between visual arts and the city? How is it like in Latin America?

How can we identify conceptually the place of such artistic phenomenon in the general

panorama of the contemporary art? Such issues underlie the fundamental purposes of this

work which approach the countless aspects of the new urban art from a comparative study

between Sao Paulo and Buenos Aires. Using the concept of “cities-support” which traces

back the origin of the term “support” in the arts and its link with the materiality of the work,

the research is anchored in a multidisciplinary theoretical corpus. The proposal is to analyze

the symbolic character of the city and the relationship of the new urban art with the fields of

History, Critical Art Theory and its condition before the problematical scenario exhibited by

the contemporary art. Above all, it is intended to point out that the achieved art in the city

support reaffirms the concrete character and changing of the aesthetic experience.

Keywords: Contemporary Art, Urban Art, Graffiti, Art Theory, Art Criticism.

Page 9: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

9

RESUMEN

¿Cuáles son La relaciones entre las artes visuales y la ciudad? ¿Cómo ocurren especialmente

en Latinoamérica? ¿Cómo podemos ubicar conceptualmente este fenómeno artístico en el

panorama general del arte contemporáneo? Estas cuestiones hacen parte de las

preocupaciones en las que se basa este trabajo, que aborda los inúmeros aspectos del nuevo

arte urbano a partir de un estudio comparativo entre São Paulo y Buenos Aires. Utilizando el

concepto de “ciudad-soporte”, que remonta al origen del término “soporte” en las artes y su

relación con la materialidad de la obra, la investigación está anclada en un corpus teórico

multidisciplinario. La propuesta es analizar el carácter simbólico de la ciudad y la relación del

nuevo arte urbano con los campos de la Historia, de la Teoría y de la Crítica del Arte y su

condición ante los problemas presentados por el arte contemporáneo. Antes que nada, se

busca señalar que el arte hecho sobre el soporte de la ciudad reafirma el carácter presencial

y transformador de la experiencia estética.

Palabras clave: Arte Contemporáneo, Arte Urbano, Graffiti, Teoría del Arte, Crítica de Arte.

Page 10: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

10

LISTA DE IMAGENS

Figura 1 - Obra do artista Subtu (2014) ..........................................................19

Figura 2 - Artista Jorge Rodríguez, Buenos Aires (2012) .................................25

Figura 3 – Anônimo, Buenos Aires (2012) .....................................................25

Figuras 4 a 8 – Ruas de São Paulo e Buenos Aires .........................................34

Figura 9 - Centro de São Paulo, 2014.............................................................39

Figuras 10 e 11 - São Paulo............................................................................52

Figuras 12 a 16 - São Paulo (2012) ................................................................54

Figura 17 - Gráfico “Buenos Aires Imaginada”...............................................56

Figura 18 - O bairro La Boca. Buenos Aires, 2012...........................................56

Figura 19 - Artista Marino Santa María, 2012................................................ 56

Figura 20 - Fileteado portenho (2012)........................................................... 58

Figura 21 - Buenos Aires, 2012...................................................................... 58

Figura 22 - Estêncil, Buenos Aires, 2012........................................................ 60

Figura 23 - Estêncil, Buenos Aires, 2012......................................................... 60

Figura 24: O saci urbano em São Paulo, 2012............................................ ....60

Figura 25: Maradona nas ruas de Buenos Aires, 2012....................................60

Figura 26 - Buenos Aires, 2012........................................................................61

Figura 27 - São Paulo, 2012.............................................................................61

Figura 28 - Flavio de Carvalho.........................................................................85

Figura 29 - Ejercicio Plastico, de Siqueiros......................................................91

Figura 30 - Paisagismo de Waldemar Cordeiro.............................................103

Figura 31 - Parque para crianças projetado por Cordeiro.............................103

Figura 32 - Splitting, de Gordon Marra-Clark, (1974)................................... 111

Figura 33 - Foto do “Cara de Cavalo”, de Hélio Oiticica............................... 115

Figura 34 - Estêncil do “Cara de Cavalo”...................................................... 115

Figura 35 - Gênese do Parangolé, 1964........................................................117

Figuras 36 e 37 - Tucumán Arde...................................................................123

Figuras 38 e 39 - “El Siluetazo” ....................................................................126

Figura 40 - “El Partenón de Libros” (1983), de Marta Minujín.....................128

Page 11: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

11

Figura 41 - O artista Alberto Greco...................................................................129

Figuras 42 e 43 - Obras de Hervé Fischer..........................................................131

Figura 44 - O artista Valcárcel Medina..............................................................132

Figura 45 - São Paulo (2012): Beco do Batman.................................................142

Figura 46 - Alex Vallauri grafitando...................................................................149

Figura 47 - Coluna com frango assado, Vallauri................................................150

Figura 48 - Después de um Puño, 1987, de Basquiat........................................150

Figuras 49 e 50 - grupo Escombros .................................................................. 153

Figura 51 - Grupo GAC em ação, 2002..............................................................155

Figura 52 - Grupo BijaRi.................................................................................... 163

Figuras 53 e 54 - Obras de Eduardo Srur ..........................................................165

Figuras 55 a 58 - Estêncil Buenos Aires, 2012.................................................. 172

Figura 59: Triángulo Dorado, Buenos Aires, 2012.......................................... 173

Figura 60: JAZ, Buenos Aires, 2012....................................................................173

Figuras 61, 62 e 63: Gualicho, 2012.................................................................. 174

Figura 64: Mart, Buenos Aires, 2012................................................................ 175

Figura 65: Artista Calma, “Agricultura Celeste”, 2010...................................... 176

Figura 66: Painel dos OsGêmeos.......................................................................176

Figura 67: O artista Daniel Melim, São Paulo (2012).........................................177

Figura 68: "Metabiótica #20", de Alexandre Orión...........................................177

Figura 69: Foto do próprio Zezão......................................................................186

Figura 70: Foto do próprio Zezão......................................................................186

Figura 71: Foto tirada por Sol Lewit..................................................................186

Figura 72: Realismo social presente até hoje nas ruas de Buenos Aires...........193

Figura 73: Nexus Architecture (Sydney, 1998), de Lucy Orta............................195

Figura 74: Lygia Clark, O eu e o tu, 1967/68.....................................................196

Figura 75: Lygia Pape, Divisor, 1968..................................................................196

Figura 76: Obra de Blu.......................................................................................205

Page 12: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

12

SUMÁRIO

PRÓLOGO............................................................................................................14

INTRODUÇÃO......................................................................................................16

CAPÍTULO 1: A DIMENSÃO SIMBÓLICA DA CIDADE

1.1 - Por uma abordagem multidisciplinar da “cidade-imaginada”................ 25 1.2 - A “cidade-mercadoria” e sua relação com a cultura ..............................36 1.3 - Espaço público versus espaço privado: por uma “condição urbana” de resistência à lógica oficial .....................46 1.4 - São Paulo e Buenos Aires: “cidades-suporte” ........................................51

CAPÍTULO 2: CONSTRUINDO UMA HISTÓRIA DA ARTE URBANA

2.1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

2.1.1 - Agrupando terminologias.................................................................66

2.1.2 - Arte pública não é arte urbana .......................................................70

2.1.3 - Uma nova configuração de monumento .........................................72

2.2 - O MODERNISMO

2.2.1 - A mudança de paradigma da relação entre arte e espaço ..............80

2.2.2 - Muralismo: pioneirismo latino-americano ......................................84

2.2.3 - Siqueiros: o primeiro grafiteiro .......................................................88

2.3 - O PÓS-GUERRA

2.3.1 - A virada no conceito de arte urbana .............................................90

2.3.2 - Linguagens construtivistas latino-americanas

e o papel peculiar do Concretismo e do Neoconcretismo no Brasil.........97

2.3.3 - A contribuição do Minimalismo para inserir a arte na cidade......104

2.3.4 - Quando a arte é a cidade: Gordon Matta-Clark............................107

2.3.5 - Ética e estética nos anos 1960-70 na América Latina...................110

Page 13: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

13

2.3.6 - Neovanguardas nas ruas de São Paulo e Buenos Aires .................114

2.4 – O FENÔMENO DO GRAFITE

2.4.1 - Grafite: o surgimento de uma nova linguagem urbana...................132

2.4.2 - Uma “estilística latina”....................................................................134

2.4.3 - O novo grafite paulistano e portenho: a “Geração 80” das ruas.....136

2.4.4 - Jean-Michel Basquiat, Keith Haring e Alex Vallauri:

matrizes do novo grafite...........................................................................142

2.4.5 - O legado definitivo de Alex Vallauri................................................144

CAPÍTULO 3: SÃO PAULO E BUENOS AIRES: “CIDADES-SUPORTE” DA NOVA ARTE URBANA

3.1 – Preâmbulo...................................................................................150

3.2 - A arte ativista paulistana e portenha............................................151

3.3 - O novo grafite paulistano e portenho..........................................166

3.4 – A NOVA ARTE URBANA PAULISTANA E PORTENHA

SOB A ÓTICA DA TEORIA E DA CRÍTICA DA ARTE

3.4.1 – Algumas considerações......................................................177

3.4.2 - Uma arte hibridamente legítima........................................178

3.4.3 - Arte urbana e política.........................................................189

3.4.4 - Por um olhar latino-americano...........................................192

3.4.5 - Cidade: lugar da materialização da arte..............................195

3.4.6 Arte urbana e comunicação:

a realidade como matéria-prima..................................................198

3.4.7 - A natureza “relacional” da arte urbana...............................200

CONCLUSÃO – “MUSEU É O MUNDO” ..............................................................205

GLOSSÁRIO ........................................................................................................210

REFERÊNCIAS .....................................................................................................218

Page 14: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

14

PRÓLOGO

No final dos anos 1990, quando comecei a comentar artes visuais na imprensa, o Brasil

vivia um momento econômico favorável para grandes exposições internacionais. São Paulo

abriu alas para Picasso, Dalí, Rodin e outros tantos grandes. Isso me colocou em contato

direto com o modernismo e as leituras formalistas, mas o panorama mundial era de

questionamento sobre o destino da arte: Para onde vai, se tudo já foi feito? Qual é o poder

de transformação social da arte? Tal projeto foi dado por falido no século 20, mas nunca

deixou de ser preocupação das práticas contemporâneas.

Este trabalho, antes de ser um projeto de pesquisa para a seleção de doutorado no

Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina (Prolam/USP),

partiu dessas preocupações subjetivas. Observando grafites nas cidades, pesquisando o

assunto, conversando sobre o tema, surgiu o desafio de investigar este fenômeno cultural.

Poderiam aparecer algumas respostas para os antigos questionamentos.

Então, o impacto de um novo universo teórico: Néstor García Canclini que, com seu texto

claro e objetivo fala de nossa condição latino-americana; Nicolas Bourriaud, que revela por

meio da “estética relacional” que para ser artista é preciso, sobretudo, ter coragem; Michel

de Certeau, que nos lembra que o caminhar na cidade é um ato filosófico; Cristina Freire,

cujas pesquisas clareiam as relações das neovanguardas latino-americanas com a história da

arte; John Dewey, para quem a experiência artística é prazerosa de ponta a ponta; e muitos

outros.

Durante a pesquisa, alguns momentos transformaram a descoberta científica em uma

grande aventura: em Buenos Aires, pude entrar no ambiente “Ejercicio Plástico”, do

muralista mexicano Alvaro Siqueiros, que utilizou aerossol com tinta em 1933, muitas

décadas antes de se falar em grafite; constatei e investiguei as conexões entre Keith Haring e

o Brasil, entre Alex Vallauri e Basquiat; resolvi aprender a técnica do estêncil e repassei o

conteúdo teórico e prático em duas oficinas no SESC; recebi ainda o prêmio Jovem Crítica

2012, que me foi concedido pela Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA) por um

texto cujos subsídios teóricos vieram dos estudos no PROLAM.

Page 15: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

15

Otília Arantes, no entanto, abre outra discussão quando revela com precisão as

engrenagens perversas da “cidade-mercadoria” e das relações entre cultura e dinheiro; e

também continuo concordando com as proposições de Jean Galard, que aponta para o

fenômeno do ensimesmamento da arte contemporânea, reflexo do individualismo e

narcisismo contemporâneos. Mas, acima de tudo, passei a acreditar (mesmo diante de

tantas injustiças sociais e ambientais) em uma “condição urbana” mais humana e possível,

como apontado por Olivier Mongin, e na arte em seu pleno potencial de comunicação e

transformação social. E isso tudo aconteceu justamente agora, quando São Paulo e Buenos

Aires se tornaram palco de inúmeros protestos das novas gerações que clamam por justiça

nas ruas. Percorrendo essas cidades, me fiz uma “Baudelaire contemporânea”, em busca de

pistas que pudessem não apenas trazer respostas para esta pesquisa, mas, sobretudo, um

novo olhar para a arte, decididamente mais otimista.

Como afirma Canevacci (2004, p. 38):

Não nos resta senão acionar novamente o pensamento. Pensar o

pensamento. Correr o risco de ver como desatualizadas as melhores partes

de nossos ideais, e de aceitar o desafio. Para mim, isto deve significar

recomeçar a pesquisar. Recomeçar a observar os fenômenos, não mais com

as tradicionais grades interpretativas, mas abandonando-se ao objeto de

pesquisa e avançando hipóteses cautelosas que orientam a reflexão.

Page 16: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

16

INTRODUÇÃO

A presença das artes visuais - entre outros gêneros artísticos - no espaço da cidade

favorece um campo ativo de conscientização. A arte é o território por excelência para a

prática de um “Olhar-Cidadão” 1, isto é, o olhar que se apropria de seu meio a partir de uma

posição estética e política; o olhar que sabe situar-se nas entrelinhas do bombardeio

imagético urbano; o olhar que sabe identificar as mensagens subliminares de poder

veiculadas nas imagens dos espaços públicos; e, por fim, o olhar que se apropria de seu

entorno visual para criar uma linguagem de diálogo e resistência.

Neste cenário, a utilização do espaço urbano como suporte para a manifestação

artística vem se tornando, nas últimas décadas, um fenômeno cada vez mais recorrente nas

grandes cidades. O Grupo BijaRi, sediado em São Paulo, é um exemplo emblemático destas

questões. Em seu manifesto “Arquitetura da Resistência” 2, o grupo enfatiza que o objetivo

de sua arte é trazer à tona a ideia de que a cidade não é um espaço pronto e estabelecido

por vontades políticas verticais, mas espaço em permanente construção, passível da

participação e urgente na inclusão de todos os cidadãos. Seus projetos questionam a

apropriação do espaço público, evidenciando as relações de poder ocultas, que fazem da

grande metrópole o espaço da exclusão social. As manifestações do grafite também

compõem grande parte dessa poética urbana voltada à crítica social. Como afirma Knauss

(2009, p. 17): “De modo geral, é possível dizer que a luta pelo direito à cidade redefiniu o

papel das imagens urbanas. Nos dias atuais, a arte na cidade participa da afirmação de

identidades urbanas, de poderes locais e de forças comunitárias”.

Diante deste panorama, surgiram as seguintes perguntas: Quais as relações entre

arte e cidade? Como isto ocorre especialmente na América Latina? Como podemos situar o

lugar deste fenômeno artístico no panorama geral da arte contemporânea? São questões

basilares deste trabalho, cujo objetivo é investigar as características históricas e atuais das

relações entre arte e cidade, por meio do estudo comparado entre as cidades de São Paulo e

1 Alusão ao termo “Cidadão-Dançante”, do coreógrafo e educador corporal Ivaldo Bertazzo, cujos espetáculos

exprimem uma metodologia que discute a apropriação do corpo por aquele que o habita, a relação entre corpo e

cidadania, as supostas divisões entre cultura popular e erudita, as transformações do corpo no trabalho, enfim,

todo um suporte conceitual e prático cujos princípios buscam a autonomia do corpo. 2 Fornecido a esta pesquisadora.

Page 17: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

17

Buenos Aires. Para isso, este projeto está apoiado em um corpus teórico multidisciplinar.

Após apresentar uma visão geral a respeito do caráter subjetivo e simbólico da cidade no

primeiro capítulo, a proposta foi relacionar estas questões com os campos da história, da

teoria e da crítica da arte nos capítulos seguintes. Buscamos um entendimento

epistemológico da arte, que considere os domínios do popular e seu papel frente às

tradições elitistas, abrindo possibilidades diversas a respeito da interpretação das artes

visuais, abarcando principalmente o imaginário visual do cotidiano.

Assim, temos a cidade entendida de um ponto de vista multidisciplinar no primeiro

capítulo; e a arte urbana de São Paulo e Buenos Aires investigada em suas diversas matizes

históricas, críticas e teóricas, no segundo e terceiro capítulos. Examinar o aspecto histórico

da cidade nos levou a diversos processos pertinentes ao entendimento de sua relação com a

arte. Por exemplo, por que falar em Internacional Situacionista hoje? Talvez por provocação

diante da triste constatação da: “[...] quase completa ausência dessa paixão – proposta e

vivida pelos situacionistas – na vida e no pensamento urbano contemporâneo.” (JACQUES,

2003, p. 13). Ou será que podemos encontrar ecos dessas antigas experiências no atual

cenário das manifestações antiglobalização que tomam conta das ruas de grandes cidades,

ao lado das quais aparecem artistas ativistas ou grafiteiros? Subtu, artista oriundo do grafite

paulistano, deixou sua marca nas barracas do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto

(MTST) em recente ocupação em São Paulo (Figura 1). Suas figuras de macacos em situações

peculiares estão em viadutos, fachadas de prédios populares e outros pontos da cidade.

Realizou, com outros artistas (FEL, MUNDANO e RMI, além da produtora cultural Caren

Gomes), o projeto “Revivarte Parque do Gato”, produzindo, em trinta dias de pintura, 15

painéis em 15 prédios do conjunto Parque do Gato, no bairro do Bom Retiro, além de outras

atividades culturais e oficinas na comunidade. Se a Internacional Situacionista ficou

conhecida por seu cunho “participacionista” - que acreditava no espaço urbano como “[...]

terreno de ação, de produção de novas formas de intervenção e de luta contra a monotonia,

ou ausência de paixão, da vida cotidiana moderna.” (JACQUES, 2003, p. 13) -, em parte,

podemos ver este intento reverberado na atualidade, não por meio dos projetos e

burocratas ligados às políticas urbanas, mas dos movimentos populares e dos artistas de rua.

Page 18: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

18

A base para esta pesquisa interdisciplinar, caracterizada pela ligação entre disciplinas que

podem explorar um mesmo problema (a arte urbana), é o entendimento das representações

visuais como práticas materiais e artefatos que participam das relações sociais. Por este

motivo, a investigação no primeiro capítulo sobre o processo de mercantilização da cidade,

que tem na segregação espacial um de seus alicerces, nos leva a pensar sobre tantos artistas

que, em locais e tempos diversos, têm entre seus princípios a crítica à espetacularização da

cidade e da vida; como Gordon Matta-Clark, cujos projetos em Nova York testemunharam a

falência das políticas sociais para a cidade nos anos 1970; ou a artista argentina Marta

Minujín, que constrói edifícios de doces e livros para serem apropriados pela população.

Ao analisar os “caminhos polifônicos” pelos quais a cultura deve ser entendida, Canevacci

(2004, ps. 38-39) afirma:

Nestes últimos anos a antropologia cultural está tentando deformar os próprios paradigmas, repensar os estatutos disciplinares e os conceitos-chave, aliar-se com disciplinas diversas e que são também profundamente divergentes entre si. Mostra assim uma insatisfação com a tradicional divisão das ciências humanas - segundo o estatuto da Unesco - que a situava ao lado da sociologia e da psicologia social. Muito mais importante se mostra hoje o intercâmbio entre as ciências ditas exatas e a literatura comparada, a arte, a comunicação.

Entendemos que essa visão múltipla para a compreensão de fenômenos culturais é

extremamente pertinente no contexto latino-americano. A substituição do tradicional pelo

novo, a importação de padrões e a interpretação simplista e dual devem ser evitados.

Figura 1: Obra do artista

Subtu (2014), feita em

acampamento dos sem-

teto em São Paulo.

Imagem cedida pelo

artista.

Page 19: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

19

Diversas complexidades envolvem este território e sua iluminação ajuda a entender como as

sociedades latino-americanas vivem processos contraditórios, como a mistura entre “[...]

democracia moderna e relações de poder arcaicas [...]”. (CANCLINI, 1997). Portanto,

segundo Canclini (1997, p. 74), existe uma “heterogeneidade multitemporal”, que exige um

pensamento complexo para se compreender a história da arte, especialmente, seus

meandros na América Latina. Sobretudo, sentimos que adentramos um território rico em

dúvidas e incertezas. Como explica Canclini (2008, p. 16):

Nos centros urbanos se dramatiza uma tensão chave: entre as totalizações do saber que as descrições das ciências sociais duras produzem e as destotalizações que geram o movimento incessante do real, as ações imprevistas, aqueles ocos ou fraturas que obrigam a desconfiar dos conhecimentos demasiadamente compactos oferecidos pelas pesquisas e estatísticas.

Buscamos aqui uma perspectiva histórica que delimite os antecedentes da arte urbana,

mas que proponha uma revisão crítica, levando em consideração seu fundamento sócio

cultural. Por não encontrarmos referências aprofundadas em “história da arte urbana”,

optamos por certa dose de arbítrio na configuração do segundo capítulo. Nele, procuramos

mostrar contextos de produção artística sem fazer das diferenças geopolíticas elementos

intransigentes e definidores, no entanto, enfatizamos as especificidades da arte urbana

latino-americana, especialmente, aquela realizada em São Paulo e Buenos Aires. Por conta

disso, apresentamos manifestações de arte latino-americana, estadunidense e europeia,

tendo como princípio organizador a cronologia (antecedida por temas genéricos descritos

nos tópicos Considerações iniciais/Arte pública não é arte urbana/Uma nova configuração de

monumento), em sequência que vai da arte moderna à contemporânea, enfatizando os

contatos entre os artistas e o contexto de produção das obras. Seguimos assim uma

estrutura condizendo com a seguinte descrição de Canongia (2005, p. 10):

O fato, porém, é que por absoluta serventia instrumental, o historiador e o crítico precisam construir determinadas balizas históricas, pontos essenciais de referência, sob pena de perder parâmetros de análise. Mesmo que esses parâmetros, invariavelmente tênues, sejam a seguir desconstruídos, ou sirvam apenas como estimulantes para novas associações e desenvolvimento de ideias.

Page 20: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

20

Sobre a periodização da história da arte, apesar de delimitarmos fronteiras temporais para

os termos arte moderna e contemporânea no segundo capítulo, consideramos que: “O

moderno e o contemporâneo na arte indicam, portanto, modalidades de compreender o

que seja a própria arte, e não a época em que ela foi realizada.” (PESSOA, 2007, p. 16). Ainda

na visão de Pessoa (2007, p. 20):

O processo de transição do moderno para o contemporâneo na arte corresponde a essa mudança de paradigma, da relação da arte consigo mesma e com a realidade, paradoxalmente promovida pela (auto) crítica da arte moderna que, ao buscar a arte pura, acaba encontrando “o fim da história da arte” ou o “fim da arte”.

Para abordar o advento das vanguardas artísticas do início do século 20 atentamos

inicialmente para a diferenciação entre os conceitos de modernização, modernidade e

modernismo. Pela ótica de Harrison (2000): a) Modernização - série de processos

tecnológicos, sociais, políticos e econômicos associados à Revolução Industrial. b)

Modernidade - condições sociais e culturais como efeitos da modernização (O termo ganha

força com o livro “Sobre a Modernidade”, no qual o crítico e poeta Charles Baudelaire lança

sua contribuição definitiva para a compreensão da arte e da vida moderna urbana, as

relações estéticas com o transitório, o fugidio, o contingente). c) Modernismo - quanto a

este termo, não há consenso, especialmente em termos de periodização; assim adotamos a

tendência generalizada em localizar as transformações no campo da arte na França no final

do século 19, onde teria acontecido o início da arte moderna, isto é, do modernismo.

Encontramos pontos em comum entre a visão de Harrison (2000) e de Canclini

(1997); para este último o termo “modernidade” define etapa histórica; “modernização”

seria o processo sócio-econômico que constrói a modernidade; e “modernismo” passa a ser

entendido como projeto cultural que remodela práticas culturais de forma crítica e

experimental. Também adotamos aqui a visão de Canclini (1997), que entende a “pós-

modernidade” não como uma etapa após o modernismo, mas um caminho para se

problematizar os equívocos que o modernismo provocou ao tentar negar as tradições para

se constituir. O “pós-modernismo” também serve como ponto de vista antievolucionista, o

que ajuda a desfazer a separação entre culto, popular e massivo (CANCLINI, 1997, p. 23).

Ainda sobre um suposto rompimento com o moderno pela contemporaneidade, nesta

pesquisa verificamos um processo de continuidade; vide as décadas de 1960 e 1970, que

Page 21: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

21

foram decisivas para a implementação de uma nova visualidade por meio de experiências

radicais, inéditas historicamente, especialmente quando vemos a relação da arte com o

espaço da cidade, porém vinculadas às proposições modernistas. Como afirma Canongia

(2005, p. 89, grifo do autor):

Mas, para não incorrermos no erro da própria crítica modernista, é necessário dizer que o contemporâneo não rompe com o moderno, não estabelece com ele um par dicotômico. Ao contrário, a arte contemporânea se entrelaça ao moderno, surge de e graças a sua herança, onde encontrou chão para seus próprios saltos.

Ainda acerca da interdisciplinaridade, é importante destacar que História, Teoria e

Crítica da arte vêm lidando, há bastante tempo, com as posições flexíveis apontadas nesta

introdução por meio de revisões historiográficas, reagrupamentos geopolíticos, cronológicos

e estéticos; ou de atitudes pontuais, como as críticas a respeito de metodologias. A

propósito, este projeto considera a obra de arte um documento direto, como afirma

Crispolti (2004, p. 122): “Ao instituir uma investigação historiográfica, o primeiro dado com

que nos devemos confrontar são então os documentos diretos, as obras na sua

materialização de construção linguística”.

Ao examinar história, fatos atuais e interpretações teóricas, a pesquisa procura

respostas para iluminar o percurso da arte nas grandes cidades latino-americanas: Os

artistas apropriam-se de fato do espaço urbano? Até que ponto estes artistas participam de

uma construção coletiva de liberdade? Como se dão as relações de força entre grupos

sociais, espaço urbano e artistas? Como os artistas se colocam em relação à dominação e

resistência por parte dos sistemas de arte, do ponto de vista mercadológico ou institucional?

Qual sua legitimidade, já que possuem originalmente uma natureza subversiva?

Vimos, durante o desenvolvimento da pesquisa, a necessidade de organizar conceitos

de maneira precisa, principalmente os relacionados à terminologia utilizada em torno da

arte urbana. Teóricos das mais variadas áreas continuam a desenvolver abordagens

conceituais a respeito dos problemas do ambiente urbano e sua relação com arte. Grande

parte ressalta que as nomenclaturas ainda estão em construção, são categorias estéticas e

acepções que ainda geram desacordos. Qual a diferença, por exemplo, entre os termos arte

pública e arte urbana? Como as terminologias nos países de língua espanhola e inglesa –

Page 22: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

22

onde se costuma falar arte callejero, street art, posgraffiti - dialogam com o português?

Optamos por criar um Glossário situado no final do trabalho, não como proposta para

termos definitivos, mas para funcionar como um guia de leitura do trabalho em si, uma vez

que foram encontradas muitas imprecisões e divergências terminológicas na bibliografia

levantada.

Mesmo com sua carga interdisciplinar, este trabalho está fundamentado nas teorias

da arte, busca situar a nova arte urbana como uma linguagem legítima pertencente ao

território das mais importantes práticas estéticas contemporâneas. Para isso, procuramos

ligar fatores comuns e articular uma leitura histórica das obras com a atualidade. A pesquisa

foi um exercício “clássico” de crítica de arte que, segundo Pareyson (2001), funciona como

um espelho refletor da obra, que pronuncia um juízo reconhecendo seu valor, neste caso a

arte urbana. Afinal, como afirma Bourriaud (2009b, p. 15): “A atividade artística constitui

não uma essência imutável, mas um jogo cujas formas, modalidades e funções evoluem

conforme as épocas e os contextos sociais. A tarefa do crítico consiste em estudá-la no

presente”.

Cauquelin (2005, p. 16) propõe uma definição de teoria da arte como “[...] atividade

que constrói, transforma ou modela o campo da arte”. Segundo essa autora, a teoria é

necessária para que a obra exista; a arte contemporânea teria esta aparente falta de

discernimento porque está em tensão em um lugar conceitual estreito.

São necessárias essas mediações, todo esse trabalho tecido incansavelmente pelo comentário, para que seja reconhecida como obra. Pois nenhuma atividade – e a arte não escapa a essa condição – pode ser exercida fora de um sítio que lhe dê seus limites, determine os critérios de validade e regule os julgamentos que serão tecidos a seu respeito. (CAUQUELIN, 2005, p. 16)

Esta pesquisa apresenta um caráter amplo. E foi sua finalidade última: não afunilar o

corpo de estudo, estabelecendo, por exemplo, um período delimitado ou determinada

linguagem artística, mas fazer uma abordagem de um assunto visivelmente amplo e pouco

estudado. Desta maneira, a pesquisa tem um caráter compilatório, no entanto, procura

estreitar-se no momento em que foca as questões teóricas da arte. O objetivo é confirmar a

hipótese de que é possível conceitualizar a arte urbana como um fenômeno intrínseco ao

projeto da arte contemporânea.

Page 23: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

23

Além da análise do referencial teórico, a metodologia contou com pesquisas de campo

realizadas nas cidades de Buenos Aires e São Paulo para registro fotográfico de obras e

futuras análises das imagens, relacionando-as ao contexto social e aos métodos da crítica da

arte. Sentimos, sobretudo, que nossa relação com o objeto de estudo se desenvolveu a

partir do olhar investigativo de uma pesquisadora que se considera sujeito no contexto da

pesquisa, em um profundo relacionamento de intercâmbio e solidariedade até mesmo com

signos visuais, em processo semelhante ao que Canevacci (2004, p. 44) definiu em relação à

antropologia cultural, concluindo que: “O visual torna-se assim o centro polimórfico que

deve ser interpretado e o meio de interpretação. O visual é objeto e método”.

Percorrer essas cidades com o olhar de quem está perscrutando indícios visuais nos fez

vivenciar também o paradoxo definido por Didi-Huberman (1998): o que vemos vive em

nossos olhos pelo que nos olha. São grafites, outdoors, vídeos que nos olham, nos capturam

e nos seguem. Relação que, em cidades convulsionantes, como São Paulo e Buenos Aires,

exige disponibilidade afetiva e condescendente com sua imensa carga sensorial. “É o mundo

que nos pensa”, afirma Baudrillard (2002, p.92); então, temos apenas a vaga sensação de

nossa cumplicidade com os objetos da cidade. Enfim são hipóteses paradoxais confirmadas

por este trabalho: “[...] é nosso pensamento que regula o mundo – contanto que se pense

em primeiro lugar que é o mundo que nos pensa” (BAUDRILLARD, 2002, p. 93). Finalizamos

esta introdução com imagens registradas em um tour pela cidade de Buenos Aires, em 2012,

ao lado de citações que achamos representativas (Figuras 2 e 3). A primeira imagem (Figura

2) é de uma homenagem do artista cubano-estadunidense Jorge Rodríguez ao seu pai

falecido, cujos olhos foram copiados de uma fotografia.

Page 24: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

24

Figura 2:

“É o livro que me lê.

É a televisão que te assiste.

É o objeto que nos pensa.

É o objeto que nos fixa.

É o efeito que nos causa.

É a língua que nos fala.

É o tempo que nos perde.

É o dinheiro que nos ganha.

É a morte que nos espreita”.

(BAUDRILLARD, 2002, p. 93)

Buenos Aires, 2012. Fonte:

Alessandra Simões

Figura 3:

“[..] olhar significa não somente

olhar, mas também ser olhado. E a

grande cidade desenvolve ao

máximo esta dialética [...]”.

(CANEVACCI, 2003, p.43)

Buenos Aires, 2012. Fonte:

Alessandra Simões

Page 25: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

25

CAPÍTULO 1: A DIMENSÃO SIMBÓLICA DA CIDADE

1.1 Por uma abordagem multidisciplinar da “cidade-imaginada”

O entendimento da cidade deixou de ser tarefa exclusiva de arquitetos e urbanistas há muito

tempo, mas nas últimas décadas, processos de naturezas múltiplas na sociedade

contemporânea trouxeram a discussão sobre o fenômeno urbano para as mais variadas áreas

do conhecimento. A cidade física se relaciona com a cidade subjetiva de forma intrínseca, a

produção e a circulação de bens vinculam-se aos sistemas de signos e discursos.

A arte é uma das particularidades do aspecto subjetivo do tecido urbano e a compreensão da

dimensão simbólica da cidade pode ajudar a entender a própria arte, presente de forma

definitiva em metrópoles mundiais, e cujas características no contexto latino-americano são

peculiares. Para entendermos a ideia de “cidade-suporte” 3 precisamos esclarecer algumas

abordagens a respeito da cidade contemporânea, entre elas, a “cidade-mercadoria”, a “cidade-

utopia”, a “cidade-imaginada” 4. Foi exatamente o estudo destas definições de cidade que nos

levou ao insight de criar uma nova categoria, “cidade-suporte”, em torno da qual pudéssemos

gravitar outros conceitos.

Esta pesquisa considera a cidade a partir de uma de suas características subjetivas, a arte

urbana. Portanto, explora o tema a partir da Teoria da Arte (sendo esta também sujeita a uma

abordagem multidisciplinar, que possibilita o entendimento de fenômenos complexos,

compostos de linguagens múltiplas e de possíveis leituras) e das abordagens que pensam a

3 “Suporte: 1. O que suporta ou sustenta algo. 2. Aquilo em que algo se firma ou assenta. 3. Material que serve de

base para aplicação de tinta, esmalte, verniz, etc.” FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Dicionário

da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 1980. Como mostra o verbete 3, o termo ganhou ampla

utilização na área de artes visuais. Entretanto, a partir das mudanças na arte contemporânea, que além de

suportes tradicionais e bidimensionais, como a tela e o papel, passou a ser representada de múltiplas maneiras, o

termo carece de maior aprofundamento. Foram encontradas, mesmo na literatura especializada, referências ao

suporte apenas como receptor de trabalho bidimensional. No Dicionário Oxford de Arte, por exemplo, suporte

quer dizer material – tela, painel de madeira, papel ou outra substância – sobre a qual a pintura é executada; em

geral, o suporte se diferencia da base (que seria a preparação prévia de uma tela para o recebimento da pintura,

por exemplo, o gesso). Entretanto, o suporte pode ser a escultura, um objeto, um vídeo, o corpo, o espaço, a

cidade. Cabe considerar como pertinentes a este trabalho os verbetes 1 e 2 citados no início desta nota de rodapé,

segundo os quais o suporte artístico é aquele que suporta ou sustenta algo, aquilo em que algo se firma ou

assenta. Portanto, a “cidade-suporte” pode ser considerada como o espaço receptor ativo de uma proposta, seja

ela a aplicação da tinta, como nos murais que suportam o grafite; ou a ação, como no caso das intervenções de

arte ativista. 4 Não pretendemos traçar aqui uma genealogia destes termos; vamos passar por eles ao longo deste capítulo,

propondo assim uma introdução ampla a respeito das interpretações sobre a cidade contemporânea.

Page 26: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

26

cidade em si, principalmente, a cidade compreendida como dimensão sempre aberta à

construção de sentidos, metafórica que “[...] insinua-se assim no texto claro da cidade planejada

e visível” (CERTEAU, 1994, p. 172).

Para exemplificar a visão interdisciplinar a respeito da cidade,5 Silva (2011, p. XXVI) sinaliza

que a Psicanálise e a Semiótica podem propor uma recategorização do urbano, situando-o como

sujeito real e imaginário: “A cidade possui motivos suficientes para que dela se ocupem as

ciências do simbólico que aparecem em cena como a organização de um saber [...]”.

Essas disciplinas consideram a vida nas cidades como um dos grandes debates da

contemporaneidade, especialmente, aquelas que abordam a cultura simbólica. Trata-se de

apreender esta nova dimensão da cidade pós-industrial, especialmente das grandes metrópoles,

marcadas pela descontinuidade de espaços, por novas formas de relações sociais, pela

degradação de grandes áreas anteriormente ocupadas por espaços informais auto organizados,

por novos usos de antigas infra estruturas, pela não regulamentação fundiária, pelas novas

necessidades de circulação e estadia, pela segregação social; processos instáveis que alteraram

a natureza do espaço público e seus significados culturais.

É preciso tecer um pensamento complexo para se compreender a história da arte, da cultura

e de sua relação com as cidades. Da mesma forma como mudaram as teorias a respeito do

pensamento urbano, mudaram as percepções sobre a arte. As categorias artísticas,

tradicionalmente divididas entre o culto, o popular e o massivo, não são mais suficientes para o

entendimento sobre a complexidade cultural na atualidade. Por exemplo, em relação à arte

feita nas ruas, buscam-se novas terminologias para a construção de conceitos: arte pública, arte

5 Se, inicialmente, sociólogos (ex. Georg Simmel) compunham o perfil principal do pesquisador debruçado sobre

as questões da urbanidade, seguiram-se a estes os antropólogos (ex. Massimo Canevacci), os arquitetos (ex. Rem

Koolhaas), os filósofos (ex. Armando Silva), os geógrafos (ex. Milton Santos), etc. A estes somam-se as

riquíssimas contribuições de formações interdisciplinares, como as de Walter Benjamin, Jean Baudrillard e

Edgar Morin. Cabe destacar aqui a importância do pensamento do sociólogo mexicano Néstor García Canclini

para este trabalho, especialmente, em função da aplicação dos Estudos Culturais à realidade na América Latina.

Outro pensador de relevância nesta pesquisa é o colombiano Armando Silva, que vem liderando uma verdadeira

“força tarefa” entre pesquisadores e instituições de países latinos e ibero-americanos para a produção de uma

série de estudos e publicações para o projeto “Imaginários Urbanos”. Este pesquisador, inclusive, tem mantido

estreita relação com o Brasil, especialmente, por meio do Programa de Pós-Graduação Interunidades em

Integração da América Latina (PROLAM), Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador Emérito e professor

da Universidad Externado de Colombia, seu trabalho se produz com enfoque interdisciplinar, mesclando

Antropologia, Psicanálise, Filosofia, Teorias da Linguagem e da Estética. Um dos frutos da pesquisa foi a

realização, em 2010, da exposição Cidades Imaginadas Iberoamericanas, no MAC USP, então sob a direção de

Lisbeth Rebollo Gonçalves. Com organização de Armando Silva, a mostra reuniu 50 fotografias produzidas no

contexto da pesquisa, que conta com o apoio de várias entidades internacionais, muitas delas universidades. Em

São Paulo, a pesquisa se deu através da USP, por via do PROLAM – Programa de Pós-Graduação em Integração

da América Latina. Um recorte da produção fotográfica resultante do trabalho desenvolvido nas 13 cidades foi

exposto na XI Documenta de Kassel, em 2002. Disponível em

http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/exp/10/txt/09.txt. Acesso: 10 fev. 2014.

Page 27: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

27

urbana, arte de rua*, etc.6 Canclini (1997), ao utilizar o termo “hibridização”, argumenta que

não há mais como legar às disciplinas seus conteúdos específicos (a história da arte e a

literatura que se ocupam do culto; a antropologia, do folclórico e do popular; e a comunicação,

da cultura massiva): “Precisamos de ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas

que ligam os pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e comuniquem os níveis

horizontalmente” (CANCLINI, 1997, p. 19). Na contemporaneidade, Canclini (1998) resgata das

ciências sociais um termo mais abrangente para superar a noção dualista entre o culto e o

popular: “cultura urbana”. Afinal, a expansão urbana é uma das causas que intensificam a

hibridação cultural.

Uma nova ordem estética vem desmantelando o esquema tradicional do entendimento da

expressão cultural contemporânea para dar lugar às hibridizações das mais diversas ordens. O

grafite nos muros da cidade, por exemplo, se tornou “um meio sincrético e transcultural”,

(CANCLINI, 1997, ps. 338-339). Ainda segundo esse autor, os grafites fundem a palavra e a

imagem em um estilo descontínuo: “(...) a aglomeração de signos de diversos autores em uma

mesma parede é como uma versão artesanal do ritmo fragmentado e heteróclito do videoclip”.

A canção “Grafitti” de Caetano Veloso, Wally Salomão e Antonio Cícero (do álbum Velô, de

outubro de 1984) é uma homenagem poética e musical ao tema então nascente no Brasil,

incluindo a ideia de mass media: pelo menos outras três canções deste mesmo álbum (Podres

Poderes, Língua e O Quereres) tocaram incessantemente nas rádios FM e na TV. Segue o

poema:

Jogo rápido, língua ligeira, olhos arregalados Passam o meu e o seu nomes ligados Por uma seta de Cupido, filho de Afrodite O nosso amor é um coração colossal de grafitti Nos flancos de um trem de metrô A nossa carne é toda feita de flama e de fama O rumor do nosso caso de amor Não se confina a boatos, bares e boates Conquista as estações, incendeia a praça escarlate Inflama o aconchego dos lares Todos os satélites se viram pelo mundo afora Para transmitir o nosso som, a nossa luz, nossa hora E nosso beijo que sempre começa na boca e só acaba na poça Video Clip Futurista

6 Em toda a bibliografia consultada para esta pesquisa, identificamos a utilização constante de terminologias

dúbias e vagas. Por isso, fizemos um esforço aqui para delimitar alguns campos terminológicos no segundo

capítulo.

Page 28: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

28

Porque o mundo, ele é assim, ele é nossa conquista Andy Warhol mil vezes na TV disse: - "No gossips, Miss" Darling, querida Vê se te toca Leva tua vida sem fuxico nem fofoca…

A ideia de “cultura urbana” proposta por Canclini (1997)7 é de fundamental importância para

o entendimento dos processos culturais na América Latina, onde as contradições são

expressivas, como se pode atestar pelo encontro entre democracia moderna e relações de

poder arcaicas. Basta lembrar, por exemplo, como o desenvolvimento industrial e urbano a

partir da segunda metade do século 19 ocorreu em paralelo com a larga profissionalização de

artistas, porém com o analfabetismo de metade da população.

Há muitas possíveis leituras da cidade (CANCLINI, 2008), e é próprio das cidades, sobretudo,

das megalópoles, nos proporcionarem, inclusive, experiências de desconhecimento. Nesta

recategorização do urbano, os estudos sócio-demográficos cedem espaço aos estudos sócio-

comunicacionais, ou sócio-culturais. Se interpretada a partir da Comunicação, a cidade se

comporta como uma narrativa, “[...] uma aventura que não acaba de se configurar e se

reencenar. A cidade, dado que ela contém tempo, alimenta-se tanto da continuidade quanto da

descontinuidade” (MONGIN, 2009, p. 58). Para este autor, pode-se interpretar a “cidade-livro”,

a “cidade-linguagem”, entendendo-se a cidade como uma língua, “[...] uma folha, jamais

totalmente branca, sobre a qual corpos contam histórias” (MONGIN, 2009, p. 62).

A “narrativa urbana” pode ser uma narrativa visual, tendo entre seus componentes a arte de

rua. Segundo Canevacci (2004, p. 43): “A cidade é o lugar do olhar. Por este motivo, a

comunicação visual se torna o seu traço característico”. Assim, interpretar estas escrituras

visuais significa “desvendar” a linguagem urbana, como aponta Kozak (2004, p.12, tradução

nossa):

A superfície urbana [...] é obviamente legível. Edifícios, ruas, aglomerações, veículos, cartazes, cores. Desta superfície, destacam-se sobretudo imagens cifradas em grafites, e pintadas, que intervém no território, organizando

7 A respeito do caráter financeiro da cultura, Canclini explica ainda que uma das questões mais importantes é a

da autonomia da arte, o “suposto” fim de sua dependência em relação às estruturas de poder, como a política e a

igreja (Antiguidade e na Idade Média), e seu revestimento de uma força envolta na aura da unicidade e

autenticidade. O Renascimento foi o momento em que houvera um rompimento da arte com fatores extra

estéticos, porém a história mostra que isso de fato não se integralizou. Valores específicos foram atribuídos para

cada tipo de manifestação cultural, o artesanato foi parar nas feiras e a arte nos museus.

Page 29: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

29

saberes, dando-lhes sentido, traçando fronteiras. Deter-se na letra urbana, recorrer à superfície tatuada da cidade permite descobrir estes sentidos.

Esse ponto de vista pode fornecer importantes chaves interpretativas à arte urbana. Segundo

Pallamin (2000, p. 46): “Enquanto ‘espaço de representação’, a obra de arte é também um

agente na produção do espaço, adentrando-se nas contradições e conflitos aí presentes.”

Portanto, acreditar que as práticas cotidianas podem construir a história a partir de si mesmas,

e não de ações unilaterais, impostas de cima para baixo, requer confiar que as vozes

dissonantes na sociedade capitalista ainda não foram eliminadas. Implica em reconhecer que o

espaço social baseia-se primordialmente na contradição, que não existe um poder unitário e sim

relações de poder. 8

O termo “condição urbana” - sistematizado pelo filósofo e historiador francês Olivier Mongin

e que será retomado ainda neste capítulo - torna-se aqui extremamente adequado para definir

esta cidade permeada de fraturas, contrastes, isto é, a cidade enquanto possibilidade e

experiência. Segundo o autor, esta definição diferencia a “cidade-objeto” (aquela que parte do

ponto de vista de arquitetos e urbanistas que a descrevem por fora) e a “cidade-mercadoria” (a

serviço dos interesses corporativos) da “cidade-sujeito”, a urbes do escritor, que vê a cidade de

dentro:

A forma da cidade, sua imagem mental, não corresponde em nada ao conjunto que o urbanista e o engenheiro projetam. Não se decidem numa prancha de desenho os ritmos que tornam a cidade mais ou menos suportável e solidária. A cidade existe quando indivíduos conseguem criar vínculos provisórios em um espaço singular e se consideram como citadinos. (MONGIN, 2009, p. 56)

Esta “condição urbana” revela um paradoxo: a cidade é uma forma limitada que oferece

uma experiência ilimitada. Na dimensão simbólica da cidade, o espaço gera tensão, e a arte

inserida em seu contexto reforça a articulação entre os diversos aspectos deste estado de

8 Esta ideia é central para as teorias de Michel Foucault a respeito das relações de poder. Colocando o poder

como uma realidade dinâmica e não estática, ele afirma: “Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que

atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir”. Portanto

diferentemente dos sistemas repressores clássicos (como o exército, a polícia, o tribunal), existe para Foucault

uma nova economia do poder, isto é, “[...] procedimentos que permitem fazer circular os efeitos de poder de

forma ao mesmo tempo contínua, ininterrupta, adaptada e ‘individualizada’ em todo o corpo social”.

(FOUCAULT, 1979, p. 8). Na cidade, pode-se atestar esta complexidade nas relações de poder quando atentamos

para as mensagens publicitárias, cujos jogos de manipulação são peça fundamental para a regulamentação e

disciplina social. Em contraposição a este cenário, as mensagens artísticas abrem a possibilidade de que as vozes

dissonantes atuem entre estas redes de poder de forma autônoma e afirmativa.

Page 30: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

30

coisas. O simples ato da caminhada proporciona a experiência de imaginação e invenção. E

quando há arte neste percurso o caminho se torna ainda mais difuso: transeuntes se

transformam em espectadores, ou melhor, fruidores. A propósito, Certeau (1994, ps.176-

191) define que o ato de andar está para a cidade assim como a fala está para a linguagem.

E, assim como a linguagem tem como natureza sua abertura à pluralidade de sentidos e

interpretações, a cidade assim deve ser compreendida. O autor explica que o ato de

caminhar como espaço de enunciação pode ser entendido assim: a) O pedestre produz um

processo de apropriação do sistema topográfico, assim como quem profere algo se apropria

da língua; b) Ao caminhar, ele faz uma realização espacial do lugar, da mesma forma como o

ato de falar é uma transformação sonora da língua.

Esses pressupostos confirmam a ideia fenomenológica de que os conceitos existem por

causa das experiências que temos deles, o que muitas vezes significa uma experiência

corporal partilhada com a da visualidade: “Meu corpo móvel conta com o mundo visível, faz

parte dele, e por isso posso dirigi-lo no visível. Mas também é verdade que a visão depende

do movimento. Só se vê o que se olha” (MERLEAU-PONTY, 2013, p.19). Lembremos aqui das

experiências do artista conceitualista Richard Long [1945-], que fazia arte ao realizar

caminhadas, cujos percursos eram registrados e mostrados ao público.

Dá-se, então, uma liberdade de construção de sentidos, tanto por parte dos artistas quanto

dos transeuntes. Existem caminhos pré-estabelecidos, calçadas, entradas e saídas, obstáculos,

muros, enfim, determinações que deixam ao transeunte a opção de aceitá-las ou rejeitá-las.

Pois, se obedece a algumas possibilidades fixadas pela ordem convencional, também as

seleciona, criando atalhos, arriscando-se em locais proibidos. Até mesmo o arquiteto e

urbanista Lucio Costa (1902-1998), dentro de seu programa racionalista para o Plano Piloto de

Brasília, previu “caminhos de desejo” para as trilhas sobre os gramados recriadas até hoje entre

as superquadras pelos transeuntes9. Certeau (1994, ps. 178-179) fala em uma “retórica da

caminhada” como uma “arte de moldar percursos”, que combina estilos e usos. Estas ideias

podem ser adaptadas à concepção deste presente trabalho, uma vez que caminhadas

alheatórias feitas por esta pesquisadora nas cidades de São Paulo e Buenos Aires, entre os anos

de 2011 e 2014, foram fundamentais para o entendimento destas cidades enquanto

9 Informação recolhida por esta autora durante trabalho de pesquisa feito para a Bienal Brasileira de Design, em

2010. Entre os nomes pesquisados, estava o grupo Brasília Faz Bem, que cria objetos inspirados na cultura da

capital federal, entre eles, um anel chamado “Desejo”, cujas formas são inspiradas pelas trilhas previstas por

Lucio Costa.

Page 31: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

31

constituições retóricas, moldadas aos olhos dos transeuntes, que podem se tornar fruidores da

“cidade-suporte”.

Os artistas que inauguraram as novas relações entre estética e cidade ao longo da história

também fornecem chaves para o entendimento deste ato de fruir a cidade. Como declarou o

artista Hélio Oiticica [1937-1980], sobre sua performance Delírio Ambulatório (que será descrita

mais adiante):

[...] Eu descobri o seguinte, a relação da rua com o que eu faço é uma coisa que eu sintetizo na ideia de “Delírio Ambulatório”. O negócio assim de andar pelas ruas é uma coisa, que a meu ver, me alimenta muito e eu encontro, na realidade a minha volta ao Brasil, uma espécie de encontro místico com as ruas [...]. Quando eu proponho que uma pessoa ande dentro de um penetrável cheio d’água ou ande dentro de um penetrável com areia e pedrinhas quer dizer que na verdade estou sintetizando minha experiência de descoberta da rua através do andar, é uma descoberta assim do espaço urbano através do detalhe do andar, um detalhe síntese do andar [...]. 10

Artistas como Oiticica revelam que há uma “poética da perambulação”, independentemente

do meio de locomoção, como também afirmou a artista Lygia Pape [1927-2004] 11:

Nas minhas idas e vindas pela cidade (eu dirijo muito), comecei a desenvolver um novo tipo de relacionamento voltado para o espaço urbano, como se eu fosse uma espécie de aranha, tecendo teias. É todos aqueles “atravesse aqui”, “dobre a esquina”, e assim por diante, para cima e para baixo dos viadutos, dentro e fora dos túneis. Eu e todos os outros... É como se estivéssemos captando uma vista aérea da cidade: era uma teia ou um labirinto imenso. Eu chamei aquilo “Espaços imantados” porque era algo vivo. Como se eu estivesse lá, bem dentro, puxando este fio que não tem fim.

Um detalhe interessante é apontado por Mongin (2009, p. 65): “A experiência da caminhada,

aquela que leva ao encontro inesperado, é hoje simbolizada pela arquitetura da ‘passagem’”.

Durante nossas caminhadas pelas cidades de Buenos Aires e São Paulo, essas “arquiteturas de

passagem” foram interpretadas como escadarias, túneis, passarelas, corredores subterrâneos,

becos, onde foram encontrados muitos registros visuais. Havia sempre algo a chamar a atenção,

uma sedução pelo inesperado que a aguardava nestes locais, que se assemelham a respiros,

intervalos no caos ordinário da cidade. Estes espaços recônditos podem ser interpretados a

10

COCCHIARALE, Fernando; OITICICA, César Filho. Hélio Oiticica: museu é o mundo. São Paulo: Itaú

Cultural, 2010, ps. 16-22. Catalog. A citação está presente no catálogo sem determinação de data e obra de

origem. 11

BRETT, Guy. A lógica da teia. In: BRETT, Guy; OITICICA, Hélio; PEDROSA, Mario. Lygia Pape: gávea de

tocaia. São Paulo: Cosac & Naif, 2000, ps. 304-315. A citação está presente no catálogo sem determinação de

data e obra de origem.

Page 32: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

32

partir da ideia de “topoanálise” de Gaston Bachelard, para quem há um significado especial no

“canto”. Para ele, a condição deste lugar remete o homem a um espaço fechado, protegido, de

solidão. “O canto é assim uma negação do Universo” (BACHELARD, 1988, p. 146). A partir desta

constatação, encontramos ferramentas para o entendimento da ocupação de vários “cantos”

das cidades pelos artistas, como as escadarias e os túneis. Em São Paulo, por exemplo, são

tradicionais as ocupações de grafite em becos, como no caso do Beco do Batman, no bairro da

Vila Madalena, que é considerado um marco na história da arte urbana paulistana. Então, pode-

se vislumbrar o artista produtor de arte pública recolhido a um espaço quase privado, que

lembra o próprio ato de abrigar-se no ateliê, mesmo estando na rua. “Parece, então, que é por

sua ‘imensidão’ que os dois espaços – o espaço da intimidade e o espaço do mundo – tornam-se

consoantes. Quando a grande solidão do homem se aprofunda, as duas dimensões se tocam, se

confundem” (BACHELARD, p. 207).

Interessante citar também o quanto a utilização do ônibus como meio de transporte durante

esta pesquisa foi útil para a construção de “cidades metafóricas”. Certeau (1994, p.199) lembra

que na Atenas contemporânea os transportes coletivos se chamam “metaphorai” (grego

moderno). Isto é, para ir e vir na cidade deve-se tomar uma “metáfora”, um ônibus ou um trem.

Assim como na caminhada, nesses transportes podemos criar percursos subjetivos, marcados

pela travessia e organização de lugares, montando-se “frases-itinerários”. Mais uma vez, as

narrativas evocam um valor de “sintaxe espacial”, como define o autor. Circular de transporte

público em São Paulo e Buenos Aires abriu também inúmeras possibilidades para a fruição

visual dessas “cidades-suporte”. De ônibus, as paradas significam pausa para alguma surpresa

visual, como no caso do Museu a Céu Aberto, na Avenida Cruzeiro do Sul. Em Buenos Aires, os

espaços subterrâneos do metrô remontam às origens do grafite nova iorquino, quando as

superfícies dos trens eram tomadas por assinaturas e imagens com estilos influenciados pela

cultura hip-hop.

Page 33: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

33

Nas duas imagens acima, registramos

locais em que as imagens urbanas se

localizam com frequência em “cantos

míticos” (BACHELARD, 1998), como

escadarias e túneis. Ao lado,

encontramos um artista, o NOVE,

pintando a fachada da galeria

especializada Choque Cultural (SP),

fazendo da rua seu ateliê. São Paulo,

2013. Fonte: Alessandra Simões

Ao lado, o Museu a Céu Aberto de

São Paulo, na avenida Cruzeiro do

Sul. “Imagem metafórica”

registrada da janela de um ônibus.

São Paulo, 2012. Fonte: Alessandra

Simões

Ao lado, o metrô de Buenos Aires,

“suporte metafórico” para o grafite

hip-hop. 2012. Fonte: Alessandra

Simões

Figura 4 Figura 5

Figura 6

Figura 7

Figura 8

Page 34: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

34

Assim, esta “pesquisadora-caminhante” passou a desenhar cidades para si; no caso deste

estudo, as cidades de São Paulo e Buenos Aires inseridas em um contexto político e cultural

latino-americano, com suas peculiaridades, histórias, memórias e aspirações. Afinal: “Criar a

cidade é constituí-la, inscrevê-la numa duração singular, mas também religa-la a outras cidades

[...]”, afirmou Mongin (2009). Então, passamos a pensar em uma ideia de “cidades-irmãs”, isto

é, grandes metrópoles inseridas em um contexto próprio: o latino-americano, enfim, “[...] uma

rede de cidades ligadas entre si [...]”, na qual “O urbano é então uma criação coletiva contínua,

um projeto comum refundador da ligação social e ‘recriador de um imaginário social’”

(MONGIN, 2009, p. 303). Como ressalta a pesquisadora Heloísa Buarque de Holanda:

[...] hoje certamente se fala mais em cidade do que de nação. Fala-se mais de cultura carioca, paulista ou pernambucana do que de cultura nacional como até bem pouco tempo, sintoma que expressa uma certa descentralização da cena cultural que passa agora a privilegiar a auto-afirmação de expressões multiculturais. É o cenário da cidade, e não o da nação, que passa a ser [...] o espaço privilegiado para as identificações culturais emergentes, para as articulações das diversas representações sociais, ou, para usar um termo em alta, para a ‘etnificação da cultura’. Um fenômeno fundamentalmente urbano. (HOLANDA, 1994, p. 18)

Essas premissas corroboram a ideia que Silva (2010, p. 44) expressa a respeito da identidade

cultural latino-americana: “(...) a América Latina não existe como unidade e o que existe é um

desejo coletivo, um imaginário de ser latino-americano”. Este sentido foi compartilhado no

decorrer deste trabalho quando constatamos, por diversos motivos, o quanto São Paulo e

Buenos Aires ainda são vizinhos desconhecidos. Há, sim, uma espécie de “troca subterrânea”

realizada principalmente entre os artistas. Em conversas informais, artistas e agentes culturais

portenhos12 comentaram frequentemente que São Paulo é considerada a Meca da cultura na

América Latina; e que muitos deles têm se deslocado para trabalhar na capital paulistana, onde

o fluxo financeiro no mercado cultural é muito mais significativo do que em Buenos Aires

(informação pessoal).

Como mostra Silva (2010), o fato de não haver um projeto político-social-econômico de

integração para a América Latina que faça uma contraposição efetiva ao modelo hegemônico

capitalista mundial não inviabilizou o sonho de unir estas nações em torno de um ideal comum.

É dentro deste contexto que o autor elaborou o conceito de “imaginários urbanos”, um 12

O mesmo ocorreu no Paraguai e Berlim, duas cidades em que estivemos em 2012, e onde também

pesquisamos a arte urbana local, conversando com diversas pessoas envolvidas na área cultural.

Page 35: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

35

mapeamento que ilumina algumas peculiaridades de nossas cidades, contribuindo assim para a

construção das identidades urbanas latino-americanas construídas a partir da vida de suas

“cidades imaginadas”. Segundo Silva (2010, p. 18), há três maneiras de produção dos

“imaginários urbanos”:

a) Imaginário-real: O imaginário está exclusivamente na imaginação. Por exemplo, na Rua

Hidalgo, no México, onde as pessoas passam apressadamente para fugir de um forte odor

de esgoto que não existe mais.

b) Real-imaginário: O imaginário existe como realidade empírica. O centro de Montevidéu

que só existe na realidade, pois seus cidadãos não o recriam, não o usam.

c) Imaginário-real-imaginário: Coincide imaginário e realidade verificável. Em Bogotá, os

bairros realmente mais violentos segundo as estatísticas policiais são os mais temidos pela

população.

Assim, dentro destas categorias, pode-se verificar o quanto são efetivas as relações

intercambiantes entre representações e espaço real das cidades. As “cidades imaginadas” de

São Paulo e Buenos Aires, aqui consideradas como “cidades-suporte” da nova arte urbana, se

configuram dentro de um sistema “imaginário-real-imaginário”, como exemplos emblemáticos

do quanto a cidade situa-se entre sua condição real e imaginária (são conhecidas por todos

como capitais da arte urbana porque realmente exibem arte em suas ruas), uma exercendo

influência sobre a outra, ambas abrindo caminho para que o ideal de condições urbanas mais

justas e solidárias possa se tornar verdadeiro, como afirma Fabris (2000, p. 9): “Modelo espacial,

social e cultural, a cidade apresenta-se, não raras vezes, como território privilegiado da utopia.”

Ou ainda como diz Le Goff (1998, p. 119): “O orgulho urbano é feito da imbricação entre a

cidade real e a cidade imaginada, sonhada por seus habitantes e por aqueles que a trazem à luz,

detentores de poder e artistas”.

Neste contexto, a arte urbana - como pode ser atestado por meio de sua significativa presença

em São Paulo e Buenos Aires - se tornou protagonista no processo de construção da identidade

dessas cidades:

Sendo partícipe na produção simbólica do espaço urbano, a arte urbana – compreendida no plano das relações sociais e não reduzida a sua dimensão estetizada – repercute as contradições, conflitos e relações de poder que o

Page 36: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

36

constituem. Nesse registro específico de sua tematização, associa-se direta e indiretamente à natureza constituinte do espaço público, a questões de identidade social e urbana, de gênero e expressões culturais que possam ou não nele vir a ocorrer, às condições de cidadania e democracia. (PALLAMIN, 2002, p. 105)

1.2 A “cidade-mercadoria” e sua relação com a cultura

Um ponto fundamental para se compreender a cidade contemporânea é a relação

estabelecida ao longo da história entre cidade e cultura, e de como estes dois campos estão

profundamente ligados aos interesses econômicos mundiais. Da mesma forma que a Teoria da

Arte preocupa-se com a problemática da produção, circulação e representação dos objetos

artísticos, além de sua apropriação e consumo; uma análise sobre a arte feita na cidade deve

incorporar estas temáticas, uma vez que há todo um panorama histórico e atual a ser refletido

sobre a ideia de “cidade-mercadoria” 13 e de sua relação com a arte: “Aparentemente os

grandes grupos concentradores de poder são os que subordinam a arte e a cultura ao mercado,

os que disciplinam o trabalho e a vida cotidiana” (CANCLINI, 1997, p. 346).

Considerar as relações entre cidade, cultura e mercadoria permite situar a arte urbana

primeiramente como um contraponto a esta situação ou não (analisaremos também como a

arte urbana passa a ser integralizada ao sistema “cidade-mercadoria” por meio de sua

institucionalização). Como exemplo, as primeiras obras site-specific, feitas a partir dos anos

1960 (e que serão estudadas no segundo capítulo), e que são interesse deste trabalho por

serem consideradas uma mudança paradigmática na relação entre arte e cidade, trazem o

questionamento sobre os modos de vida capitalista e de sua penetração na esfera artística (e na

cidade, na opinião desta pesquisadora). A afirmação de Kwon (2000, p. 39, tradução nossa)

pontua esta virada na História da Arte:

A aspiração nova vanguardista de exceder as limitações das linguagens convencionais, como a pintura e a escultura, bem como seu panorama institucional; o desafio epistemológico de realocar o significado dos objetos de arte para as contingências de seu contexto; a radical reestruturação do conteúdo de um antigo modelo Cartesiano para um fenomenológico de viver uma experiência corporal; e o autoconsciente desejo de resistir às forças do mercado capitalista econômico, no qual artes circuláveis são transportáveis como boas comodities – todos esses imperativos uniram-se nos novos objetivos da arte voltada para o lugar.

13

Termo bastante utilizado por Sánchez (2003).

Page 37: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

37

Assim como a arte passou a questionar de forma cada vez mais radical o establishment social;

também passou a criticar a própria cidade como uma entidade representante dos interesses

capitalistas mundiais, fazendo da urbe seu suporte e, muitas vezes, seu tema. Como afirma

Pallamin (2002), a arte tornou-se participante direta na produção simbólica do espaço urbano.

Inserida no território das relações sociais e não reduzida a sua dimensão estetizada, a arte

urbana revela assim as contradições e as relações de poder que constituem a cidade. Portanto:

Nessa sua acepção enfatiza-se a via pela qual os valores da arte contemporânea não são vistos separadamente de problemas da vida urbana e cotidiana. Sua concreção estética, as significações e os valores com os quais trabalha incitam o questionamento sobre como e por quem os espaços da cidade são determinados, que imagens, representações e discursos são aí dominantes, quais ações culturais contam ou quem tem exercido o direito à fruição, participação e produção cultural. (PALLAMIN, 2002, p.106)

A mercantilização da cidade, analisada ao longo dos anos por várias teorias que tentam

explicar os usos e a ocupação do solo no processo de formação do espaço urbano, é um dos

aspectos mais relevantes a serem destacados nos processos de configuração das dinâmicas

urbanas. Parte-se do princípio de que as grandes metrópoles mundiais, entre elas, São Paulo e

Buenos Aires, inserem-se no contexto da chamada “cidade-mercadoria”, onde os aparatos

culturais do espaço se submetem aos jogos do capital financeiro. Como afirma Sánchez (2003, p.

551), o surgimento da “cidade-mercadoria” sinaliza um novo patamar no processo de

mercantilização do espaço, trata-se de um “[...] produto do desenvolvimento do mundo da

mercadoria, do processo de globalização em sua dimensão político-econômica e da realização

do capitalismo em sua fase atual”.

Com o avanço do processo de mercantilização da cidade e com a crescente

desregulamentação estatal (em serviços básicos, como energia, transporte e saneamento), os

espaços urbanos passaram a ser cada vez mais manipulados de acordo com o capital privado,

que tem na segregação espacial um de seus alicerces; de um lado, bairros de elite com

infraestrutura e serviços públicos disponíveis; e de outro, bairros pobres, na periferia e

renegados ao abandono estatal. É a “espoliação urbana”, conceito proposto por Kowarick

(2000) que define o conjunto de extorsões que se opera na cidade pela inexistência ou

precariedade de serviços de consumo coletivo que, conjuntamente à falta de acesso à moradia,

Page 38: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

38

dilapidam o bem-estar da população: “É preciso reafirmar que a espoliação urbana está

intimamente ligada à acumulação do capital e ao grau de pauperismo dela decorrente”, afirma

o autor (KOWARICK, 2000, p. 22), lembrando ainda que esta espoliação é mediatizada pela ação

do Estado, que regula as condições de trabalho e de remuneração dos trabalhadores.

Sob a ética neoliberal, também emergiu um interesse específico da esfera financeira pela

esfera cultural. Para entender esta questão, será necessário primeiramente retroceder na

história para compreender como se deu inicialmente a afinidade “cidade/cultura”, e como as

forças de mercado confabularam para reforçar os laços entre esses dois territórios,

transformando-os depois na tríade “cidade-empresa-cultural”, na qual o interesse da esfera

econômica pela especulação fundiária casou-se com projetos de renovação urbana que

Figura 9: Centro de São Paulo,

2014. Diálogo entre a

imagem, que fala de uma

cidade voraz, e a dura

realidade da “cidade-

mercadoria”, representada,

ao fundo, por uma pessoa

dormindo ao relento.

Fonte: Alessandra Simões

Page 39: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

39

propagandeiam a importância da cultura para a imagem da cidade. Ao fazer uma crítica sobre a

visão marxista e pós-marxista das relações entre arte e cultura, Foster (1996, p. 194) diz haver

então uma mercantilização da cultura e uma simbolização da economia.

Assim, o regime capitalista passou a se alimentar das forças subjetivas, especialmente as de

conhecimento e criação a ponto de ter sido qualificado como “capitalismo cognitivo” ou

“capitalismo cultural” (ROLNIK, 2006, p. 4.) 14. Frisa-se aqui o surgimento dos conceitos relativos

à “cidade-mercadoria” dentro do contexto de uma nova “indústria cultural” proposta por

Theodor W. Adorno e Max Horkheimer como: “[...] produção em série de bens culturais para

satisfazer de forma ilusória necessidades geradas pela estrutura de trabalho e também para

manter a carência por novos produtos” (FREITAS, 2008, p.14).

O entendimento da cidade enquanto valor cultural também ganhou força com o surgimento

do termo cultural turn, nos anos 1980, nos meios de esquerda acadêmicos anglo-americanos,

“[...] designando uma dessas mudanças ditas revolucionárias de paradigma, graças à qual tudo

teria se tornado ‘cultural’ [...]”, explica Arantes (2009, p.39). A partir daí, o status da cultura

passou a ser revisto: em vez de ser meramente reflexo dos processos sociais, políticos e

econômicos, a cultura passou a ser sua causa. Todas as experiências passaram a ser passíveis de

interpretações simbólicas a partir desta nova voga cultural, “[...] que parece querer a todo custo

devolver aos cidadãos cada vez mais diminuídos nos seus direitos, materialmente aviltados e

socialmente divididos, sua ‘identidade’ (ou algo similar que os console de um esbulho

cotidiano), mediante o reconhecimento de suas diferenças imateriais” (ARANTES, 1998, p. 152).

Portanto, nada mais útil do que ter a cultura como propulsora de valores simbólicos e não

reais; para transformar espaços em mercadorias, cujos preços não se baseiam em necessidades

imediatas e sim em manipulações. Como afirma Arantes (2014, p.65): “[...] cultura e economia

correram uma na direção da outra, dando a impressão de que a nova centralidade da cultura é

14

A autora afirma que as noções de “capitalismo cognitivo” ou “cultural”, propostas pelo grupo de pensadores

ligados ao filósofo e guerrilheiro italiano Toni Negri e à revista Multitude, a partir dos anos 1990, são herdeiras

da ideia que permeia toda a obra de Deleuze e Guattari acerca do estatuto da cultura e da subjetividade no regime

capitalista contemporâneo. Ainda segundo esta autora: o “capitalismo cognitivo” ou “cultural”, inventado como

saída para a crise provocada pelos movimentos dos anos 1960/70, “[...] incorporou os modos de existência que

estes inventaram e apropriou-se das forças subjetivas, em especial da potência de criação que então se

emancipava na vida social, a colocando de fato no poder.” E ainda observa o seguinte em relação ao “capitalismo

cognitivo” : “No entanto, no final dos anos 1970, quando teve início sua implantação, a experimentação que

vinha se fazendo coletivamente nas décadas anteriores, a fim de emancipar-se do padrão de subjetividade

fordista e disciplinar, dificilmente podia ser distinguida de sua incorporação pelo novo regime” (ROLNIK, 2006,

ps.5-6). Segundo a autora, a consequência deste estado de coisas é que muitos dos protagonistas dos movimentos

transgressivos e experimentais – até então estigmatizados e confinados à marginalidade –, se fascinaram com o

prestígio midiático e seus salários generosos, “[..] tornando-se eles próprios criadores e concretizadores do

mundo fabricado para e pelo capitalismo nesta sua nova roupagem” (ROLNIK, 2006, ps.5-6).

Page 40: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

40

econômica e a velha centralidade da economia tornou-se cultural, sendo o capitalismo uma

forma cultural entre outras rivais.” Como afirma Debord (2006, p.126): “A cultura tornada

integralmente mercadoria deve também se tornar a mercadoria vedete da sociedade

espetacular”.

Assim, nas últimas décadas, a cultura passou a ser peça chave no funcionamento da máquina

capitalista. O cultural - mesmo que apenas entretenimento - passou a ser consumido; quem

adquire bens simbólicos adquire status, prestígio, e até mesmo uma suposta identidade. A

iniciativa privada, que investe cada vez mais em cultura por meio de subvenções públicas, utiliza

como justificativa a pretensa democracia cultural, segundo a qual o estreitamento entre baixa e

alta cultura pode ser festejado por meio da hibridação artística e da ilusão da igualdade étnica.

Ao resgatar o pensamento de Adorno, Freitas (2008, p.34) explica:

A indústria cultural, que se esmera em produzir formas de satisfação pretensamente totais, contendo signos de felicidade em seu todo, é radicalmente falsa, pois trabalha a partir da ilusão do preenchimento narcisista dos desejos, que são, eles mesmos, já manipulados pelos produtos que visam satisfazê-los.

Apropriado por forças de mercado, este paradigma culturalista “caiu como uma luva” em um

circuito econômico altamente especulativo, que passou a ver o espaço fundiário a partir de seu

valor de troca e não de uso. Neste cenário em que o capital financeiro e industrial somou-se ao

capital cultural, “[...] a competição internacional entre as cidades produziu uma mutação das

tradicionais cidades industriais em cidades de arte ou de cultura” (CANEVACCI, 2004, p. 38). As

teorias que atrelaram marketing ao urbanismo passaram a entender que a cultura, juntamente

com a cidade, configura-se como um vetor comunicativo, produtor coletivo de subjetividades

(GUATTARI, 1992).

Este novo panorama crítico trouxe ao discurso ideológico de arquitetos e urbanistas a

proposição da cidade enquanto um lugar cultural. Entenderam que: “Lugar e cultura estão

persistentemente entrelaçados entre si, um lugar [...] é sempre um locus de densas relações

humanas [...] e cultura é um fenômeno que tende a ter intensamente características locais que

ajudam a diferenciar um local do outro” (SCOTT, 2000, p.3, tradução nossa). Assim, a cidade

passou a ser o local por excelência em que a cultura se relaciona com a mercadoria.

No ritmo dessas mudanças, a cidade tornou-se legenda obrigatória para a interpretação da

cultura contemporânea. Um lugar comum da crítica da cultura é a predominância do “olhar”, a

Page 41: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

41

ideia de que a sociedade contemporânea vive sob o império da imagem, do espetáculo e do

simulacro (DEBORD, 2006); o espaço da cidade – e todo seu aparato imagético - é o local por

excelência onde estas operações ocorrem. Jameson (1997), que a partir da arquitetura passou a

analisar o pós-modernismo, explica que a produção estética hoje está integrada à produção das

mercadorias em geral, e que há uma urgência desvairada da economia em produzir novas séries

de produtos que cada vez mais pareçam novidades, inclusive no campo da arquitetura: “De

todas as artes, a arquitetura é a que está constitutivamente mais próxima do econômico, com

que tem, na forma de encomendas e no valor dos terrenos, uma relação virtualmente imediata”

(JAMESON, 1997, p. 30).

As chamadas “estratégias de planejamento urbano” 15 passaram a recriar, com aparatos

físicos e simbólicos, espaços públicos nos quais o sentido de comunidade pudesse ser resgatado

em contraste com a cidade moderna esvaziada. A abordagem da cidade, do ponto de vista

prático das intervenções urbanas, como do ponto de vista teórico, isto é, do pensamento sobre

a cidade, deixou para trás a essência racional modernista: a previsibilidade, a organização, o

controle, a planificação, a eficiência e a ordenação. E assumiu o caráter flexível e relativo do

capitalismo em sua atual fase 16.

Entretanto, como mostra Sánchez (2003, p. 39), o resultado deste processo, a partir da

década de 1990, tem sido o inverso: em vez de expressar características regionais, as cidades

reurbanizadas têm se tornado homogêneas: “[...] a despeito de suas singularidades políticas,

culturais e urbanísticas, as ‘cidades’ vêm sendo vendidas de modo semelhante”. Os espaços

passaram a ser moldados com base em tendências globalizantes mundiais, que obscurecem as

diferenças de tempo e espaço sociais. Criam-se “não-lugares”17, descaracterizados e impessoais,

15

O termo “planejamento estratégico” envolve um modelo de planejamento urbano que vem sendo difundido no

Brasil e na América Latina pela combinação de diversas agências multilaterais para substituir o modelo

tecnocrático anterior, típico do modernismo. O caso da renovação de Barcelona é considerado pedra angular

deste processo, inspirado em conceitos e técnicas provenientes do planejamento empresarial (originários da

Harvard Business School), que procuram entender a cidade como uma empresa. Assim, procura-se proporcionar

um negócio de sucesso, segundo o qual a venda da cidade depende de atributos específicos do capital

transnacional, entre eles, a produtividade e a competitividade (VAINER, 2009). 16

Adotamos aqui a visão de Mongin (2009) de que estamos vivendo, desde a década de 1960, o que o autor

chama de “terceira globalização”. A primeira foi no período do mercantilismo; a segunda em meados do século

XIX. 17

Marc Augé é o autor deste termo: “[...] daquilo que chamaremos ‘não-lugares’, por oposição à noção

sociológica de lugar, associada por Mauss e por toda uma tradição etnológica àquela de cultura localizada no

tempo e no espaço” (AUGÉ, 2007, p. 36). Ou ainda: “Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e

histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico

definirá um não-lugar. A hipótese aqui defendida é a de que a supermodernidade é produtora de não-lugares, isto

é, de espaços que não são em si lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade baudelelariana, não

integram os lugares antigos: estes reertoriados, classificados e promovidos a ‘lugares de memória’, ocupam aí

Page 42: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

42

ou ainda “cidades-mundo”, “cidades-genéricas”18. Como afirma Jacques (2003), há uma crise da

própria noção de cidade, que se torna visível principalmente através das ideias de “não-cidade”,

seja por congelamento – “cidade-museu” e patrimonialização desenfreada -, seja por difusão –

cidade genérica e urbanização generalizada. “Essas duas correntes do pensamento urbano

contemporâneo – em voga na teoria mas principalmente na prática do urbanismo – apesar de

aparentemente antagônicas, tenderiam a um resultado semelhante: a espetacularização das

cidades contemporâneas” (JACQUES, 2003, p. 13).

Buenos Aires, por exemplo, convive com vários “não-lugares”, como em outros locais no

mundo. Também se transformou em cidade de negócios. “Simplificando, se trata de um modelo

de cidade que converteu seus espaços públicos e suas infraestruturas públicas em objeto de

negócio” (GORELIK, 2013, p. 193, tradução nossa). O autor aponta projetos que simbolizam esta

tendência, como Puerto Madero, Projeto Retiro, Abasto, Tren de la Costa, as metamorfoses de

Tigre e de Hudson, as redes de rodovias de acesso à cidade, etc., que confirmam a participação

do capital privado em iniciativas que afetam setores em escala territorial.

Surge assim a “cidade-empresa-cultural” (ARANTES, 2009, p.38), cuja participação ativa no

cenário internacional se faz via competitividade econômica, obedecendo aos requisitos de uma

empresa gerida de acordo com os princípios da eficiência máxima. Para que este ideal funcione,

estabelece-se até mesmo uma ideia de prestação de serviços culturais, cuja função é devolver

aos moradores uma “sensação” de cidadania, por meio de atividades que estimulem a

criatividade e aumentem a autoestima (ARANTES, 2014, p.65).

Tudo isso programado a favor do capital, que teve como uma das principais bandeiras

urbanas no século XX os processos de “gentrificação” 19, que seriam nada mais do que o “[...]

um lugar circunscrito e específico” (Ibid., p. 73). Assim, podem ser “não-lugares” vias aéreas, ferroviárias,

rodoviárias, domicílios móveis (aviões, trens, ônibus), os aeroportos, as estações, grandes cadeias de hotéis,

parques de lazer, grandes superfícies de distribuição, onde indivíduos interagem com textos, sem outros

enunciantes, como as máquinas que afirmam: “bem-vindo”, “retire seu cartão”. O espaço do viajante seria o

arquétipo do não-lugar, afinal: “O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim

solidão e similitude” (Ibid., p.95). Apesar dessas referências de “não-lugares”, é importante lembrar que há um

cruzamento entre as categorias; os lugares e “não-lugares” se interpenetram. 18

Entrevista. “O futuro das cidades pelo filósofo. O francês Olivier Mongin lança A Condição Urbana e alerta

para o perigo da megalomania arquitetônica”, 21 de novembro de 2009, Estado de São Paulo. Disponível em

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-futuro-das-cidades-pelo-filosofo,469755,0.htm. Acesso: 12 abr.

2014. 19

Um dos processos que ajudaram a dar cabo à “cidade-mercadoria” foi a complexa política cultural de

gentrificação, que se tornou mais um braço a favor do estado privatizado que transforma o patrimônio histórico

em bem mercadológico, adequando-o à lógica do capitalismo. A expressão é derivativa de “Gentrify: renovate

and improve (a house or district) so that it is confroms to middle-class taste.” Esta por sua vez derivada de

“Gentry: people of good social position, specifically tha class next below the nobility”. E cuja raiz encontra-se na

palavra Gentle, que formou “Gentlefolk”, isto é, “people of noble birth or good social position. Consice Oxford

Page 43: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

43

reencontro glamoroso entre cultura e capital (ARANTES, 2009). Neste culturalismo de mercado

que procura vender a cidade para o capital internacional, o que está em promoção é um

produto inédito, a própria cidade, acompanhada por uma adequada política de image-making.

Esta mesma autora enfatiza que, embora as cidades modernas sempre estivessem ligadas à

ideia de divisão do trabalho e de classes sociais, à acumulação capitalista, à exploração do solo,

etc., é preciso salientar um processo novo em curso nas últimas décadas, que se trata da

mercantilização da própria cidade, isto é, pode-se atestar que: “(...) as cidades passaram elas

mesmas a ser geridas e consumidas como mercadorias” (ARANTES, 2002, p. 65).

Aqui vale lembrar a atuação do Grupo BijaRi, sediado em São Paulo, que será analisada

adiante. Uma de suas obras focou-se justamente no tema gentrificação, quando o grupo passou

a acompanhar ativamente processos de remoção dos sem-teto na cidade de São Paulo, por

meio de diversas ações. O grupo enfatizou que o objetivo de sua arte é trazer à tona a ideia de

que a cidade não é um espaço pronto e estabelecido por vontades políticas verticais, mas

espaço em permanente construção, passível da participação e urgente na inclusão de todos

cidadãos. Seus projetos questionam a apropriação do espaço público, evidenciando as relações

de poder ocultas no cotidiano, que fazem da grande metrópole o espaço da exclusão social.

No Brasil, onde tanto se colocou em prática projetos de revitalização dos centros da cidade,

esta tônica prevalece, como afirmou em entrevista Rolnik 20:

Revitalizar pressupõe a ideia de ter alguma coisa morta, o não reconhecimento da vida que existe, e normalmente a vida é de pessoas pobres, de gente que justamente ocupou aquele lugar porque ele perdeu o interesse para o mercado imobiliário, perdeu preço e virou um lugar que pode abrigar quem não tem

English Dictionary. Oxford University Press. 2008 (ps. 594-595). A expressão gentrification começou a ser

usada nos Estados Unidos, em 1960, período em que as cidades estadunidenses foram invadidas por

manifestações a favor de direitos civis, contra a guerra no sudoeste asiático, e motins nos bairros negros. O termo

serviu para explicar um modelo de intervenção urbana que se expandia em larga escala em muitas cidades

americanas, cuja principal característica era a reabilitação residencial de alguns bairros (é preciso lembrar que já

nas décadas de 30 e 40 no mesmo país se utilizava o termo embourgeoisement [LEITE, 2007] para projetos que

beneficiavam empresários brancos a partir da expulsão de negros e operários de bairros tradicionais, como em

Georgetown, em Washington). Os princípios dessas reformas refletiam os pressupostos hausmannianos de

pulverizar aglomerados humanos e higienizar a cidade, deixando-a limpa e segura. Baltimore foi o exemplo mais

emblemático do início destes processos de remodelação, que ainda eram justificados pelo poder público como a

celebração da diversidade ética. São experiências típicas do pós-guerra que modelaram a disputa das cidades no

cenário internacional: “[...] as políticas de gentrification podem ser consideradas sucessoras pós-modernas da

experiência francesa bonapartista do final do século XIX.” (Ibid., p.62). Portanto, o que era programa urbanístico

se tornou estratégia política. Gentrificar passou a significar a “[...] afirmação simbólica do poder, mediante

inscrições arquitetônicas e urbanísticas que representem visualmente valores e visões de mundo de uma nova

camada social que busca-se apropriar-se de certos espaços da cidade.” (Ibid., p.63). 20

Em entrevista ao grupo Contra Filé. In: MUSSI, 2012, p. 133.

Page 44: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

44

dinheiro para participar do mercado, ou que participa de relações muito mais informais e irregulares.

Exemplos mundo afora não faltam em relação aos grandes empreendimentos de city

marketing21: Barcelona, Paris, Nova York, Berlim, Bilbao, além da remodelação de centros

históricos nas cidades brasileiras. São Paulo e Buenos Aires também incorporaram vários desses

empreendimentos. Estes locais configuram a exploração do capital simbólico em torno da

imagem de uma cidade forte e positiva, que pode conquistar sua inserção no circuito

internacional. Preservação dos patrimônios históricos que interessam ao turismo e à

especulação imobiliária, construção de gigantescos centros culturais, investimentos massivos

em arquitetura espetacular, remodelações urbanas para realocar populações pobres para as

periferias e grandes eventos esportivos são algumas das estratégias da “cidade-mercadoria”.

Já que o capitalismo em sua atual fase opera com a ideia de que os processos culturais podem

ser não apenas reflexo do sistema econômico, mas também seus protagonistas, a atividade

econômica de forma geral está declaradamente preocupada com qualquer sistema que produza

sentidos estéticos ou de comunicação. E a cidade é um dos mais importantes sistemas, pois é

neste espaço que se dão as relações humanas e as ricas e variadas trocas culturais. Como

emblema máximo destes desdobramentos históricos está o consumo do próprio espaço. Não

interessa apenas renovar as cidades, mas vendê-las.

Um dos desdobramentos mais perversos de todo este processo também tem sido a “[...]

despolitização da cidade e seus cidadãos”, explica Sanchéz (2003, p. 68). Segundo a autora, a

política do marketing da cidade seduz governos e populações e acaba provocando a perda da

identidade, da história, da construção da cidadania, já que o planejamento prevê o status

internacional, utilizando pastiches urbanos e caricaturas arquitetônicas. Surge uma “cidade-

coisa” (SANCHÉZ, 2003), que deve ser vendida por meio do espetáculo, sistema que dissolve o

espírito crítico e reforça a alienação social. “Em lugar do cidadão formou-se um consumidor,

que aceita ser chamado de usuário” (SANTOS, 2000, p. 13).

Este cenário se agrava em países subdesenvolvidos22, como o Brasil e a Argentina, o que é

comprovado pela extensa gama de problemáticas levantadas pelo geógrafo Milton Santos a

21

Há verdadeiros manuais de city marketing que procuram mostrar as vantagens dos investimentos privados,

parcerias na gestão urbana e maximização da eficiência da urbes. No caso da América Latina, são reproduzidos

os mesmos valores globais, inclusive, colocados em prática por empresas internacionais (SÁNCHEZ, 2003). 22

Apesar do termo ser criticado como anacrônico, esta autora ainda acredita e reproduz a vertente que o defende,

inclusive, como pode ser visto em Santos (2000). O Brasil é subdesenvolvido, e não está “em desenvolvimento”,

Page 45: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

45

respeito das formas de vida não-cidadãs, dos cidadãos mutilados de seus direitos mais

elementares. O espetáculo montado para a “cidade-mercadoria” contou com o escapismo das

elites e o esvaziamento dos movimentos contestatórios populares (este último, por uma série

de fatores 23). Como comprova Gorelik (2013, p. 191, tradução nossa) ao descrever Buenos

Aires:

O coração metropolitano de Buenos Aires se aproxima de uma modificação política de seu status – a autonomia da Capital – em uma situação urbana que poderíamos definir como de colapso: se trata de uma “falha estrutural” que fraturou transversalmente os diferentes níveis da cidade: o econômico, o social, o político e o cultural. A crise em cada um desses níveis é inocultável: crise das infraestruturas e do transporte; crise social – empobrecimento da sociedade e retirada do estado -; crise institucional e crise das concepções da cidade e dos instrumentos de intervenção pública. Cada uma dessas crises tem seus motivos e sua história, relativamente autônomos, porém o certo é que sua somatória quantitativa desencadeia uma nova instância, qualitativa, que pode se descrever como colapso.

Como ferramentas para manter o ordenamento social e silenciar vozes dissonantes estão os

meios de comunicação, as estratégias de marketing, enfim, os “aparelhos de produção

simbólica” (BOURDIEU, 1974, ps. 99-104), que produzem sínteses e imagens da retórica oficial.

Verdadeiras ofensivas publicitárias são lançadas para promover a imagem da cidade enquanto

projeto, criando-se “referências iconográficas do poder” (SÁNCHEZ, 2003, p. 124) que

acompanham os processos de reestruturação urbana. Estas estratégias entendem cidadãos

como consumidores; e transeuntes nas ruas como espectadores passíveis em aceitar tudo o que

lhes é imposto, inclusive, imagens.

Deste ponto de vista, é possível pensar em uma “[...] perda do sentido da cidade” (CANCLINI,

1997, p. 287), que estaria relacionada às dificuldades em se realizar trabalhos coletivos não

rentáveis (e mais uma vez frisamos aqui que não há comunidades e sim favelas):

Em uma época em que a cidade, a esfera pública, é ocupada por agentes que calculam tecnicamente suas decisões e organizam tecnoburocraticamente o atendimento às demandas, segundo critérios de rentabilidade e eficiência, a

como se apregoa por aí. O mesmo vale para a opinião desta pesquisadora em relação ao termo “favela”, que

passou a ser chamada pela mídia de “comunidade”, seguindo a cartilha do politicamente correto. Em nossa

opinião, favelas são favelas. 23

Entre eles: a) crises econômicas perenes, cuja sobrecarga de trabalho impede o aproveitamento do tempo livre

para o engajamento em causas sociais; b) comportamento demagógico e burocrático das municipalidades, que

dificultam as organizações em suas ações efetivas. (SOUZA, 2000, ps. 145-164)

Page 46: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

46

subjetividade polêmica, ou simplesmente a subjetividade, recolhe-se ao âmbito privado. O mercado reorganiza o mundo público como palco de consumo e dramatização dos signos de status. As ruas tornaram-se saturadas de carros, de pessoas apressadas para cumprir obrigações profissionais ou para desfrutar de uma diversão programada, quase sempre conforme a renda econômica. (CANCLINI, 1997, p. 288)

Neste sentido, até mesmo a arte teria também suas limitações, como aponta Canclini (1997,

p. 338): “Espera-se que os espectadores respondam às supostas ações ‘conscientizadoras’ com

‘tomadas de consciência’ e ‘mudanças reais’ em suas condutas. Como isso não acontece quase

nunca, chega-se a conclusões pessimistas sobre a eficácia das mensagens artísticas”.

1.3 Espaço público versus espaço privado: por uma “condição urbana” de resistência à

lógica oficial

É importante discutirmos aqui alguns sentidos do termo espaço público, uma vez que mais

adiante esta pesquisa tratará do termo arte pública. Afinal, existe um espaço realmente público

na cidade? A noção de espaço público que entrou em voga a partir dos anos 1960, no seio do

pensamento urbanístico mundial como resposta ao declínio das teorias modernistas sobre a

cidade funcional 24, continuou sendo contraditória, uma vez que não ocorreram mudanças

significativas em relação à apropriação dos espaços públicos pelo público, o que coloca em

questão a pertinência do termo “espaço público”.

Como visto anteriormente a respeito da construção da “cidade-mercadoria”, com a tendência

geral à desterritorialização, perde-se o sentido de pertencimento a dado espaço real,

implicando em uma perda da relação natural com territórios geográficos25. Arantes (1993, p.97)

24

Devemos lembrar que há todo um panorama de crítica ao urbanismo moderno. A começar pelo Team X, nova

geração de arquitetos que se declarou durante o congresso do CIAM IX (Congresso Internacional de Arquitetura

Moderna), em 1953, de forma crítica à plataforma de Le Corbusier. O ponto principal desta crítica era a busca da

humanização e da identidade das cidades contra a planificação moderna, a grande escala e a autoridade do

Estado. Os participantes da Internacional Situacionista propunham ideias semelhantes (a heterogeneidade e a

complexidade contra a racionalidade e funcionalidade moderna), mas eram ainda mais radicais. 25

Entretanto, a arquitetura, com o movimento contextualista nos anos 1980, passou a questionar sobre como se

deveria exercer a profissão diante deste novo contexto. A discussão se dava em torno da conclusão de que o

racionalismo modernista, que tratava o espaço como algo abstrato, resolvível em planificações urbanísticas,

negligenciara os aspectos subjetivos da cidade. Descuidou-se da “[...] cidade enquanto ‘obra’, ao submetê-la aos

ditames da produção material” (SANTOS, 2006, P. 466). Assim, a cidade passou a ser pensada em seu

contextualismo material e simbólico, de onde emanam complexas teias de relações sociais. Apesar desses novos

parâmetros, ainda persistem as noções abstratas, como afirma Canton (p. 26, 2007): “Noções tradicionais de

público e privado se desfazem na constituição dos espaços, e o não-lugar toma corpo como território de

Page 47: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

47

aponta que as concepções sobre “espaço público” acabaram se tornando apenas uma espécie

de “peneira neo-iluminista de antigos argumentos conservadores”, isto é, não houve uma

ruptura dos ideais de planejamento urbano desde o século XIX. A cidade segregada, limpa e

organizada de ontem transvestiu-se hoje na cidade espetacular, planejada por políticas de

marketing. E qual seria o sentido hoje da expressão “espaço público”? É possível haver vida

pública nas cidades contemporâneas, que são segregadas, muradas, vigiadas? Em que espaços

se dão as ações contestatórias à ordem oficial?

Dentro do contexto de Buenos Aires, Gorelik (2008) apresenta dois exemplos interessantes

para ilustrar as diferentes dimensões do espaço público: 1) A criação do santuário da República

de Cromañón, na Rua Bartolomé Mitre, próximo da Plaza Once. Trata-se de um quarteirão no

distrito comercial e em um dos nós mais densos de transferência de transporte, que permanece

fechado desde 30 de dezembro de 2004, quando ocorreu o incêndio na boate que deu o nome

ao santuário, tragédia que matou 193 pessoas, a maioria adolescente. 2) A criação do Parque

Micaela Bastidas, em Puerto Madero, nos anos 90.

Então, no primeiro caso, surge a perspectiva de que o espaço público é o local da ação

política, do encontro com o outro para a construção da diferença. No segundo caso, encontra-se

um espaço de representação e não de ação:

O que essas oposições assinalam, na verdade, é o conflito inerente na definição de espaço público. Trata-se de algo óbvio e evidente, mas que não costuma ser tematizado. E segundo o parecer que engloba seu todo, o espaço público converte-se no contrário do que deveria ser como categoria: no lugar de fazer presente o conflito, numa categoria tranquilizadora, num fetiche. (GORELIK, 2008, p.192)

Assim, para se entender a ideia de espaço público pode-se recorrer à ideia de “lugar

praticado” 26 (MONGIN, 2009, p. 36), aquele que remete a condição urbana à ação, ao conflito,

à pluralidade. Por meio deste conceito, Mongin (2009, p. 37) explica que a cidade permite um

entrelaçamento entre o sujeito individual, “[...] desfrutador de uma experiência corporal

sempre reinventada”, e o coletivo, público, organizado. Estas duas dimensões nunca estão

radicalmente separadas, e sim em um movimento dialético constante. Desta forma, pode-se

deslocamento incessante.” 26

Encontramos também a afirmação: “[...] o espaço é o lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida

por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido

pela prática do lugar constituído por um sistema de signos – um escrito.” (CERTEAU, 1994, p. 202)

Page 48: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

48

considerar que: “A experiência urbana é multidimensional, ela desenvolve um processo poético,

um espaço cênico e um espaço político; ela orquestra, portanto, relações originais entre o

público e o privado.” (MONGIN, 2009, p. 39) 27.

Gorelik (2008) explica as origens desse caminho de valorização do espaço público, como

categoria política e como protagonista da transição democrática:

Naturalmente, todo esse processo de descobrimento do espaço público não pode desprender-se da experiência de ocupação do espaço público urbano no final da ditadura e começo da democracia, em combinação – mais arendtiana do que habermasiana – de artes (teatro na rua, recitais massivos, arte urbana) e política (os protestos dos organismos de direitos humanos, de modo muito especial), em que a celebração urbana democrática parecia contestar, nos acontecimentos, a obsessão da ditadura pela limpeza e a ordem na cidade. (GORELIK, 2008, p. 197)

Portanto, na cidade há sempre espaço para ações que não obedecem à lógica oficial da

“cidade-mercadoria”. Elas parecem resgatar um sentido de lugar, de experiência urbana, o que

conduz à necessidade de luta por um sentido para o espírito do urbano. Tratam-se de processos

constitutivos de sujeitos coletivos que “[...] expressam maneiras de viver e reapropriações da

cidade afastadas das previsões da ordem urbana promovida pela imagem oficial” (SÁNCHEZ,

2003, p. 123).

Este é o contexto do que entendemos como uma “condição urbana” na qual ocorre a arte

urbana. O termo dá título ao livro de Mongin (2009), no qual este pensador esquadrinha a

“condição urbana” na contemporaneidade por meio de um olhar psicanalítico-fenomenológico

e até mesmo afetivo. Esta noção de “condição urbana” foi apropriada por esta pesquisadora

para que se possa entender a cidade e a arte produzida na cidade a partir desta sua condição,

isto é, de uma experiência urbana plena e até mesmo física, segundo a qual a cidade é a

expressão máxima do homem e sua cultura na atualidade.

A discussão pode ser estendida para o campo da Sociologia da Cultura e suas considerações

acerca das relações flexíveis de poder, que também podem ser comprovadas no panorama da

cidade entendida em sua “condição urbana” humanizada. Como afirma Santos (1994, p. 103), é

preciso “[...] conceber a cultura como articulação entre o saber constituído e a experiência

existencial” (esta autora recorre ainda à noção de “habitus histórico”, definida por Pierre

27

O autor enfatiza a diferença entre o público e o privado desde a cultura clássica grega, para a qual havia uma

cisão acentuada entre as duas esferas. Na contemporaneidade, no lugar desta dicotomia, a experiência urbana

tende a uma abertura, a uma dialética interminável entre o público e o privado.

Page 49: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

49

Bourdieu e que trata dos seguintes termos: o produtor cultural - o artista, o intelectual, por

exemplo - produz uma visão de mundo que se reflete no cotidiano por meio da produção de

bens simbólicos, o que implica na determinação da existência da formação de uma consciência

coletiva). A autora também aponta o pensamento de Michel de Certeau a respeito de uma

cultura dinâmica, que não se restringe à dualidade dominante-dominado. Lança mão do termo

“ocasiões”, onde há reservas simbólicas por meio das quais os sujeitos envolvidos em uma

cultura popular podem criar novas linguagens, inclusive, contestatórias. Cria-se o que Santos

(1994, p. 107) chama de “contrapoder”, no qual consumidores são praticantes e produtores, e

“práticas emancipatórias”. Assim, temos que: “[...] para o entendimento dos jogos de

dominação e resistência simbólica se vão exigindo esquemas interpretativos cada vez mais

abertos e flexíveis, capazes de contemplar um articulado de vários níveis de relações” (SANTOS,

1994, p. 111).

Diante dessas considerações, as manifestações de arte urbana resgatam algum sentido para a

cidade contemporânea, cuja capacidade de organizar o espaço tradicional entrou em total

conflito com as novas transformações estruturais e culturais. A metrópole se converteu em uma

nebulosa urbana – feita de modelos complexos e imprevistos –, e as iniciativas artísticas podem

transformar o espaço da cidade em experiência concreta.

Os artistas de rua lamentam o rápido desaparecimento do espaço público. A ideia de que uma empresa pode comprar a fachada de um edifício, a constatação de que os painéis publicitários estão a reproduzir-se como coelhos e de que a arte apoiada com fundos públicos é frequentemente o resultado de compromissos que reduzem o impacto e a força da expressão artística, corroem a alma do artista de rua. Com cada trabalho de arte pública gratuita, reclamam uma parte da cidade que foi vendida a anunciantes. (McCORMICK, 2010, p.11)

A arte urbana vem mostrando que o olhar saturado do cotidiano, anestesiado e eliminado em

sua subjetividade, pode ser remodelado com a experiência artística no espaço da urbe,

revitalizando a relação de indivíduos com o ambiente ao seu redor ou mesmo estimulando a

participação da sociedade no processo de recriação do espaço público. Como afirma Knauss

(2009, p.19): “De modo geral, é possível dizer que a luta pelo direito à cidade redefiniu o papel

das imagens urbanas. Nos dias atuais, a arte pública participa da afirmação de identidades

urbanas, de poderes locais e de forças comunitárias”. Esta “condição urbana”, mais humana e

flexível, aberta às irrupções imprevistas do cotidiano, consiste algo real frente às

Page 50: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

50

representações fictícias que compõem o imaginário coletivo, cujos conteúdos são ditados pelo

poder. É neste sentido que:

A arte apresenta-nos contra imagens. Diante dessa abstração econômica que desrealiza a vida cotidiana, arma absoluta do poder tecnomercantil, os artistas reativam as formas, habitando-as, pirateando as propriedades privadas e os copyrights, as marcas e os produtos, as formas museificadas e as assinaturas de autor. (BOURRIAUD, 2009b, p. 110)

Esta fotografia registrada na região da avenida paulista (Figura 10) corrobora a ideia de que

uma “condição urbana” verdadeira assenta-se sobre espaços praticados que se mostram

realmente públicos, simplesmente por serem apropriados de forma natural pelas pessoas, no

caso, pichadores. Ao lado do banner que evoca o padrão de beleza publicitário (uma modelo

loira, magra e feliz por estar usando sua calça jeans), está o portão que serviu como suporte

paralelo para ser preenchido por assinaturas coloridas. Coincidentemente, as características

semelhantes dos dois suportes (formato retangular e dimensões parecidas) igualam sua

presença no espaço urbano, colocando lado a lado duas linguagens opostas: uma, que evoca a

“cidade-mercadoria” interessada em criar fetiches urbanos; a outra, que evoca a “cidade-

utopia”, exigida por aqueles que estão à margem desse processo. É nesta paisagem paradoxal

que repousa a riqueza do imaginário urbano contemporâneo, como mostra Certeau (1995) ao

contrapor a sedução e a contestação das linguagens murais:

Uma paisagem de cartazes organiza nossa realidade. É uma linguagem mural com o repertório de suas felicidades próximas. Esconde os edifícios onde o trabalho foi encerrado, cobre os universos fechados do cotidiano; instala artifícios que seguem os trajetos da faina para lhes justapor os momentos sucessivos de prazer. Uma cidade que constitui um verdadeiro “museu imaginário” forma o contraponto da cidade ao trabalho. (CERTEAU, 1995, p. 46)

Outra imagem (Figura 11), uma pequena frase estampada com estêncil (“Errar é urbano”),

mostra que até mesmo as mais sutis interferências podem modificar o cotidiano. O Breve verso

poético, porém em rosa choque, nos surpreendeu no ato de atravessar a rua, como um haikai

urbano ou um poema concreto que tanto nos remete à forte tradição da poesia concretista

paulistana. Revela que mesmo pequenos detalhes podem ser modos de intervenção no espaço

público, estabelecendo “[...] descontinuidades significativas do ponto de vista cultural, mesmo

que se perfazendo de modo muito discreto, como tem sido a característica de várias

Page 51: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

51

intervenções artísticas de caráter efêmero” (PALLAMIN, 2002, p. 109). Esse pequeno estêncil

nos levou ainda a uma ideia de “microintervenção”, que vai ao encontro do que Jacques

(2008)28 define como uma micro resistência ao processo de espetacularização da cidade.

Coincidentemente, a autora chama de “errância urbana” (e o poema diz que “errar é urbano”) a

proposta de experimentar a cidade a partir dessa relação corporal e localizada, uma corpografia

errante, isto é, uma experiência corporal do cotidiano, como fez o autor ou autora desse

poema.

1.4 São Paulo e Buenos Aires: “cidades-suporte”

São Paulo e Buenos Aires estão entre as maiores metrópoles latino-americanas e

apresentam uma realidade ibero-americana comum. Ambas encerram-se sob o signo da

imagem. Percorrer suas ruas significa adentrar em uma arena urbana marcada por signos

embaralhados, em profusão, que assaltam o transeunte a cada instante, atordoado com a

coexistência de monumentos históricos e aparatos imagéticos contemporâneos. Com uma

antropologia da contemporaneidade baseada, entre outros métodos, na flânerie e no fetichismo

visual, Canevacci (2004), que partiu de pesquisa etnográfica feita nas ruas de São Paulo,

constatou que: “Nossa cultura é uma cultura feita e descrita com super-signos, e na qual a assim

28

JACQUES, Paola Berenstein. Corpografias urbanas, Arquitextos, ano 08, fev. 2008. Disponível:

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165. Acesso em: 25 jun. 2013

Figura 10: São Paulo, 2013. Fonte:

Alessandra Simões

Figura 11: São Paulo, 2014. Fonte:

Alessandra Simões

Page 52: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

52

chamada sign-flation - ou seja, a inflação dos signos - produz um reembaralhamento

comunicativo, após o colapso do poder dos símbolos” (CANEVACCI, 2004, p. 185).

Não se trata de abordar aqui uma interpretação sociológica ou antropológica dessas cidades,

mas sim lançar mão de um olhar comunicativo e estético, que leve em consideração os fatores e

as características que fazem destas localidades “cidades-suporte” para a nova arte urbana. São

paisagens que corroboram a ideia de que o ambiente urbano não é formado apenas por suas

edificações, e que compreender suas visualidades se tornou parte intrínseca no processo de

construção da imagem destes lugares. A ocupação formal e informal dos espaços, os marcos

culturais e referenciais, a publicidade, as áreas verdes, a sinalização, as silhuetas, o tráfego, o

mobiliário, os jogos entre luzes e sombras são alguns elementos que, além de compor a

paisagem urbana, inter-relacionam-se e interferem na cidade. São “cidades-suporte” que, além

da arte, têm seus equipamentos marcados por uma explosão visual de pichações, adesivos,

cartazes, etc., cujas mensagens não têm nada a ver com a publicidade oficial. (Figuras 12 a 16)

São cidades cujos horizontes sobrepõem várias camadas de materiais e inscrições, depósitos

em que “[...] se acumulam vestígios arqueológicos, antigos monumentos, traços de memória e o

imaginário criado pela arte contemporânea” (PEIXOTO, 2004, p. 13). É curioso notar que uma

cidade pode se comunicar até mesmo “por intermédio das suas cores [...]”, como afirmou

Canevacci (2004, p.199). Assim, sobre as “cidades-cinzas” definidas pelo conceito de “imaginário

urbano” desenvolvido pelo pesquisador Armando Silva, se sobrepõem cores, imagens, detalhes

que trazem outros significados para a metrópole. Outra curiosidade: há quem considere São

Paulo uma cidade verde (informação pessoal) 29.

29

Em entrevista a esta autora (em 30//07/2014), a prolífera arquiteta paulistana Anna Dietzsch, que vem

participando de diversos projetos coletivos em São Paulo e Nova York, afirmou que muitos estrangeiros acham

São Paulo uma cidade arborizada (no fechamento deste projeto a entrevista ainda não havia sido publicada; sua

publicação estava prevista para o volume 23 da revista Docol Magazine (www.docol.com.br/revista). Por

experiência própria, esta pesquisadora teve a mesma sensação. Depois de passar seis meses em Nova York, de

agosto de 2000 a janeiro de 2001, e voltando a São Paulo em pleno verão, a cidade parecia bem mais verde do

que a capital nova iorquina.

Page 53: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

53

São Paulo (2012), a “cidade-suporte”

que, além de muros, têm seus

equipamentos ocupados. Bancas de

revista, telefones públicos, caixas de

luz, postes e lixeiras; tudo se torna

suporte para a arte, em labirintos de

imagens e signos. Fonte: Alessandra

Simões.

Figura 12 Figura 13

Figura 14 Figura 15

Figura 16

Page 54: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

54

Como se pode verificar no gráfico publicado no livro “Buenos Aires Imaginada” (Figura 17),

tanto São Paulo como Buenos Aires são consideradas “cidades-cinzas”. Ao longo do livro, pode-

se verificar que a ideia de cor muda entre cada percepção individual apontada pelos

entrevistados. Em Buenos Aires, os tons escuros predominam, são vinculados ao lixo, à poluição,

à condição social e financeira dos habitantes e até mesmo a estados emocionais associados à

mesma ideia de melancolia do Tango. Exemplos como o do bairro La Boca (Figura 18) são

exceções. Além de evocar a suposição histórica de que imigrantes pintavam as construções de

madeira e chapas de ferro com restos de tintas dos barcos, o bairro transformou-se em um

chamariz turístico dentro do contexto do “urbanismo cenográfico” que “[...] com a cultura como

recurso, contribui para a estetização e a imposição de certa beleza” (LACARRIEU; PALLINI, 2007,

p. 122, tradução nossa). Por outro lado, aponta-se que a gestão da cor na cidade pode também

ser resultado de uma construção social coletiva, como no caso do mural na rua Grito de Acensio

(no limite entre Parque Patricios e Pompeya) realizado por jovens do movimento cultural Pasión

Quemera, e os murais feitos por ativistas do MTL (Movimiento Territorial de Liberación). Ou

ainda como o artista Marino Santa María, que cobre diversos muros e fachadas da cidade com

belos mosaicos de cerâmica. Um de seus projetos mais ambiciosos foi a realização de mosaicos

para as fachadas das residências da rua Lanín, “reinaugurada” em 2001 (Figura 19). A antiga

aparência cinza do espaço urbano transformou-se em uma área de elevado conteúdo artístico,

incorporando uma paleta de cores contrastantes e formas abstratas sobre cerca de 40 fachadas

de casas, ao longo dos três quarteirões.

São Paulo e Buenos Aires são cidades bombardeadas pela informação visual, cujas paisagens

são organizadas por cartazes, outdoors, pinturas murais, edifícios simbólicos, pessoas, vitrines,

etc. São informações que compõem um discurso urbano, que “[...] se mostra em todas as ruas,

somente interrompido pelas fendas das avenidas [...]”, como afirmou Certeau (1995, p. 46). O

caminhar se transforma em um ato de percorrer corredores de signos. Este exagero mostra que

falta espaço – “mais fendas”, como fala Certeau - e tempo para o cotidiano, afinal a cidade é

uma metáfora da vida contemporânea, essencialmente frenética. "O espaço entre as colunas é

mais importante do que as colunas", afirma Gillo Dorfles, ao usar a arquitetura como metáfora

para lembrar da importância da pausa. 30

30

Entrevista. Disponível: http://www.publico.pt/temas/jornal/como-se-olha-a-arte-e-a-vida-quando-se-tem-101-

anos-23193218. Acesso: 14 abr. 2014.

Page 55: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

55

Figura 17: São Paulo e Buenos Aires: cidades imaginadas cinzas. (LACARRIEU; PALLINI, 2007, p.

275).

Figura 19: Buenos Aires, a cidade real

colorida pelo artista Marino Santa

María. Buenos Aires, 2012. Fonte:

Sandro Monari.

Figura 18: O bairro La Boca. Buenos

Aires, 2012. Fonte: Sandro Monari.

Page 56: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

56

São Paulo e Buenos Aires se tornaram “cidades-suporte”, labirintos de imagens e signos, com

grafias próprias, escritas cada uma a sua maneira, porém com histórias, estilos e linguagens em

comum. Como afirma Silva (2011, p.XXIV):

[...] Cada cidade tem seu próprio estilo. Se aceitarmos que a relação entre a coisa física, a cidade, sua vida social, seu uso e representação, suas escrituras, formam um conjunto de trocas constantes, então vamos concluir que em uma cidade o físico produz efeitos do simbólico: suas escrituras e representações. E que as representações se façam da urbe, do mesmo modo, afetam e conduzem seu uso social e modificam a concepção do espaço.

A capital portenha, por exemplo, apresenta uma peculiaridade interessante: o fileteado.

(Figura 20) Produzido originalmente por imigrantes italianos no final do século 19, este estilo de

pintura publicitária/decorativa, com espirais de cores intensas, motivos florais e caligrafia

rebuscada (uma linguagem próxima à Art Nouveau), foi aplicado inicialmente em ônibus,

carrinhos de mão e furgões de entrega. Porém, foi proibido pela ditadura. Atualmente, há uma

verdadeira febre deste estilo, estampado em vitrines de lojas, edifícios residenciais e

institucionais, em diversos bairros da cidade, inclusive, em contraste com poluidores visuais

como placas e lixeiras.

Assim, no imaginário visual da capital portenha, fica marcada sua face extremamente

elegante, cuja arquitetura em estilo predominantemente Art Deco, em tantos bairros que

receberam famílias imigrantes italianas e espanholas, parece combinar com as milongas ao som

do tango, típicos da cultura local. Porém, se por um lado há este imaginário estético, não se

esconde o lado político de uma cidade segregada e pontuada em suas margens pelas “villas

miseria”. Esta nuance revela-se pela presença massiva de grafites de cunho político, muitas

“verborragias visuais”, e sinalizações a respeito da recente ditadura que assolou o país. Pisar

sobre um tapete de cerâmica e latão que lembra o nome de um desaparecido político,

exatamente na pausa que o pedestre tem de fazer antes de atravessar um cruzamento,

transforma esta pausa em um momento reflexivo, e assim se quebra o automatismo do ritmo

da metrópole. (Figura 21) Enquanto isso, bairros populares como San Telmo, La Boca e Palermo

servem de tela para as mais variadas imagens, desde os tradicionais fileteados às imagens

pintadas por grandes artistas do grafite internacional, compondo uma cidade vibrante e

colorida.

Page 57: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

57

Figura 20: Em Buenos Aires

(2012), a memória viva se

revela na tradição do

fileteado. Fonte: Sandro

Monari.

Figura 21: E nas placas no chão que recordam os desaparecidos políticos. 2012.

Fonte: Alessandra Simões.

Page 58: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

58

Muitas frases e imagens são feitas com a técnica do estêncil, máscara vazada que permite a

reprodução de sua matriz sequencialmente e que tem sido bastante utilizada pelos artistas

devido a sua praticidade. Com inúmeras variações dimensionais e cromáticas, se torna uma

alternativa artística, aos moldes do “faça você mesmo”, já que é de confecção bastante simples,

usabilidade e portabilidade (a técnica será analisada no terceiro capítulo sob a ótica da ideia de

reprodutibilidade nas artes). Como afirma Indij (2011, p. 9, tradução nossa), a respeito da

expressiva presença do estêncil em Buenos Aires, esta linguagem é uma forma de “[...] chamar

atenção do leitor-pedestre, intervindo no automatismo e na circulação cotidiana. Se tratam de

gritos, de onomatopeias visuais que pretendem provocar uma reação espontânea em forma de

riso, de reflexão [...]”. O autor lembra ainda que a palavra estêncil vem do latim “scintilla”, que

significa centelha, fagulha. Assim, associa esta ideia ao fato de esta arte ser uma provocação,

que muitas vezes se dá entre os próprios artistas, quando estes se comunicam por meio de

palavras e imagens fixadas nos muros da cidade, respondendo uns aos outros, em um ciclo

entrópico.

É comum que as imagens reproduzidas pela técnica do estêncil na cidade refiram-se a

símbolos próprios do sistema capitalista invertendo-os, criando paródias e pastiches, como no

caso desta imagem (Figura 22), “Conserve All Arts”, em referência ao tênis Converse All Star,

ícone da imposição estadunidense de modelos culturais. Esta operação de rompimento com a

normalidade – por meio de um reordenamento das letras e imagens - resulta em recursos como

o inesperado, o absurdo e o humor para o espectador-cidadão. Afinal, ícones recontextualizados

promovem uma “[...] confusão que subverte o burocrático e o autorizado”, afirma Indij (2011, p.

12, tradução nossa). Outro fenômeno notado por esta pesquisadora em relação ao uso do

estêncil é a recorrente utilização de símbolos fortemente ligados à identidade nacional. (Figuras

24 e 25)

Há ainda uma peculiaridade latino-americana a respeito do papel da escritura urbana nas

cidades latino-americanas, como aponta Rama (1984) ao enfatizar a importância da letra e dos

atores letrados na formação de uma cultura urbana nos primórdios da América Latina. Segundo

ele, a palavra escrita seria a única válida, em oposição à palavra falada, que pertencia ao reino

do precário. Assim, o grafite poderia ser interpretado como uma tentativa de contestação da

Page 59: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

59

valência da escrita, mesmo que clandestina, “[...] uma apropriação depredatória da escritura

[...]” (RAMA, 1984, p. 64) 31. (Figura 27)

31

Rama (1984) chega a definir como o primeiro registro de um grafite latino-americano o que aparece na crônica

de Bernal Díaz del Castillo, em sua “Historia verdadera de la conquista de la Nueva España”. Ali está relatado,

no motim de Tenochtitlán (a derrota azteca de 1521), que alguns capitães utilizaram as paredes brancas dos

palácios que alojaram Cortés, em Coyoacán, para manifestar seus protestos em relação às más condições a que

estavam submetidos. Curiosamente, na Argentina, pode-se constatar ainda a utilização de grafites já no final do

século XIX e início do XX, divulgada em literatura singular dedicada ao tema. O antropólogo alemão Robert

Lehmann-Nitsche, estudioso da cultura popular e folclore argentinos e sulamericanos, publica em 1923 (sob o

pseudônimo de Victor Borde) o livro “Textos eróticos do Rio da Prata. Ensaio lingüístico sobre textos

sicalípticos das regiões do Prata em espanhol popular e gíria recolhidos, classificados e analisados pelo autor”,

no qual constam inscrições em banheiros públicos de caráter erótico e irônico. Em 1904, José Maria Ramos

Mejía publicou em Buenos Aires o livro “Os simuladores de talento nas lutas pela personalidade e a vida”,

estudo psicológico de tipos urbanos no qual são citadas inscrições anônimas nos muros da cidade. Não apenas

suportes para frases entre enamorados, os muros de Buenos Aires eram plataforma para todo tipo de linguagem:

insultos, palavras sem nexo, propagandas, desenhos.

Figura 22: Paródia aos ícones do

capitalismo (a marca de tênis). Buenos

Aires, 2012. Fonte: Alessandra Simões.

Figura 23: Paródia aos ícones do

capitalismo (o código de barras). Buenos

Aires, 2012. Fonte: Alessandra Simões.

Figura 24: O saci urbano em São Paulo;

referência à cultura popular. 2012. Fonte:

Alessandra Simões.

Figura 25: Maradona nas ruas de Buenos Aires; a

identidade nacional. 2012. Fonte: Alessandra

Simões.

Page 60: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

60

Algumas diferenças físicas distanciam São Paulo de Buenos Aires, como o maior espraiamento

urbano e uma menor malha histórica32. Porém, ambas são comumente identificadas com a ideia

de caos urbano:

32

Gorelik (2013, p.84) explica que o caráter europeu de Buenos Aires se tornou mito, com raízes no processo de

reurbanização no século XIX de inspiração francesa, que procurou equilibrar as funções históricas (o Congresso

na av. Córdoba), as adequações ao sistema capitalista (os boulevards que proporcionavam a circulação de

pessoas e mercadorias), a separação em funções (com a criação de distritos industriais) e a higiene (com parques

que rodeavam a cidade criando um cinturão de saúde). O autor cita a impressão de viajantes durante o

Centenário da cidade, que diziam que a primeira impressão que se experimentava em Buenos Aires é a de que se

chega a uma grande cidade europeia. A propósito, na virada do século XX, quase metade da população era

estrangeira. Porém, desde os anos 1970, o autor afirma que esse mito tem ficado na nostalgia. A norte-

americanização da cidade se deu com a ditadura. E na contramão desta europeização houve uma latinização, a

partir dos anos 1960, não como projeto mas como “destino”, que proporcionou a insegurança, a blindagem

privada, a extinção do espaço público e a miséria crescente, manifestada explosivamente na crise de 2001.

Figura 26: Uso da técnica do estêncil é

mais recorrente em Buenos Aires do

que em São Paulo. Buenos Aires,

2012. Fonte: Alessandra Simões

Figura 27: Grafite como depredação

da escritura (RAMA, 1984). São

Paulo, 2012. Fonte: Alessandra

Simões

Page 61: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

61

São Paulo exorbita na dessemelhança no tempo e no espaço. O que ali ainda há pouco existia já não existe mais. Um mosaico colossal e fraturado, aparentemente, só aparentemente, desconexo. Caminha-se por essa cidade como por pequenos abismos. As imagens não se fixam, as arquiteturas não se fixam, têm algo do ritmo das edições televisivas, que mudam com a mesma rapidez com que delas nos esquecemos. (FARIAS, 2002, p. 245) Com exceção de alguns nós na zona norte, onde se mantêm inversões de modos mais tradicionalmente homogêneos, o que parece em Buenos Aires é uma justaposição de artefatos efêmeros com restos de infraestrutura obsoleta, tecido habitacional decadente, fábricas abandonadas, enormes vazios, habitações precárias nos interstícios e, de pronto, incrustações de novidade técnica ou social, com a trama invisível porém onipresente dos meios eletrônicos configurando novos recorridos, novas fruições, relações oblíquas com aquela paisagem. A cidade se aproxima de um patchwork em que cada fragmento libera seu sentido, no qual não predomina a diferença, mas o

contraste e a desigualdade. (GORELIK, 2013, p. 184, tradução nossa)

Essa ideia de caos urbano é simbolizada pela presença de um fenômeno que Canevacci (2004)

identificou como um “clássico da comunicação urbana”: os grafites e as pixações. O autor define

esta expressão como um estilo que se tornou verdadeiramente característico da capital

paulistana. Em homenagem à matriz multicultural e sincrética da cidade, ele define a escrita da

pixação como árabe-gótica, já que apresenta o arabesco, os rabiscos próprios da verdadeira

escrita árabe, com seus entrelaçamentos exagerados, que constroem cifras e bordados; e

quanto ao alfabeto gótico, este é feito de signos convexos e côncavos, de ângulos agudos, de

improvisadas acelerações. Assim, conclui:

Talvez seja devido a esta matriz obscura e misturada - simultaneamente árabe e gótica, quase o máximo da incompreensibilidade - que raramente se compreenda o sentido desses grafites. A explicação pode ser a mais simples possível: o que o escritor anônimo quer comunicar não são palavras, mas sim sua presença fantasmática, que pode atingir o alvo quando e onde queira, nas cornijas mais altas, nos edifícios mais elegantes, nas perspectivas mais vertiginosas. Porque o sentido do discurso consiste tão-somente em atestar sua existência anônima, a abstrata presença das pichações árabe-góticas. (CANEVACCI, 2004, ps. 203, 204).

Como afirmou Rama (1984), as cidades desenvolvem suas linguagens mediante duas redes

diferentes e superpostas: a física, apreendida pelo visitante comum; e a simbólica, que a ordena

e a interpreta. Neste segundo caso, em que se encaixa esta pesquisadora, procuramos buscar

leituras capazes de reconstituir uma ordem significante nestas cidades letradas. “Há um

Page 62: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

62

labirinto das ruas que só a aventura pessoal pode penetrar e um labirinto dos signos que só a

inteligência raciocinante pode decifrar, encontrando sua ordem” (RAMA, 1984, p.53).

São Paulo e Buenos Aires são verdadeiros museus a céu aberto, cidades pontuadas por artes

em toda sua paisagem, com muitas características comuns entre si. São “cidades-suporte” que

têm, por exemplo, espaços dedicados exclusivamente ao grafite, como determinados locais no

bairro La Boca, na capital portenha, e no bairro da Vila Madalena, em São Paulo. Por suas

peculiaridades urbanísticas, São Paulo apresenta maior número de obras de grande dimensão,

em locais de circulação viária intensa, como túneis e viadutos (por exemplo: viaduto da avenida

paulista, partes das avenidas nove de julho e 23 de maio). As obras de Buenos Aires estão

localizadas, em grande parte, em localidades de menor circulação viária, como fachadas de

edifícios e muros, e muitas em espaços acessados a pé, como praças.

Outra peculiaridade: Buenos Aires, em comparação com São Paulo, tem um número maior de

obras compostas apenas de palavras, geralmente, feitas em pequenos formatos com a técnica

do estêncil (o mesmo ocorre na capital paraguaia, Assunção33). Geralmente, são frases

criticando a imprensa e grandes corporações privadas, reflexo das diferenças entre os avanços e

retrocessos políticos dos países na América Latina. Como afirma Kozak (2004, p.98, tradução

nossa): “No caso da Argentina, a afirmação política do grafite não é alheatória nem

circunstancial. Portanto, [...] muitas vezes associada a frentes de resistência política – tem larga

tradição autóctone”.

Sobretudo, as imagens nas ruas de São Paulo e Buenos Aires se afirmam como uma

importante referência crítica em meio ao atordoamento de imagens que invadem as cidades

para reafirmar os valores capitalistas. Em Buenos Aires, por exemplo, o coletivo de artistas

bs.as.stencil se especializou em reproduzir, por meio da técnica do estêncil, imagens de

formigas. É comum encontrá-las em diversas partes da cidade, traçando trilhas entre cartazes

de propaganda, como que a destruí-los. Afirma Bourriaud (2009b, p.110):

Em nossa vida cotidiana, convivemos com ficções, representações e formas que alimentam um imaginário coletivo cujos conteúdos são ditados pelo poder. A arte apresenta-nos contra-imagens. Diante dessa abstração econômica que desrealiza a vida cotidiana, arma absoluta do poder tecnomercantil, os artistas reativam as formas, habitando-as, pirateando as propriedades privadas e os

33

Durante o programa de doutorado, esta pesquisadora também esteve em Assunção, onde produziu uma

pesquisa baseada na arte urbana local, resultando em publicação. SIMÕES, A. M. P. Arte urbana na América

Latina e o caso de Assunção. São Paulo: Revista Arte e Cultura da America Latina, Sociedade Científica de

Estudos de Arte (CESA), v. XXVI, 2012, ps. 101-112.

Page 63: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

63

copyrights, as marcas e os produtos, as formas museificadas e as assinaturas de autor.

Cidades como São Paulo e Buenos Aires comprovam que há uma relação corporal entre

cidadão e cidade, que nestas capitais se mostra pulsante, de forma física e presencial, bem

diferente das relações que se dão nas redes de comunicação, onde “[...] falta o exagero sedutor

de observar e ser observado”, afirma Canevacci (2003, p.43). Ou ainda segundo este autor: “[..]

olhar significa não somente olhar, mas também ser olhado. E a grande cidade desenvolve ao

máximo esta dialética [...]”. Essa ideia de uma fisicalidade presente na metrópole vai ao

encontro da categoria teórica criada para este trabalho, a de “cidade-suporte”, que remonta à

origem do termo “suporte” nas artes visuais e sua ligação com a materialidade da obra. Sejam

em suas mais variadas linguagens e técnicas, como será visto nos próximos capítulos, as obras

de arte realizadas na cidade fazem da cidade o seu suporte físico. Isso pode parecer paradoxal

quando se tratam de experiências estéticas nas quais se operam processos de

desmaterialização, como nas ações temporárias, uma das grandes tônicas da arte

contemporânea e de várias manifestações urbanas. Entretanto, mesmo as mais

“desmaterializadas” obras têm como objetivo o outro, o fruidor, o ser social que interage

(vamos trabalhar este conceito no terceiro capítulo), revelando assim as proximidades entre

arte e comunicação:

A assim chamada sociedade pós-moderna remultiplica geometricamente a comunicação urbana de interesse antropológico-cultural, porque destrói a distinção entre cultura de elite e cultura de massa. [...] O receptor não é unicamente um objeto, mas também um outro sujeito que se comunica e interage com uma fonte. A comunicação viaja nas duas direções. (CANEVACCI, 2004, p. 43)

É nesta democracia comunicacional que cidades pulsantes como São Paulo e Buenos Aires se

tornam cidades semelhantes. É no intervalo entre uma “cidade-mercadoria” e uma “cidade-

utopia” que surge a paradoxal ideia propagada entre as pessoas: “amo e odeio”, muito comum

em grandes metrópoles como São Paulo e Buenos Aires. “Como Jano, deus da mitologia grega e

bifronte com dois rostos contrapostos: um que olha para o pôr-do-sol e outro que o faz para o

amanhecer, nossa cidade está marcada por essa dualidade que a faz bela e agressiva, e ao

mesmo tempo fascinante e ofuscada, encantadora e odiável”, afirma Gorelik (2013, p.33,

tradução nossa) em relação a Buenos Aires.

Page 64: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

64

São Paulo e Buenos Aires apresentam várias semelhanças. Assistiram ao boom imobiliário que

revelou a cidade de negócios e serviços, com o deslocamento de centralidades para áreas

diferentes dos centros antigos, como a região da nova Avenida Faria Lima, em São Paulo. Ou

fizeram o caminho inverso, tornando antigas centralidades em novas atrações, como Puerto

Madera (enclave exclusivo de negócios e turismo de alto padrão, um dos bairros mais caros de

Buenos Aires). Surge ainda em ambas as cidades uma preferência por bairros “cults”,

anteriormente simpáticos a pessoas da área cultural ou acadêmica, como Vila Madalena e

Palermo Viejo. Este bairro (hoje subdividido pelas empresas imobiliárias em “Palermo Soho” e

“Palermo Hollywood”) é muito semelhante à Vila Madalena; e ambos estão agora sob a mira de

construtoras e incorporadoras, que lançam uma proposta de marketing voltada para uma

renovação “contemporânea e cultural”.

Especialmente nos últimos anos, essas cidades vêm revelando de forma significativa seus

contrastes por meio de movimentos populares e de jovens insatisfeitos com a desigualdade

social e com as políticas ditas “públicas” voltadas aos interesses do capital privado, com o

abandono das periferias, o favorecimento do uso dos automóveis e o descaso com o transporte

público e alternativo. “Hoje é absolutamente impossível pensar na produção do espaço urbano

metropolitano de São Paulo, por exemplo, sem levar em conta o papel dos movimentos sociais

urbanos” (CARLOS, 2013, p. 87).

Sobram exemplos: a Plaza de Mayo, principal centro político de Buenos Aires, está

constantemente ocupada por cartazes contestatórios. Há ainda o caso da remodelação do Largo

da Batata, em São Paulo, que passou por um processo de gentrificação que procurou elitizar o

local, retirando a vida que ali existia por meio da expulsão de ambulantes nordestinos.

Historicamente um ponto de comércio vívido e marcado pela multiplicidade humana, o local se

tornou um calçadão de concreto, isolado e sem usufruto público real. Diversas manifestações

populares e artísticas ocorreram no local, sob o tema “Ocupe o largo da Batata”, revelando

também a face de “espaço praticado” que reside ali ainda que como memória do descaso

público. Recentemente, outras diversas sublevações comprovam o dinamismo social da cidade,

como o movimento Passe Livre que, com o bordão “Por uma vida sem catracas”, tem

conquistado legiões de jovens em torno de justiça urbana e social. É interessante notar como

esses movimentos estão sendo constantemente acompanhados por manifestações artísticas.

No caso do Catraca livre, o grupo paulistano Contra-Filé reafirmou o ícone do movimento ao

colocar uma catraca de ônibus como monumento no Largo do Arouche. No caso de ocupações

Page 65: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

65

do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), imagens do artista Subtu foram feitas nas

barracas de lonas. Essas experiências comprovam que:

A função da arte é construir imagens da cidade que sejam novas, que passem a fazer parte da própria paisagem urbana. Quando parecíamos condenados às imagens uniformemente aceleradas e sem espessura, típicas da mídia atual, reinventar a localização e a permanência. Quando a fragmentação e o caos parecem avassaladores, defrontar-se com o desmedido das metrópoles como uma nova experiência das escalas, da distância e do tempo. Através dessas paisagens, redescobrir a cidade. (PEIXOTO, 2004, p. 15)

Page 66: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

66

CAPÍTULO 2: CONSTRUINDO UMA HISTÓRIA DA ARTE URBANA

2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

2.1.1 – Agrupando terminologias

Um dos objetivos deste trabalho é compor definições conceituais a respeito das terminologias

sobre a arte criada para espaços da cidade alheios aos processos de institucionalização da arte

(museus, galerias e institutos culturais, como exemplo). Para tanto, criamos um glossário, no

qual estão registrados em ordem alfabética os principais conceitos arrolados ao longo do texto

(principalmente neste segundo capítulo) e identificados pelo sinal de asterisco. Foi estabelecido

como mais conveniente o termo arte urbana* para definir, de forma geral e

independentemente da linguagem utilizada, a arte destinada a espaços abertos na cidade, ainda

que se possa lançar mão da mesma terminologia para designar a arte feita em espaços

fechados, porém de acesso público geral, como aeroportos, terminais rodoviários, etc. Assim, de

forma geral, a arte urbana significa uma arte fisicamente acessível a todas as pessoas, que

modifica a paisagem urbana ou que pode ser modificada por ela, seja de forma permanente,

sazonal ou temporária. Vamos utilizar com constância o termo “nova arte urbana” para definir

os processos atuais que se encaixam neste perfil.

Para compreender o conceito de arte urbana, que será investigado à luz das teorias da arte

contemporânea no terceiro capítulo, é preciso percorrer um histórico aprofundado das relações

entre arte e cidade. Assim, será traçada aqui uma cronologia da arte urbana, que servirá como

ponto de partida para uma reflexão posterior sobre suas características na atualidade.

Sobretudo, procuramos entender a arte urbana dentro da tendência geral da arte

contemporânea de dirigir a experiência estética para a expansão das relações entre arte e vida,

como afirma Archer (2001, p. 56): “Não apenas a arte deveria assemelhar-se a coisas comuns,

mas também o modo como o espectador a observa deveria ser baseado numa experiência

cotidiana”. Essa expansão foi identificada nos seguintes eixos temáticos, que serão mostrados

nas etapas históricas descritas neste capítulo e depois reafirmadas como características

constituintes da arte urbana contemporânea, no terceiro capítulo:

Page 67: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

67

A) As novas relações espaciais na arte a partir do Modernismo (principalmente o salto do

plano bidimensional para o tridimensional);

B) Arte como projeto social, que se expande para outros campos da vida, como o design, a

arquitetura e a psicanálise, relação esta que pode ser atestada nas propostas Concretistas e

Neoconcretistas brasileiras;

B) A ampliação da relação da arte com o espaço físico circundante e a experiência estética

fenomenológica propostas pelo Minimalismo;

C) A presença de signos e símbolos da sociedade urbana e capitalista, reforçando o aspecto

comunicacional da arte, influência inaugurada pela Pop Art;

D) A crescente participação do espectador na obra, fazendo com que este deixe de ser

observador distante para se tornar elemento constituinte do trabalho, o que pode ser

comprovado em diversas experiências como nos happenings* e nas performances*;

E) O papel político da arte, que pode ser visto em momentos-chave, como no Muralismo*

Mexicano e nas neovanguardas paulistanas e portenhas.

Será abordada aqui uma história da arte urbana a partir da modernidade, enfatizando que a

contemporaneidade ainda vive muitos reflexos culturais e sociais próprios daquele dado

momento na história. É preciso lembrar que a Teoria da Arte tem sido moldada

concomitantemente aos acontecimentos artísticos. Várias guinadas significativas vividas no

século XX (Marxismo, Fenomenologia, Existencialismo, Linguística, etc.) também fizeram escola

e ainda se refletem na época contemporânea, que sofre a influência dessas grandes correntes

de pensamento: “[...] estas diversas formas de pensamento, neste ou naquele momento de seu

desenvolvimento, encontram a questão da arte e mais geralmente o problema da cultura e,

sobretudo, o de sua finalidade e de seu papel na sociedade moderna.” (JIMENEZ, 1999, p. 299).

Primeiramente, considera-se pertinente abordar este histórico a partir do final do século XIX,

período em que surge uma arte pensada para o espaço citadino que passa a acompanhar as

mudanças nas próprias experiências urbanas. Assim, estabelecemos primeiramente a relação

que artistas modernos estabeleceram com a ideia de monumento público, momento em que

também discutimos as diferenças entre arte pública* e arte urbana.34 É importante lembrar que

34

Esta diferenciação é de importância vital para este trabalho, já que encontramos na bibliografia a utilização

constante do termo “arte pública” de forma ampla e vazia, sendo que o mesmo termo foi rechaçado por outros

autores.

Page 68: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

68

é neste período que surge a instituição museu 35, cuja estrutura, salvo algumas modificações, se

mantém na sociedade contemporânea como o espaço representativo por excelência do sistema

das artes. Interessa aqui partilhar uma noção de arte urbana surgida em oposição ao espaço

institucionalizado de museus, galerias e outros. Trata-se de uma arte cujas raízes encontram-se

na soleira da arte moderna, quando artistas se rebelaram contra os ditames acadêmicos, entre

eles, os processos de mimese e as ilusões naturalistas na pintura.

A propósito, “[...] a era da história da arte coincide com a era do museu [...]” (BELTING, 2006,

p. 25), e isto torna ainda mais pertinente abordar aqui uma noção moderna de arte urbana a

partir do final do século XIX 36. Este pensamento corrobora o que assinala Belting (2006, p. 101):

“Nossos métodos de lidar com arte não podem ser aplicados a um material pré-histórico, para o

qual não foram inventados. A assim chamada história da arte é, portanto, uma invenção de

utilização restrita e para uma ideia restrita de arte.”. Esta constatação levou esta pesquisa, em

seu terceiro capítulo, a se valer de teorias da arte contemporânea para o entendimento da arte

urbana como um fenômeno atual.

A relação com o espaço sempre foi uma questão vital para as artes visuais. Portanto,

consideramos que a trajetória da arte urbana ao longo da história deve partir das primeiras

considerações sobre a extrapolação do espaço bidimensional proposta pelos artistas das

vanguardas históricas e levadas a cabo no contexto artístico seguinte, com as novas

experiências espaciais, como as instalações* e as performances. Como afirma Duarte (2006, p.

12):

É importante lembrar que a questão do espaço atravessa toda a história da arte até os dias atuais. Desde a mais remota manifestação na parede de uma caverna na pré-história até uma recente intervenção in situ (ou, como alguns preferem chamar, site specific), passando pelo famoso cubo branco das salas e galerias da modernidade, o espaço não é somente o receptáculo da obra, seu continente, porém, com frequência, um contexto ativo que

35

A primeira coleção pública é a do Museu do Louvre, inaugurado em Paris, em 1793, tornando-se então o

primeiro museu do ocidente. É interessante notar ainda como a arquitetura de áreas expositivas acompanha as

próprias transformações da arte e suas respectivas teorias desde o século XVIII. Se o Louvre é a encarnação do

ideal iluminista que pregava o acúmulo do saber (como revelam suas paredes amontoadas de quadros), em 1929,

surge o Museu de Arte Moderna, o MoMA, em Nova York, como símbolo de uma nova organização espacial

pensada em função das mudanças na arte moderna, especialmente, da questão da autonomia da arte. Assim, a

instituição, com amplos espaços flexíveis, “[...] privilegia a ideia de uma neutralidade para abrigar uma arte que

deve falar por si mesma” (CANTON, 2009, P. 16). 36

A história da arte se inicia neste período juntamente com o conceito de história, que depois foi completado na

virada do século com o conceito de estilo. Autores preponderantes para esta nova era são Alois Riegl, com o

livro “Questões de Estilo”, de 1893; e Heinrich Wölfflin, com o livro “Conceitos fundamentais da história da

arte”, de 1915. (apud BELTING, 2006)

Page 69: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

69

atua, junto a outros fatores, na sua recepção e no seu entendimento. Toda uma história da arte poderia ser escrita à luz das relações da arte com o espaço.

A partir da amostragem permitida pela análise da arte portenha e paulistana, percebemos

que a secularização da arte e da cultura, tendo a arte urbana contemporânea como um de seus

reflexos, retomou questionamentos de magnitude considerável: Qual a finalidade da arte?

Quais os limites entre arte e cultura? Quais as fronteiras entre arte erudita e cultura popular?

Estas questões serão comentadas no terceiro capítulo. No entanto aparecem de antemão para

esclarecermos que o fenômeno da arte urbana é compreendido aqui a partir de um discurso

histórico e teórico, com atenção particular ao panorama latino-americano, multifacetado,

complexo, e marcado por: dissolução das grandes narrativas, hibridação das identidades e

fragmentação cultural.

As novas orientações artísticas a partir do modernismo partilham um espírito comum: são,

cada qual a sua maneira, tentativas de dirigir a criação artística às coisas do mundo. As obras

articulam diferentes linguagens - dança, música, pintura, teatro, escultura, literatura etc. -,

desafiando as classificações habituais, e colocando em questão o caráter das representações

artísticas e a própria definição de arte. O afrouxamento das categorias e o desmantelamento

das fronteiras interdisciplinares fizeram a arte assumir diferentes formas (Arte Conceitual, Arte

Povera, Body Art, etc.), que passam a interpelar criticamente o mercado e o sistema de

validação da arte, denunciando seu caráter elitista. Como afirma Oiticica (apud COCCHIARALE,

2010, p. 21) ao explicar sua própria arte37:

Parangolé é a anti-arte por excelência, inclusive pretendo estender o sentido de “apropriação” às coisas do mundo com que deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente, enfim – coisas que não seriam transportáveis, mas para as quais eu chamaria o público à participação – seria isto um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte, etc., e ao próprio conceito de “exposição” [...]

Desde as primeiras experiências artísticas no espaço da cidade, podem ser identificados

alguns debates teóricos que versam sobre as especificidades da arte urbana. É importante

identificá-los entre os vários períodos da arte em geral e da arte urbana para poder avaliar seus

reflexos na atualidade. Assim, o olhar histórico pode corroborar a formatação destas

37

Escritos do artista sem data definida no catálogo citado.

Page 70: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

70

características ao longo do tempo e reafirmar ainda a relevância de se compor uma “história da

arte urbana” para sua compreensão atual.

2.1.2 Arte pública não é arte urbana

A discussão “espaço público X privado”, no primeiro capítulo deste trabalho, traz à tona a

questão da utilização inadequada do termo arte pública para definir uma arte que aparece em

oposição à arte confinada aos espaços privados. Pode-se localizar, inclusive, o surgimento de

uma arte pública com caráter legitimador, encomendada para reafirmar o modelo de ascensão

dos chamados “espaços públicos” do século XIX, como pôde ser visto em relação às inovações

urbanísticas parisienses propostas pelo Barão Haussmann, ou ainda nas cidades do continente

sul-americano, como em São Paulo e Buenos Aires. Apesar de, em certas ocasiões não ter uma

função comemorativa, esta arte pública revela paralelos com a ideia de monumento clássico

perpetuado para afirmar valores elitistas, que nada têm a ver com um “espaço público

praticado”, como definido por Mongin (2009) e exposto no primeiro capítulo.

Assim, consideramos que o termo arte pública não é conveniente para definir a arte urbana e

suas nuances contemporâneas. Ele pode, sim, ser qualificado como um marco para pontuar a

origem das relações entre arte e cidade na história moderna ocidental, levando-se em

consideração a noção de monumento público clássico, isto é, quando a arte ocupa espaços

públicos urbanos de grande circulação, inicialmente com função legitimadora e oficial. É preciso

frisar ainda que a ideia de estabilidade e de duração de um valor estético revelados com o

monumento público nasce com a cultura latina, na Roma antiga, onde a arte tem, entre suas

principais funções, celebrar a glória do Estado. A partir da história mais recente, a função dessa

arte pública se adequou a uma espécie de programa urbano geral, atendendo aos anseios das

cidades por “lugares de memória” 38, que poderiam ocupar o rápido desaparecimento da

memória nacional a partir de um inventário de lugares cujas reminiscências resistiriam à

passagem dos tempos, com seus "[...] mais resplandecentes símbolos, festas, emblemas,

monumentos, comemorações, elogios, dicionários e museus" (NORA, 1984, p. VII).

A ideia do monumento oitocentista vai ao encontro dessas premissas, refletindo-se em obras

cuja configuração estética apresenta-se ligada aos pressupostos do academicismo, sempre

38

Termo cunhado por Pierre Nora. NORA, Pierre (org.). Les Lieux de Mémoire, Paris: Editions Gallimard, Vol.

I, 1984.

Page 71: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

71

tendo como base o pedestal, elemento fundamental na concepção clássica que “[...] determina

a leitura vertical do conjunto escultórico e assegura a sua coesão em termos épicos e

dramáticos, unificando, graças a um ritmo escandido, os vários momentos da composição”

(FABRIS, 2000, p. 149). Este estilo de monumento urbano está nas cidades da América Latina;

são esculturas e murais nos quais estão traduzidos momentos sócio políticos e culturais de seus

países. A linguagem dessas obras obedece à formação dos seus autores: estilo acadêmico

realizado por artistas oriundos das escolas de Belas Artes e/ou Artes e Ofícios. Sobre a perda do

sentido dos monumentos, Canclini (1997, p. 302) pergunta: “Não é uma evidência da distância

entre um Estado e um povo, ou entre a história e o presente, a necessidade de reescrever

politicamente os monumentos?”.

Mas a própria realidade se encarregou de trazer respostas a esta situação; revelou que a

memória não é algo estático, e sim “[...] a vida em evolução permanente, aberta à dialética da

recordação e da amnésia, suscetível de longas latências e de súbitas revitalizações” (FABRIS,

2000, p. 146). Enquanto o museu se transformou em local de resguardo da memória, a cidade

se firmou como o local do transitório e das transformações constantes, sendo que os esforços

pela criação de “lugares de memórias” e de uma arte pública vinculada a este ideal acabaram se

tornando em vão. Na cidade contemporânea a memória não deve ser imposta; a memória é

uma construção social e coletiva, uma conquista que “[...] comporta contradições e rupturas,

está em constante gestação e se reestrutura a cada nova experiência vivida” (FREIRE, 1997, p.

304). Como afirma Certeau (1994, p. 189): “De fato, a memória é o anti-museu: ela não é

localizável”.

Citemos a indiferença dos cidadãos paulistanos em relação ao “Monumento a Ramos de

Azevedo”, gigantesca estátua de bronze e granito de 1934 (que mede 30 metros de altura desde

sua base), retirada de seu local original, na avenida Tiradentes, em frente à Pinacoteca do

Estado de São Paulo, para ser instalada em frente ao Instituto de Pesquisas Tecnológicas, no

campus da Universidade de São Paulo (USP), em 197339. A respeito, Freire (1997) fala de

“monumentos errantes” como uma característica da cidade moderna, isto é, dentro de um

39

Freire (1997) fez perguntas abertas a moradores da cidade a respeito de sua percepção em relação ao

monumento. A escultura foi feita pelo artista italiano que morava no Brasil Galileo Emendabili [1898-1974]. A

autora lembra que em 1934 a Pinacoteca era o único museu na cidade de São Paulo. Diante da configuração

urbana da época, a gigantesca escultura destacava-se em harmonia com a paisagem, pontuada por ruas limpas e

arborizadas, como era o centro naquela época. A escultura apresenta a própria imagem do arquiteto Ramos de

Azevedo, sentado e observando um projeto, e rodeado por várias figuras alegóricas. Freire mostra que até mesmo

o escritor Menotti Del Picchia [1892-1988], árduo defensor da arte moderna, elogiou publicamente o

monumento.

Page 72: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

72

fenômeno geral de apagamento da história que provoca “[...] a desambientação dos

monumentos, a destruição dos tecidos urbanos [...]” (ARGAN, 1992, p. 86).

A propósito, São Paulo ao longo dos anos se firmou como o espaço da transitoriedade, que se

manifesta até na mobilidade dos monumentos públicos. Amaral (1998, p.49) cita os

deslocamentos de obras que revelam a perda constante das referências simbólicas da cidade. A

autora mostra o caso da escultura “O Beijo”, do artista William Zadig40, que foi retirada de seu

local original, na esquina da rua Minas Gerais com a avenida Paulista, pelo fato de a população

ter se manifestado contra a obra naquele espaço por achá-la inconveniente. Depois de passar

um tempo em depósitos na cidade, foi instalada no largo de São Francisco, em frente à

Faculdade de Direito. Há outros casos: “Monumento a Garcia Lorca”, de Flávio de Carvalho, que

recuperado por estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP) foi instalado na

praça Guianas, próximo a avenida 9 de julho; e a “Eva”, de Brecheret, cujo espaço original seria

o Anhangabaú e que foi colocada no Centro Cultural São Paulo.

2.1.3 Uma nova configuração de monumento

Apesar de delimitarmos aqui a noção de arte pública para identificar a configuração do

monumento clássico, artistas do início do século 20 criaram monumentos cujas características

desestabilizaram as noções formais estabelecidas por esses primeiros criadores de “lugares de

memória”. Estes artistas passaram a criar obras para espaços coletivos, nas quais os laços entre

comunidade, tempo e espaço são fomentados por um vocabulário visual no qual um

monumento pode se tornar “[...] verdadeiramente público, na medida em que parece dar boas-

vindas a todos e construir um senso de comunidade por meio do caráter inclusivo de suas

referências e da intimidade da experiência que torna possível” (BRENSON, 1998, p. 20).

Há, por exemplo, uma passagem interessante sobre a polêmica provocada em 1906 pela

instalação da escultura em bronze “O Pensador”, de Auguste Rodin [1840-1917], em frente ao

Panteão, em Paris. Um homem comum, nu e sentado, no ato corriqueiro de pensar, causou

enorme alvoroço entre a nobreza francesa. Rodin afirmara que tratava-se de um símbolo dos

diferentes modos de pensar dos trabalhadores. “Essa é uma das primeiras esculturas que eu

40

Nascido em 1884, na Suécia, passou parte de sua trajetória em São Paulo. Disponível em

http://www.mubevirtual.com.br/pt_br?Dados&area=ver&id=260. Acesso em: 25 out. 2013

Page 73: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

73

conheço que tenta ganhar respeito para um grupo fora do poder identificando-o – através da

associação da figura sentada com o sistema de imagens de Michelangelo – com a grande

tradição artística ocidental” (BRENSON, 1998, p. 19).

Outro monumento inovador foi o “Memorial”, de Constantin Brancusi [1876-1957],

construído entre 1937-1938, dedicado aos civis romenos que, em 1916, pararam o exército

alemão em Târgu Jiu, nas proximidades da aldeia em que o escultor nasceu. Apesar de

tradicional em seu objetivo comemorativo e em sua forma de arco triunfal, o monumento

apresenta características inusitadas, especialmente, no que diz respeito à relação proposta

entre escultura e arquitetura, e no repertório abstracionista, no qual não entram figuras

heroicas, típicas dos monumentos tradicionais, e sim formas simples e geométricas, como o

próprio portal (que, em vez da tradicional forma em arco, foi feito em linhas retas) e o obelisco

com sua sequência de sólidos geométricos empilhados (batizado de “coluna sem fim”). A estes

elementos, soma-se a Mesa do Silêncio, com doze banquetas redondas em torno de um altar,

como metáfora de uma comunhão espiritual coletiva.

Na linha utópica das vanguardas históricas, Brenson (1998, p. 21) cita ainda o projeto não

construído de Vladimir Tatllin [1885-1953], de 1920, o monumento a Terceira Internacional.

Nascido da intenção que movia o Construtivismo russo de mobilizar a população em torno de

um ideal social, o projeto previa a construção de um monumento com proporções gigantescas,

400 metros de altura e muitos andares para serem utilizados para diversas atividades coletivas.

Uma espécie de nova configuração de “monumento público” também ganhou as ruas no pós-

guerra, como as esculturas do norte-americano David Smith [1906-65] feitas da combinação de

refugos e materiais descartáveis. Muitas eram feitas em escalas monumentais, para serem

expostas a céu aberto. “O que começou a ter lugar na arte de Smith foi a formulação de uma

estratégia de escultura no sentido de traduzir os tabus do totemismo numa linguagem da

forma” (KRAUSS, 1998, p. 186).

Neste sentido, a escala urbana ganhou ainda outras contribuições, como a do artista

contemporâneo norte-americano Richard Serra [1939-], que utiliza materiais industriais (aço,

borracha, chumbo, etc.) para fazer imensas esculturas em locais públicos. Serra foi autor da

Tilted Arc (1981), uma gigantesca parede de aço inclinada, instalada na Federal Plaza, Nova

York, que, oito anos depois, foi retirada do local, em função dos sucessivos conflitos entre o

artista e a opinião pública. Como afirma Tassinari (2001, p. 48):

Page 74: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

74

De cada posição que se olha, uma nova configuração “obra-praça” se apresenta. A grande lâmina de aço irrompe no espaço da praça como se fosse parte de uma gigantesca colagem. [...] Um único elemento é que responde pelas diversas configurações segundo a posição que se ocupa na praça, que é requisitada pela obra para ser parte de seu espaço.

Richard Serra, que não aderiu às práticas de Land Art*, fez grandes obras destinadas ao

espaço público urbano. “[...] Serra considerava que a ação da arte seria mais eficaz se

concentrada no seio das metrópoles, com interferência direta no tecido urbano” (CANONGIA,

2005, p. 73). O artista interessava-se, sobretudo, pelos desdobramentos de ações como enrolar,

respingar, suportar, arrancar, empilhar, para explorar as possibilidades físicas da matéria, como

o peso e a maleabilidade.

As obras de Claes Oldenburg [1929-] são emblemáticas; ativo até hoje, é o maior

representante da vertente pop aplicada ao espaço urbano, como mostram suas esculturas que

representam em tamanhos monumentais formas prosaicas como um hambúrguer, um pregador

de roupa ou uma maçã comida. No início de sua carreira, em 1960, antes de iniciar sua atividade

na arte urbana, o artista começou a traduzir sua experiência de viver no Lower East Side de

Manhattan por meio de obras feitas com papelão, estopa e jornais, inspirando-se em

personagens e paisagens de seu bairro, onde o lixo nas ruas era uma constante. “A sujeira tem

profundidade e beleza” 41, escreveu o artista em seu diário naquela época.

Entre os novos movimentos artísticos, podem ser constatados aqueles em que a proposição

essencial era enfatizar a relação da arte com o espaço público por meio da imersão do cidadão

em seu ambiente. Uma das características desta nova arte é sua adaptação às circunstâncias e

às condições de cada lugar especificamente. Muitos artistas utilizaram na cidade elementos da

natureza, como pedras e espelhos d’água, fazendo assim caminho inverso ao da Land Art. Como

um sinal do desencanto com a sofisticação da tecnologia na sociedade em geral, a obra Terrain,

de Elyn Zimmerman (1986-1988), instalada no O’hare Internacional Center, ao lado do

aeroporto de Chicago, é uma espécie de “parque com aura pré-histórica” (SENIE, 1998, p.41),

onde entre seus caminhos de pedras, espelhos d’água, flores e folhagens, é possível tanto ter

uma experiência de contato com a natureza quanto de fruição estética. Aluna do minimalista

Tony Smith e autora de obras de Land Art, Patricia Johanson também tem como base principal

de sua poética a arte ambiental*, fazendo posteriormente uma transposição desta arte para a

41

Escrito do artista em exposição (abril-agosto de 2013) no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).

Disponível em: http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2013/oldenburg/. Acesso em: 17 mai. 2014

Page 75: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

75

cidade, em uma espécie de tentativa de curar a terra de sua destruição. A artista cria “lagoas-

esculturas”, como fez junto à Baía de San Francisco, em 1987, e no Fair Park Lagoon, em Dallas,

em 1986. Elementos naturais também compõem as obras urbanas da artista paulistana Amélia

Toledo, como fez em Parque das Cores do Escuro, no complexo viário João Jorge Saad, um

imenso jardim formado por grandes cristais.

A ideia de “arte-equipamento” também toma o lugar das configurações clássicas dos

monumentos, como as obras de Scott Burton, que criou “esculturas-mobília”, primeiramente

focando-se em pequenos projetos para depois se dedicar a projetos de grande escala, como sua

primeira encomenda empresarial para a Equitable Life Assurance Society of America (1985-

1986), composta por longas jardineiras, bancos de pedra e madeira, mesas e tamboretes de

mármore. Apesar de Burton se intitular “escultor público”, isto não quer dizer que ele faz arte

para espaços públicos, como explica Richardson (1987, p. 9), mas sim que o artista busca uma

concepção moral ligada a um fazer estético em que a política deve estar presente.

Outro exemplo da arte urbana contemporânea e sua relação direta com uma ideia de

reconfiguração do monumento público é a produção do casal Christo e Jeanne-Claude,

conhecido por “embrulhar” com materiais diversos grandes obras arquitetônicas ou elementos

da natureza, compondo um sistema de Empaquetage*. Chegaram a embrulhar a Pont Neuf, em

1965, em Paris, para assinalar que a embalagem, ao esconder temporariamente as edificações,

acaba chamando atenção para sua presença na cidade. Afinal, como afirma Freire (1997, p.

176), esta presença na cidade “[...] não se esgota em sua visibilidade, mas esconde camadas

desaparecidas no tempo”.

Há casos em que o resgate da memória parte do próprio artista, como fez o artista Raymond

Mason, londrino radicado em Paris. Ao saber que o presidente francês George Pompidou iria

fechar o tradicional e secular mercado Les Halles, no centro da cidade, o artista partiu para a

criação de uma obra de arte intitulada “A Partida das Frutas e Verduras do Coração de Paris”.

Terminada em 1971, trata-se de uma grande escultura retratando uma procissão com pessoas

comuns, trabalhadores do mercado.

É notável ainda o caso da artista de origem polonesa Magdalena Abakanowicz, que começou

a trabalhar ao ar livre na década de 1980, em um trabalho que transpira reminiscências de sua

experiência na Polônia durante a Segunda Guerra, como o “Espaço de Seres Acalmados” (1993)

num terraço externo ao Museu de Arte Moderna de Hiroxima. A artista se diz oprimida pela

ideia de multidão, que seria um “[...] conjunto misterioso de variantes de um determinado

Page 76: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

76

protótipo, um enigma da natureza abominável, cuja repetição não pode ser realizada ou mesmo

impossível, assim como a mão humana não pode repetir o seu próprio gesto" 42. Assim, suas

esculturas (às vezes, com dimensões gigantescas) retratam figuras humanas sem cabeça,

colocadas em geral em locais extremamente movimentados.

Essa nova geração de artistas concede à ideia de monumento outros sentidos, como fez em

2003, em São Paulo, a artista Elisa Bracher. Como parte do projeto Genius Loci, exposição de

arte urbana promovida pelo Centro Universitário Maria Antônia, no bairro da Vila Buarque, a

artista instalou, ao ar livre, uma grande escultura de madeira, composta de sete troncos

cruzados e truncados. Implantada em uma pequena ilha triangular que separa as pistas, próxima

ao Largo do Arouche, a peça foi polemicamente removida do local após cinco meses de

discussão, desde objeções feitas pelo Departamento do Patrimônio Histórico do Município

(DPH) e pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) até reclamações de moradores,

alegando que a obra favorecia o acúmulo de lixo e poderia servir de esconderijo para ladrões.

Wisnik (2007) afirma que o episódio, em vez de suscitar um suposto fracasso da obra de arte,

revela o poder que a arte tem de provocar uma reflexão sobre a natureza do espaço público,

mesmo que a partir de uma inserção negativa. Assim, o crítico conclui:

A ideia de negatividade, não à toa, é central para a arte moderna e contemporânea. Ela diz respeito à sua função eminentemente crítica em relação à sociedade, tensionando o ambiente em que se insere, sobretudo quando se trata de um espaço urbano. Quer dizer que não se deve esperar da arte, nesse contexto, uma atitude pacificadora, que procure encobrir ou remediar os conflitos existentes - sociais, ambientais, etc. - por meio de uma cosmética urbana, atuando como um pretenso antídoto à violência social. Por outro lado, como ficou claro anteriormente, uma obra como a de Elisa é capaz de instaurar, pelo deslocamento da apreensão cotidiana, uma nova consciência sobre um espaço que sempre foi residual, e cuja fruição passava mais pelo sentido de alienação do que por uma apropriação real da população. Inserida como um “corpo estranho” naquele lugar, a obra traz à tona essa percepção, tornando-se, por isso mesmo, construtiva. 43

É interessante mostrar aqui o ponto de vista da pesquisadora especializada em arte urbana

Harriet Senie, autora de diversos livros e que participou de seminário em São Paulo (SESC –

1998) falando sobre a relação da arte urbana estadunidense com o espaço das cidades e seus

“cidadãos-fruidores”. Durante o seminário, a pesquisadora falou dos desdobramentos

42

Disponível no site da artista: http://www.abakanowicz.art.pl/. Acesso em: 22 mar. 2013. 43

Disponível em http://novo.itaucultural.org.br/materiacontinuum/arte-publica-um-corpo-estranho-na-cidade/.

Acesso em: 12 mar. 2014.

Page 77: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

77

controversos das experiências artísticas na cidade, especialmente nos anos 1960, cuja função

comemorativa ainda em voga na época dependia do princípio de que esta arte deveria ter

significado imediato para seu público. Entretanto, com as mudanças inerentes às novas

linguagens estéticas, que deixaram de ter um caráter comemorativo para se revestirem de

outros significados e funções, a autora pergunta: “Mas como é que a escultura pública sem esse

conteúdo comemorativo pode tornar-se significativa para o público em geral? E quem é esse

público numa sociedade multicultural?” (SENIE, 1998, p. 36).

A autora ainda enfatiza que, em grande parte das encomendas de esculturas públicas nos

anos 1960, houve “intenção não-declarada” de que a obra fosse criada apenas como ornamento

para os edifícios. Seria uma “plop art”, “[...] arte jogada no espaço, um ornamento após a

arquitetura moderna” (1998, p.37). Ela cita o exemplo da obra de Isamu Noguchi [1904-1988]

encomendada pela Skidmore, Owing & Merrill para a sede do Chase Manhattan Bank, projeto

realizado entre 1961 e 1964. Pensado inicialmente para ser uma fonte com peixes, sofreu

reveses, como o congelamento da água no inverno e a morte de peixes por chumbo

contaminado por moedas jogadas pelos transeuntes. Nem entendida pelo público e ignorada

pelos críticos, a gigantesca escultura feita por Picasso [1881-1973] para o Centro Cívico de

Chicago, que no estilo cubista retrata sua mulher e seu cachorro, foi outro exemplo citado por

Seine de “escultura-objeto”, sem vínculo real com a comunidade. William Hart-Merril, arquiteto

da Skidmore, Owing & Merrill, que batalhou pela encomenda, disse: “Queríamos que a

escultura fosse um trabalho do maior artista vivo” (apud SENIE, 1998, p. 38) 44, o que, na visão

da autora, acabou se tornando apenas a monumentalização da iconografia particular de uma

assinatura famosa (a obra nem sequer ganhou um título). Na mesma linha, a autora cita o

“Grand Rapids”, de Alexander Calder (1898-1976), instalado na então praça Vanderberg Center

(que depois virou Calder Plaza), em Michigan, em 1969. Foi a primeira escultura patrocinada

pelo National Endowment for the Arts (NEA), como parte do programa Art in Public Places.

Apesar de ter se tornado orgulho cívico para a cidade, a obra tem sua qualidade questionada

por Senie (1998, p. 38-39), que a compara a outra criação pública de Calder, o “Flamingo”, no

Centro Federal de Chicago, esta sim muito mais bem resolvida esteticamente por ativar a

relação mediadora entre escala arquitetônica e pedestre.

A autora também critica a arte minimalista, que acabou se transformando em um “[...]

exercício de design corporativo ou vazio [...]”, como no caso da obra de Tony Smith [1912-1980], 44

SENIE, Harriet. Arte Pública nos Estados Unidos. In: Arte Pública, São Paulo: Sesc, 1998.

Page 78: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

78

em meados dos anos 1970, para o Departamento do Trabalho, em Washington. Senie (1998, p.

40) afirma, sobretudo, que a arte pública, por estar aberta à coletividade, não tem nenhuma

imunidade contra críticas das mais diversas. Cita duas obras de Claes Oldenburg e Cossje Van

Bruggen, a dupla que transformou o pop em arte urbana por excelência: a “Spoon-Bridge and

Cherry” (1988), uma enorme colher com uma cereja, instalada no Jardim de Esculturas de

Minneapolis, adjacente ao Walker Art Center, que teria sido interpretada como símbolo cívico,

já que a cereja havia sido confundida com uma maçã, símbolo da cidade; e a obra “Dropped

Bowl with Scattered Slices and Peels”, de 1990, em Miami, negativamente associada pelo

público à decadência e ao lixo, já que é composta por laranjas despedaçadas (o estado da

Flórida é grande produtor de laranja e também há lá o tradicional jogo anual de futebol

americano Orange Bowl).

Ao analisar dois livros que tratam exatamente das obras patrocinadas pelo governo

americano por meio do programa National Endowment for the Arts (NEA) (BEARDSLEY, 1981/ e

CONTINI, 1984), podemos notar uma tentativa, mais por justificativa, de buscar uma arte

comprometida com o social: “Nós começamos a rejeitar a noção de espaço público como um

simples pedestal para obras de arte monumentais. Muitos artistas agora reconhecem o espaço

em si mesmo, como um componente vital para a arte pública, sua forma, seu tamanho, sua

história [...]” (CONTINI, 1984, p. 39, tradução nossa).

Assim, nota-se que o próprio programa estadunidense investiu esforços para tentar

patrocinar obras em maior consonância com os espaços ditos públicos. Por exemplo,

recrutaram artistas para criarem suas obras ainda na fase de um projeto arquitetônico, como

ocorreu na Oregon School of Arts and Crafts, em Portland, que convidou um grupo de artistas

para trabalharem concomitantemente ao projeto arquitetônico, que incluía uma escola, um

centro de pesquisa e um espaço de exibição. Eles contribuíram com calhas, janelas, grades e

cerâmicas (BEARDSLEY, p. 47, 1981). Entretanto, é impossível não desconfiar da atitude

estadunidense em plena Guerra Fria, quando o governo fez das instituições culturais braço

direito de sua atuação, como mostrou Amaral (1984, p. 15) no caso do Museu de Arte Moderna

de Nova York como propagador do expressionismo abstrato. 45

45

Amaral cita ainda estudo de Sifra Goldman, que mostra como a penetração das correntes surrealistas que

endossaram as críticas ao esgotamento do muralismo no México não foram simplesmente um evento estético e

sim político, já que o movimento representava uma ameaça declarada (Apud AMARAL, 1984, p. 17). Texto

original: GOLDMAN, Shifra. “La pintura mexicana em el decênio de la confrontación: 1955-1965”. México:

Plural, 1978.

Page 79: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

79

É interessante o comentário de Claes Oldenburg e Cossje Van Bruggen a respeito de sua

atuação, ainda muito forte nos dias atuais. Eles revelam que, independentemente das polêmicas

sobre o “sucesso” de suas obras, se mantém fiéis a uma poética altamente compromissada com

o espaço coletivo da cidade: “Em locais públicos, nossas esculturas refletem tanto o ambiente

quanto seu contexto [...] Queremos comunicar com o público, mas em nossos próprios termos,

mesmo que as imagens sejam estereotipadas”. 46

Estes exemplos foram citados para evidenciar a importância das especificidades da arte

urbana e seus desdobramentos históricos e teóricos, destacando ainda as questões da

comunicação e da escala das obras. Primeiramente, a escala. Apesar de ser um elemento não

relacionado diretamente à qualidade de uma obra de arte, a escala na arte urbana foi um

quesito discutido desde seus primórdios. Também não é um sinalizador de qualidade da obra,

mas é fundamental na tomada de decisão por parte dos artistas em seus projetos. Pode estar

presente, inclusive, em um aspecto reverso, isto é, o da miniaturização. É o que vemos no caso

do artista inglês Ben Wilson, que pinta belas imagens em chicletes amassados no chão; ou ainda

do artista inglês Slinkachu, que iniciou em 2006 o “Little People Project”, cuja reflexão sobre a

solidão e a melancolia de viver em uma cidade grande é interpretada pela colocação de bonecos

em miniatura em latas de refrigerantes, bueiros, canos, poças de água, etc., criando situações

inusitadas e irônicas, registradas depois em fotografia pelo artista.

Exemplos como estes comprovam o papel da arte urbana na construção de sentidos e

memória na cidade. Como explica Pallamin (2000, p.57), essas práticas artísticas representam os

imaginários sociais, evocando e produzindo memórias: “É nestes termos que, influenciando a

qualificação de espaços públicos, a arte urbana pode ser também um agente de memória

política”. Então, concluímos que, apesar de associarmos aqui a noção de arte pública com a

ideia de monumento clássico, a geração de artistas modernistas, como fez Rodin e Brancusi, e

de artistas contemporâneos, como Magdalena Abakanowicz e Elisa Bracher, traz novas

mudanças às noções convencionais do papel do monumento na cidade, o que se desdobra nas

experiências citadas ao longo deste capítulo, que conferem à arte feita na cidade o papel de

fomentadora de uma estética realmente interessada na esfera pública da arte. Veremos a seguir

como a arte moderna contribui para a nova configuração da arte urbana a partir da revolução

de princípios formais espaciais, entre outras características.

46

Disponível em http://oldenburgvanbruggen.com/biography/bios-team.htm. Tradução nossa. Acesso: em

18/01/2014.

Page 80: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

80

2.2 O MODERNISMO

2.2.1 A mudança de paradigma da relação entre arte e espaço

Como foi dito, a relação com o espaço sempre foi vital para as artes visuais, e é necessário

entender este espaço a partir de seu papel intrínseco à própria obra de arte para depois

compreender como os artistas saltam da tradição dos suportes tradicionais (seja na pintura,

com seu espaço bidimensional; quanto na escultura, com suas características clássicas) para

ganhar campos expandidos, entre eles, o espaço da cidade. Trata-se aqui de abordar o espaço

físico, o do suporte artístico, e também seu caráter mais fenomenológico, isto é, o espaço real

da vida. Esta discussão revela, sobretudo, as várias acepções históricas para o conceito de arte

que, a partir do Renascimento, procuraram isolar a arte dos outros aspectos da vida. Um desejo,

um ideal, que conferiu à arte a aura da autonomia47 por meio de sua independência em relação

a outros campos, como a religião, a política e a arquitetura.

Édouard Manet [1832-1883] foi considerado o primeiro pintor modernista a superar a

representação ilusionista do espaço tridimensional sobre um suporte plano (o quadro mais

representativo é “Almoço na Relva”, de 1863, que, além do escândalo relacionado à mulher nua

em seu primeiro plano, mostra uma complexa composição que acentuava o efeito de

profundidade), opinião proposta pelo crítico Greenberg (1996). São considerados peças-chave

neste processo de virada estética os artistas Paul Gauguin [1848-1903], Van Gogh [1853 -1890],

e Paul Cézanne [1839-1906], tidos como matrizes dos respectivos movimentos de vanguarda

Fauvismo, Expressionismo e Cubismo. Também é importante enfatizar movimentos mais

amplos, como os que vinham ocorrendo na arquitetura, na decoração, na moda, no design, na

cenografia, remodelados com o estilo orgânico e sinuoso da Art Nouveu e posteriormente com

as geometrizações da Art Decó, acentuando o que já estava no programa das vanguardas

históricas: a estetização do cotidiano e o embaralhamento entre arte e vida.

O advento das vanguardas se dá a partir deste contexto, porém seus artistas declararam

uma verdadeira revolução contra o sistema da arte por meio de seus manifestos e obras. Era

preciso estar à frente de seu tempo, inclusive, este era um pensamento compartilhado por

organizações políticas que tinham como inimigo o sistema capitalista (e a arte, em certos

momentos, esteve ligada diretamente à política, como no caso do Construtivismo russo, que 47

Voltaremos a falar mais sobre a questão da “autonomia da arte” no terceiro capítulo.

Page 81: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

81

participou ativamente na construção da utópica sociedade comunista). As vanguardas artísticas

foram uma analogia a uma grande batalha ideológica, uma vontade de ruptura e destruição da

tradição secular que se forjara no sistema das artes (inclusive, do ponto de vista mercadológico).

O rompimento com as temáticas e com as estruturas formais clássicas foi o princípio elementar.

Entretanto, tratava-se, sobretudo, de um reflexo das transformações significativas por que

passava a sociedade a partir da Revolução Industrial, uma crise de visão de mundo, que

inclusive teve forte desdobramento na América Latina.

Portanto, após séculos de perpetuação do programa renascentista, quando se forjaram

critérios a respeito da perspectiva linear, da figuração realista e da ideia de mimeses (de matriz

aristotélica), o final do século XIX assistiu a uma verdadeira revolução estética contra a cultura

clássica, com pintores que subverteram a ordem dos ditames acadêmicos. Algumas décadas

depois, com o Cubismo, o espaço foi fracionado em volumes e planos, fazendo com que o

realismo desse lugar a formas geométricas. O movimento questionava o espaço apenas em

relação a sua construção no interior da tela, entretanto, já dava sinais das novas mudanças na

arte que tirariam a arte do suporte tradicional, selando de vez o esforço das vanguardas em

negar os valores estéticos e artísticos anteriores. “[...] o ato da provocação assume o lugar da

obra”, afirma Bürger (2008, p. 119), lembrando que estavam em jogo questões como a

superação da instituição arte e a união entre arte e vida.

Tassinari (2001, p. 9) define duas fases distintas na relação entre arte e espaço na arte

moderna: trata-se de uma fase de formação, seguida de uma fase de desdobramento. O

momento de passagem de uma fase para a outra teria se dado em meados de 1955, tendo

como emblema a obra “Tela”, de Jasper Johns, de 1956, que se resume à colagem de uma

moldura sobre uma tela, que tem em sua superfície uma textura quase monocromática. A obra

leva ao questionamento sobre os limites do plano bidimensional; fazendo com que o espectador

pergunte a respeito das fronteiras espaciais delimitadas pela moldura.

A relação entre arte e vida, um dos pilares do modernismo, foi ainda mais enfática com as

performances dadaístas, que contribuíram para este novo cenário inserindo a arte no espaço

real, ou ainda retirando do espaço real a matéria-prima de sua arte (por exemplo: pinturas e

esculturas feitas a partir do reaproveitamento de pedaços de materiais encontrados nas ruas ou

objetos que haviam sido jogados fora). Outra expressão dessa liberdade estética é o objet

trouvé (objeto encontrado ao acaso pelo artista), como o banco de bicicleta que, nas mãos de

Picasso, se transforma em uma cabeça de touro. Ou o ready-made, termo criado por Marcel

Page 82: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

82

Duchamp [1887-1968] para designar um tipo de objeto, que consiste em um ou mais artigos de

uso cotidiano, produzidos em escala industrial e expostos como obras de arte em museus e

galerias (a famosa roda de bicicleta montada sobre um banquinho).

A montagem é outro recurso da produção vanguardista; a obra seria “montada” a partir

de fragmentos da realidade. Isto rompe com a aparência da totalidade (como havia no

Renascimento), contribuindo para o aspecto não-orgânico da arte (BÜRGER, 2008). A colagem

cubista, por exemplo, insere no quadro fragmentos de realidade, isto é, materiais não

elaborados pelo artista. Como signos, as partes não se referem mais à realidade, são a própria

realidade. Como afirma Bürger (2008, p. 158):

O receptor experimenta essa denegação de sentido como choque. Esse choque é intencionado pelo artista de vanguarda, que mantém a esperança de, graças a essa privação de sentido, alertar o receptor para o fato de a sua própria práxis vital ser questionável e para a necessidade de transformá-la. O choque é ambicionado como estimulante, no sentido de uma mudança de atitude, e como meio, com o qual se pode romper a imanência estética e introduzir uma mudança da práxis vital do receptor.

O pensamento projetual também começa a ser moldado por esta geração, como fizeram os

artistas construtivistas e suas experimentações em cenografia, na qual tiveram que desenvolver

novas habilidades para lidar com as produções tridimensionais. Fomentou-se então uma cultura

do projeto, fazendo com que o artista se concentrasse mais no processo criativo do que em seu

virtuosismo plástico. Este seria um dos pontos-chave do desenvolvimento da escola Bauhaus,

que apostava na recuperação cultural para a Alemanha dividida e enfraquecida do pós-guerra a

partir de um programa voltado para a ideia de “obra de arte total” (Gesamtkunstwerk,

formulada anteriormente por Richard Wagner [1813-1883]), segundo o qual cada um poderia

desenvolver capacidades para trabalhar além dos limites de sua especialidade.

Não se pode deixar de mencionar aqui a influência de Kurt Schwitters [1887-1948], com sua

Merzbau, uma série de salas em que foram instalados objetos e materiais (inicialmente em sua

casa, a partir dos anos 1920, em Hannover, estendendo-se até a década seguinte). “O

Environment era um gênero que só apareceria quarenta anos depois, e a ideia de um

espectador rodeado não era ainda consciente”, afirma O`Doherty (2007, p. 43). A obra de

Schwitters antecipa a ideia de instalação*, termo agregado ao vocabulário da crítica na década

de 1960 para designar ambiente construído pelo artista em espaços de galerias e museus.

Page 83: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

83

Marcel Duchamp também pode ser considerado pioneiro neste sentido ao realizar para as

exposições surrealistas de 1938 e 1942, em Nova York, obras que instauravam esta nova ideia

de espacialidade (na primeira, ele cobre o teto da sala com sacos de carvão; e na segunda, ele

fecha uma sala com cordas, definindo um ambiente particular).

Também surgem neste período as primeiras sementes do que chamamos atualmente de arte

ativista* (cujos representantes paulistanos e portenhos serão analisados no terceiro capítulo),

vinculada aos objetivos dos artistas de transcender os meios tradicionais de representação,

cujos antecedentes remontam às ações futuristas e dadaístas ainda na década de 1910. Os

artistas futuristas, por exemplo, apresentavam seus manifestos em seções públicas, muitas

vezes, diminuindo as barreiras entre oradores e público, e incorporando onomatopeias e outras

materialidades sonoras, o que transformava os momentos em atos quase cênicos. Os dadaístas

também já revelavam os primeiros indícios da linguagem da performance, como uma ação

pública a cargo de um artista ou grupo, marcada sobretudo pela espontaneidade (inclusive,

recorrendo à agressividade).

Na América Latina, as transformações estéticas também ocorriam com movimentos

modernistas que pipocavam em todos os países. Iniciativas pontuais também marcaram um

estreito relacionamento entre arte e cidade na América Latina, como fez o arquiteto e artista

Flavio de Carvalho [1899-1973], que desfilou de saias no centro da cidade de São Paulo

(Experiência 3) e atravessou uma procissão de Corpus Christi em sentido contrário e sem tirar o

chapéu (Experiência 2) (Figura 28). Definido por Leite (2008) como o “artista total”, por sua

pluralidade (foi arquiteto, cenógrafo, artista, escritor e animador cultural), Carvalho foi um

modernista de carteirinha que tinha interesse significativo pelo fenômeno da crescente

urbanização. Defendeu a proposta de uma cidade utópica que deveria ser como uma casa, na

apresentação “A cidade do homem nu”, no IV Congresso Panamericano de Arquitetos, no Rio de

Janeiro, em 1930. Acreditava que “A cidade é toda ela a casa do homem”. 48

48

Apud LAGNADO, Lisette. Gordon Matta-Clark e Hélio Oiticica: micro-história de mitologias

contemporâneas, P. 70. In RANGEL, Gabriela et. al. Desfazer o espaço. Museu de Arte Moderna de São Paulo,

2010. Catalog.

Page 84: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

84

2.2.2 Muralismo*: pioneirismo latino-americano

Com o advento do Modernismo, em meio à desestabilização dos conceitos clássicos da arte,

da arquitetura e do urbanismo, surge o movimento muralista mexicano, primeiro grande

acontecimento na história moderna em que arte e cidade estiveram sistematicamente ligadas.

Com um linguajar espacial moderno, esta arte opera como uma transposição do suporte

tradicional, a tela, para os muros e paredes. Diretamente ligado à revolução social e nacionalista

dos anos 1910 (e com o programa de Alvaro Obregón, primeiro líder revolucionário a se tornar

presidente, em 1920), o muralismo mexicano contou com artistas que espalharam por palácios

Figura 28: Flavio de Carvalho: “A cidade é toda ela a casa do homem”. Fonte:

LEITE, Rui Moreira (cur.). Flávio de Carvalho. Museu de Arte Moderna de São

Paulo, 2010. Catalog.

Page 85: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

85

e instituições públicas imagens que ressaltavam a história e a luta revolucionárias. Seu

programa não sofreu imposições quanto ao exercício de temas e estilos; conviveram estéticas

realista, alegórica, satírica, em muros e paredes em diversas áreas da cidade, em palácios,

igrejas escolas, museus. Como explica França (1967, p. 219):

Os desejos governamentais eram porém vagos e nenhum projeto definia também a temática dos pintores convidados para a decoração dos claustros, das escadarias e dos anfiteatros da Escuela Preparatoria. Havia apenas o desejo de pintar algo mais do que quadros de cavalete – e de reatar com uma tradição mexicana que remontava aos templos dos deuses, inteiramente decorados de pinturas, e que se continuara pelo século XVI, ao longo do qual os missionários faziam igualmente cobrir de murais as suas igrejas-bastiões, para a boa conversão dos indígenas [...]

O programa do movimento estava em acordo com as teorias do filósofo e revolucionário José

de Vasconcelos, presidente da Universidade e ministro da Educação, que tinham origem

positivista e previam que os mexicanos só seriam convencidos dos ideais revolucionários se

fossem primeiramente persuadidos pela estética (ADES, 1997, p. 152). Acreditando na

importância de os artistas conhecerem a longa tradição muralista, que já existia no país desde a

época pré-colombiana, Vasconcelos promoveu uma viagem de artistas e intelectuais a Yucatán,

em 1921, para visitarem as estações arqueológicas Chichén Itzá e Uxmal, onde muros e templos

eram cobertos por pinturas.

Grande parte dos pintores ligados ao movimento reuniu-se em 1923, no Sindicato

Revolucionario de Obreros Técnicos y Plásticos, para lançar o que seria o corpo teórico do

muralismo: a Declaração Social, Política e Estética, na qual se propunha a socialização da arte, a

produção de obras para o domínio público e a criação de uma estética da luta revolucionária.

Apesar dos caminhos diferentes pelos quais seguiram a tríade por excelência do movimento -

Siqueiros, Rivera e Orozco – todos estavam unidos pelo nacionalismo e pela reação contrária ao

gosto burguês e acadêmico.

O muralismo mexicano repercutiu em toda a América Latina. No Brasil, suas influências

podem ser atestadas na obra de Di Cavalcanti [1897-1976] e Candido Portinari [1903-1962]. Este

último associa as referências do muralismo à pesquisa de temas nacionais, com forte acento

social e político em trabalhos como Mestiço (1934), Mulher com Criança (1938) e O Lavrador de

Café (1939). Nas décadas de 1940 e 1950, o artista realiza diversos projetos para painéis:

Catequese dos Índios (1941), para a Library of Congress (Biblioteca do Congresso) em

Page 86: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

86

Washington D.C., Jangada do Nordeste (1953) e Seringueiro (1954), encomendados pelos

Diários Associados de Assis Chateaubriand. 49

Há uma forte presença da pintura mural nas cidades brasileiras já desde fins do século XIX

(com artistas como Georg Grimm e Thomas Driendl, autores da pintura decorativa da antiga

sede do Liceu Literário Português do Rio de Janeiro, em 1883) e de forma mais vigorosa com o

Modernismo. 50 É interessante assinalar ainda que o muralismo se tornou a “primeira

articulação continental dos artistas contemporâneos da América Latina” 51. Entrou nos Estados

Unidos na época dos projetos do New Deal, quando se fundou no país um programa para

combater o desemprego dos artistas, semelhante ao caso mexicano. Por conta do programa, o

artista estadunidense George Biddle realizou dois murais para a Biblioteca Nacional do Rio de

Janeiro, durante a Segunda Guerra. Em contrapartida, o governo brasileiro enviou Portinari para

fazer os afrescos em Washington em 1942.

É interessante notar a passagem em que Lívio Abramo, em fins dos nos 1930, apresenta uma

proposta ao então prefeito de São Paulo, Prestes Maia, para que o governo concedesse

oportunidades para que os artistas pudessem participar das remodelações da cidade com

pinturas murais e estatuaria de edifícios e logradouros públicos. Na mesma época, Odetto

Guersoni publica o manifesto da recém-criada Oficina de Arte (ODA), entidade que perpetua a

tradição dos artistas paulistanos de se reunirem em grupos (como Santa Helena, Osirarte,

Sindicato dos Artistas Plásticos). No documento “A arte não é um privilégio”, a ODA afirma a

intenção de criar uma arte “ao sol, nas praças, entre o povo” e ainda: “[...] criar uma frente de

trabalho possibilitando ao artista aplicar sua arte na ‘arquitetura’, na paisagem citadina, na

ilustração, no teatro, no cinema, e em tudo o que seja para o povo, para as grandes massas”

(AMARAL, 1984, p. 136).

Segundo Diaz (2004, p. 10), a repercussão do muralismo mexicano foi ainda maior em países

onde se conservava uma forte memória indígena: “Sem dúvida, o momento de sua aparição

dependeu das condições políticas locais vigentes. As razões eram as mesmas: necessidade de

expressar experiências nativas, preocupações políticas, sociais de independência e identidade”.

49

Disponível:

www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3190&

cd_idioma=28555. Acesso em: 22 jun. 2014 50

Segundo Leite (1988, p.338), Portinari foi o mais importante dos muralistas brasileiros (com obras como os

dois gigantescos murais Guerra e Paz, oferecidos pelo Brasil à Organização das Nações Unidas, em Nova York). 51

AMARAL, Aracy. In: Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe. Rio de Janeiro. Boitempo,

p. 143, 2006.

Page 87: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

87

Assim, a autora aponta nomes em diversos países que expressam as influências do muralismo

na América Latina em diversas épocas. No Equador, Eduardo Riofrío Kingman, Osvaldo

Guayasamín e Luis Alberto Acuña; na Bolívia, Miguel Alandia Pantoja; no Paraguai, Olga Blinder,

Roberto Holden Jara, Josefina Plá, José Laterza Parodi e Carlos Colombino.

É importante assinalar aqui a estreita ligação entre a política norte-americana na Guerra Fria

e o ocaso do muralismo mexicano, cujo estilo realista social passou a sofrer várias críticas, que

eram favoráveis a estilos internacionais como o expressionismo abstrato. Com objetivos

específicos, a penetração cultural estadunidense inicia-se na América Latina primeiramente

através do México, onde ocorrera uma revolução social de peso, irradiadora para toda a região

em forma de tendências nacionalistas. Como afirma Goldman (1978, apud AMARAL, 1984, p. 18):

O “lucro” que os Estados Unidos recebiam é claro que não redundava em dólares, mas numa moeda mais sutil, que consiste na modificação da consciência, a infiltração cultural, o desvio de uma arte orientada socialmente, nacionalista e objetiva (representado pelo realismo social) para uma arte de orientação formalista e abstrata que -, como assinalou Mathias Goeritz -, agradava somente a um número limitado de intelectuais. 52

E, de fato, o muralismo foi o primeiro grande movimento a unir ética e estética de forma

abrangente e sistemática. O próprio artista Diego Rivera [1886-1957], mesmo admitindo que o

movimento não oferecera nenhuma contribuição nova à plástica universal, nem à arquitetura

ou escultura, afirmou:

[...] pela primeira vez na história da arte da pintura monumental, isto é, o muralismo mexicano, cessou-se de empregar como heróis centrais dela, os deuses, os reis, chefes de estado, generais heroicos, etc.; pela primeira vez, na história da arte, repito, a pintura mural mexicana fez herói da arte monumental a massa, isto é, o homem do campo, das fábricas, das cidades, do povo. (RIVERA, 1979, apud AMARAL, 1984, p. 20) 53

Sobretudo, o movimento exerceu influências em várias esferas artísticas e culturais, como

atesta Archer (2001. P. 145): “A arte russa revolucionária e os murais dos mexicanos Diego

Rivera e David Alfaro Siqueiros foram vistos como influência precursora pelos artistas públicos

dos anos 70”.

52

GOLDMAN, Shifra. “La pintura mexicana em el decênio de la confrontación: 1955-1965”. México: Plural,

1978. 53

RIVERA, Diego. Arte y política. Grijalbo: Teoria y Praxis, 1979, p. 26.

Page 88: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

88

2.2.3 - Siqueiros: o primeiro grafiteiro

Um dado interessante levantado durante pesquisa de campo em Buenos Aires foi a

descoberta do mural “Ejercicio Plástico”, de David Alfaro Siqueiros [1896-1974], atualmente

instalado no Museu Comemorativo da Independência, situado no pátio da Casa Rosada, no

antigo forte restaurado. Trata-se de uma obra de caráter inovador na história da arte urbana,

em função de diversos fatores, entre eles, a utilização que o artista fez de uma técnica muito

semelhante aos grafites contemporâneos realizados com spray. Concebida, em 1933, para uma

residência particular, com ajuda dos pintores argentinos Antonio Berni, Juan Carlos Castagnino,

Lino Enea Spilimbergo e o uruguaio Enrique Lázaro, o painel ficou esquecido por quase sessenta

anos e foi transferido recentemente para o museu por um complexo aparato de transporte em

função das grandes dimensões das peças que o compõem. Siqueiros dizia que a obra era uma

ginástica plástica, que não tinha conteúdo. A Jornalista Ana Martínez Quijano descobriu o painel

em 1985, após ver fotografias do mesmo na casa de Lily Berni, filha do pintor Antonio Berni

[1905-1981]. A partir de então, pesquisou profundamente o assunto, descrito no livro “Siqueiros

– Muralismo, Cine Y Revolucion”, lançado em 2010.

Conta-se a história: Expulso do México em 1932 por seu radicalismo ideológico e deportado

dos Estados Unidos por atividades políticas ilegais, Siqueiros chegou a Buenos Aires em maio de

1933, ficando na capital porteña por sete meses. Apesar da decadência econômica, a cidade

ainda ostentava um brilho cosmopolita e eclético, bem diferente das outras capitais latino-

americanas. Siqueiros presenciou o enterro do líder radical Hipólito Yrigoyen. A morte do ex-

presidente, derrotado em 1930, pelo general José Félix Uriburu, selava definitivamente o fim do

período promissor pós-guerras internas, terminando de vez a “belle époque” argentina.

O panorama das artes visuais porteñas estava dividido entre as tendências conservadoras, as

linguagens individuais, a irrupção das vanguardas e a chamada escola de Paris. Apesar de

imperar no gosto geral a arte acadêmica europeia, Siqueiros exerceu enorme influência

proferindo palestras sobre suas ideias revolucionárias ligadas à estética que marcava suas obras

do muralismo mexicano, e sua intenção de trazer para a Argentina os ideais de uma arte pública

democrática. Causando polêmica ao publicar artigos atacando a arte conservadora e incitando

os artistas a formarem um movimento de arte pública, Siqueiros acabou sendo ameaçado de

prisão. Foi quando Natalio Botana - magnata dotado de ideias progressistas e dono do jornal

Crítica, primeiro jornal de esquerda no país - lhe ofereceu um refúgio: o sótão da quinta Los

Page 89: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

89

Granados, em Don Torcuato. A quinta era luxuosa, construção gigantesca em estilo que

mesclava o hispânico e o colonial, recebeu hóspedes célebres como García Lorca e Pablo

Neruda.

Antes de sua reclusão, Siqueiros havia produzido inúmeras máscaras de estêncil para fazer

imagens reprovando a ditadura argentina. Utilizou para isso um aerosol, antigas bombas

manuais de inseticida. Provou a resistência da pintura de silicato, quando viu a dificuldade que a

limpeza pública havia tido para apagar suas imagens em muros da cidade. A técnica já havia sido

colocada em prática em murais em Los Angeles, quando Siqueiros teve a ideia de trocar o pincel

por uma ferramenta industrial, muito mais rápida, as pistolas de ar com pigmentos diluídos em

água. Em “Ejercício Plástico”, Siqueiros:

[...] encontrava em um lugar que não resultava ideal para colocar em prática os enunciados que havia difundido na Argentina, porém longe de limitar-se a decorar o sótão de um homem rico, se concentrou na análise dos problemas visuais e estreitou a relação da arte com a tecnologia, fabricou uma autêntica máquina de percepção, antecipatória do cinetismo, da instalação e do site especific. (QUIJANO, 2010, p. 141, tradução nossa)

Assim, a autora explica que Siqueiros nunca perdeu de vista seu principal dilema naquele ano:

superar a decadência do muralismo que, anteriormente entendido como arte pública por

excelência para as massas e fenomenal veículo de expressão ideológica, estava correndo o risco

de se tornar algo exótico, um fenômeno curioso, tão atrativo para o turismo como para as

massas proletárias. 54 O mural, então, se tornou uma nova oportunidade para consolidar a

segunda etapa do muralismo que Siqueiros acabara de inaugurar nos Estados Unidos,

explorando a potencialidade criativa deste suporte.

O espaço de Los Granados, com paredes arredondadas e não maior que 130 m², o que lhe

confere um aspecto de gruta, se tornou uma belíssima composição, inteiramente composta de

elementos e cores, algumas figuras nuas e distorcidas. Por meio de um truque visual, um efeito

ilusionista, transformou o local obscuro em uma espécie de gruta de cristal. A sensação é de que

espectador está dentro de uma cápsula submersa e por meio da suposta transparência das

54

A partir de meados de 1950, o muralismo foi criando opositores: de um lado, a crítica de Marta Traba, que

dizia que o movimento havia perdido sua força política e se institucionalizado; de outro lado, o artista José Luis

Cuevas, um dos pioneiros da nova figuração, movimento que abandonava o indigenismo engajado para abraçar a

causa internacional da liberdade de estilos. (SADER, 2006, p. 114)

Page 90: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

90

paredes, pode ver os personagens pintados, que parecem estar exteriores a essas paredes por

meio de vertiginosos escorços que se propagam tridimensionalmente ao infinito.

2.3 O PÓS-GUERRA

2.3.1 A virada definitiva no conceito de arte urbana

No Pós-Guerra, os movimentos artísticos em espaços urbanos se intensificaram por meio de

diversas iniciativas. A partir dos anos 1950, grandes transformações sociais e políticas

ocorreram na moderna cultura ocidental, e as metrópoles viraram o palco dessas mudanças. É

nesta década que ocorrerá em Nova York a antológica travessia não autorizada do artista

Philippe Petit em uma corda bamba entre as torres gêmeas (a cidade firmara-se definitivamente

como centro da arte mundial, o que vinha ocorrendo desde a ascensão do expressionismo

abstrato, que deixou a Paris das primeiras vanguardas em segundo plano).

O contexto artístico geral, de onde brotam as novas experiências com o espaço urbano, é

marcado pelas transformações propostas pelo novo abstracionismo, como a expansão da escala

e a técnica da Action Painting (isto é, uma arte que dependia de uma ação cromática

comandada pela presença corporal e dramática do artista, como fazia Jackson Pollock sobre

Figura 29: Trecho do mural Ejercicio Plastico, de Siqueiros

Page 91: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

91

suas grandes superfícies estendidas no chão). Deste núcleo de transformações (o caráter

monumental, a presença corporal do artista, a ação criadora), Canongia (2004, p. 13) aponta

desdobramentos na Pop Art, no Minimalismo, na Land Art, nas performances, nos happenings.

Pollock, inclusive, é visto por muitos como o “pai da performance” (CANONGIA, 2004, p. 14).

Por outro lado, o excesso de emotividade, da subjetividade e a relevância da própria pintura,

característicos do Expressionismo Abstrato, acabaram deflagrando seu próprio declínio, o que já

vinha ocorrendo por meio da influência duchampiana que, nos anos 1950, corria paralelamente

a este movimento (lembremos que o estatuto do readymade nasce na década de 1910 com a

roda de bicicleta). A respeito do readymade, afirma Canongia (2004, p. 15):

De certa forma, ele é a própria agonia da ideia de modernidade, pois desmantela os princípios e técnicas que regularam os programas modernos e nega o sistema de valores que edificou a própria noção de objeto artístico. O readymade impõe-se como uma arte de subversão, que se rebela contra o formalismo e as convenções burguesas, que Duchamp acreditava ainda vigorarem nos movimentos da modernidade.

Sobretudo, pode-se falar em uma profunda relação destas transformações estéticas com as

mudanças culturais e sociais advindas do crescimento urbano. Há um cansaço das estéticas

formalistas que, com seu caráter individualista, não respondem mais aos anseios de uma cultura

urbana coletiva. A Pop Art incorpora signos urbanos justamente nesta direção, como faziam

Robert Rauschenberg e Jasper Johns, ao inserirem elementos do cotidiano a suas obras, como

refugos urbanos e outros materiais não nobres, fazendo assim a esfera poética ligar-se mais

estreitamente ao prosaísmo da vida (e também não deixaram de ser criticados pelos entusiastas

do expressionismo, como o crítico Lawrence Alloway, que chegou a apelidar de “junk art” a

produção desses artistas).

Na esteira desta multiplicidade de linguagens, especialmente a partir dos anos 1960, surgiram

os primeiros indícios de uma nova vertente de arte urbana, na qual “[...] ação e experiência

artística — o processo — são mais importantes do que a permanência do resultado final — um

objeto artístico” (ALVES, 2008, p.7). Assim, pode-se pensar na escalada de uma nova arte

urbana, que afirma o lugar da cidade enquanto lugar de trocas de subjetividades, de abertura

para a comunicação e de organização de sentidos.

Page 92: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

92

Com as novas experiências artísticas no espaço da cidade, surge um alargamento da noção de

site (bordão utilizado para sítio*, que se generalizou no vocabulário da crítica), fazendo emergir

outros conceitos, o de site-specific*, site-oriented*, que implicam em:

[...] não dizer simplesmente que um trabalho está fundado em determinado lugar, nem que ele é o lugar. Implica que o significado do trabalho é dependente em grande escala da configuração do espaço no qual foi realizado. Assim, se um mesmo objeto foi arranjado da mesma forma, mas em outra localização, isto se constitui em um diferente trabalho. (ARCHER, 1994, p. 35, tradução nossa)

Segundo Suderburg (2000, p. 4), a terminologia consolidou-se com o advento do

Minimalismo, que sinaliza uma tendência de o artista se voltar para o espaço, incorporando-o à

obra ou transformando-o, seja ele o espaço da galeria, do museu, do ambiente natural ou de

áreas urbanas. Ao comparar a escultura moderna com o site-especific, Kwon (2000, p. 38)

explica que: no primeiro caso, a escultura rompe com seu pedestal e passa a operar em uma

relação mais efêmera com o espaço, tornando-se uma obra nômade; enquanto isso, as

neovanguardas rompem com este paradigma, apropriando-se do espaço como algo real, físico,

gravitacional. “O objeto de arte ou evento nesse contexto era para ser experimentado

singularmente no aqui-e-agora pela presença corporal de cada espectador [...] mais do que

instantaneamente ‘percebido’ em epifania visual em um olho sem corpo” (KWON, 2000, ps. 38-

39, tradução nossa).

Nesta linha de pensamento, cada artista oferecerá seu quinhão. Robert Smithson [1938-1973]

contribuiu para cristalizar o conceito central de “site” e prover um caminho de pensamento

sobre a relação entre o espaço da galeria e o ambiente de seu entorno; os artistas do Grupo

Fluxus, como Nam June Paik [1932-2006], utilizaRAm a tecnologia para investigar essa mesma

relação; Marcel Broodthaers [1924-1976], na linha duchampiana, providenciou uma crítica ao

museu ao levar o museu para sua própria casa (primeiramente, em 1968, o Museu de Arte

Moderna, Departamento das Águias, em seu apartamento, e depois em outros locais); e Gordon

Matta-Clark [1943-1978], que transferiu a mesma problemática “arte X espaço” para as

questões próprias da cidade, cortando construções e dando assim uma expressão inovadora na

área urbana em que suas obras estavam situadas.

Robert Smithson deixou particular contribuição para este quadro, já que sistematizou

teoricamente a distinção entre “site”, como um local particular, e o “Nonsite”, que preza a

Page 93: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

93

utilização de materiais geológicos e orgânicos transferidos para esculturas, substituindo a

utilização do aço na arte minimalista. Assim, o “Nonsite” definiria esta desterritorialização da

noção de site-specific. Autor de obras de land art, Smithson ficou conhecido pelas suas

intervenções no Uthai (EUA), às quais o artista deu o título de Spiral Jetty (1970). O artista

afirmava que entre o site e o non-site há um vasto campo metafórico a ser percorrido

(SMITHSON, 1996, p.364), como definiu Suderburg (2000, p. 4, tradução nossa): “O conteúdo

poderia ser o espaço. O espaço poderia ser o conteúdo [...]”.

São exemplos de trabalhos que estimularam as novas reflexões sobre o próprio uso dos

espaços e sua relação com a sociedade nos contextos marcados pelo final da Segunda Guerra

Mundial, pela Guerra Fria, e pelos movimentos civis reivindicatórios. No lugar de categoria fixa,

a paisagem ganha outras noções, como a mobilidade e a transformação, como mostra o

trabalho de Richard Serra, para quem interessa “[...] a dialética entre a percepção que uma

pessoa tem do lugar, em totalidade, e a relação que tem com o campo, caminhando” (SERRA,

1970-72, apud COTRIM, Cecilia/FERREIRA, Glória, 2006, p. 326) 55. Durante a polêmica sobre a

obra Tilted Arc, Serra escreveu uma carta dizendo que a obra era um “site-specific” e não um

“site-adjusted”, revelando a inseparabilidade entre o trabalho e seu local físico.

A performance, que ganha força como linguagem a partir dos anos 1960, é outro exemplo de

gênero artístico altamente incorporado ao cotidiano e ao entorno urbano, cujo sentido só se

realiza a partir desta relação espacial. Uma das atuações emblemáticas foi a do grupo Fluxus56,

que procurava entender o processo urbano como local de oposição à mercantilização da arte.

Em vez de representar o cotidiano, este era resignificado por meio de intervenções e do ruído

no fluxo banal da vida. Com origem ligada ao Festival Internacional de Música Nova, em

Wiesbaden, Alemanha, em 1962, o grupo mantinha constante diálogo com a música de John

Cage [1912-1992] e Nam June Paik [1932-2006], comprometidas com a exploração de sons e

ruídos tirados do cotidiano. Também surgiu neste período a Body Art*, que se associou com

frequência ao happening e à performance, não para representar questões relativas ao corpo,

mas para tornar o corpo do artista o suporte das intervenções.

55

Deslocamento (1970-72). 56

Segundo Dempsey (2003, p. 228): “O Fluxus pode ser considerado (como seus próprios membros o viam)

como uma derivação do movimento neodadá dos anos 50 e 60, relacionado com o letrismo, a arte beat, a arte

funk, o novo realismo e a Internacional Situacionista.” É importante enfatizar que muitos objetivos do Fluxus

foram concretizados por Ray Johnson (1927-95), que passou a fazer arte postal. Algumas iniciativas atuais ainda

se ligam aos ideais do grupo, inclusive, por meio de arte feita na internet.

Page 94: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

94

Estas manifestações estéticas acompanharam as transformações sociais da época, quando se

questionavam valores relativos às minorias étnicas, às mulheres e aos homossexuais. Neste

ritmo, o corpo converteu-se em suporte da arte. Então, pode-se voltar aqui à questão da cidade

em si, e sua relação com o corpo, como mostra Mongin (2009) ao explicar a necessidade de se

restituir à “condição urbana” as exigências corporais, cênicas, estéticas e políticas que são suas

atribuições e matriz. Em seu apelo para resgatar um sentido de local frente à cidade de redes e

de não-lugares, o autor elabora uma apologia do corpo na cidade: “A experiência urbana é

primeiramente corporal”(MONGIN, 2009, p. 242). Assim, a “condição urbana”, como a arte

desta vertente, requer corpos presenciais, corpos citadinos. “Não nos livramos, mesmo em

nome da revolução global em curso, do real, do corpo e do desejo de habitar um lugar, do corpo

a corpo com o mundo!” (MONGIN, 2009, p.238). Como explicam Jeudy e Jacques (2006, p.9): “A

experiência corporal da cidade é o exato oposto da imagem urbana fixada em um logotipo

publicitário. Pois uma experiência corporal singular não se deixaria seduzir a uma simples

imagem de marca”.

Artistas desta linhagem procuravam realizar uma mudança radical de sensibilidade e

percepção, adequando esta premissa ao cotidiano das cidades, como ocorreu em Nova York,

palco de atuação para uma grande geração interessada nestes preceitos. Allan Kaprow [1927-

2006] (aluno de John Cage) utilizou o espaço urbano como suporte com o objetivo de diluir as

fronteiras entre obra e cotidiano. Inventor do happening 57, gênero em que ocorre uma série de

ações no mesmo espaço e tempo e que nunca podem ser repetidas novamente, Kaprow, ainda

no início de sua trajetória (marcada pela produção de grandes painéis), refletia sobre o futuro

de sua arte como: “[...] uma situação, uma ação, um ambiente ou um evento” (SCHIMMEL,

2008, p. 15, tradução nossa).

Uma de suas famosas performances consistiu em fazer com que dezenas pessoas de mãos

dadas andassem em linha reta ao longo de vários quilômetros em Nova York, desviando-se ou

chocando-se com pessoas ou barreiras construídas. Pode-se entender nesta relação cidade-arte,

o papel de Kaprow como um propositor da cidade real, em que experiências corporais e

sensórias tentam resgatar a humanidade das relações e o sentido da coletividade. Do ponto de

vista da fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty (2013) aponta para o fato de que visão e

57

Esta fase foi posterior às suas “action-collages” que, por influência de Polock, eram compostas por fragmentos

cotidianos. Depois da fase dos happenings, passou a utilizar o termo “Activity” para definir estas ações, que

passaram a ser realizadas por familiares, amigos, artistas, mesmo a partir de um manual e sem a presença de

Kaprow (SCHIMMEL, 2008).

Page 95: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

95

experiência corporal são indissociáveis. Neste sentido, é importante enfatizar o papel da

Internacional Situacionista, que propunha uma ideia de “deriva" do corpo, associada à

apropriação do espaço urbano, onde seria o local ideal de uma reconquista da liberdade.

Pode-se encontrar esta noção da deriva em determinado momento na trajetória de Hélio

Oiticica, com seu conceito de “delírio ambulatório” aplicado à performance que o artista

realizou durante o evento Mitos Vadios, realizado por Ivald Granato, na rua Augusta, em 1978.

Diferentemente de entender o espaço urbano como o local onde simplesmente pode acontecer

a produção artística ou se implantam “objetos de arte”, movimentos artísticos e iniciativas

pontuais a partir dos anos 1960 permitiram outra ressonância na relação entre arte e cidade.

Como as vanguardas heroicas da primeira metade do século XX, os artistas neovanguardistas

58 ainda questionavam o establishment do sistema das artes e da sociedade em geral, porém

passaram a entender o cotidiano urbano como símbolo, campo de ação, matéria-prima e

suporte para a arte. Como afirma Tassinari (2001, p. 75):

A comunicação, promovida por um espaço em obra, entre o espaço do mundo em comum e o espaço da obra, é algo inteiramente novo na história da arte ocidental. Tanto para uma pintura quanto para uma escultura contemporâneas, o espaço do mundo em comum passa a assumir funções que antes, na arte naturalista - e mesmo na formação da arte moderna -, se cumpriam no próprio espaço da obra.

Nas neo-vanguardas, pode-se atestar ainda o caráter de agitação política e social que marcou

as vanguardas históricas, porém “[...] sempre sob o signo da explosão estética fora de seus

limites tradicionais”, afirma Vattimo (1996, p.42), lembrando que o lugar tradicionalmente

eleito para a experiência estética (o museu, o teatro, o livro, a galeria, etc.) é negado. Cotidiano

e arte se aproximaram: “Uma obra contemporânea não transforma o mundo em arte, mas, ao

contrário, solicita o espaço do mundo em comum para nele se instaurar como arte.”

(TASSINARI, 2001, p. 76). Neste período, também é interessante notar a aproximação que

Santos (2006) afirma existir entre as transformações que se operavam tanto no campo artístico,

quanto arquitetônico, lembrando que a arquitetura foi o palco das discussões estéticas sobre a

58

Consideramos aqui os conceitos de vanguardas históricas e neovanguardas propostos por Bürger. Segundo este

autor, movimentos históricos de vanguarda abarcam exemplos como o Dadaísmo, o primeiro Surrealismo, o

Cubismo, o Futurismo italiano e o Expressionismo alemão, que propunham a ruptura radical com a tradição. Já

as neovanguardas, surgidas nos anos 1950 e 60, apesar de compartilharem as aspirações de seus antecessores,

também vêem falhar o projeto de inserção da arte na práxis vital (BÜRGER, 2008, p. 184).

Page 96: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

96

gênese e exaustão do modernismo. Como explica o artista Dan Graham 59, um dos grandes

nomes a trabalhar a arte na cidade no pós-guerra:

O formalismo estético e o funcionalismo na arquitetura são similares filosoficamente. Justamente por isso, a arquitetura funcionalista e o minimalismo têm em comum uma crença subjacente na noção kantiana da forma artística como uma “coisa-em-si” perceptiva/mental, o que supõe que os objetos artísticos são a única categoria de objetos “não para o uso”,

objetos nos quais o espectador tem prazer sem interesse. (GRAHAM, 1978, apud COTRIM, Cecilia/FERREIRA, Glória, 2006, p. 436)

Graham mostra ainda como o Minimalismo e a arquitetura pós-Bauhaus são comparáveis em

seu materialismo abstrato e formalidade redutiva, ambos compartilharam a crença em uma

forma objetiva, cuja auto-articulação entre seus elementos formais internos a isolam de

possíveis códigos simbólicos e narrativos, negando assim qualquer sentido conotativo. Da

mesma forma como associa o Minimalismo à arquitetura modernista, Graham tece paralelos

entre a arquitetura de Robert Venturi e de seus colaboradores com a Pop Art. Ao rejeitar o

reducionismo utópico da doutrina modernista, Venturi transportou para a linguagem

arquitetônica a sintaxe do vernáculo comercial, incluindo a relação do edifício com seu entorno

e sua apropriação pelo público (como havíamos descrito anteriormente com o movimento

contextualista na arquitetura). A rejeição ao vocabulário abstrato e materialista, aos moldes dos

artistas pop britânicos e estadunidenses, deu lugar à comunicação, ao gosto popular, como

Venturi fez com o edifício Guild House (Filadélfia-1963), destinado à moradia de idosos e que

virou marco da chamada arquitetura pós-moderna por sua comunicação simbólica com a

realidade e seu entorno.

Ainda como exemplo da arquitetura contextualista, há o caso do arquiteto holandês Herman

Hertzberger, que radicalizou sua crítica ao funcionalismo com uma arquitetura aberta à

apropriação pelos usuários. Seguindo seu próprio conceito de “claridade labiríntica”, construiu

espaços interiores intrincados, mudanças bruscas e escala variável, com a ideia de que o edifício

só se completaria a partir de sua ocupação. Lembramos ainda a incursão do arquiteto Daniel

Libeskind pela arte, quando fez em 1988 a obra “Line of Fire”, no Centro de Arte

Contemporânea, em Genebra, na qual ele criou um caminho entre as colunas do prédio com

placas de metal em formato zig-zag. Ou ainda o caso do arquiteto artista André Bloc, que

59

A arte em relação à arquitetura.

Page 97: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

97

fundou o grupo "Espace”, que reuniu arquitetos, urbanistas e artistas com o objetivo de trazer

para o mundo urbano os ideais do construtivismo e do neo-plasticismo. Suas obras, edifícios,

esculturas públicas e objetos de design apresentavam concomitâncias entre si, por meio de

formas orgânicas, que se assemelhavam a grandes organismos vivos.

Iniciativas como essas procuravam, em suma, novas formas de aproximação entre arte e vida,

forma e cotidiano, estética e ética, cultura erudita e de massa. Como afirma Duarte (2006, p.

14), obras dessa natureza ampliaram: “[...] o campo da experiência estética para uma nova

relação entre arte e espaço urbano e entre arte e natureza, impondo novos postulados e

paradigmas para serem pensados.” Surgia, assim, um quadro conceitual desconhecido pela arte

moderna.

Acima de tudo, as novas práticas artísticas e culturais contribuíram com a revisão dos

parâmetros conceituais aos quais estavam entendidas as noções da paisagem do ponto de vista

objetivo e descritivo, abriram possibilidades para se compreender a paisagem além de seus

aspectos topográficos, por meio da articulação de experiências e práticas discursivas e culturais.

Os artistas desta geração contribuem para a construção de uma nova reflexão sobre usos dos

espaços e da relação da sociedade estabelecida com os mesmos. A arte urbana se constrói a

partir dessa mudança paradigmática; é uma arte contextualista, que se faz juntamente com a

paisagem e cujo sentido se completa a partir da participação do cidadão-espectador.

2.3.2 Linguagens construtivistas latino-americanas e o papel peculiar do Concretismo e do

Neoconcretismo no Brasil

“Foi em um momento de enorme otimismo e paixão pelo novo que os movimentos concreto

e Cinético nasceram”, afirma Brett 60 (BRETT, 1997, apud ADES, 1997, p. 255) ao definir o

panorama latino-americano na década de 1950. Enquanto a Europa sofria as consequências da

guerra, as economias latino-americanas viviam um boom econômico, com crescentes processos

de industrialização e urbanização que se refletiam em um novo mercado de arte e no

florescimento definitivo da arquitetura moderna.

Como afirma Brito (1999, p. 52):

60

Um salto radical, 1967.

Page 98: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

98

As ideologias construtivistas estão organicamente ligadas ao desenvolvimento cultural da América Latina no período de 1940 a 1960. Encaixavam-se com perfeição nos projetos reformistas e aceleradores dos países do continente e serviram, até certo ponto, como agentes da liberação nacional ante o domínio da cultura europeia, ao mesmo tempo que significavam uma inevitável dependência desta.

Apesar das influências estrangeiras (como a exercida sobre os artistas brasileiros e

argentinos pelo artista suíço premiado na Bienal de São Paulo, Max Bill), muitos artistas, como

Anatol Wladyslaw [1913-2004], Lothar Charoux [1912-1987], Luiz Sacilotto [1924-2003] e

Waldemar Cordeiro [1925-1973], além de incorporarem as novas linguagens da abstração

geométrica, passaram a criar programas voltados para questões práticas sociais, de acordo com

uma tradição construtivista que estava “[...] relacionada ao meio, à arquitetura e à participação

do espectador [...]” (BRETT, 1997, apud ADES, 1997, p. 256) 61. Brito (1999, p. 60) lembra que

não se tratava exatamente de uma politização da arte, mas sim de uma estetização da política,

já que esta arte buscava, sobretudo, estender seu campo ao território da vida urbana cotidiana,

dos processos de industrialização e das informações de mídia. Frisamos aqui a influência do

projeto construtivo da Bauhaus e da Escola de Ulm, com seu ideário de levar a estética para

outros campos da vida urbana, promovido por uma educação que integrava artes, paisagismo,

urbanismo, arquitetura e design. As limitações ingênuas das correntes construtivistas, que

estariam presas a uma estética coletiva graças às operações semióticas, são explicadas por Brito

(1999, p. 69):

[...] o concretismo era presa de uma crença ingênua no progresso, que o levava a pensar os mass media como instrumentos de uma penetração cultural pertinente às “necessidades espirituais” do homem moderno. À custa, evidentemente, de ignorar seu caráter de dispositivo ideológico dos Estados capitalistas.

Brett (1997) mostra como a relação da arte com o social implicou em seu laço com a

arquitetura, em um momento em que o otimismo latino-americano se refletia em

encomendas públicas e privadas, a exemplo do que ocorrera na Venezuela com Soto, Otero

e Cruz-Diez, que criaram obras para praças, pontes, teatros, sedes de empresas, saguões de

hotéis, etc. No caso venezuelano, o autor aponta para o cenário econômico altamente

favorável à arte urbana: os lucros advindos das atividades do petróleo e a consequente

61

Ibidem.

Page 99: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

99

identificação das obras desses artistas com o orgulho nacional. Um dos grandes símbolos

desse cenário são as ambiciosas obras “Torre Solar”, de Otero, e as pinturas de turbinas de

Cruz-Diez no novo Guri Dam. “É difícil imaginar qualquer país europeu dando a seus artistas

a quantidade de trabalhos na escala em que deu a Venezuela.” (BRETT, 1997, p. 282).

Entretanto, o autor questiona:

Mas será que alguma coisa não estaria sendo sacrificada neste processo? Não estariam os artistas aceitando um papel social que lhes comprometeria as descobertas originais ao fazerem do insubstancial substancial, ao transformarem a perturbadora marca de uma liberdade possível em harmonizações decorativas de ambientes incoerentes? (BRETT, 1997, p. 282).

Operações singulares entre arte e espaço urbano surgiram naquele momento no contexto

latino-americano. Lucio Fontana, por exemplo, sempre se interessou pelo espaço

arquitetônico, emprestando sua colaboração ainda no início da década de 1950 a arquitetos

e desenhistas: tetos com perfurações, com iluminação indireta, com arabescos, lâmpadas de

neon (aliás, não esquecemos de que seus rasgos sobre tela atrelam sua filiação a uma arte

de ação que se desenvolve desde Jackson Pollock). No México, Mathias Goeritz colaborou

com diversos arquitetos, que o defenderam contra os ataques dos muralistas e da imprensa.

Sua monumental obra “Cinco Torres” (1957-58), em cimento, tornou-se símbolo da Cidade

do México. Sergio Camargo, no Brasil, também compôs diversos painéis externos.

No caso do Brasil, os movimentos Concretista e Neoconcretista foram de importância

definitiva para a cultura nacional a partir da década de 1950, tanto no campo das artes plásticas

como na literatura e na música. A briga entre os dois movimentos (o primeiro, nascido em São

Paulo, mais racionalista e normativo; o segundo, no Rio de Janeiro, mais subjetivo e politizado) é

emblemática quanto às relações entre arte e vida. Apesar de serem influenciados por artistas e

correntes internacionais (como Mondrian e Malevich, a vanguarda russa, os artistas do Stijl

holandês, a Bauhaus e o grupo de Ulm), estes movimentos tiveram papel peculiar no percurso

da história da arte latino-americana e de sua relação com a cidade, como mostra a afirmação de

Brett (apud COCCHIARALE; OITICICA, 2010, ps. 29-30) 62:

62

Texto para o catálogo sem título.

Page 100: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

100

Foi nesse espírito rebelde da vanguarda brasileira nos anos 50 e 60 que lhe possibilitou penetrar a fundo as ideias de abstração europeia sem qualquer cerimônia exageradamente respeitosa ou sentimento de inferioridade. Era possível, portanto, para estes artistas visar o universal, até o cósmico, estando ao mesmo tempo imersos no local e no particular. [...] eles valiam-se da realidade brasileira para tentar resolver alguns dos dilemas contemporâneos mais profundos. Ademais, uma certa argúria era necessária para que o estético fosse dissociado da produção de tipos particulares de objeto, e reconfigurando como “comportamento-vida”, “atos da vida”(Oiticica). Não se pode encaixar o trabalho desses artistas no esquema da arte do pós-guerra como se ele fosse uma variação local de movimentos centrados na Europa ou na América do Norte. A fusão particular que eles realizaram, à medida que se tornar mais conhecida, deve mudar os princípios básicos de interpretação daquela história. No processo, o elo entre os artistas brasileiros e certos artistas do ocidente – especialmente em torno das inovações da “participação do espectador” – também se tornará claro.

O impulso inicial do Concretismo em um país com um processo de industrialização crescente

e com a expansão do sistema artístico finalmente parecia consolidar seu caminho rumo a uma

suposta modernização 63. Sob o propósito de negar a arte como representação e a função

imitativa da pintura, seus artistas procuravam: criticar o naturalismo, banir a expressão

individual ou nacionalista, desprezar a obra única, pensar a arte como projeto universalista e

cosmopolita, e assim por diante. Foi a época das grandes obras de Niemeyer, dos planos

urbanísticos de Lucio Costa, da fundação de museus, dos primórdios do cinema novo, da poesia

concreta.

Neste contexto, surgiram as formas geométricas irredutíveis, os jogos ópticos, os múltiplos,

etc.. Contra o argumento de que esta arte também se idealizara, já que com sua sintaxe purista

estaria se distanciando da realidade, estes artistas argumentavam que estavam se dirigindo

rumo a uma “[...] consciência universal da forma [...]” (CORDEIRO, apud AMARAL, et al., 1986, p.

107) 64, cujo ponto de chegada seria o conhecimento das leis morfológicas na natureza e na

arte. As aproximações entre arte e vida se revelavam na nova estética de sinalização urbana, no

desenvolvimento do design gráfico e de produto, o que às vezes estava a cargo dos artistas que,

com sua linguagem geométrica-abstrata, acreditavam na difusão universal da arte e na

transformação social advinda da comunicação.

63

O final dos anos 1940 foi marcado por iniciativas pioneiras, como as projeções abstratas de Abraham Palatnik

e os multivolumes de Mary Vieira, porém foi em 1952, com o manifesto Ruptura, em São Paulo, que a Arte

Concreta deflagrou seu início oficial (CANONGIA, 2005, p. 35). 64

A arte concreta e o mundo exterior, data não indicada na publicação.

Page 101: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

101

Apesar das discussões sobre seu suposto caráter político, o projeto construtivista brasileiro é

de fundamental importância para pensar o estreitamento da relação entre arte e cidade. A

realização de grandes painéis do artista Waldemar Cordeiro corrobora essa questão: “[...] as

concreções murais foram experiências nas quais Cordeiro dá à temática geométrica alcance

ambiental. Foram também dessacralizações da arte, obras situadas longe do espaço das

galerias, e integradas no espaço real do cotidiano” (BELLUZZO, 1986, p. 22). Cordeiro também

deu forma a esses ideais por meio de obras que convocavam a participação do espectador,

como nas chamadas estruturas aleatórias, que convidam o espectador a girar prismas de vidro

ordenados em estrutura de espelhos e grade de ferro.

Ainda nos anos 1950, Cordeiro também atuou como paisagista, colaborando por exemplo

com o arquiteto Vilanova Artigas. De 1950 a 1973, realizou mais de uma centena de projetos,

entre eles, planos de jardim, praças e parques, em sintonia com as propostas da arquitetura

modernista que previa um novo modo de conceber o espaço, promovendo a interação entre

interior e exterior. Em seu paisagismo, Cordeiro imprimiu sensibilidade estética por meio dos

jogos de tonalidades e do formato geométrico das plantas, além do desenho como um todo em

esquemas ortogonais, demarcação de curvas, jogos ópticos entre pedras, pisos e flora,

modulação e repetição de mudas, efeitos da luz natural e artificial, níveis dos terrenos, volumes

proporcionados entre espaços cheios e vazios. “As obras de paisagismo de Cordeiro vinham

deslocando o observador platônico e privilegiando o uso e a percorribilidade dos espaços em

sua dimensão real. Os percursos forneciam tantos pontos de vista, como os tempos subjetivos”

(BELLUZZO, 1986, p. 27).

O artista chegou a defender uma arte mural em sintonia com as vanguardas geométricas em

detrimento da figuração. Como afirmou Cordeiro (apud AMARAL, et al., 1986, ps. 51-53) 65:

O dever do artista para o mural é aceitar as condições plásticas já existentes como relação primeira do desenvolvimento de sua obra. As condições – dadas respectivamente pela dimensão da superfície da pintura, pela relação desta superfície com as outras que compõem o ambiente e pelas características cromáticas do local (que muito devem à iluminação) – constituem um pequeno fantasma poético, o ponto de partida que está para o mural em relação análoga em que o quadro de cavalete está para com a medida da superfície, a cor e a matéria da tela a ser pintada.

65

A arte polimatérica, sem data definida na publicação.

Page 102: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

102

Figura 30: Paisagismo de Cordeiro em residência paulistana (1955).

Fonte: AMARAL, Aracy. et al. Waldemar Cordeiro – uma aventura da

razão. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo,

1986, ps. 111-112.

Figura 31: Parque para crianças projetado por Cordeiro; união entre vida e arte.

Fonte: AMARAL, Aracy. et al. Waldemar Cordeiro – uma aventura da razão. Museu

de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1986, ps. 111-112.

Page 103: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

103

A passagem do Concretismo para o Neoconcretismo e a expansão do plano bidimensional

para o tridimensional foi outra inflexão na arte brasileira que também estimulou as

aproximações entre arte e vida, arte e cidade 66. É emblemática a atuação de Hélio Oiticica (um

dos mais jovens integrantes do grupo carioca Frente, inaugural do Neoconcretismo), que passa

das cores cheias e marcantes das composições geométricas bidimensionais à desintegração

total do quadro e da pintura. Primeiramente, Oiticica chegou à “cor-luz”, isto é, a composições

em que a cor opera em relação à incidência da luz, mudando de acordo com a posição do

observador. Assim, o artista passou a compor conjuntos cromáticos geométricos

tridimensionais, seus primeiros “Penetráveis”, que inseriam o espectador dentro de “quadros

reais”. Oiticica chegou a elaborar conceitos em torno de terminologias para esta nova arte,

como fez com seu “Programa Ambiental”, de 1966 (apud COCCHIARALE; OITICICA, 2010, ps. 21-

22) 67:

A posição com referência a uma “ambientação” e a consequente derrubada de todas as antigas modalidades de expressão: pintura-quadro, escultura, etc., propõe uma manifestação total, íntegra, do artista nas suas criações, que poderiam ser proposições para a participação do espectador. Ambiental, é, para mim a reunião indivisível de todas as modalidades sem posse do artista ao criar – as já conhecidas: cor, palavra, luz, ação, construção, etc., e as que a cada momento surgem na ânsia inventiva do mesmo ou do próprio participador ao tomar contacto com a obra. No meu programa nasceram Núcleos, Penetráveis, Bólides e Parangolés, cada qual com sua característica ambiental definida, mas de tal maneira relacionados como que formando um todo orgânico por escala.

Contra o radicalismo geométrico dos concretistas paulistas, os neoconcretos defenderam a

liberdade, a experimentação, o retorno à subjetividade, a recuperação das possibilidades

criadoras do artista e a incorporação efetiva do observador como participante da obra. A

proposta seria eliminar o caráter técnico-científico do Concretismo. Os Casulos e Contra-

Relevos, de Lygia Clark [1920-1988], de final dos anos 1950, se revelam como uma boa

materialização do Neoconcretismo, uma vez que são desdobramentos tridimensionais dos

66

A ruptura neoconcreta na arte brasileira ocorre em março de 1959, com a publicação do Manifesto

Neoconcreto pelo grupo de mesmo nome. Enquanto os artistas concretistas paulistas enfatizavam o conceito de

pura visualidade da forma, o grupo carioca propõe uma maior articulação entre arte e vida e a ênfase na intuição

artística. Disponível em:

http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3

810. Acesso: em 21 abr. 2013 67

Texto do artista sem título.

Page 104: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

104

planos de suas obras anteriores, as Superfícies Modulares. Os Bichos, surgidos em 1960,

passaram a demandar a participação efetiva do público, revelando assim um novo capítulo na

história da arte, no qual uma dimensão política é afirmada pelo corpo coletivo, e uma dimensão

fenomenológica pela vivência dos sentidos individuais e espaciais. Como afirma Brito (1999, p.

81):

O artista neoconcreto não abordava propriamente o espaço, ele o experimentava. Dispunha-se a vivenciá-lo, atuar contra o relacionamento tradicional entre sujeito observador e o trabalho. Tinha uma concepção não-instrumental do espaço, desejava imantá-lo, torná-lo campo de projeções e envolvimento num registro quase erótico.

2.3.3 - A contribuição do Minimalismo para inserir a arte na cidade

As primeiras obras do Minimalismo68 foram decisivas na guinada da relação entre arte e

espaço. Os artistas deste movimento lançaram as bases para se pensar a inserção da arte na

arquitetura, mesmo que no início isto tenha ocorrido apenas no tocante ao espaço interior da

galeria, o “cubo branco”. Embora muitos artistas tenham diversificado sua linguagem

posteriormente (o que para alguns críticos se configurou como o “pós-minimalismo”), em

meados dos anos 1960, eles criaram trabalhos em que examinam de que maneira “[...]

elementos arquitetônicos funcionais específicos do interior da galeria prescreviam o significado

e determinavam leituras específicas para a arte definida em relação ao enquadramento

arquitetônico [...]” (GRAHAM, 1978, apud COTRIM; FERREIRA, 2006. p. 429).69

Pode-se frisar aqui o pioneirismo do projeto concretista brasileiro, se comparado com a arte

minimalista, como afirma Canongia (2005, p. 37) que, ao tecer paralelos entre as duas

experiências, conclui:

68

O termo é utilizado pela primeira vez pelo crítico Richard Wollheim, em ensaio publicado no início de 1965,

porém não se tornou uma terminologia pacífica, recusada inclusive pelos próprios artistas a ela associados.

Apesar de ser um termo “frustrantemente enganoso” (BATCHELOR, 1999, p.6), que tem valor porém muitas

limitações, foi utilizado para denominar vários artistas estabelecidos em Nova York, entre eles, Carl Andre

[1935], Dan Flavin [1933-1996], Donald Judd [1928-1994], Sol Le Witt [1928-2007] e Robert Morris [1931],

que produziram trabalhos com algumas características em comum, como a tridimensionalidade, a simplicidade

formal, a serialidade, a composição geométrica, a utilização de materiais industrializados (metal, sistemas de

iluminação, madeira compensada, espelhos, etc.) e de sistemas de montagem (em vez de esculpir ou modelar)

com a utilização de encaixes e parafusos. Muitos desses artistas se apoiaram na filosofia fenomenológica de

Merleau-Ponty, para quem objetos de arte eram constantemente situados a variações de interpretação (no caso

minimalista, por meio da forma, superfície e posicionamento e das contingências do local) que implica na

corporeidade do espectador. (BATCHELOR, David. Minimalismo. São Paulo: Cosac & Naify, 1999). 69

A arte em relação à arquitetura, 1978.

Page 105: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

105

A Minimal também cercou o problema da relação arte/indústria, incorporando a imparcialidade e a mecanização como fontes. Também operou com formas geométricas e seriais, fazendo da serialidade um questionamento da identidade do sujeito nas sociedades contemporâneas. A Minimal exigia igualmente uma apreensão gestáltica do espaço, sem ambiguidade, sem romatismo, e sua ação era voltada para o espaço público, para o senso da coletividade. Como nosso concretismo, ela estava voltada para fora, sem qualquer nostalgia do “eu” lírico do artista, sem interioridade.

Influenciados pelas correntes abstracionistas das vanguardas artísticas do início do século XX

e neoexpressionistas, os minimalistas reelaboram o papel do objeto e da escultura a partir de

sua relação com o espaço, com o espectador, com a paisagem, com a luz, com o entorno

imediato e com a arquitetura, procurando por meio da redução formal e de objetos em série

promover uma percepção fenomenológica nova do ambiente onde se inseriam.

Assim, tiram a escultura do pedestal para colocá-la espacialmente no mundo real, por meio

de formas geométricas e tensão formal, que promovem níveis de apreensão muito mais

intelectuais do que sensoriais. A ideia de obra de arte absoluta, auto referente e autônoma,

com a eliminação da figura naturalista e da representação, colocava em destaque tanto sua

posição concernente ao espaço circundante como com os espaços criados entre sua própria

estrutura (os interiores entre os sólidos e os vazios entre as repetições, que criam um ritmo

regular composto pelos espaços cheios e vazios). Essas esculturas passaram a ser

constantemente requisitadas para o espaço público. Archer (2001, p. 56) lembra que Robert

Morris (autor da noção de “campo expandido”) teve papel fundamental na formatação dos

parâmetros minimalistas ao escrever diversos textos em que revela a influência do pensamento

fenomenológico do filósofo Merleau-Ponty, que caracteriza a natureza recíproca do processo de

como os indivíduos chegam a uma consciência do espaço e dos objetos em torno de si (Ponty

afirmava para isso que o espaço não é um cenário onde as coisas são dispostas, e sim o meio

pelo qual a posição das coisas se torna possível). Assim, o espectador na obra minimalista pode

vivenciar a obra como uma forma simples, cujo formato total pode ser imediatamente

apreendido. “Caminhar em torno e por entre as partes separadas desta escultura permite ao

indivíduo vivenciar o espaço da galeria, o próprio corpo e o dos outros [...]” (ARCHER, 2001, p.

57).

Diferentemente de períodos anteriores, em que há o consenso de se “fixar” esculturas em

locais públicos, nesta linguagem pode-se atestar outra operação estética. Para o “cidadão-

Page 106: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

106

espectador”, é possível circundar a obra, enquanto se é circundando por ela. Compostas de

fragmentos formais arranjados e secções de espaços, estas obras têm sua totalidade

completada pelo espaço circundante. O espaço público a acolhe, e vice-versa.

O que há de novo na arte contemporânea é que a moldura espacial da obra não a separa mais do mundo cotidiano. Um espaço em obra possuiu uma espacialidade imanente ao mundo comum. Não o transcende, apenas traça pontes para uma experiência estética que vai do mundo ao próprio mundo. (TASSINARI, 2001, p. 91)

Neste sentido, o artista Sol LeWitt, com seus wall drawings (desenhos de parede), aparece

com uma posição peculiar no minimalismo, como um “muralista conceitual” 70. Instaurando

novas relações entre concepção e percepção, superfície e volume (por meio de cores e

isometrias), a partir dos princípios do desenho, suas obras para locais específicos revelavam

ainda a influência dos afrescos da Renascença italiana. As obras de James Turrell (1941)

mostram essas premissas por meio de recursos em que o fruidor é arrebatado por uma espécie

de percepção extra espacial e ambiental; convocado a se colocar dentro da obra como parte

integrante e não observador distanciado. Autor das polêmicas colunas listradas instaladas no

jardim do Palais Royal, em Paris, o francês Daniel Buren [1939-], ainda em atividade, realiza uma

das obras mais coerentes em relação a este estilo. Utilizando recursos em que luz, cor e

padronagens geométricas confluem, suas obras dialogam de forma intrínseca com os espaços

circundantes, muitas vezes, envolvendo o espectador de forma lúdica.

Canongia (2005) explica que as obras minimalistas não eram criadas em ateliê e depois

transportadas para o espaço expositivo, onde poderiam encontrar um lugar de montagem. Elas

eram criadas para ocupar determinado lugar, de maneira a formar com ele um todo único.

E esse seria, na verdade, o seu legado mais importante, uma vez que introduziu uma questão vital para o desenvolvimento da arte contemporânea: a relação entre a obra e o contexto. O sentido do objeto minimal está na relação da forma com o meio físico onde se dá sua observação, na conexão com o espaço da experiência, na acepção de espaço como campo visual, constituinte, estruturalmente da própria obra. O sentido do objeto nasce no e do espaço público, instituindo uma interdependência notável entre o objeto e o lugar. (CANONGIA, 2005, p. 65)

70

Termo retirado do título de uma reportagem sobre a morte do artista, em 2007. Disponível em:

http://entretenimento.uol.com.br/ultnot/2007/04/09/ult4326u108.jhtm. Acesso em: 11 fev. 2014.

Page 107: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

107

O papel do espectador no programa minimalista também era fundamental. Pode ser

atestado, por exemplo, quando Carl Andre fez, em 1967, um tapete de 144 placas de aço

dispostas no chão, compondo um quadrado com as dimensões exatas do piso que o acolhia.

Tratava-se de um “objeto contexto” (CANONGIA, 2005, p. 65) pelo qual o espectador poderia

passar, fazendo da superfície extensão de seu caminhar. Em vez de contemplar a obra, o

espectador a vivenciava. Ao analisar a questão da linguagem e do significado na obra

minimalista, Krauss (1998) explica que, ao se recusarem a dotar a obra de arte de um centro

ilusionista, os artistas estão apenas reavaliando a lógica do significado e não negando o

significado ao objeto estético. “Estão reivindicando que o significado seja visto como originário

– para estendermos a analogia com a linguagem – de um espaço público e não privado”

(KRAUSS, 1998, p. 313). Isto é, o significado reside no espaço, que se torna a linguagem da obra.

2.3.4 - Quando a arte é a cidade: Gordon Matta-Clark

É imprescindível citar aqui o trabalho do nova-iorquino Gordon Matta-Clark [1943-1978], uma

vez que o artista se tornou referência na arte contemporânea em relação aos processos

artísticos na cidade. Para Matta-Clark, a presença da arte no mundo se dá a partir do

desencanto com o racionalismo moderno (muitas vezes, representado pela própria arquitetura

da cidade). Suas fotografias em preto e branco de projetos urbanísticos vandalizados no Bronx,

em Nova York, testemunharam a falência das políticas sociais para a cidade nos anos 1970. Na

obra “Window Blow-up”, de 1976, expôs as fotos em uma galeria, cujas janelas foram

estilhaçadas por balas de espingarda pelo próprio artista. Matta-Clark estudou arquitetura e

influenciou uma geração de artistas e arquitetos71, sendo pivô nas mudanças que contraporiam

o estado estético imposto pelo Minimalismo. Filho de artistas (a estadunidense Anne Clark e o

pintor surrealista chileno Roberto Matta), teve como padrinho Marcel Duchamp. No contexto

da cidade de Nova York que, a partir da década de 1960, sofreu uma série de problemas

econômicos cujo ápice ocorreu na década seguinte, com a degradação de seus espaços públicos

e o aumento vertiginoso das taxas de criminalidade, Matta-Clark criou uma obra baseada nas

71

Rem Koolhaas declarou sua admiração pelo artista em função de sua proposta de “glamorização da violação”.

(WALKER, 2009, p. XII)

Page 108: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

108

necessidades que a arquitetura e o urbanismo pretendiam satisfazer, como ele mostra nesta

declaração: “[...] Aqui, tal como em muitos centros urbanos, a disponibilidade de edifícios

negligenciados e desocupados foi um crucial lembrete da atual falácia da renovação por meio da

modernização” 72.

Assim, seguindo as premissas da Internacional Situacionista73, Matta-Clark “[...] abordou a

cidade a partir de seus espaços menos visíveis, pouco acolhedores e longe de ser monumentais”

(CUEVAS, 2010, p.24). Adotou a tática da “deriva”, proposta por Guy Debord, ao percorrer a

cidade transversalmente, abrangendo seus edifícios, complexos residenciais e sistemas de

abastecimento e esgoto. “A cidade de Nova York, que alguns viam como em ruínas e cheia de

lixo, era considerada por Gordon Matta-Clark como uma rica fonte de materiais, a partir da qual

arte podia ser produzida. A própria cidade era sua paleta. Ele dedicava-se a abrir nela, que

deixavam sua pele e seus ossos à vista” (CRAWFORD, 2010, p. 47) 74.

Matta-Clark foi um dos primeiros artistas a se interessar pelo fenômeno do grafite, que então

tomava muros e vagões de metrôs e trens na cidade de Nova York. Em 1973, ele pretendia

mostrar uma série de fotografias suas, registrando esta linguagem urbana, intitulada “Graffiti

Photoglyphs”, na feira de arte apresentada anualmente em Greenwich Village. Porém, o

trabalho foi recusado. Matta-Clark criou, então, uma mostra paralela a poucos quarteirões da

feira oficial, intitulada “Alternatives to the Washington Square Art Show”. Além de expor seu

trabalho, convidou grafiteiros do Bronx que cobriram sua caminhonete com imagens que iam

sendo recortadas com maçarico e vendidas aos pedaços.

Um de seus momentos mais importantes se deu no início dos anos 1970, quando reuniu

artistas, entre outros profissionais, para ocupar espaços dilapidados da cidade (as novas leis de

zoneamento que previam a ocupação de antigas construções por artistas no SoHo foram

altamente favoráveis). A prática chamada de “Anarchitecture” resultou na ocupação de vários

lofts no SoHo para transformá-los em moradia, estúdio, galeria, etc. (é notável que isso ocorreu

na mesma época em que foi construído o World Trade Center e em que veio à tona o caso

72

Apud CUEVAS, Tatiana. Desfazer o espaço, 2010, p. 24. In: RANGEL, Gabriela et. al. Desfazer o espaço.

Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2010. Catalog. 73

Se inicialmente os situacionistas estavam preocupados em ir além da arte moderna, passaram depois a propor

uma arte totalmente ligada à vida cotidiana, uma “arte integral”, o que logo se transformaria em uma arte em

relação direta com a cidade. “A arte integral, de que tanto se falou, só se poderá realizar no âmbito do

urbanismo”, afirmou Guy Debord no “Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de

organização e de ação da tendência situacionista internacional” . (In: Apologia da deriva – escritos situacionistas

sobre a cidade. JACQUES, Paola Berenstein (org.) Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 19) 74

CRAWFORD, Jane. Gordon Matta-Clark – uma comunidade utópica: o SoHo na década de 1970. In:

RANGEL, Gabriela et. al. Desfazer o espaço. Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2010. Catalog.

Page 109: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

109

Watergate no governo Richard Nixon). Mais do que apenas realizar obras de arte, os artistas

envolvidos criaram uma espécie de gestão cultural alternativa, conseguindo canalizar fomentos

financeiros oficiais para diversas práticas experimentais e com autonomia institucional.

Conseguiram criar, inclusive, um restaurante “conceitual”, o Food. Em 1971, Matta-Clark

recusou o convite para participar da Bienal de São Paulo como protesto contra a ditadura

instalada no Brasil.

O projeto Splitting (na localidade de Englewood, Nova Jersey) foi um reflexo emblemático das

preocupações de Matta-Clark com as transformações da cidade de Nova York. Englewood era

um local aristocrático que sofreu profundo impacto com a deterioração de Nova York; muitos

dos moradores abastados decidiram demolir suas antigas casas para dar lugar a moradias de

classe média. Foi neste cenário que o artista decidiu literalmente cortar uma casa ao meio para

representar a divisão paradoxal sob a qual vivia a sociedade de sua época. A sensação era de

que o espectador adentrava em um universo vertiginoso, perturbador.

Continuando nesta linha de divisão de construções, Matta-Clark desenvolveu outro

interessante projeto. A convite da ArtPark, organização que patrocinava projetos e

performances em Lewiston, Nova York, o artista coordenou o corte da fachada de um edifício

em nove seções, extraídas uma a uma. Tratava-se de uma crítica ao duro processo ocorrido no

local, mais de 200 famílias foram assentadas em casas construídas sobre um canal soterrado

onde haviam sido despejados resíduos tóxicos pelo exército americano e pela empresa química

Hooker, entre as décadas de 1920 e 60. Apesar de a Hooker ter doado o terreno para o

loteamento sob a cláusula contratual de que não se responsabilizaria por qualquer dano à saúde

dos moradores, com o passar dos anos, o cheiro ruim e doenças levaram a população a uma

briga judicial que terminou com a demolição de imóveis e com a obra de Matta-Clark.

Page 110: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

110

2.3.5 - Ética e estética nos anos 1960-70 na América Latina

A partir dos anos 1960, quase todos os países latino-americanos passaram por regimes

ditatoriais em que as forças militares controlavam completamente a máquina do Estado, o

intuito era eliminar influências socialistas que pudessem exercer poder sobre a sociedade. É

neste contexto que importantes manifestações artísticas se desenvolveram, diferenciando a

produção latino-americana em curso daquela praticada na América do Norte e na Europa.

Sob este panorama coercivo, insurge uma arte reativa, que busca o despertar da consciência

social. As teorias políticas de Karl Marx e as correntes estruturalistas influenciaram de forma

preponderante as novas tendências em artes visuais deste período nessa região do mundo,

marcadas, sobretudo, pela investigação de linguagens, experimentalismo e reflexão teórica.

Deflagrou-se uma retomada às preocupações que haviam marcado as primeiras

vanguardas (porém, sem o intuito universalista), mostrando que a “[...] investigação

intelectual e metódica é ao mesmo tempo uma reação contra a supervalorização do gesto e

Figura 32: Splitting, de Gordon Marra-Clark, (1974). Fonte: RANGEL, Gabriela et. al.

Desfazer o espaço. Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2010. p. 113. Catalog.

Page 111: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

111

da subjetividade que caracteriza a recepção e o gosto pelo expressionismo abstrato”

(ALONSO, 2011, p. 13). A arte se torna, então:

[...] uma operação sobre a realidade; esta passa a ser um dos materiais do artista. Investigar os acontecimentos, intervir nos feitos sociais e culturais, configurar novas formas de questionar o mundo, manifestar-se politicamente são algumas maneiras de levar a cabo esta tarefa. (ALONSO, 2011, p. 16, tradução nossa)

Diversos trabalhos de artes visuais revelaram a riqueza de linguagens que marcou a

América Latina naquele período. Falava-se em uma nova estética que, muito além das novas

figurações em voga, era pontuada por estilos altamente singulares. A arte via-se engajada

politicamente, porém sem um repertório exclusivamente realista como se havia feito na

última fase do modernismo. Tratando as questões ideológicas e sociais com novas

linguagens, altamente experimentais e dentro de um panorama urbano e da cultura de

massas, os artistas desta geração também se valeram de um repertório influenciado por

temas linguísticos e semióticos.

A arte latino-americana se afastou da influência dos abstracionismos formais e

geométricos para conquistar novos realismos (muitos rotulados como “nova figuração”).

Também surgiram no período as primeiras reflexões sobre a arte minimalista e conceitual.

Entretanto, no Brasil pós bossa-nova os artistas passaram a criar obras marcadas tanto pela

denúncia social como pela renovação estética. Os desdobramentos das experiências do

Concretismo e do Neoconcretismo, por exemplo, resultaram em projetos extremamente

inovadores, que visavam novas questões semânticas e a participação coletiva, como fizeram

Lygia Pape, Lygia Clark e Hélio Oiticica.

A mudança no vocabulário abstracionista e a quebra do espaço bidimensional se tornaram

constantes no trabalho dos artistas, como explica Hélio Oiticica, em texto antológico, no qual

trata, entre outros temas, de como chegou aos “Núcleos” (placas de cor dispostas no

espaço, simulando um quadro abstrato tridimensional pelo qual o espectador pode

perambular e intervir nas ordens das placas) e “Penetráveis” (instalação em que a

experiência se torna ainda mais radical, com questões táteis, olfativas, etc.):

A chegada à cor única, ao puro espaço, ao cerne do quadro, me conduziu ao próprio espaço tridimensional, já aqui com o achado do sentido do tempo. Já não quero o suporte do quadro, um campo a priori onde se desenvolva o

Page 112: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

112

“ato de pintar”, mas que a própria estrutura desse ato se dê no espaço e no

tempo. (OITICICA, 1962, apud COTRIM; FERREIRA, 2006, p. 84) 75

O crítico Frederico Morais lança o conceito “Arte de Guerrilha” para abordar os trabalhos

de Artur Barrio, Cildo Meireles, Antônio Manuel, entre outros artistas, que adotaram, além

de novos materiais e suportes, técnicas de ação que tinham como base “[...] a surpresa, o

impacto e a tensão permanente como formas de envolvimento do público em suas

propostas, desenvolvidas quase sempre em espaços públicos” (FREIRE, 2011, p.44).

A variedade de ideias artísticas deste período pode ser encontrada no trabalho de Cildo

Meireles, a exemplo da obra “Inserções em circuitos ideológicos 2 – Projeto Cédula” (1970),

parte da série em que o artista incorpora as ideias da comunicação e circulação da obra no

sistema de arte por meio de mensagens carimbadas em cédulas de dinheiro circulante. Aliar

formas singulares a um pensamento conceitual complexo destaca Meireles entre a geração

da época, mostrando um trabalho consistente sobre as relações de poder:

Atuando diretamente sobre a circulação de produtos do cotidiano, e desviando sua rota simbólica, Cildo parecia satirizar o consumo mercantil massificado, ao mesmo tempo que criava, para a arte, uma circulação subversiva e autônoma, imersa nos jogos do dia-a-dia e livre da institucionalização. (CANONGIA, 2005, p. 86)

É neste contexto ímpar que o entrelaçamento entre arte e espaço urbano ganha novos

contornos na América Latina. Paulo Bruscky pode ser citado aqui com sua performance “O

que é arte” (1978); que se tratava de suas caminhadas pelas ruas de Recife com um cartaz

pendurado no pescoço com as perguntas: “O que é arte?” “Para que serve a arte?” Pioneiro

na utilização de mídias contemporâneas, como a arte postal, audioarte, videoarte e

xerografia no Brasil, Bruscky teve como tônica de seu trabalho a dissolução de fronteiras

entre as linguagens artísticas com forte ênfase na convergência entre meios de comunicação

e urbanidade, a exemplo da arte postal que constituía uma estratégia de liberdade diante do

contexto político do período.

No Chile, neste mesmo período, a relação arte e cidade teve sua expressão máxima com o

“brigadismo muralista”, que durante o governo da Unidade Popular se transformou em um

extenso movimento político-cultural com destaque para a mescla de questões artísticas e

75

A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade, 1962.

Page 113: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

113

ideológicas. As brigadas muralistas Ramona Parra e Elmo Catalán, de meados dos anos 1960,

com suas pinturas de cunho social e colorido vivo influenciam até hoje na criação de murais

com um estilo muito característico, como pôde ser constatado em pesquisa de campo em

cidades como Assunção e Buenos Aires.

Portanto, são estas as características contextuais do panorama artístico latino-americano

deste período, cujas sementes já haviam brotado no modernismo:

a) A obra deixa de estar circunscrita ao museu, à galeria e a outros espaços

institucionalizantes;

b) O espectador passa de contemplador a fruidor e ativador da obra;

c) Materiais e suportes não precisam mais ser “nobres”;

d) Entra em cena a produção coletiva, que põe em xeque a noção clássica de autoria e

exclusividade;

e) Questionam-se as instituições legitimadoras do circuito artístico;

f) O processo de criação, em muitos casos, suplanta o resultado final da obra;

g) Surge uma vontade comunicativa;

h) A intelectualização do artista e o fortalecimento do compromisso ético da arte,

influenciado pelas correntes socialistas internacionais e pelo movimento da contra-cultura.

Para Freire (2011) o termo “poéticas subterrâneas” (com base no conceito de “subterrâneo”

defendido por Hélio Oiticica em texto de 1969, a partir de um jogo de sentidos dos prefixos

“sub” e “sul” para evocar os significados de uma arte crítica e experimental) define com

precisão estes momentos e lugares de resistência da arte latino-americana, quando se esboça

“[...] um programa comum de urgências que não se define pela forma do objeto que os artistas

criam mas, sobretudo, pelo tipo de intervenção poética e política, coletiva e criativa que são

capazes de exercer na sociedade” (FREIRE, 2011, p.42).

Hélio Oiticica mostra que a gênese de seu trabalho está na própria cidade. Pode-se atestar

isso nas fotos de paisagens prosaicas, quinquilharias, que inspiraram os Parangolés; nos abrigos

de moradores de rua, registrados em recortes de jornal, base para a gênese dos bólides; ou

ainda o retrato de jornal do assassinato de Cara de Cavalo (o famoso marginal amigo de

Oiticica), transformado em estêncil (técnica extremamente difundida hoje no novo grafite).

Page 114: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

114

2.3.6 - Neovanguardas nas ruas de São Paulo e Buenos Aires

Nestes dois países, instaurou-se o contexto social das ditaduras (Brasil a partir de 1964, e

Argentina a partir de 1966, e neste, em 1978 o regime ditatorial de chumbo), onde as novas

experiências artísticas mostravam como estética e política, quando entrelaçadas, poderiam

resultar em frutíferas possibilidades criativas. Mesmo tecendo crítica social mordaz e direta,

as obras revelam que é possível transformar o social em estético e vice-versa. “O que

interessava agora era pensar o próprio agir artístico como uma política, reconhecendo na

produção a sua capacidade intrínseca de reflexão sobre o real” (CANONGIA, 2005, p. 85).

A geração de artistas atuantes no Brasil e na Argentina naquele momento é a maior prova

disso. Eles formaram uma nova vanguarda brasileira que estava preocupada com a crítica

social e a participação coletiva, sem perder o sentido lúdico da arte. Abandonaram a posição

Figura 33: Foto do “Cara de Cavalo”

morto. Fonte: FIGUEIREDO, Luciano.

Hélio Oiticica: Obra e estratégia. Rio

de Janeiro: RIOARTE, Museu de Arte

Moderna, 2002 (catálog.), ps. 26-27.

Figura 34: A versão em estêncil.

Mesma fonte da figura acima.

Page 115: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

115

esteticista e contemplativa tradicional para criar linguagens experimentais, sensoriais e

conceituais que abririam novos caminhos para a formatação da arte contemporânea

brasileira nas décadas seguintes. Assim, um novo quadro nas artes visuais dos dois países

estava sendo configurado; nele brotavam a todo instante poéticas singulares. Apesar das

influências da Pop Art, das novas figurações internacionais e da arte conceitual, as obras

latino-americanas desse período não podem ser interpretadas por meio das novidades

europeia ou norte-americana, como sugere Duarte (1998, p. 49): “[...] o território simbólico

explorado pelos artistas brasileiros tem fronteiras próprias”. A mesma opinião é

compartilhada por Longoni (2010, p. 55, tradução nossa) a respeito da Argentina:

Não se pode negar que em nosso campo artístico repercutiam as tendências neovanguardistas vigentes nas grandes metrópoles. Mas aqui as abordagens estéticas vinculadas às variantes pop e ao imaginário da cultura de massas alcançaram um desenvolvimento próprio, em meio a condições muito distintas de produção, circulação e recepção das obras, de outro estado de conformação dos sujeitos, da estrutura geral e de outras formas de relação com o poder político.

Como exemplo há o trabalho de Hélio Oiticica, cujos Parangolés destoavam totalmente da

nova figuração, o que o situa como um dos casos mais fecundos e peculiares na História da

Arte. Tanto no Brasil como na Argentina, se dá continuidade às mudanças que vinham

ocorrendo desde o período moderno, com o progressivo abandono dos formatos

tradicionais (pintura, escultura); a incorporação e apropriação de objetos; a expansão dos

ambientes. E, por fim: “[...] acentua-se a tendência da desmaterialização, que alude à

desacentuação ou mesmo ao desaparecimento do objeto físico e sua substituição por uma

materialidade de outra ordem (até se desdobrar em conceitos e ações)” (LONGONI, 2010, p.

59, tradução nossa).

No Brasil, sob o recrudescimento da censura, a cultura fervia. Surgia o Cinema Novo de

Gláuber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pedro de Andrade, e o teatro engajado

e experimental de Augusto Boal, Oduvaldo Viana Filho e de José Celso Martinez Corrêa. No

Rio de Janeiro, o crítico e poeta Ferreira Gullar enterrava um poema na areia como gesto

radical. O movimento do Tropicalismo, com nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal

Costa, Maria Betânia e Tom Zé, infiltrou-se no show business para a disseminação de ideias

contestatórias, a partir de uma renovação estética repleta de influências, mas ímpar.

Page 116: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

116

Naquele contexto, o universo das artes visuais operava importantes transformações, como

a exposição Opinião 65, considerada a primeira manifestação dos artistas visuais após o

golpe. Organizada pelos marchands Jean Boghici e Ceres Franco, no ano seguinte ao golpe

militar, no Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio de Janeiro, apresentava artistas

brasileiros e franceses, revelando a predominância das primeiras neofigurações e outras

inovações tipicamente brasileiras, como os experimentos que pressupunham a participação

ativa do público propostos por Hélio Oiticica.

Nos primeiros anos seguidos ao golpe, a onda repressiva chegou rapidamente ao sistema

artístico. Na mostra Proposta 66, na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), foram

censuradas obras consideradas ofensivas aos “bons costumes”. Em solidariedade aos artistas

censurados, Geraldo de Barros, Nelson Leirner e Wesley Duke Lee retiraram suas obras,

iniciando assim o movimento que iria fundar depois o revolucionário e sarcástico Grupo REX,

ao qual se juntaram José Resende, Carlos Fajardo e Frederico Nasser. O REX impunha uma

estética de forte crítica social, mas sem as normas do “politicamente correto” instaurado

pelas esquerdas radicais. O nome do jornal do grupo, “REX Time” era uma provocação aos

afãs nacionalistas, mesmo que seus integrantes pedissem que fosse lido como se escreve.

“Seu surgimento é sintomático do período autoritário e, ao mesmo tempo, do espírito de

contestação diante do meio de arte confinado e provinciano do Brasil” (DUARTE, 1998, p.

37).

Com uma forte atuação no espaço da cidade, o Grupo funda sua galeria, a Rex Gallery &

Sons (na atual av. Brigadeiro Faria Lima, instalada na Hobjeto, tinha como sócio Geraldo de

Figura 35: Gênese do Parangolé, foto

tirada por Oiticica em 1964.

FIGUEIREDO, Luciano. Hélio Oiticica:

Obra e estratégia. Rio de Janeiro:

RIOARTE, Museu de Arte Moderna,

2002 (catálog.), ps. 26-27.

Page 117: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

117

Barros), que pode ser considerada como a própria obra de arte. Era um centro de exposições

e debates que durou menos de um ano, e teve seu fim programado, com uma inusitada

exposição de Nelson Leirner. A proposta era de que o público poderia levar as obras para

casa gratuitamente. Mas, para isso, teria que superar obstáculos, como atravessar uma

piscina e ainda desatar as obras que tinham sido acorrentadas. A mostra superou as

expectativas dos artistas, pois uma multidão se agrupou em frente à galeria que, ao abrir

suas portas, foi completamente depenada em apenas três minutos.

Outro momento marcante foi a mostra Nova Objetividade Brasileira, no Museu de Arte

Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), em abril de 1967. Organizada por um grupo de

artistas e críticos de arte, reuniu diferentes vertentes - arte concreta, neoconcretismo e nova

figuração. O objetivo era proclamar a ideia de "nova objetividade", que começou a ser

definida por Hélio Oiticica como uma tendência à superação dos suportes tradicionais em

proveito de estruturas ambientais e objetos. Posições políticas, participação corporal, tátil e

visual do espectador eram ingredientes básicos da nova objetividade, que não almejava ser

um movimento artístico e sim a expressão de múltiplas tendências, onde a falta de unidade

de pensamento era uma característica importante. No catálogo da mostra, Oiticica salientou

os seguintes pontos em relação aos objetivos da mostra (apud RIBEIRO, 1998, p.171) 76:

1. Vontade de construir uma arte brasileira em consonância com o contexto artístico

internacional, recorrendo à teoria antropofágica formulada pelo crítico modernista Oswald

de Andrade;

2. Tendência ao objeto e negação das categorias tradicionais das artes plásticas (pintura,

escultura, desenho, etc.);

3. Criação de uma obra aberta à participação do espectador;

4. Tomada de posição frente aos problemas políticos, sociais e étnicos que emergiam da

realidade brasileira e internacional;

5. Tendência à arte pública, interagindo com as manifestações nas ruas das cidades;

6. Ressurgindo das questões da anti-arte*, concebida enquanto apropriação das novas

condições artísticas e experimentais.

76

RIBEIRO, Marília Andrés. Arte e Política no Brasil: a autuação das neovanguardas nos anos 60, 1998, ps.165-

178.

Page 118: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

118

Brett (1997) identifica ainda duas possibilidades de classificação para os artistas no Brasil:

os que praticam uma “obra fechada” e os que praticam uma “obra aberta”. No primeiro

caso, tem-se trabalhos como os de Sérgio Camargo [1930-1990] e Mira Schendel [1919-

1988], criadores de objetos autônomos para serem contemplados em museus e galerias,

mas que mesmo assim desafiam a ordem de verdades estéticas pré-estabelecidas em uma

linguagem própria. E no segundo caso, estão Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, cuja obra visa

acabar com o mito do artista criador único e absoluto, introduzindo a ideia de que a obra

não existe enquanto o espectador não se integra a ela. Apesar de, posteriormente, Clark ter

se voltado para dentro, para o íntimo dos indivíduos por meio de uma metodologia que a

transformou em uma artista-terapeura; Oiticica abre-se para o mundo exterior, como fez

com seus “Ninhos”, lugares não repressivos para o descanso em forma de uma estrutura

para ser habitada e modificada pelo público (foram inspirados em barracas montadas por

mendigos). A mesma ideia de “obra aberta” marca o trabalho de Lygia Pape, como “O

Divisor” (1968), tecido de 30x 30 m com buracos através dos quais o público participa,

enfiando suas cabeças.

No caso do Brasil, Duarte (1998, p. 38) aponta importantes singularidades que a arte

urbana apresenta em relação aos Estados Unidos. Segundo ele, havia um senso comum nos

espaços institucionalizados brasileiros de se limitar à recepção de trabalhos de dimensões

domésticas, voltados à contemplação individual, não à fruição coletiva77. Isto abria um

campo de possibilidades para a exploração de grandes escalas no espaço urbano. Outra

indicação das diferenças entre as experiências norte-americanas e brasileiras, na visão do

autor, é de que no primeiro caso já se havia estabelecido uma estrutura eficiente de sistema

artístico, composta por instituições (museus e universidade), mercado (galerias e casas de

leilão) e órgãos de informação (publicações periódicas especializadas e editoras). Portanto, a

Pop Art se rebelava apenas contra o establishment semântico estético das obras abstratas

77

Uma passagem interessante a respeito do provincianismo do mercado local envolveu a artista neoconcreta

Lygia Pape. Segundo Duarte (1998, ps. 51-52), o fato ocorreu no final dos anos 1960, quando o Museu de Arte

Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) recebeu grande montante de verba para aquisição de novas obras,

solicitando aos artistas que apresentassem seus trabalhos. A artista conta que todos levaram obras “direitinhas”,

enquanto ela levou “Caixa de Baratas” (1967), uma caixa de acrílico com espelho ao fundo e baratas mortas

fixadas em linhas ordenadas. Evidentemente, a obra não foi comprada. Outra passagem marcante foi no Salão

Nacional de Brasília, em 1967, cujo júri recebeu do artista Nelson Leiner um porco empalhado com um presunto

pendurado no pescoço. Naquela altura, Leirner já era um artista reconhecido e assim que teve a notícia da

seleção de sua obra contestou a escolha do júri nos jornais. “Um porco poderia ser arte?”, perguntava o artista. A

defesa dos membros do júri, feita por meio de artigos publicados em jornais, foi denominada pelo artista como

“happening do júri”.

Page 119: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

119

(mesmo que Andy Warhol representasse uma cadeira elétrica), e não contra a situação

social vigente. Duarte (1998, p.40) explica que a situação do artista brasileiro é

diametralmente oposta, como mostra a sintomática obra em outdoor proposta por Nelson

Leirner:

No meio da precariedade geral brasileira e na inexistência de um sistema de arte, já explicitado por manifestações como a organização dos Rex, o artista se compromete diretamente com a sociedade sem a mediação das instituições necessárias a sua prática profissional. Sua obra vai, literalmente, para o outdoor por dupla motivação: as instituições não merecem ideologicamente recebê-la pela debilidade que as atravessa desde a ausência de políticas até a omissão dos setores responsáveis, e a sociedade “precisa” dessa informação de natureza artística. O artista age diretamente, queima etapas obrigatoriamente, porque a espera pelas supostas instâncias que deveriam mediar sua prática o levaria à paralisia. Seu trabalho, por isso, é de dupla denúncia: de crítica social, do ponto de vista temático, e de crítica institucional pela própria linguagem a que recorre.

Nesta importante observação, Duarte frisa ainda mais o caráter urbano da arte brasileira:

Quando Nelson Leiner se apropria de um outdoor para realização de um trabalho, é o outdoor mesmo que vai ser utilizado na rua, no espaço público. Não é a dimensão pública do painel publicitário que é transportada para um espaço museológico como nos Estados Unidos. Temos aí uma das chaves de compreensão de diferenças existentes entre a pop e a Nova Figuração. (Duarte, 1998, p. 38)

Outro exemplo marcante desta nova estética urbana foi a atuação do artista Artur Barrio,

que, no final dos anos 1960 e início dos 70, cria “Trouxas Ensanguentadas”, sacos contendo

carne, ossos e sangue, configurados de formas mórbida, e jogados pelas ruas, lixos e esgotos

das cidades. Eram “anti-objetos” que causavam estranhamento, de formas bizarra e

violenta. A ação “4 dias 4 noites” foi uma de suas iniciativas mais radicais, quando o artista

perambulou dias a esmo pela cidade sob efeito de maconha e sem se alimentar.

Na Argentina, uma vanguarda artística identificada com a luta política de esquerda (o que

muitas vezes a fez entrar em polêmica com outras correntes artísticas) tentava expressar por

meio de intervenções urbanas na cidade de Buenos Aires (além de outras, como Rosário, La

Plata, Tucumán e Córdoba) a crise política aguçada pelo golpe de Onganía, em 1966. Apesar

de frisar a impossibilidade de situar as variadas linguagens artísticas deste período como um

Page 120: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

120

bloco hegemônico, Longini (2010, p. 56) faz duas grandes separações: um primeiro ciclo

(entre fim dos anos 1950 e 1963), quando prevalecem linguagens neofigurativas78; e o

segundo ciclo (entre 1964 e final desta década), quando surgem as linguagens focadas na

ação.

O mais significativo acontecimento do primeiro ciclo foi a “exposição-manifesto” Arte

Destrutiva, em 1961, na Galeria Lirolay, em Buenos Aires, na qual um coletivo de artistas

utilizou como matéria-prima lixo da cidade, que foi rearranjado no espaço da galeria em uma

estratégia aos moldes dadaístas, com música e dança experimental. A mostra surgiu como

algo inédito no contexto apontado por Giunta (1998, p. 6). Embora as poéticas da chamada

arte informal já exprimissem as noções de feio e desagradável, com texturas e materiais

inusitados, o resultado da mostra chocou: objetos e materiais queimados, torcidos,

quebrados, salpicados com pintura. A mostra deixou “[...] vários caminhos abertos para o

futuro” (GIUNTA, 1998, p.5), como sua influência na chamada “estética da destruição” da

artista Marta Minujín, que passou a criar ações com um sentido de destruição como função

intrínseca da obra; destruir seria enfatizar a importância da experiência imediata e da

memória do espectador:

De que nada lhe sirva. Que os indivíduos vão viver uma experiência gratuita e rememorá-la, por isso ter que destruir as coisas. Me parece muito mais importante a recordação, a memória e não que o indivíduo tenha objetos em sua casa. Nem comprá-los ou vendê-los. Então, quando a vê, a experiência que vive é diferente, me parece que tem que viver a experiência e nunca mais voltar a vivê-la. Viver outra. Porque assim a retém na memória e a imagina de outra maneira, e assim está criando também, ainda que no passado. (AMIGO; DOLINKO; ROSSI, 2010, p. 39, tradução nossa)

A mostra “Arte Destrutiva” também parecia dar sinais do panorama sócio-político que se

desenharia dali para frente:

Foi uma realização complexa e antecipada em relação ao momento produzido no contexto internacional. Parece também possível pensar esta exposição como uma visualização de imagens transbordantes de uma violência gerada a partir de um senso estético em relação à violência

78

A nova figuração argentina tinha entre seus principais nomes Luis Felipe Noé, Ròmulo Macció, Jorge De La

Veja e Ernesto Deira.

Page 121: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

121

cotidiana que iria aumentar durante os próximos vinte anos permeando as

práticas sociais, políticas e culturais. (GIUNTA, 1998, p. 8, tradução nossa)

O advento da instauração da ditadura em 1966 impulsionou a atuação política do Grupo de

Arte de Vanguarda de Rosário, que no mesmo ano lançou o manifesto “A propósito de La

cultura mermelada”. Em 12 de julho de 1968, o grupo executou a ação coletiva “Assalto à

conferência de Romero Brest”, reafirmando seu ideal: “Cremos que arte significa um

compromisso ativo com a realidade, ativo porque aspira a transformar esta sociedade de

classes em uma melhor” (FARINA, 2004, p. 252, tradução nossa).

“El itinerário de 68” 79 também marcou uma sequência de intervenções públicas realizadas

entre abril e dezembro daquele ano por meio de vários núcleos plásticos experimentais. A mais

conhecida obra foi o “Tucumán Arde”, obra coletiva levada a cabo nas cidades de Buenos Aires,

Tucumán e Rosário nos últimos meses de 68. Trabalho de concepção e personificação coletiva e

multidisciplinar, reuniu intelectuais e artistas de diferentes disciplinas para criar uma obra que

tratasse de problemas sofridos pelos trabalhadores em canaviais e usinas de açúcar da província

de Tucumán. Sua estrutura consistia de diferentes ações interdependentes, sempre marcadas

pela fixação de cartazes e faixas, e pixações alertando para a situação miserável da

província. Foram realizadas as seguintes etapas: 1) Compilação de material divulgado a respeito

do que se passava em Tucumán. 2) Realização de viagens dos artistas e outros pesquisadores de

Rosário e Buenos Aires a Tucumán, para comparar o que era divulgado na mídia com o que

realmente acontecia na província. Nestas ocasiões, também foram realizadas reuniões e

conferências locais. 3) O material coletado (imagens, áudios e impressos) foi exposto em

“mostras-denúncia” em Buenos Aires, Rosário e Santa Fé. Na visão de Longoni (2010), a ação foi

a experiência mais ambiciosa das neovanguardas argentinas; representou o intento radical dos

artistas que procuravam estreitar as ligações entre arte e política, como estava expresso no

manifesto Tucumán Arde (1968).

A partir de 1968, começaram a ser produzidos dentro no campo das artes plásticas argentinas uma série de feitos estéticos que rompiam com a pretensa atitude da vanguarda dos artistas de realizar suas atividades dentro do Instituto Di Tella, instituição que até este momento se negou a legislar e propor novos modelos de ação, não só para os artistas vinculados a ela, mas para todas as

79

O termo foi criado por Longoni para definir a sequência de ações realizadas por artistas de Buenos Aires e

Rosario com o objetivo de propor uma ruptura com instituições do circuito artístico argentino, especialmente, o

Instituto Di Tella.

Page 122: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

122

novas experiências plásticas que surgiam no país. [...] O reconhecimento desta nova concepção levou um grupo de artistas a postular a criação estética como uma ação coletiva e violenta. (FARINA, 2004, p.270)

Figuras 36 e 37: Intervenção

em muro e manifesto da obra

Tucumán Arte. Fonte: FARINA,

Fernando. Arte Argentino

Contemporaneo. Rosário:

Museo de Arte Contemporáneo

de Rosario (Macro). 2004.

Catalog. s/p

Page 123: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

123

Neste momento surgiu, inclusive, uma ênfase da política sobre a arte. É o que o próprio

artista argentino León Ferrari (apud AMARAL, 1984, p. 27)80 observa em relação ao “Tucumán

Arde”, quando diz que não houve tempo para o grupo desenvolver uma linguagem, marcando

sim um momento decisivo em que os artistas se voltaram decididamente contra a vanguarda e

o circuito oficial das artes visuais, representado principalmente pelas elites ancoradas ao

Instituto Di Tella81. A urgência era comunicar e não criar:

Em meio à contundência das várias exposições participantes do momento político-social da Argentina, um dado emerge com bastante clareza: o da preocupação da comunicação da obra de arte, item sempre enfatizado nos períodos de desejo da integração da arte com a problemática social. (AMARAL, 1984, p. 27)

Longoni (2010, p. 68) classifica o ano de 1966 como o “ano da vanguarda” na Argentina,

especialmente, em Buenos Aires, onde aparecem inúmeros happenings. Seus antecedentes

imediatos estão em 1964, quando um grupo de artistas (Puzzovio, Santantonín, Ciordia,

Cancela, Mesejean, Squirru, Giménez e Berni, com música de Rondano) realiza “A Morte” na

galeria Lirolay. No mesmo ano, Marta Minujín organiza outros dois happenings, o primeiro em

um estádio em Montevidéu e o outro transmitido pelo Canal 7 de televisão.

Este gênero ocupou parte grande da atenção do Instituto Di Tella, onde aconteceram diversas

manifestações, inclusive, uma visita de Allan Kaprow e um happening de Jean-Jacques Lebel.

Entretanto se a intenção desta linguagem era provocar um choque no espectador por meio de

um deslocamento de lugar e tempo no processo de recepção convencional da arte, a

transformação do happening em moda ou mito (o que foi fomentado principalmente pela

imprensa) acabou esfacelando a força desta linguagem: “[...] era difícil recuperar este potencial

80

AMARAL, Aracy. Arte para quê: a preocupação social na arte brasileira, 1939-1970. São Paulo: Nobel, 1984. 81

O Instituto Torcuato Di Tella, em particular pela atuação do seu Centro de Artes Visuales (CAV) dirigido por

Jorge Romero Brest (1905 – 1989), funcionou a partir de 1963 até o fim desta década, atuando como fomentador

e incentivador da modernização e internacionalização cultural argentina. Segundo Abreu (2011, p.473): ”Este

instituto se tratou de mecenato privado, na forma do patrocínio da Fundación Di Tella, criada em 1958, com

financiamento das indústrias Siam-Di Tella, tomando como modelo as fundações norte-americanas de

financiamento corporativo. O objetivo da fundação era o desenvolvimento das atividades científicas e artísticas

do instituto, com o objetivo final de transformar Buenos Aires em uma das capitais de arte do mundo.” A autora

explica ainda que, mesmo antes da fundação do CAV, já havia em Buenos Aires instituições modernizadoras,

como o Instituto de Arte Moderno, criado por Marcelo De Ridder e que hoje é parte importante do Museo de

Arte Contemporaneo.

Page 124: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

124

utópico que para alguns representava um gênero de arte total, que fundia em si todos os outros

e reinseria a arte na práxis vital” (LONGONI, 2010, p. 69, tradução nossa). É a partir daí que a

autora situa uma nova virada na produção artística argentina, na qual começou a gestar-se um

novo gênero que nesse mesmo ano de 1966 emergiu como alternativa: “a arte dos meios de

comunicação de massa”. Estão neste novo núcleo os artistas Oscar Masotta, Roberto Jacoby, e

os escritores Raul Escari e Eduardo Costa. É indispensável citar que, em 1964, nascia da

prancheta do cartunista Quino, a personagem Mafalda, representante imortal da Argentina no

contexto da arte política mundial.

É importante enfatizar o papel dos artistas da cidade de Rosário, como os do Grupo de Arte

de Vanguarda, que protagonizaram diversas ações diferenciadas em Buenos Aires. Em outubro

de 1965, por exemplo, realizaram uma mostra de arte experimental na Plaza 25 de Mayo,

surpreendendo os transeuntes com uma exposição ao ar livre de pinturas neofigurativas,

colagens, objetos, etc., apresentando a cidade como uma galeria aberta, espaço de

confrontação contra a ideia elitista dos espaços legitimadores da obra de arte. É interessante

notar que neste ano começou uma expressiva aproximação entre artistas de Rosário e Buenos

Aires por meio de diversas exposições. Os artistas rosarianos, inclusive, foram “apadrinhados”

pelos críticos Jorge Romero Brest e Jorge Glusberg, de Buenos Aires.

Outro movimento emblemático na Argentina foi “El Siluetazo”, iniciativa de três artistas

visuais (Rodolfo Aguerreberry, Julio Flores e Guillermo Kexel) que propunha, a partir do início da

década de 1980, a realização de silhuetas em diversos locais de Buenos Aires para recordar os

desaparecidos políticos nos anos de regime duro após 1978. De dezembro de 1983 a março de

1984, juntaram-se ao movimento ativistas políticos (entre eles, as Mães de Maio) e a população

em geral, que marcaram a cidade com as silhuetas de corpos para representar a “presença da

ausência” (LONGONI, 2008, p. 7) dessas pessoas. Segundo Longoni (2008, p. 8, tradução nossa)

o movimento tratou de:

[...] um desses momentos excepcionais na história em que uma iniciativa artística coincide com a demanda de um movimento social e toma corpo pelo impulso da multidão. [...] Em meio a uma cidade hostil e repressiva, se liberou um espaço temporal de criação coletiva que se pode pensar como uma redefinição tanto da prática artística como da prática política.

Page 125: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

125

Figura 38: “El Siluetazo”. Fonte:

LONGONI, An; BRUZZONE, Gustavo

(org.). El Siluetazo, Buenos Aires:

Adriana Hidalgo, 2008, p. 161.

Figura 39: “El Siluetazo”. Fonte:

LONGONI, An; BRUZZONE, Gustavo

(org.). El Siluetazo, Buenos Aires:

Adriana Hidalgo, 2008, p. 107.

Page 126: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

126

É importante destacar aqui a atuação singular da artista Marta Minujín82 que, a partir da

década de 1960, começou a trabalhar a linguagem tridimensional em seus quadros; estes

passaram a ganhar texturas, colagens gigantes e até colchões inteiros (o que se transformou

em um leitmotiv de seu trabalho até hoje). Após essa fase, Marta produziu obras

extremamente peculiares, muitas delas feitas no espaço da cidade; uma de suas primeiras

aventuras foi uma ação realizada no estádio Luis Tróccoli (Clube Atlético Cerro), em

Montevidéu. Anunciado pelos jornais, o happening contaria com momentos imprevistos,

partindo da reunião da população convidada para estar no estádio em um determinado dia e

hora, quando se daria a obra. No momento anunciado, entraram motos de policiais

circulando no campo com sirenes em volume altíssimo, homens musculosos e mulheres

gordas que abraçavam e beijavam as pessoas. A artista chegou em um helicóptero, de onde

lançou galinhas vivas, verduras e farinha sobre as pessoas, finalizando o ato, que durou dez

minutos. “Não se trata de saber ‘o que se passa com o espectador’, mas de fazê-lo viver uma

experiência total”. 83

Também ficou famoso o “Three Country Happening”, planejado entre Marta, Allan Kaprow

(a quem conheceu em uma estadia em Nova York) e Wolf Vostell (da Alemanha), feito em

três cidades simultaneamente: Nova York, Buenos Aires e Berlim. No seu caso, no Instituto

Di Tella, Marta reuniu personalidades famosas da cidade, envolvendo-as em um sistema de

áudio e vídeo que questionava o “mundo dos famosos”.

“El Obelisco de Pan Dulce” (1979) foi a primeira obra de participação massiva realizada por

Marta em Buenos Aires. Ela reproduziu o famoso obelisco da cidade, com 25 metros de

altura e coberto com dez mil unidades de pão doce industrializado. A ação de derrubada do

obelisco para que a população dividisse os pães foi tão tumultuada que a divisão foi adiada.

Marta fez outra semelhante no ano seguinte, em Dublin. Tratava-se da “La Torre de Pan de

James Joyce”, que contou com a participação de outros artistas, como Marina Abramovic,

Laurie Anderson, Sol Le Witt e Nam June Paik. A obra pública de Marta de maior repercussão

82

Há ainda outros artistas que trabalhavam na mesma linha de Marta, como Santantonín, Renart, Federico

Manuel Peralta Ramos (1939-1992), Pablo Suáres (1937-2006) e Roberto Jacoby; este último ainda atuante. Mas

Marta é decididamente a que criou uma poética mais voltada à arte urbana. 83

Entrevista da artista a Kenneth Kemble Ela diz ainda: “O que mais me interessa é o público, a gente. Não

acredito que haja limites entre a plástica, o teatro ou a música. Mas não acredito que tenha que haver uma

conjunção de todos se um tem a força para se expressar por meios e períodos diferentes. [...] Me interessa uma

atitude de responsabilidade de criar algo. Quero fazê-los viver a experiência que eu vivo, a experiência que eu

creio.” (AMIGO; DOLINKO; ROSSI, 2010, ps. 39-41, tradução nossa)

Page 127: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

127

foi “El Partenón de Libros” (1983), em uma praça de Buenos Aires. A construção feita com

estrutura de ferro e coberta por milhares de livros doados por editoras e depois distribuídos

à população foi uma celebração ao renascimento da democracia no país.

“Intensificar a vida cotidiana utilizando os sentidos” foi o objetivo da ação “Operación

Perfume”, realizada em 1987, nas ruas de Buenos Aires. As pessoas foram convidas no

momento da ação, que consistiu de várias pessoas vestidas de branco com fumigadores para

espalhar um perfume de jasmim. “Ao produzir uma sensação de participação massiva

agradável, sinônimo de beleza, esta ação se converteu em uma obra de arte”, afirmou a

artista (apud PELLA; VILLA, 2010, p. 124, tradução nossa). Em “Rayuelarte” (2009), ela criou

jogos de amarelinhas coloridos dispostos nas ruas em homenagem ao romance de Cortázar.

Enquanto as pessoas pulavam, um grupo de músicos tocava um trecho criado por Marta

inspirado nas composições de Charlie Parker, o famoso saxofonista presente na obra de

Cortázar.

Figura 40: “El Partenón de Libros” (Buenos Aires, 1983), de Marta Minujín.

Fonte: PELLA, Jimena Ferreiro; VILLA, Javier. Marta Minujín: obras 1959-

1989. Buenos Aires: Fundación Eduardo F. Costantini, 2010. p. 120.

Page 128: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

128

Nos anos 1960, destacou-se ainda o trabalho de artistas como Alberto Greco [1931-1965],

Héctor Puppo, Edgardo Antonio Vigo e Julio Le Parc, cujo objetivo é criar jogos lúdicos que

rompem com o olhar rotineiro da cidade. Le Parc, por exemplo, cria a ação “Un día en la

calle”. Greco (que viveu um bom tempo na Espanha) fazia o que chamou de “vivo dito” ou

“arte vivo”. Depois de passar por São Paulo (onde ficou entusiasmado com os artistas

informais) 84, e desencantado posteriormente com o rumo decorativo da arte informalista,

passou a realizar sua arte viva em diversos locais, como Paris, Roma, Madrid e,

principalmente, em Piedralaves, uma pequena cidade de Ávila, fazendo desta pequena

comunidade rural ambiente propício para a realização de suas intervenções espaciais

artísticas. Lá que passeava com cartazes com os dizeres: "Este é um Alberto Greco", "Arte de

Alberto Greco" ou simplesmente "Alberto Greco".

84

AMARAL (2006, ps. 204-207) conta anedotas interessantíssimas sobre a passagem de Greco pelo Brasil: sua

personalidade excêntrica, como chegou ao país sem nenhum dinheiro, sua hospedagem na casa de Noberto

Nicola, como os dois prepararam nanquins a partir da inserção da tinta dentro de ovos atirados contra o papel

(recortado depois para ser exposto no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em abril 1958), sua mudança para

um apartamento com empregada e mobília sem nenhum dinheiro para tal; sua viagem de duas semanas para o

carnaval no Rio de Janeiro, novamente sem nenhuma verba, e vestido com uma roupa improvisada de árabe; e

como, por fim, voltou a Buenos Aires de navio carregando diversos desenhos de artistas brasileiros para uma

futura exposição na capital portenha, que terminou com a venda das obras e a apropriação da verba por Greco.

Figura 41: O artista Alberto Greco.

Fonte: Alberto Greco - Sistemas,

Acciones y Procesos (1965-1975).

Buenos Aires: Fundación Proa, 2011.

Catalog., p. 117.

Page 129: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

129

Mesmo artistas que atuaram de maneira mais conceitual procuravam estas aproximações

entre arte e vida, entre estética e cidade. Como afirmou Casanegra (2004, p. 26, tradução

nossa) a respeito do artista Víctor Grippo, que participou da exposição Arte e Ideología -

Cayc al aire libre, na Plaza Roberto Arlt, com a obra “Construcción de um horno para hacer

pan”, em colaboração com o escultor Jorge Gamarra e o trabalhador rural A. Rossi:

Se apelava à memória ancestral, à terra, à identidade, ao aspecto construtivo do trabalho humano e à natureza transformadora. Intervia na realidade efetiva por um exercício que se dirigia em sentido oposto ao peso produzido pela situação social e política que imperava no país.

É importante destacar ainda a atuação do Museu de Arte Contemporânea da

Universidade de São Paulo que, naquele período, sob a direção de Walter Zanini, trouxe ao

Brasil as experiências artísticas em voga internacionalmente, como no caso de Hervé Fischer,

que trouxe às ruas de São Paulo seu conceito de Arte Sociológica*. No mesmo período,

destacou-se a atuação do Centro de Arte y Comunicación (CAYC), em Buenos Aires. Em 1975,

Hervé Fischer veio ao Brasil a convite de Zanini, então diretor do Museu de Arte

Contemporânea da USP. Vestido de farmacêutico, instalou na Praça da República, uma

suposta farmácia para ouvir histórias e distribuir pílulas para os mais insólitos fins: votar (em

plena ditadura militar), ser criativo, original, etc. (Figura 43) Nascido em Paris e atualmente

residindo em Montreal (Canadá), onde se fixou desde 1980, Fischer fundou, juntamente com

Fred Forest (Argélia, 1933) e Jean-Paul Thénot (França, 1943) o Coletivo de Arte Sociológica,

em 1974, na França. Suas ideias influenciaram artistas brasileiros e argentinos (já que

também teve obras suas apresentadas no CAYC, na capital portenha). Participou da 16ª

Bienal de São Paulo, em 1981, com a obra “Signalética Urbana Imaginária - homenagem a

Augusto Comte” (Figura 42), que se trata de uma proposta de remapear a cidade a partir da

inserção de novos signos na sinalização urbana. Foram confeccionadas duzentas placas,

cujas tipologias remetem às mesmas da sinalização urbana convencional, porém veiculando

mensagens embasadas em um imaginário paulistano pesquisado pelo artista. Foram

distribuídas em várias ruas da cidade, e tiveram suas cópias expostas no espaço da Bienal,

juntamente com mapas e fotografias das suas respectivas localizações na cidade.

Page 130: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

130

Em 1976, o MAC convidou o artista espanhol Valcárcel Medina para uma exposição em

São Paulo, intitulada A cidade e o estrangeiro: três exercícios de aproximação. Fariam parte

dela três ações: “Entrevistas”, “Visita turística” e “El Dicionário de la Gente”. “Visita

turística” se tratava de um possível encontro do artista com qualquer pessoa que estivesse

disposta a mostrar-lhe a cidade. Anunciou o convite em rádios e jornais, marcando um

encontro na Praça da República, no centro da cidade. Entretanto, ninguém apareceu. Na

ação “Entrevistas”, o artista entrevistou pessoas pelas ruas da cidade, perguntando se era

possível que conversassem com ele, em espanhol. “Na ação El Dicionário de la Gente”, o

artista oferecia aos passantes um cartão com os seguintes dizeres: “Sou um artista

estrangeiro em visita ao Brasil. Nada sei português e ficar-lhe-ei muito grato se me

escrevesse nesse cartão uma palavra qualquer de seu idioma”. A partir dessas palavras, ele

organizou um dicionário que reproduzia as palavras repetidas e seus diversos significados,

como “amor”.

Segundo Freire (2012, p. 20, vol.II): “Uma espécie de proximidade de intentos com os

Situacionistas franceses poderia ser aventada ao conhecer suas proposições na cidade [...]”.

De fato, o artista (que também foi à Argentina a convite do CAYC), além de ações na cidade,

Figura 42: Obra de Hervé Fischer. Fonte: FREIRE,

Cristina (org.). Hérver Fischer no MAC USP: arte

sociológica e conexões: arte-sociedade-arte-vida.

São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da

Universidade de São Paulo, 2012. p. 21.

Figura 43: Hervé Fischer,

o “artista-

farmacêutico”. Mesma

fonte da imagem ao

lado.

Page 131: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

131

teve como propósito sua mínima inserção no circuito artístico oficial. E na exposição

paulista, tratou de estabelecer um vínculo entre a cidade e o olhar estrangeiro.

A viagem de Medina ao Brasil fez parte de um grande roteiro que incluía ainda Argentina,

Uruguai e Paraguai. Na Argentina, a convite do diretor Jorge Glusberg, apresentou no CAYC

em uma exposição individual a obra “12 ejercícios de medición sobre la ciudad de Córdoba”,

um documento de oito páginas datilografadas em que ele descreve atividades e ações

realizados na tentativa de mapear o espaço geográfico e simbólico da cidade argentina, a

partir do contato com o lugar e com seus habitantes. Na mesma oportunidade apresentou

também o registro da ação “136 manzanas de Assunción”, realizada no Paraguai pouco antes

de sua ida a Buenos Aires. Nesta ação, o artista conversou com pessoas aleatoriamente pelas

ruas da capital paraguaia, pedindo que o levassem para dar uma volta no quarteirão falando

sobre o bairro, a cidade e o país. A transcrição das informações foi feita pelo artista e

colocadas à disposição na mostra argentina. Praticou, assim, do que Glusberg chamou de

Arte de Sistemas*.

Figura 44: O artista Valcárcel

Medina. FREIRE, Cristina (org.).

“Não faço filosofia, senão vida”.

Isidoro Valcárcel Medina no

MAC USP: arte-sociedade-arte-

vida. São Paulo: Museu de Arte

Contemporânea da

Universidade de São Paulo,

2012, vol.II. CONTRACAPA

Page 132: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

132

2.4 O FENÔMENO DO GRAFITE

2.4.1 Grafite: o surgimento de uma nova linguagem urbana

Grande parte da literatura dedicada ao tema situa o princípio deste tipo de representação

visual, em Paris, na França, com os grafismos universitários de 1968, frequentemente

transgressores, efêmeros, não institucionalizados, anônimos e clandestinos 85. Uma das mais

famosas frases pichadas – “Proibido proibir” – foi uma reação à antiga proibição espalhada em

diversas partes da cidade “É proibido colar cartazes”, característica da “[...] ‘ordem estabelecida’

e espalhada por toda Paris desde o século XVIII” (FONSECA, 1981, p. 19).

Segundo Fonseca (1981, p. 19), os grafites de maio de 68 restringiram-se ao redor e nos

muros internos da Sorbone, mas sua repercussão foi intensa. Acabaram por influenciar, entre

outras coisas, as inscrições nos metrôs de Nova York, em 1972, e mesmo as pichações brasileiras

de final daquela década. Portanto, as manifestações de grafite também podem ser situadas na

esteira de um estilo politizado que se desenha em cidades da América Latina, desde os anos 60

e 70, especialmente, em ações reativas aos regimes ditatoriais. Se para a historiografia da arte

já se pode constituir um capítulo bem delineado sobre a arte urbana, certas peculiaridades

marcam seu percurso na América Latina de acordo com os contextos específicos de cada país,

como Colômbia, Peru, Equador, México e Venezuela.

Frases como “Não tenho nada a escrever” ou “Não gosto de escrever nas paredes” 86 revelam

a natureza metalinguística do grafite, linguagem que já nasce em diálogo consigo mesma, com

as escrituras da cidade e com a própria natureza de seu suporte: o muro. Trata-se, portanto, de

uma manifestação que constrói discursos que ajudam a configurar o próprio sentido da cidade,

da mesma forma como os imaginários latino-americanos foram elaborados a partir de narrativas

literárias (escritas por colonizadores e naturalistas, por exemplo). Grafites podem ser

entendidos como artefatos culturais complexos, com discursos e práticas peculiares, que

dependem dos sujeitos envolvidos (criadores e fruidores) para uma interpretação de seus

85

Este marco tem sido um consenso em toda a literatura dedicada ao tema. Entretanto, a invenção da tinta spray

ainda não tem sua origem muito bem definida. Enquanto a maioria das publicações descreve de forma genérica

que a invenção do spray teria ocorrido nos Estados Unidos, no Pós-Guerra, Kozak (2004, p.22) afirma que há

uma disputa em relação a isso. Segundo a autora, o engenheiro norueguês Erik Rotheim teria sido o primeiro a

patentear a pintura com aerosol em 8 de outubro de 1926. Como tributo, o serviço postal do país chegou a lançar,

em 1998, uma edição de selos com desenhos de latas de aerosol. Em 1999, o guia telefônico de Oslo mostra em

sua capa a imagem de um grafiteiro pintando um muro. 86

Frases coletadas em 1968, em Paris. (FONSECA, 1981, p. 19)

Page 133: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

133

sentidos. Escritura própria do território urbano, o grafite participa da construção real e

simbólica da cidade. Efêmero, é feito sobre o muro ou a parede para enfatizar a simbologia do

limite, entre o privado e o público, entre o controle e a liberdade.

Foi a partir dessas características que se estabeleceu outro desdobramento do grafite,

oriundo de Nova York, no início dos anos 1970, quando surgiu o movimento cultural do hip-hop,

especificamente nos subúrbios do Bronx, Harlem e Brooklyn; redutos de negros, latinos e de

outras etnias que se enfrentam por meio de gangues de rua. A música e a dança (o break)

funcionam como armas para que os jovens disputem território. O grafite é outra manifestação

expressiva desta “guerrilha estética”, que através da linguagem incrementa a luta por espaço,

contra as perseguições raciais e as péssimas condições dos guetos. Diferentemente da

linguagem conceitual parisiense, em Nova York, a palavra se transforma em outro tipo de signo.

Trata-se de uma “[...] furiosa imaginação gráfica [...]” (FONSECA, 1981, p. 27) por meio de sprays

coloridos que atingem até um metro de altura e ocupam vagões de metrô, ônibus, elevadores,

galerias, monumentos, etc. Em Nova York, portanto, o grafite não apresentou naquela época o

estilo declaradamente político de Paris, seu objetivo foi expressar nomes, sobrenomes,

endereços, personagens dos quadrinhos underground, etc.

Segundo Fonseca (1981, p. 27): “[...] as pichações nos metrôs foram uma rebelião estética de

altíssimo nível gráfico, onde a própria realidade luminosa da tinta spray interferia e

transformava as inscrições em espécies de neons ambulantes”. Segundo Baudrillard (apud

FONSECA, 1981, p. 30)87:

Trata-se de uma ofensiva tão “selvagem” quanto as revoltas, mas de um outro tipo, uma ofensiva que mudou de conteúdo e de terreno. Estamos face a um novo tipo de intervenção na cidade, não mais como lugar do poder econômico e político, mas sim como espaço/tempo do poder terrorista dos media, dos signos da cultura dominante [...]

87 In: FONSECA, Cristina. A poesia do acaso – na transversal da cidade. São Paulo: T.A. Queiroz, 1981, p. 30.

Page 134: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

134

2.4.2 - Uma “estilística latina”

Na América Latina, o grafite se espalhou por diversas cidades. Em muitas delas, como São

Paulo, parte deste estilo esteve ligado, nos anos 1980 88, ao movimento hip-hop, adaptado da

cultura estadunidense às periferias das cidades com o objetivo de servir como “[...] veículo de

politização e mobilização da juventude pobre rumo à transformação social, fortalecendo e

criando alternativas contra o racismo, a fome e a desigualdade social” (SILVA-e-SILVA, 2011).

Além do grafite, a música Rap (palavra formada pelas iniciais de rhythm and poetry), os MCs

(Master of Ceremony) e os DJs (Disk Jockey) têm sido outra expressão cultural do hip-hop. Na

Argentina, em clima da ditadura, não se realizaram muitos grafites nos anos 1970, entretanto,

com a Guerra das Malvinas, em 1982, surgiram alguns exemplos, ainda que tímidos. Com a

abertura à democracia, em 1983, passaram a surgir novos estilos, frases de amor, slogans de

rock, etc. Em meados dos anos 1990, apareceram as assinaturas inspiradas no movimento hip-

hop.

É interessante notar que Gitahy (1999) afirma que este estilo de grafite em São Paulo foi um

derivativo da pichação, isto é, inicialmente foi feito por pessoas ligadas à realização apenas de

grafismos e letras que decidiram incorporar imagens a essas escrituras. Utilizava-se, inclusive, o

jargão “grapicho” para: “Fase intermediária entre pichação e graffiti, seriam, basicamente,

pichações mais coloridas, não tão elaboradas como as estrangeiras, porém já não eram simples

‘pichos’ [...]” (GITAHY, 1999, p.31).

Os grafites da cultura hip-hop são realizados com tinta, à mão-livre, com spray ou aerosol

(este último tem bicos com regulagem que permitem diferentes espessuras de feixes de tinta

proporcionando maior diversidade plástica em relação às características proporcionadas pelo

sistema de bico da lata de spray). Entre seus estilos, estão o Throw-up (letras e desenhos com

grandes volumes contornados), Wild (nomes e formas que lembram imagens tribais), 3D (com

nuances de luz e sombra que conferem um efeito de tridimensionalidade) e Free Style (que

mistura dois ou mais estilos) (SILVA-SILVA, 2011, p. 57).

88

Fazemos aqui um parênteses para mostrar que, além do grafite, a arte urbana que emerge em São Paulo, a

partir da década de 1980, também diferencia-se da arte em espaços coletivos dos períodos anteriores por eleger

como locais privilegiados as regiões mais caóticas ou movimentadas da cidade e não o bucolismo de praças e

parques. As pinturas de Sonia Von Brusky, na lateral sul do Elevado Costa e Silva, o Minhocão, se estenderam

por mais de três quilômetros. Ainda durante os anos 90 São Paulo foi cenário de importantes intervenções como

o Arte/Cidade, idealizado por Nelson Brissac e com a participação de diversos artistas dispostos a ocupar

artisticamente regiões inóspitas da cidade. As artistas Maria Bonomi e Mônica Nador, cada uma com propostas

extremamente diferentes entre si, são outros exemplos de artistas que utilizaram espaços peculiares na cidade.

Page 135: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

135

Portanto, os anos 1980 foram marcados por uma nova linguagem visual urbana, que atingiu

as grandes cidades latino-americanas como São Paulo, Buenos Aires e Caracas. Silva (2011, p.4)

descreve este fenômeno na América Latina defendendo uma “estilística latina”:

Quando sustentei que o grafite subverte uma ordem social (social, cultural, lingüística ou moral) e que a marca graffiti expõe exatamente o que é proibido, o obsceno (socialmente falando), estava apontando para um tipo de escritura perversa que diz o que não se pode dizer e que, precisamente nesse jogo de dizer o que não é permitido (o eticamente indizível irrompe como ruptura estética), se legitima. Foi assim que fui descobrindo uma estilística latina, uma riqueza latino-americana (a década de 1980 na América Latina) que constituía um terceiro grande momento do grafite contemporâneo (logo depois de Paris de 68 e de Nova York do início dos anos 70, com seus movimentos rebeldes e juvenis de subway).

Ainda segundo o autor, esta “estilística latina” é plural, irônica e lúdica, cujo aspecto crítico

pode ser implícito ou declarado. Realizadas por artistas formais, autodidatas, representantes de

guetos, etc., estas manifestações também foram interpretadas por críticas que reforçam o

caráter subjetivo do espaço urbano e sua relação com a imagem: Rama (1984) situa o grafite

como desafio perene à ordem urbana; Silva (2010) aponta a dimensão psicológica e simbólica

dos artefatos urbanos; Canclini (1997) analisa o grafite como expressão máxima do hibridismo

cultural contemporâneo. Esses autores defendem a ideia de que, mesmo em sua vertente mais

apolítica, o grafite apresenta uma revolta intuitiva contra a ideia de que a propriedade tem

precedência sobre o direito humano. Algo precisa ser expressado “[...]com tal urgência ou

espontaneidade que o autor se sentiu obrigado a desfigurar e vandalizar propriedades - mas, no

fundo, o maior tabu violado é a dimensão psicológica do espaço” (McCORMICK, 2010, p. 50).

Outra manifestação ligada às subculturas* jovens brasileiras nos anos 1980 foi a pixação*,

conhecida por sua atitude declaradamente transgressora, pois seus autores, a maioria jovens da

periferia, de situação econômica precária, fazem questão de se diferenciar dos grafiteiros e não

querem fazer parte do sistema artístico 89. Segundo Freire (2006, p. 81): “[...] pichadores são

aqueles que rabiscam, riscam, degradam a cidade com suas marcas, atingindo muros,

89

Um dos momentos mais emblemáticos desta questão foi o convite para que um grupo de pixadores

participasse da Bienal de São Paulo. Em 2008, cerca de 40 deles invadiram o prédio da Bienal para pichar as

paredes de um dos andares do prédio. A polícia entrou no local e chegou a prender um deles. “Enquanto o grafite

é aceito e foi incorporado pelo mainstream artístico, o pixo é agressivo e marginal (ver diferença para arte

marginal*, no glossário). E quer ficar assim”, relata Abos (2010). Na edição seguinte da Bienal, foi criada uma

sessão para receber esta arte, representada principalmente por fotografias. Mesmo assim, o fato surtiu diversos

protestos, especialmente, entre “pichadores” contrários a qualquer institucionalização de suas ações.

Page 136: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

136

monumentos e até cemitérios”. Esta autora explica que estes jovens marcam territórios,

dividindo zonas urbanas entre as diferentes gangues, muitas vezes, com uma grafia quase

universal (o tipo de letra “gótica-hieroglífica” dos muros de São Paulo pode ser visto no Rio de

Janeiro, em Nova Iorque ou em Chicago).

Já em relação aos grafiteiros, Freire afirma (2006, p. 81) que:

O grafite, já chamado de “gíria” em relação à linguagem culta da arte, exige um projeto e uma execução mais cuidadosa. São desenhos, imagens feitas a partir de estudos ou moldes cuidadosamente elaborados. A preocupação estética é inegável e, portanto, os locais escolhidos são estratégicos.

Silva (2011, p.5) fornece uma visão mais inusitada e condescendente a respeito da pixação:

O ponto de risco desses grafemas não está tanto no que dizem, pois afinal não passam de letras de um nome ou de um sobrenome, mas no local em que são inscritos: a fachada do último andar de um edifício, o cimo de uma ponte. Isso levou-me a pensar que se trata de um grafite-acobracia, herdeiro do circo e do espetáculo. Essa modalidade de pichações influenciou o grafite e o fez participar de expressões mais ambientais que propriamente contestatórias ou contra-ideológica.

2.4.3 - O novo grafite paulistano e portenho: a “Geração 80” das ruas

Entre as décadas de 1980 e 1990, as grandes metrópoles ocidentais tornaram-se palco para

inúmeras manifestações visuais em seus espaços públicos. Paris, por exemplo, continuou a

tradição das manifestações do grafite, porém com mudanças profundas em sua estrutura, que

além de letras, passa a mostrar imagens. O francês Blek Leraque é um dos pioneiros do novo

estilo, que desde sua formação em artes visuais, em 1981, passou a realizar com a técnica do

estêncil figuras humanas em tamanho natural, o que influenciou diversos artistas ao redor do

mundo. Como Leraque, surgiram inúmeros artistas visuais de formação sólida, que passaram a

utilizar muros da cidade como suporte para pinturas, enquanto também se firmaram artistas

autodidatas, provenientes da cultura do grafite hip-hop, porém que passaram a desenvolver

estéticas próprias e bem elaboradas, compondo o que chamamos aqui de novo grafite*,

expressão artística legítima e validada no campo da arte contemporânea.

É interessante notar que o grafite nos anos 1980 afirma-se sobre um panorama da arte

contemporânea em escala mundial que vinha privilegiando uma retomada da pintura, dos

Page 137: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

137

grandes formatos, da força cromática e da gestualidade. Cunhada pelo crítico italiano Achille

Bonito Oliva como “transvanguarda internacional” (ARCHER, 2001, p. 155), esta nova geração

surgiu em diversos países como uma resposta ao cansaço advindo das linguagens

desmaterializadas da geração anterior, resgatando o prazer da visualidade e o sentido tátil da

plasticidade artística. No Brasil, esta geração ficou conhecida como “Geração 80”, apelido

firmado por ocasião da mostra "Como vai você, Geração 80?", realizada na Escola de Artes

Visuais do Parque Lage - EAV/Parque Lage, Jardim Botânico, Rio de Janeiro, em 1984. O livro

“Explode Geração”, do crítico Roberto Pontual, de 1985, foi uma referência substancial para

definir os rumos dessa geração plural, associada pelo autor à tradição barroca brasileira. Há um

capítulo, inclusive, em que o crítico descreve seu encontro com Waldemar Zaidler e Carlos

Matuck para falar do recente grafite dos anos 80, lembrando de nomes que despontavam na

época, como Alex Vallauri, e associando-os ao movimento artístico em geral.

O período inaugurou uma intensa circulação de artistas entre países diferentes,

proporcionando troca de informações e influências e fortalecendo um circuito internacional até

hoje muito característico da arte urbana (grandes festivais são um exemplo desta dinâmica).

Enquanto Blek Leraque começava a fazer suas primeiras imagens, o brasileiro Ciro Cozzolino

chegou a Paris para estudar artes e grafitar muros da cidade. Pintava imagens em papel Kraft e

colava os trabalhos em locais estratégicos do metrô durante a madrugada. Em 1985, ele

trabalhou com Keith Haring na montagem da Bienal de Paris, e logo depois estabeleceram

parceria para pintar no metrô. Cozzolino conta (GITAHY, p. 44, 2002) que viu várias obras de

Haring serem retiradas do metrô e comercializadas na Feira Internacional de Arte

Contemporânea (Fiac). Ciro voltou ao Brasil em 1987, onde se juntou ao grupo TupiNãoDá.

Em São Paulo, surgiram nomes que passaram a utilizar técnica e linguagem similar ao grafite

de origem hip-hop, porém muitos (inclusive, com formação artística universitária) também

imprimiram em suas obras características mais estéticas. Surgiram artistas de peso como: Carlos

Matuck, Hudinilson Jr., Rui Amaral e Waldemar Zaidler. O artista plástico e multiperformer

Maurício Villaça é outro nome de destaque, inclusive, por sua parceria com Alex Vallauri, que

destaca o cenário neste período: “Quando comecei, em 1978, pelo menos em São Paulo havia

muita pichação política, mas a maioria era poética e foi por isso que eu tive vontade de me

expressar. Como artista plástico, procurei interferir de forma visual – símbolo sem texto” 90.

90

Apud SPINELLI, p. 116, 2010.

Page 138: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

138

Neste período, uma das ações pioneiras foi a formação do grupo 3nós3, que reunia

Hudinilson Jr., Mário Ramiro e Rafael França, e que tinha como objetivo fazer “interversões”

(GITAHY, 2002, P. 51) na cidade, isto é, oferecer uma nova versão do espaço urbano. Em 1979, o

grupo encapuzou com sacos de lixo as estátuas da cidade. No mesmo ano, vedaram as portas

das principais galerias com “xis” de fita crepe, deixando um bilhete nas portas: “O que está

dentro fica, o que está fora se expande”. Seguiram-se outras inúmeras “interversões” do grupo,

além de toda uma nova geração de artistas urbanos, como Eduardo Castro, Cláudio Donato,

Artur Lara, Jorge Tavares, Ozéas Duarte, etc.

Também naquele período, o grupo Manga Rosa, que não tinha como prática principal a

intervenção urbana, ocupou a rua com algumas intervenções. A principal delas foi o projeto

Arte ao Ar Livre, que foi a ocupação sucessiva de uma placa de outdoor por artistas plásticos, a

partir de agosto de 1981. Por um ano, a placa da Rua da Consolação, em frente à Praça

Roosevelt, ficou aberta a artistas interessados e convidados, sob a organização do Grupo Manga

Rosa, que também organizou o projeto Pilhagem Outdoor, cuja proposta era destruir o outdoor,

“[...] rasgando-o para mostrar a podridão da cidade por trás dele. Assim, o grupo combatia a

interferência da mídia na paisagem da cidade, e de certa forma preconizava as ações futuras da

Lei Cidade Limpa (mais de 20 anos depois)” 91.

Um marco do novo grafite na cidade de Buenos Aires foi a criação do coletivo de desenho

Doma, em 1998, por jovens estudantes de ilustração, cinema e desenho gráfico, da

Universidade de Buenos Aires, que tinham como prática instalações, desenhos, cartazes e

estêncil. Costuma-se situar o ano de 2001, com a crise econômica, como pedra angular do novo

grafite portenho, quando surgiram grupos como Bs. As. Stencil, Run Don’t Walk e Malatesta. O

início dos anos 2000 foi marcado pela visita de artistas estrangeiros, como o israelense Rami

Meiri, que pintou no bairro San Cristóbal a imagem de seu filho recém-nascido gritando, em

uma interessante composição formal em que o rosto da criança parece quebrar os tijolos do

muro ao emergir de seu interior. Os artistas britânicos The London Police também estiveram na

cidade, ajudando os artistas locais a criar uma cultura de fazer imagens de grandes dimensões.

Um dos mais importantes artistas da cena internacional, Blu, deixou sua marca na Villa Urquiza.

Também pode-se notar a influência dos traços do fileteado portenho em artistas como Nómada,

Jazz e Nerf.

91

Disponível em http://grupomangarosa.blogspot.com.br/. Acesso em: 5 fev. 2014.

Page 139: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

139

Na cidade de Buenos Aires, há grafites pintados em diversos bairros com construções

históricas, entre edifícios, casas e igrejas com fachadas antigas, algo que não se encontra

habitualmente em outros países na América do Sul, como apontam Fox-Tucker e Zauith (2010,

p. 13). É uma das razões que levam artistas de outros países a pintar em Buenos Aires, apesar de

a prática ainda não estar legalizada. Os autores afirmam que há um bom nível de tolerância da

população em relação ao grafite. Citam o artista francês Grolou, que morou nos bairros de San

Telmo, Barracas e Nuñez, onde costumava bater na porta de vizinhos para pedir permissão para

pintar suas formas humanas retorcidas e animais monstruosos, o que quase nunca lhe era

negado. Também se tornou praxe o convite de comerciantes para que os artistas pintem as

fachadas de suas lojas, como Gualicho, que pintou a fachada de uma agência de publicidade no

bairro Colegiales, as paredes no Centro Cultural Recoleta e no Centro Cultural San Martín.

Silva (1988, ps. 18-19) aponta no novo grafite transformações estruturais significativas:

[...] de uma produção ideológica dominada pelas organizações políticas, que transmitiam por este canal suas consignas e propagandas de partido, se evoluciona a outra produção de perspectivas poéticas, com forte acento no cotidiano, de motivação pessoal e com reiterada ênfase no uso da figura sobre a palavra. Estes dois estilos, aquele ideológico de partido e este poético independente, rivalizam hoje em mútuas influências, formais e programáticas.

Entretanto, apesar de revelar seu lado mais estético neste período, o grafite ainda continuou

a ser visto como altamente transgressor. Gitahy (2002, p. 35) conta que, às vésperas do

aniversário de São Paulo, em 1988, os artistas Rui Amaral, Ana Letícia, Beto Marson, Marco

Passareli, Numa Ramos, Beto Pandim, Jorge Luiz Tavares, Júlio Barreto, John Howard e Maurício

Villaça foram presos pela guarda municipal de São Paulo porque estavam pintando uma

homenagem à cidade no túnel sob a Praça Roosevelt. Foram indiciados e incluídos no artigo 163

por danos ao patrimônio público. Dez anos depois, em 1998, a lei ambiental número 9.60592 foi

sancionada pelo governo federal, porém seu texto não diferencia conceitualmente grafite de

pichação, sendo os dois considerados crimes contra o meio ambiente. A exceção é feita para

obras realizadas com consentimento prévio dos proprietários.

Para driblar esses limites, artistas buscaram locais inusitados para fazer sua arte, como no

início dos anos 1980, quando surge o “Beco do Batman”, uma pequena rua sinuosa no bairro da

92

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em 02 abr. 2014.

Page 140: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

140

Vila Madalena, em São Paulo, onde muros começaram a ser grafitados, tornando o local uma

referência importante até hoje para a arte urbana. (Figura 45)

Na época, o novo grafite não foi considerado arte pela crítica em geral, como atesta o

Dicionário Crítico da Pintura no Brasil, de José Roberto Teixeira Leite. No verbete “Graffiti”

(LEITE, 1988, p. 227), o autor define:

Primo pobre da arte pública ou arte muralista, dificilmente enquadrável – como ela – na categoria de grande arte, os graffiti caracterizam-se pela liberdade bem-humorada de feitura e pelo apelo ao onírico e ao fantástico [...]. Afastados do circuito tradicional da arte, voltando as costas ao mercado e à crítica, os grafiteiros são guerrilheiros estéticos que se recusam a atuar nos estreitos limites da galeria ou do museu, necessitando do espaço urbano para realizarem seu trabalho. Do mesmo modo, dispensam o connaisseur, o colecionador ou o aficionado, para se dirigirem diretamente ao cidadão comum, por isso utilizando imagens do quotidiano – aparelhos eletrodomésticos, por exemplo – e lançando mão de uma estética popular urbana. Autênticos marginais da pintura, dispensam até mesmo o patrocínio de empresas particulares ou de organismos oficiais – ao, contrário, por exemplo, dos muralistas urbanos -, preferindo manter sua independência a todo custo.

Ainda no mesmo dicionário, “Muralismo urbano” significa:

Expressão que, na ausência de outra mais precisa, designa certas pinturas executadas nas superfícies externas de edifícios – seja por um artista, seja por vários, ou mesmo por indivíduos sem treinamento profissional -, para lhes disfarçar ou atenuar a aridez ou feiúra, ou para dissimular sua verdadeira função. (LEITE, p. 338, 1988)

Levando em consideração que este dicionário é de 1988 (mesmo ano em que foram presos os

artistas que estavam pintando o túnel na Praça Roosevelt) e que não há outras obras de

referência específicas como ele e mais atualizadas, é importante ressaltar a importância de

esclarecer as mudanças vertiginosas que vêm ocorrendo em relação à produção de arte urbana

na contemporaneidade. Nas últimas décadas, cidades como São Paulo e Buenos Aires se

tornaram ícones deste novo fenômeno visual urbano. Trata-se do surgimento de uma nova

geração de artistas, de formação e origens diversas, que ocupam muros, fachadas, paredes, etc.,

com projetos estéticos bem definidos. Trabalhos internacionalmente reconhecidos, como o do

italiano Blu, do britânio Banksy, dos brasileiros OsGêmeos, etc., mostram que esta nova geração

tem aberto um novo capítulo na história das cidades e da arte, como veremos mais

detalhadamente no terceiro capítulo.

Page 141: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

141

Para diferenciar “grafite” de “arte mural”, Silva (2010, ps. 17-18) descreve duas situações:

uma em que prevalecem as “questões pré-operativas”, outra em que se destacam as “questões

operativas”. No primeiro caso, as questões “pré-operativas” são: o “anonimato” de quem

realiza a obra; o meio “marginal” em que o grafite é feito; e um a presença de um corpo em

tensão, daquele que teme em ser descoberto. Já as “questões operativas” se referem à forma,

aos materiais, aos lugares, à velocidade do traço. Se as “questões operativas” prevalecem sobre

as “pré-operativas”, encontramos o fenômeno da arte mural. Mas se o que dominam são as

“questões pré-operativas” então há o grafite. Podemos transpor essa sistematização conceitual

para determinar as características do que chamamos aqui de “novo grafite”. Isto é, uma

derivação do grafite de origem hip-hop, porém no qual prevalecem as “questões operativas”

que o fazem se configurar como uma linguagem artística. Afinal:

(...) nem tudo que está nos muros é grafite, contradizendo as teorias nas quais se dizia que tudo o que está nos muros são grafites por tal fato em si mesmo, e concluo agregando também que um grafite não tem que estar sempre em um muro da rua; digamos que defendo sua desterritorialização física. (SILVA, 2010, p. 17).

Figura 45: São Paulo (2012):

Beco do Batman. Fonte:

Alessandra Simões.

Page 142: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

142

2.4.4 - Jean-Michel Basquiat, Keith Haring e Alex Vallauri: matrizes do novo grafite

É de fundamental importância situar o papel destes artistas na configuração deste novo tipo

de arte urbana e, inclusive, em função de sua influência sobre os artistas brasileiros. Pontual

(1985) fala da importância de Nova York neste cenário, e Jean-Michel Basquiat [1960-88] e Keith

Haring [1958-90] são figuras chave do grafite nova-iorquino. Sua obra reflete o panorama geral

da arte nos anos 1980 descrito anteriormente como um novo marco na valorização das pinturas

de grandes dimensões e densidade cromática. Com a vinda de Haring para o Brasil e com a ida

de Alex Vallauri para Nova York (que convive bastante com ambos os artistas), estabelece-se

também uma troca de influências mútuas.

A respeito de Basquiat e Haring, afirma Alonzo (2010, p.8, tradução nossa):

Ambos utilizaram o espaço público como uma plataforma para exibir e disseminar sua arte, assim, eles prepararam o terreno para o que é hoje conhecido como street art: isto é, deixando seu trabalho em paredes e estações de metrô, eles produziram um corpo de trabalho intencionalmente acessível ao público em geral. Suas imagens foram ambas visualmente entendidas e facilmente compreendidas pelas massas de pessoas habitantes da cidade.

Autodidata e com suas primeiras produções artísticas ligadas ao submundo do spray no Lower

Manhattan e da cultura hip-hop, Basquiat surge como um artista-chave neste período, uma vez

que estabelece em sua poética uma ligação formal entre a produção visual das ruas e o sistema

artístico oficial. Se tornou profissionalmente ativo no início de 1980, década em que uma

economia mais forte deixava para trás a decadência das cidades para dar lugar ao

enaltecimento do luxo e do consumo. Em meio a este clima, a nova geração de artistas não teve

interesse em seguir os ditames do Modernismo, preferindo estar atenta ao crescente mercado

de arte, cujo centro era Nova York. Muitos retornaram à pintura figurativa, às abstrações e

espirituosos objetos, que eram vendidos a somas cada vez maiores nos leilões, fomentados

também pela abertura de novas galerias, espaços culturais e publicações especializadas.

Basquiat foi “[...] imediatamente reconhecido como alguém que incorporou o novo espírito,

alguém capaz de fazer sobreviver o denouement do Modernismo e trazer a arte de volta à vida”

(MAYER, 2010, p.42, tradução nossa).

Page 143: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

143

Desde criança, Basquiat desenhava e pintava. Isso o diferenciou em um meio artístico em que

as habilidades técnicas não estavam tão em voga, à exceção daqueles que pretendiam se tornar

desenhistas profissionais. Muitos artistas deste período utilizavam suportes mecânicos, como

projetores e fotografias, ou ainda subcontratavam produção, a exemplo dos escultores

minimalistas Richard Serra e Donald Judd. “Muitos artistas dos anos 1980, as mimadas crianças

de pais que haviam crescido durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, tendiam

a ser mais genericamente talentosos do que especificamente disciplinados” (MAYER, 2010,

p.43). Neste cenário, Basquiat destacava-se por combinar “[...] uma espontaneidade exuberante

com um firme comando dos materiais artísticos” (MAYER, 2010, p.43, tradução nossa).

Influenciaram em seu trabalho os conhecimentos sobre música (jazz e hip-hop), esportes (boxe

e baseball), história (diáspora africana), além da ascendência familiar caribenha, explorando

tudo isso iconograficamente.

Keith Haring também ficou conhecido por levar o grafite para museus e galerias. Manteve

íntima amizade com Andy Warhol, com quem discutia “[...] a delicada questão entre arte oficial

e não oficial e a hierarquia existente entre arte, cultura e poder” (GITAHY, p. 37, 2002).

Frequentando a região da Times Square, descobriu nos grandes painéis negros do metrô um

suporte interessante para a linguagem que viria a desenvolver: giz branco para compor a figura

simples de um boneco de cabeça redonda, além de padrões labirínticos que viriam marcar

depois importantes eventos de arte contemporânea, como na Bienal de Paris, em 1985, onde

fez um extenso corredor de grafite; e em Berlim, onde, em 1986, pintou cem metros do muro

que dividia a cidade.

Basquiat e Haring começaram juntos pintando muros em Nova York. Ambos tinham poucos

recursos financeiros, porém alcançaram fama meteórica no mercado de arte. Haring chegou a

abrir uma loja no SoHo, a Pop Shop, onde eram vendidos produtos, como camisetas, pôsteres,

pequenas esculturas, etc. Basquiat, com apenas 20 e poucos anos de idade, já vendia pinturas

das melhores galerias do SoHo, sendo prontamente reconhecido na América do Norte, Europa e

Japão. Ambos morreram prematuramente; Haring de complicações da AIDS, em 1990; e

Basquiat de overdose de heroína em 1988.

Um rico panorama deste período é descrito por Gablik (1995, Ps. 104-113) no ensaio “Graffiti

in Well-Lighted Rooms”, que trata também de outro personagem do grafite nova-iorquino: o

Futura 2000, cujo nome foi inspirado em um carro Ford. Ficou conhecido como o “Watteau da

lata de spray” (referência ao pintor francês de estilo rococó), apesar de a autora achar suas

Page 144: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

144

pinturas mais parecidas com as construções espaciais de Kandinsky. Já em 1985, quando sai a

publicação do ensaio de Gablik na primeira edição do antológico livro “Has Modernism

Failed?”93, a autora entoa uma importante discussão a respeito dos principais nomes que

grafitavam a cidade de Nova York e que já estavam sendo absorvidos por um mercado em

ascensão, interessado em novas linguagens. Ela discute amplamente sobre a questão da

legitimação desta linguagem, entrevistando alguns dos principais nomes da época, inclusive,

Haring e Basquiat. Aponta o artista Fred Braithwaite, conhecido como Fab 5 Fred, como um dos

primeiros a utilizar imagens e não somente palavras (aliás, uma reprodução de lata de sopa em

homenagem a Andy Warhol). Ao entrevistar este artista, fica claro também sua consciência

sobre as relações entre o grafite e as artes visuais, quando ele cita o pintor Jackson Pollock

como uma de suas principais referências; disse também ter acabado de ler um ensaio em que

Pollock tem seu estilo classificado como “graffiti-calligraphy”.

É interessante notar, mesmo na pouca bibliografia dedicada ao tema, a influência desses

artistas na arte urbana brasileira, principalmente por meio do artista naturalizado brasileiro Alex

Vallauri (nascido na Etiópia em 1949, e falecido em 1987). Este realizou pinturas em muros de

Nova York juntamente com Basquiat. Segundo Gitahy (2002, p. 38), Haring também participou

em 1983 da Bienal de São Paulo. Neste período, fez diversos trabalhos de rua em companhia de

Rui Amaral, grafiteiro paulistano da geração 80 e monitor da Bienal naquele ano. Haring

também conheceu Alex Vallauri e Maurício Villaça. Em 1986, expôs no Rio de Janeiro na Galeria

Thomas Cohn, junto com o artista Kenny Scharf, estadunidense na época casado com uma

brasileira e que hoje ainda é extremamente atuante na arte urbana.

2.4.5 – O legado definitivo de Alex Vallauri

Pode-se dizer que o artista Alex Vallauri foi uma espécie de “Basquiat brasileiro”. Trata-se,

claro, de fazer apenas uma analogia metafórica, pois a obra de Vallauri se destaca na História da

Arte pela sua singularidade e significativa contribuição à arte urbana mundial. Além de

precursor do grafite no país, Vallauri foi um artista que utilizou variados recursos estéticos com

uma preocupação declarada em fazer uma arte acessível e democrática. Sua carreira,

inicialmente, foi marcada pelo uso da gravura, meio que possibilitava ao artista concretizar

93

A capa do livro desta edição é composta justamente pela imagem de um muro, e parte de seu título é escrita

como se tivesse sido grafitada. GABLIK, Suzi. Has Modernism Failed?. New York: Thames and Hudson, 1995.

Page 145: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

145

estes objetivos. No final dos anos 1970, os muros e paredes das cidades se tornaram o principal

suporte para a realização de obras com a técnica do estêncil, máscara utilizada para compor

imagens e imprimi-las em superfícies com a tinta spray.

Com educação formal em artes visuais e circulação no meio artístico de diversos países

(inclusive, em Nova York, onde conviveu com Basquiat), Vallauri exerceu um papel inaugural e

fundamental, como um elo entre o grafite urbano tradicional, feito por jovens autodidatas (de

classes sociais desfavorecidas ou não), e a arte em si. Seu papel aglutinador e influência na arte

urbana de São Paulo nos anos 1980 são a maior prova da ligação entre estes dois territórios

estéticos e merecem uma investigação aprofundada para trazer à tona a importância de Vallauri

na construção da história da arte urbana. Neste sentido, Vallauri encarna uma das grandes

características do artista contemporâneo:

O artista é avaliado, desde então, segundo o grau de segurança com que ultrapassa o limite entre o high e o low em ambas as direções, sem permanecer em qualquer dos lados da fronteira. Ele pode deixar não filtrados os achados do cotidiano que utiliza ou interpretá-los e configurá-los esteticamente de um modo estranho. Mediante essa estratégia de confrontar arte e não-arte, ele assegura-se de uma diferença que dá o direito de ainda hoje fazer arte. (BELTING, 2006, p. 114)

Vallauri nasceu, em 1949, em Asmara (antiga Etiópia, atual Eritreia) e mudou-se com a família

para a América do Sul no ano seguinte. Viveu até 1964 na Argentina, onde ainda adolescente

estudou artes na Asociación Etímulo de Bellas Artes de Buenos Aires. Mudou-se para Santos em

1964, onde iniciou seus estudos de xilogravura com Augusto Barroso. Desde então, passou a

frequentar diversos cursos livres de arte no Brasil, concluindo em 1971 o bacharelado em

Comunicação Visual, na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Depois de participar de

diversas exposições, mostrando obras realizadas principalmente com a técnica da gravura,

passou a viver em outros países, regressando depois ao Brasil.

Nos anos 1970, Vallauri viveu na Inglaterra e Holanda, países onde trabalhou com desenho

animado e cenografia, o que viria a fortalecer sua vocação para a arte coletivista. Em 1975, em

Estocolmo, trabalhou como impressor no Litho Art Center, onde, paralelamente a suas tarefas

diárias, desenvolveu pesquisas avançadas na área de litografia e gravura em metal, incluindo em

sua obra, a partir daí, recursos fotográficos que lhe possibilitaram idealizar uma série de

gravuras singulares, inovadoras para aquela época. Em 1978, de volta a São Paulo, realizou as

Page 146: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

146

primeiras imagens com a técnica do estêncil em muros e postes da cidade. Sua assinatura era

uma bota feminina preta de salto.

Depois de uma fase inicial expressionista e de sua incursão pelo surrealismo, principalmente

por meio da gravura e desenho, Vallauri encontrou na Pop Art sua principal inspiração,

incorporando o vocabulário “kitsch”, definido como:

[...] - símbolo estandartizado da indústria de sonhos, típica das grandes metrópoles, disseminado em São Paulo, Nova York, Chicago e Londres - foi percebido e anexado ludicamente em suas obras. Um jogo onde a fantasia se misturava com a realidade confusa do cotidiano: uma reinvenção pessoal de Alex Vallauri da pop art nos trópicos. (SPINELLI, 2010, p. 10) 94

Em 1982, Vallauri levou seus grafites para Nova York, onde pintou obras no Soho, Greenwich

Village, East Village e Broadway. Nesta época, conheceu diversos artistas locais e chegou a

grafitar muros juntamente com Basquiat. Levou em sua bagagem máscaras de estêncil cujas

imagens ficaram famosas em São Paulo, como Acrobata, Telefone, Dado e Pião. Disse ele a

respeito de sua impressão sobre o grafite nova-iorquino: “Me desencantei com o graffiti daqui.

Pensei que ia encontrar coisas inovadoras. Que nada! E eu que pensava que seriam os melhores

do mundo! Não passam de pichações de fraco acabamento.”95. Entretanto, em termos de

mercado de arte, a impressão é mais positiva: “Em Nova York, as galerias cedem paredes e chão

para o graffiti. Participei de coletivas onde podíamos vender trabalhos impressos em papel. Já

existe um mercado promissor para o graffiti”. 96

Vallauri escolheu o estêncil como principal técnica para reproduzir suas imagens em suportes

da cidade. Utilizado há séculos na decoração de ambientes, o estêncil – que poderia ser

considerado um meio termo entre pintura e gravura - ganhou nas mãos do artista97 nova

dimensão, o de arte urbana, ou street art*:

94

Segundo Spinelli (2010), Vallauri também teve obras de sua autoria reproduzidas em grande escala para a

indústria de confecção, como Levi’s, Fiorucci e Rakam Tecidos. 95

Comentário do artista em carta enviada, em 1982, a sua prima Beatriz Rota-Rossi. (In Spinelli, 2010, p. 79). 96

Nova York, cidade aberta aos grafites paulistas. O Estado de São Paulo, 11 de janeiro de 1983. (In SPINELLI,

2010, p. 116). 97

Hudinilson Junior, Waldemar Zaidler, Carlos Matuck, Maurício Villaça, Vado do Cachimbo, Carlos Delfino,

Jaime Prades, Eduardo Castro, Eymar Ribeiro, Job Leocácio, Jorge Tavares, Júlio Barreto, Ozéas Duarte, Celso

Gitahy, Cláudio Donato e Ruy Amaral foram outros artistas brasileiros também a utilizar a técnica do estêncil

naquele período.

Page 147: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

147

O estêncil, de estrutura compositiva e técnica absolutamente simples, feito à mão, impresso com método rápido e barato, por intermédio de máscaras recortadas, transforma-se num novo suporte e veículo estético de um criador engajado no processo de propiciar experiências artísticas para todos os públicos. Um projeto estético que poderia levar à contextualização social da arte, uma estratégia de enfrentamento e ação, no sentido de gerar um imaginário artístico; democratização capaz de estabelecer novas estruturas de linguagens e novos padrões de criação mais integrados à vida social [...] (SPINELLI, 2010, p. 30)

A obra de Vallauri estava sempre ligada a símbolos da Art Pop, como a famosa personagem

“Rainha do Frango Assado” (representada em peça teatral em meados dos anos 1980). Esses

experimentos chegaram a chamar a atenção do artista Andy Warhol, que ficou fascinado com a

obra “Peru Assado sobre Coluna Grega”, em homenagem ao Dia de Ação de Graças98. A estada

de Vallauri em Nova York suscitou comentários na crítica especializada sobre a velha polêmica a

respeito da autonomia estética da arte brasileira em relação aos países ditos desenvolvidos.

Como afirmou Albert Beutenmüller em depoimento a Spinelli:

Ao viajar para os Estados Unidos, Alex Vallauri fez o percurso de retorno à origem dos graffiti modernos [...] A linguagem é simples e direta. Alex repete alguns elementos – o telefone com seu fio enrolado, botas de salto alto, por exemplo – que já havia utilizado em São Paulo e o fizeram destacar-se na multidão, víamos a bota de salto alto e sabíamos: Alex estivera ali. A imagem era um código secreto entre autor e observadores; todos éramos cúmplice do seu discurso plástico, integrado à paisagem. Defrontando-se com os muros nova-iorquinos, Alex Vallauri realizou uma incisão cultural no panorama americano: devolveu àquele povo a linguagem que ele nos impôs nos últimos anos; criou um impasse típico de contracultura e cartase. (SPINELLI, 2010, p.83)

Um momento importante na carreira de Vallauri foi a publicação do livro Art Today, de

Edward Lucie-Smith, no qual o crítico elogia a instalação realizada pelo artista para a XVIII Bienal

Internacional de São Paulo, em 1985. A crítica resultou no convite para o artista participar com

destaque na exposição Art of Fantastic: Latin America, 1920-1987, idealizada pelos curadores

Holliday T. Day e Hollister Sturges para o Museu de Arte de Indianápolis.

De meados ao final dos anos 1980, uma série de comentários na imprensa e na crítica

especializada aponta para a importância da obra de Vallauri, inclusive, como um precursor da

arte urbana no Brasil. Como lembra o artista José Roberto Aguilar, havia muitos artistas,

“Impulsionados pelo santo Alex Vallauri, ele mesmo o rei Arthur, com seus cavaleiros a procura

98

Depoimento do artista a Spinelli (2010, p. 116).

Page 148: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

148

do santo spray-graal” (apud SPINELLI, 2010, p. 34). Uma de suas imagens mais emblemáticas é a

silhueta de um acrobata, fragmento da obra “O Circo”, do pontilhista Georges Seurat que, por

sua vez, havia se inspirado no malabarista de um cartaz de rua criado por Jules Chéret99. Todos

os anos comemora-se no dia 27 de Março o "Dia Nacional do Graffiti no Brasil" por decreto lei

sancionado pelo Presidente da República, data da morte do artista Alex Vallauri.

99

Spinelli (2010) explica que Chéret foi pioneiro na criação de grandes cartazes coloridos feitos a partir da

técnica da litografia, em meados de 1800. Inspirava-se em mestres do barroco (principalmente Tiepolo) para

complexas composições, com habilidades de desenho para sugerir terceira dimensão.

Figura 46: Alex Vallauri

grafitando. Fonte: SPINELLI,

João. Alex Vallauri. São Paulo:

Bei, 2010, p. 176. (sem data

definida na publicação)

Page 149: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

149

Figura 47: Coluna com frango assado

(década de 80-grafite sobre papel),

de Alex Vallauri. Fonte: SPINELLI,

João. Alex Vallauri. São Paulo: Bei,

2010, p. 108.

Figura 48: Después de um Puño,

1987, de Basquiat. Fonte: MAYER,

Marc (ed.). Basquiat. Nova York:

Brooklyn Museum, 2010, p. 162.

Page 150: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

150

CAPÍTULO 3: SÃO PAULO E BUENOS AIRES: “CIDADES-SUPORTE” DA NOVA ARTE URBANA

3.1 Preâmbulo

Nas últimas décadas houve um aumento significativo no contingente de artistas que fazem

da cidade o suporte de sua arte. Estas práticas de intervenção urbana* utilizam variadas

linguagens e técnicas, tendo uma maior aproximação ou não com práticas ativistas e politizadas,

seja por meio de recursos experimentais ou tradicionais. Independentemente de estarem em

locais abertos ou fechados, elas são feitas na cidade, na maioria das vezes reafirmando seu

caráter anti-institucional (a questão da incorporação da arte urbana pelo circuito artístico será

debatida ao final deste capítulo).

É possível afirmar aqui duas grandes tendências desta nova arte urbana: a) Uma voltada

para a ideia de “arte ativista”, na qual os artistas trabalham com linguagens altamente

experimentais e sistematicamente conceitualizadas, colocando-as de forma diretamente crítica

em relação à sociedade capitalista e cujas raízes remontam aos movimentos artísticos

modernistas e às neovanguardas elencados no 2º capítulo deste trabalho. b) Outra em que é

possível delinear a configuração do “novo grafite” (com maior ou menor ênfase em sua ligação

com as raízes urbanas do grafite ligado ao movimento Hip Hop e com raízes históricas no

panorama das grandes pinturas gestuais dos anos 1980), e cujos artistas estão

predominantemente focados no desenvolvimento plástico e material de suas obras.

São Paulo e Buenos Aires refletem estas mesmas divisões relativas às tipologias da nova arte

urbana em escala mundial. São consideradas cidades centrais no cenário geral da produção

internacional tanto pela qualidade de obras como pela quantidade de artistas atuantes. A

proposta aqui é fazer primeiramente um traçado descritivo dos artistas e grupos existentes

dentro dessas duas correntes, todos ainda atuantes, para propor depois uma reflexão crítica de

sua produção, relacionando-a à história da arte urbana sistematizada no capítulo II e às teorias

da arte contemporânea. A seguir, a produção destas duas cidades será analisada com base nos

seguintes critérios: a) a partir da seleção dos principais artistas que se encaixam no perfil “arte

ativista”, com base na bibliografia levantada e em pesquisas na internet; b) a partir da seleção

de artistas que se encaixam no perfil “novo grafite”, com base no trabalho de campo realizado

para a observação das cidades, suas obras e registro fotográfico, além de artistas selecionados

Page 151: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

151

na bibliografia, mas cujas obras não foram encontradas por esta pesquisadora durante a

pesquisa de campo.

3.2 Arte ativista paulistana e portenha

Entre final dos anos 1990 e início de 2000, um interessante fenômeno ocorre nas duas

capitais: o surgimento de coletivos de jovens artistas, cujo trabalho é voltado para a arte

ativista, seja no sentido político direto como indireto, e a partir de poéticas estruturadas em

ações realizadas na cidade e envolvendo o público transeunte.

Um dos primeiros grupos, o argentino Escombros 100, criado em 1988, utiliza instalações,

manifestos, murais, objetos, cartazes, grafites, cartões postais, etc., para abordar a realidade

sociopolítica argentina. Marcada na época da fundação do grupo pela hiperinflação, a Argentina

apresentava um cenário social pessimista e os artistas do grupo imaginaram que em pouco

tempo o país estaria reduzido a “escombros”, daí o nome do grupo. Para eles: “Um nome que é

mais oportuno do que nunca ainda hoje”. Também mantiveram intactas algumas características

de sua atuação inicial, a principal delas, a proposta de fazer a maioria de seus trabalhos, ao ar

livre, seja nas ruas, nas praças, e até mesmo em córregos urbanos (o que se tornou uma

constante no grupo).

Começaram com um grafite em um terreno baldio no bairro de San Telmo, cuja imagem

enviaram por correio para diversas pessoas como um cartão postal. Podemos notar nesta

linguagem uma referência à arte postal dos anos 1960 e 1970, como foi citado no capítulo II o

caso do artista Paulo Bruscky, um dos pioneiros desta vertente no país. Logo depois, o grupo fez

a obra Pacartas I (1988), uma amostra de fotoperformances em banners exibidos em uma

estrada e, em seguida, mostrados em caminhadas pelas ruas. Esta ação foi repetida pouco

depois, na localidade de Hernandez, perto de La Plata. Uma dessas imagens inspirou o mural

Teoría del Arte, na avenida 7, entre as ruas 41 e 42 ruas, em La Plata.

Além de utilizarem diversos recursos estéticos, os artistas do grupo realizam atos de

protesto social e publicam constantemente manifestos contendo suas ideias a respeito da arte

em geral e de seu próprio processo criativo. Os títulos dos manifestos evidenciam a proposição

de várias estéticas, como no primeiro intitulado “La estética de lo roto”: “Somos a ética da 100

Apesar de estar sediado em La Plata, capital da província situada a 60km de Buenos Aires, o grupo tem

presença marcante em Buenos Aires. Informações retiradas do site do grupo:

http://www.grupoescombros.com.ar/. Acesso em: 23 jan. 2014.

Page 152: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

152

desobediência. Uma ética que se opõe à indiferença e à resignação. Nós não aceitamos a ordem

estabelecida, porque a ordem é injusta.” Assim, seguem-se outros manifestos: “La estética de la

desobediência”, “La estética del anti-poder”, “La estética de la resistência”, “La estética de lo

humano”, etc. Ao final de 1990, o grupo editou 300 exemplares do livro “Proyecto para el

desarrollo de los países bananeros según las grandes potencias”, em que expõe com humor as

relações entre o mundo desenvolvido e os países pobres.

O grupo produz ainda “objetos de consciência”, que têm como objetivo enfatizar a ideia da

portabilidade da obra de arte, que pode ser transportável e não estar necessariamente

circunscrita a um espaço fixo. Um desses objetos, “El equipaje del hombre” (uma pequena bolsa

de cor ocre, cheia de areia e com a etiqueta com o título de um poema) integrou, em 1999, a

mostra em homenagem a Jorge Luis Borges, no Centro Cultural General San Martín, em Buenos

Aires.

A ideia de arte ativista evidencia-se em diversos momentos de atuação do grupo: Junto ao

Greenpeace, em 1990, organizaram, em uma fábrica abandonada de Avellaneda, a ação

chamada “De la cultura del abandono a la cultura de la recuperación”, da qual participaram 600

Figuras 49 e 50: As obras transportáveis do grupo Escombros. Fonte: FARINA, Fernando. Arte

Argentino Contemporaneo. Rosário: Museo de Arte Contemporáneo de Rosario (Macro).

2004. Catalog. s/p.

Page 153: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

153

artistas e ecologistas da Argentina e Uruguai. Durante a convocação, foi extraída água

contaminada do Riachuelo, envasada e transformada em “objeto de consciência”.

Como parte das XI Jornadas de la Crítica (setembro, 1990), lançaram a convocatória “Arte en

la Calle”, para a criação da instalação Animal Peligroso. Tratava-se de una jaula instalada na

praça da Recoleta, com um cartaz descrevendo as características do artista latino-americano;

em seu interior realizavam trabalhos que entregavam às pessoas.

Outro grupo de destaque em Buenos Aires e fundado em 1997 é o G.A.C. - Grupo de Arte

Callejero, formado, por iniciativa de estudantes da Escuela Nacional de Bellas Artes Prilidiano

Pueyrredón (a maioria mulheres) que, ao não se sentirem representados pelos espaços

tradicionais do circuito artístico, acabaram decidindo fazer arte de rua. A primeira ação do

grupo foi a realização de murais com imagens de macacões pintados em preto e branco em

vários locais da cidade aludindo ao desmantelamento da educação pública durante o governo

Menem. Em um misto entre ritual e ato lúdico, seus integrantes se vestiram de negro e

finalizaram o ato queimando as paredes onde estavam as obras. A ação chamava-se

“Professores jejuando”.

Desde o início, o grupo utilizou estratégias que marcariam a centralidade de sua produção

até os dias de hoje: uso de imagens sintéticas e simbólicas, a ocupação do espaço público para

alterar seus códigos hegemônicos, o trabalho coletivo em parcerias com outros grupos, a

atuação do próprio corpo nas ações. Por ocasião do livro comemorativo de dez anos do grupo,

afirmaram que pretendem produzir conhecimento a partir de suas práticas, que a teoria não

deve ser apenas objeto de interesse de críticos e teóricos.

O grupo surgiu no contexto da década Menem, quando o país transpareceu impunidade

dominante e o aumento do individualismo. Na mesma época, surgiram outros grupos de artistas

que promoveram ações de rua, entre eles: En Trámite (Rosario), Costuras Urbanas y las Chicas

del Chancho y el Corpiño (Córdoba), o já citado Escombros (La Plata), Maratón Marote, 4 para el

2000, la Mutual Argentina y Zucoa No Es (Buenos Aires). Alguns desses grupos, como o GAC,

convergiram rapidamente para a colaboração com o H.I.J.O.S., então recém-nascida organização

que congrega os filhos dos assassinados, desaparecidos, exilados e ativistas (muitos que

entraram na idade adulta na época, nasceram depois de 1978), que tinham como objetivo a

denúncia do genocídio cometido pela última ditadura.

Em seu início, o GAC já utilizava cartazes com imagens semelhantes às tradicionais

sinalizações de trânsito (forma, cor, tipografia) para indicar, por exemplo, a proximidade de

Page 154: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

154

antigos centros de detenção clandestinos onde foram assassinadas pessoas durante a ditadura.

A ideia de síntese formal para se chegar a uma comunicação massiva e o ritual corporal de um

espaço grupal já se mostravam como núcleos dos trabalhos do GAC que, em 2001, começou a

fazer novos cartazes denúncia (com marcações dos locais onde viviam ex-torturadores e

assassinos do período ditatorial e de espaços utilizados para detenção clandestina) ao longo de

grandes percursos cartográficos. Assim, recorreram ao velho clichê publicitário urbano “você

está aqui” para criar os primeiros cartazes em que identificam ex-CCDs (Centros Clandestinos de

Detenção).

Em 1996, o grupo começou a fazer as ações chamadas de “Escrachos”, em parceira com

HIJOS. Escracho quer dizer “sacar a la luz lo que está oculto”, “develar o que el poder esconde”,

isto é, que a sociedade ainda convivia com assassinos, torturadores, sequestradores de nenês,

que até aquele momento viviam em um cômodo anonimato. Tratavam-se de ações, aderidas

por outras pessoas e ocorridas em frente aos locais de residência ou trabalho dos cúmplices da

ditadura, cujo lema era: “Se non hay justicia hay escracho” (BOSSI, 2009, p. 57).

Figura 51: O grupo GAC em ação, 2002. Fonte: BOSSI, Lorena; et.

al.. Pensamientos, prácticas y acciones del GAC. Buenos Aires:

Tinta Limón, 2009.

Page 155: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

155

Apesar de não serem entendidos inicialmente como ações de natureza artística (BOSSI, 2009),

os resultados foram efetivos. O médico Héctor Vidal, sequestrador de bebês em cativeiro e

falsificador de certidões de nascimento, que caminhava pelas ruas impunemente graças às leis

“Obediencia Debida” e “Punto Final”, perdeu seu registro médico seis meses depois de ser

“escrachado”. A prática do “escracho” se centrou na ideia de uma “memória viva”, entendida

não como mera recordação, e sim “construções indivíduo-sociedade em relação dinâmica e

conjunta em seus momentos histórico-sociais” (BOSSI, 2009, p. 59, tradução nossa).

A pesquisadora Longoni 101 conta uma interessante passagem, ainda em relação ao grupo,

em 2000, quando ela e Mariano Mestman foram convidados a apresentar informalmente o livro

“Del Di Tella a Tucumán Arde”, em IMPA, fábrica que havia se transformado em um ativo polo

cultural alternativo. Ainda não era evidente o processo de canonização de Tucumán Arde como

referência fundamental ao conceitualismo internacional e à legitimação da chamada “arte

política”. Ela explica que Rafael Leona (antigo integrante de GAC e que participa do grupo

Contrafilé, em São Paulo) a emocionou ao relatar o quanto foi fundamental conhecer aquela

experiência de articulação entre vanguarda artística e radicalização política nos anos 1970 para

entender sua contribuição para que os novos coletivos se sentissem menos sós e se pensassem

como parte de uma história potente de práticas “invizibilizadas”.

No mesmo ano de fundação do GAC também foi criado o grupo Etcetera102, que tinha como

objetivo interagir em diferentes contextos sociais, trazendo a arte para as ruas, e a rua para as

artes; neste último caso, deslocando os conflitos sociais para outros espaços em que os mesmos

costumam permanecer silenciados (instituições culturais, meios de comunicação, megaeventos,

etc.). Tratava-se também de uma reação à cultura invadida pelas regras do neoliberalismo tão

fortemente pronunciada durante o início dos anos 90 em Buenos Aires.

Procurando uma casa abandonada para sediar suas atividades, o grupo, em 1998, descobriu

por sugestão de uma pessoa a antiga sede da tipografia onde vivia o artista surrealista John

Andralis (1924-1994), que durante os anos 50 fez parte do grupo de Paris liderado por André

Breton e que em seu retorno à Buenos Aires fundou uma editora e gráfica. O grupo, então,

invadiu a imensa casa, no bairro popular Abasto, área que ainda mantém o Tango em suas ruas,

e onde há mercados populares e alojamentos temporários característicos dos imigrantes. Na

casa, havia diversos equipamentos gráficos, a biblioteca do artista e inúmeros outros materiais. 101

In: BOSSI, Lorena (et. al.). Prólogo. Pensamientos, prácticas y acciones del GAC. Buenos Aires: Tinta

Limón, 2009, ps. 9-16. 102

Disponível em http://grupoetcetera.wordpress.com/. Acesso em: 23 jun. 2014.

Page 156: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

156

O grupo passou a viver e trabalhar no local transformando-o em uma “casa dos sonhos”, onde

há caminhos secretos, laboratório de arte, um teatro e uma biblioteca. A ocupação foi noticiada

na imprensa, e um tempo depois, apareceu na casa o filho do artista, Pablo, que vivia então no

Japão como monge budista. Ao ver a intervenção do grupo, sorriu e chorou ao mesmo tempo,

dizendo que eles estavam dando continuidade ao sonho de seu pai, permitindo assim que o

grupo continuasse na casa.

Assim, surgiram as primeiras intervenções urbanas, que tratavam-se basicamente de

“escrachos” realizados de diversas formas. Em 1998, o “escracho” a Enrique Peyón se baseou no

seguinte: um dos membros do grupo, vestido como um trabalhador da construção civil, urinou

por longos quatro minutos em um banheiro de secagem rápida instalado pelo grupo em frente à

casa do repressor. Em seguida, outros artistas arremessaram grande quantidade de tinta sobre

a casa. Mais de cem policiais impingiram uma violenta repressão que terminou com dezenas de

feridos e 16 detidos. No mesmo ano, o “escracho” a Leopoldo Fortunato Galtieri apresentou um

"jogo de futebol", em frente à casa de Galtieri, onde as equipes concorrentes eram "Argentina

vs Argentina ", simbolizando a guerra das Malvinas e da ocultação das mortes e

desaparecimentos que aconteceram no país durante a Copa do Mundo de 1978, curiosamente

vencida pela própria equipe argentina. O escracho foi realizado no dia do jogo da Argentina

contra a Inglaterra na Copa de 1998. O trabalho terminou com um pênalti chutado por um

membro com uma bola coberta de tinta sobre as paredes da casa. Os participantes gritavam

"Gol", misturados com insultos, enquanto lançavam bombas de tinta.

Em 1999, o grupo criou a ArteBIENE, uma atividade para questionar os mega eventos

culturais, buscando criar um espaço fundamental contra a lógica convencional de mercado

cultural. Foi realizada uma exposição coletiva de obras (pinturas, esculturas, fotografias, etc.), às

portas da feira ArteBA, como forma de manifestar uma maior abertura e pluralidade do campo

cultural. Ainda enfatizando esta ideia de contra-publicidade, no mesmo ano, houve a ação Libro

Libre, em frente à Feira do Livro de Buenos Aires, que se tratou de um "stand" com livros da

“imprensa surrealista” e slogans como: "Não à Paper Shopping Center"; "Sim para uma feira

itinerante com a troca aberta e gratuita de livros"; "Tinta e papel, não à tarifa".

O grupo fez ainda a ação “Son uno”, durante a campanha eleitoral para o presidente da

Argentina, quando todos os três candidatos tinham o mesmo projeto político e econômico. Para

destacar sutilmente esta situação, criaram seu próprio candidato fictício, formado pelo rosto

Page 157: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

157

dos três candidatos e com o nome DelaRuaCavalloDuhalde. O cartaz foi distribuído em

diferentes lugares da cidade de Buenos Aires.

Em 2005, fundaram a Internacional Errorista. A primeira aparição, em 14 de outubro, foi

uma ação em que os artistas apareciam mascarados, com roupas pretas e braçadeiras com

insígnias (IE) e portando armas falsas (grandes, de papel, papelão, como de história em

quadrinhos), no centro de Buenos Aires. Chegaram em um jipe e se dispersaram pelas ruas

fazendo bastante barulho, convergindo para o Obelisco de Buenos Aires. Chamaram a ação

ironicamente de “Welcome Bush Party”, que antecipava a próxima visita do Presidente dos EUA

à Argentina. O encontro dedicado ao líder da “guerra global contra o terror” compunha o palco

perfeito para a Internacional Errorista (IE) fazer a sua estreia pública, altamente noticiada pela

imprensa.

Em São Paulo, alguns grupos mantêm uma arte ativista semelhante à arte coletiva portenha.

Formado em São Paulo, no ano 2000, o coletivo Contra Filé 103 é um exemplo emblemático da

geração de artistas e coletivos que atua desde a década de 1990 de maneira a agir diretamente

na cidade, tendo como ponto de partida ampliar o direito à produção criativa do espaço. O

Contrafilé apresenta como campo de trabalho a cidade, propondo trabalhos de intervenção

pública a partir da mistura de técnicas de performance, instalação, escultura e narrativas

poéticas. Encontros inesperados entre os artistas, sua obra e os cidadãos revelam a busca

constante pela experimentação da cidade como campo de ação, de possibilidades criadoras de

um novo cotidiano, reescrito a partir da arte.

Um de seus importantes projetos é o “Parque para brincar e pensar”, realizado junto ao

Ponto de Cultura Arte Clube (JAMAC) e à comunidade do Jardim Santo André, na Grande São

Paulo, onde o JAMAC atua desde 2008.104 A metodologia foi a imersão nas problemáticas

situacionais da comunidade envolvida, cujas reflexões produzidas pelos envolvidos poderiam

construir novos discursos, relações e formas que constituíram o Parque. Neste sentido, foi

viabilizado um processo de criação coletivo, no qual estiveram em equilíbrio e conflito posturas

práticas e teóricas.

103

Informações disponíveis no site http://parqueparabrincarepensar.blogspot.com.br/p/o-projeto.html. Acesso em

19 fev. 2014. 104

O JAMAC é coordenado pela artista Mônica Nador, e trata-se de uma associação formada por artistas,

voluntários e moradores do Jardim Miriam, periferia da cidade de São Paulo. É um núcleo gerador de ações

artísticas que propõe desde a melhoria das habitações, até o ensino de ofícios, assim como a apresentação de

conceitos que promovem a ampliação da visão de mundo dos participantes, desenvolvendo consciência crítica e

trabalhando a noção de cidadania, utilizando-se do potencial transformador da arte. Disponível em

http://parqueparabrincarepensar.blogspot.com.br/).

Page 158: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

158

Assim, foi proposta a construção de um brinquedo gigante (que refletisse, assim, a própria

escala da cidade), além de outros pequenos brinquedos e jogos periféricos, cujo objetivo último

era potencializar a importância da brincadeira para o cotidiano de crianças, jovens e adultos,

colocando-a como metáfora de uma cidade plena, apropriada por todas as gerações. Os

brinquedos dentro deste contexto se transformaram em “esculturas funcionais” ou

“brinquedos-pinturas”. 105 Foram desenvolvidas ainda “pinturas expandidas” ou “paredes-

pinturas” pelo Ponto de Cultura Arte Clube (JAMAC). Os resultados do projeto também são

reflexo da influência do pensamento do educador Paulo Freire na atuação do grupo (de 2005 a

2007 o grupo manteve encontros quinzenais com a educadora Fátima Freire, filha de Paulo

Freire e atualizadora de seu pensamento), que neste projeto se revelou com a ideia de

“disparadores alfabetizadores políticos”, como instrumentos de uma tomada de consciência

política que atinge, em primeira instância, “[...] a nós mesmos quando nos ligamos ao entorno e

nos posicionamos em relação à sociedade”. 106

O Parque foi consequência de outro trabalho do Contrafilé, iniciado em 2005, e nomeado

“A Rebelião das Crianças”. Vídeos postados pelo grupo na internet mostram suas ações em

diversos locais em São Paulo, por meio das quais seus integrantes interagem com crianças

moradoras de ruas, fazendo brincadeiras, colando faixas e fixando balanços nas estruturas dos

viadutos. Em 2008, por exemplo, como decorrência deste percurso, o grupo construiu um

balanço de bambu gigante no parque do Ibirapuera, em torno do qual se formaram filas de

pessoas de todas as idades.

O grupo também foi autor da intervenção “Monumento à Catraca Invisível”, em junho de

2004, como parte do projeto Zona de Ação. Patrocinado pelo SESC e elaborado pelos coletivos A

Revolução Não Será Televisionada, BijaRi, Contra Filé e Cobaia, o projeto também contou com a

participação dos coletivos Frente 3 de Fevereiro (em parceria com A Revolução Não Será

Televisionada) e Grupo Arte Callejero (o GAC), além dos acadêmicos Suely Rolnik, Brian Holmes

e Peter Pal Pelbart. O objetivo era a criação de um espaço para a ação e a reflexão coletivas

sobre a possibilidade de se construir uma vida pública. Cada coletivo ficou com uma zona da

cidade (Sul, Oeste, Norte, Leste e Centro) para elaborar uma intervenção urbana e alguma

105

Disponível em http://www.forumpermanente.org/revista/numero-2/textos/projeto-parque-para-brincar-e-

pensar. Acesso em: 15 abr. 2014. 106

Fátima Freire em entrevista ao Contrafilé, publicada no catálogo do Festival de Arte Jovem "Qui Vive? -

Formas e Conteúdos do Dissenso – Estratégias de Auto-Educação", Centro Nacional de Arte Contemporânea de

Moscou. Disponível em: http://parqueparabrincarepensar.blogspot.com.br/search/label/01.%20O%20Projeto.

Acesso: em 15/04/2014.

Page 159: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

159

atividade em uma unidade SESC da região. O Contra Filé ficou com a Zona Leste, e a intervenção

“Monumento à Catraca Invisível” ocorreu no Largo do Arouche. Tratou-se da colocação de uma

catraca em cima de um pedestal, sob a qual foi fixada placa com a inscrição “Monumento à

Catraca Invisível – Programa para Descatracalização da Própria Vida, Junho/2004”.

Outro grupo de destaque é o coletivo Esqueleto 107, fundado em 2003, e cuja poética se

baseia na união entre crítica e humor em relação às questões urbanas. “A ocupação dos espaços

públicos, a qualidade da convivência e a dificuldade do encontro nesses espaços, cada vez mais

privatizados, são alguns dos temas que nos movem a agir”, afirma o grupo, que realiza ações,

interações e interferências, em espaços públicos ou não, físicos ou virtuais. São performances

coletivas abertas, happenings e exposições, que utilizam suportes e meios diversos como

lambe–lambe, sticker, estêncil, fotografia, vídeo, vídeo-projeção, animação e arte digital. Por

meio destas linguagens, o grupo questiona temas relativos às grandes metrópoles, como a

vigilância, o encarceramento privado, os “bolsões” de pobreza e de riqueza, transportes

individuais, desejos de consumo e de felicidade vendidos pela publicidade e pela mídia. “Para

nós política pode ser poética, e vice-versa”, declaram seus integrantes.

Um de seus recursos poéticos são objetos, como o “Eau de Conscience”, cuja suposta

propaganda mostra o “Primeiro produto da linha de limpadores de consciência -, para uso

pessoal. [...] Desenvolvido para pessoas de todas as idades que vivem sob as pressões e o

estresse do dia-a-dia, relaxa e alivia, trazendo frescor e tranquilidade imediatos”. O lambe-

lambe “Homens Ignorando” se tornou um clássico do grupo (com a imagem típica da sinalização

urbana, porém estilizada, representando um homem de terno). A imagem foi colocada em

situações diversas, como na Ocupação Plínio Ramos. Aparece em fotos em que o prefeito

Gilberto Kassab promete solução habitacional para as famílias da Ocupação Prestes Maia, em

troca de sua saída do prédio ocupado no centro da cidade.

É interessante notar que em São Paulo há grupos e artistas que conseguem realizar atividades

paralelas à atividade artística, como ações institucionais e até de marketing privado. Esta é uma

característica que achamos importante pontuar, já que não encontramos o mesmo na arte

urbana portenha. O grupo mais representativo desta vertente é o BijaRi 108, fundado em 2000 e

que se intitula como um grupo de criação em artes visuais e multimídia. Seu trabalho deriva da

“pesquisa constante situada na convergência entre arte, tecnologia e design, permitindo 107

Disponível em: http://esqueletocoletivo.wordpress.com/. Acesso em: 22 dez. 2013.

108

Disponível no site do grupo: www.BijaRi.com.br. Acesso em: 22 mai. 2014.

Page 160: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

160

imprimir novos olhares à comunicação em diferentes plataformas de atuação”. Buscando a

reflexão crítica e a prática estética sobre a produção simbólica dos espaços urbanos, seus

trabalhos se situam na “fronteira entre arte, política e vida cotidiana com o objetivo de desvelar

suas fissuras sociais”.

Em seu manifesto “Arquitetura da Resistência” 109, o grupo enfatiza que o objetivo de sua arte

é trazer à tona a ideia de que a cidade não é um espaço pronto e estabelecido por vontades

políticas verticais, mas espaço em permanente construção, passível da participação e urgente

na inclusão de todos cidadãos. Seus projetos questionam a apropriação do espaço público,

evidenciando as relações de poder ocultas no cotidiano, que fazem da grande metrópole o

espaço da exclusão social.

Transitando entre distintas linguagens – como cartografia, intervenção urbana, projeção

mapeada, esculturas de luz, instalações interativas e videoarte – o BijaRi vem criando diversos

projetos. Em 2002, a intervenção “Antipop galinha” (2002) procurou revelar padrões de

expressão corporal e códigos de conduta balizados por diferentes contextos públicos. Assim, o

grupo empreendeu esta ação em que duas galinhas foram soltas, concomitantemente, no Largo

da Batata, na época reduto de cultura nordestina, frequentado pelas classes populares que

passam em seu trajeto entre centro e periferia; e em frente ao Shopping Iguatemi, espaço

frequentado pelas classes mais abastadas da cidade. Surpresa, afetividade, espanto e rejeição

foram algumas das reações registradas na ação. No Largo da Batata, a galinha causou reboliço e

alegria. Já em frente ao Shopping Iguatemi, local elitizado, surtiu estranhamento, inclusive, com

a intervenção da polícia.

Na obra “Estão vendendo nosso espaço aéreo” (2004) 110, foi feito um registro do Largo da

Batata, em meio ao processo de “revitalização” da área, segundo o qual a população local, seus

hábitos e cultura seriam gradativamente substituídos111. As diversas intervenções levadas a

cabo buscavam uma interlocução com a comunidade local no sentido de criar um entendimento

compartilhado desse processo. Entrevistas, cartazes, cartografias, cartões postais, balões e

109

Fornecido a esta pesquisadora. Há muitos anos, este manifesto estava disponível no site do grupo.

Atualmente, não está mais. 110

Este projeto fez parte do Laboratório experimental de investigação, ação e reflexão sobre as formas de

produção do espaço urbano denominado “Zona de Ação”, criado pelos grupos “A Revolução Não Será

Televisionada”, BijaRi, Cobaia, Contra-filé e Grupo de Arte Callejero (Argentina), em parceria com o SESC e

com acompanhamento teórico de Suely Rolnik, Peter Pal Palpert e Brian Holmes. 111

É interessante notar que realmente o local passou por um processo de gentrificação em uma reforma cheia de

problemas, que durou onze anos, promovendo uma desertificação do local. Entretanto, em contrapartida o largo

passou a ser utilizado por diversas manifestações sociais e artísticas.

Page 161: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

161

infláveis foram alguns dos meios empregados numa ação celebrativa à memória do Largo. O

projeto culminou com uma apresentação multimídia no próprio Largo retratando todo o

processo do projeto.

Na obra “Cartografia operações urbanas e gentrificação” (2005), o grupo propôs enfatizar a

ideia de desenhar uma nova cartografia do processo de renovação urbana, que veio da

necessidade de revelar o verdadeiro significado dos termos usados pelos políticos, técnicos e

profissionais, mas que são ambíguos para a população geral. Para o grupo: “Renovação

Urbana”, “Restauração” e “Revitalização” são termos geralmente usados para validar a

transformação dos tecidos urbanos consolidados, com a ausência de participação e debate

entre os agentes culturais e sociais envolvidos no processo. Assim, a cartografia foi desenhada

para clarificar essas questões em um nível mais geral. Ela foi impressa em formato de folheto,

para ser distribuída, além de ser estampada em pôsteres que foram colados nas regiões de São

Paulo que apresentam projetos urbanos predatórios.

Na ação “Gentrificado” (2007), nascida da constatação de que, em 2005, quase 40% dos

edifícios do centro de São Paulo estavam vagos e extremamente degradados – a proposta foi

mostrar o quanto as políticas urbanas forçam o deslocamento de moradores de baixa renda

para a periferia, mesmo que isso implique em custos de serviços e infraestrutura de transporte.

O BijaRi propôs uma atividade em que se discutiam aspectos da política urbana e o conceito de

gentrificação, o que resultou na criação de um “cartaz viral”, que foi distribuído a movimentos

ativistas e mais tarde fixado em todos os prédios ocupados por sem-tetos e pelo próprio

movimento como parte da estratégia de visibilidade da questão.

Page 162: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

162

Apesar de não serem iniciativas coletivas, dois artistas de São Paulo, Eduardo Srur e Mônica

Nador, são citados aqui em função do paralelismo de seu trabalho com o dos coletivos citados

aqui, já que a cidade e as problemáticas urbanas estão entre os principais objetivos destes

artistas, cuja obra também está voltada para ação. É interessante notar que, a exemplo do

grupo BijaRi, o artista Eduardo Srur112 também mantém atividades não exclusivamente

artísticas. Em seu site, é possível acessar a empresa Attack, intitulada a primeira empresa

brasileira especializada em intervenções urbanas e por meio da qual o artista realiza diversas

ações de marketing. Isso não inviabilizou seu trabalho artístico e nem parece ter de alguma

forma refletido em seu compromisso com a crítica social, como mostram suas obras que

utilizam o espaço público para chamar a atenção para questões ambientais e sobre o cotidiano

nas metrópoles.

112

Informações disponíveis em www.eduardosrur.com.br. Acesso em: 10 fev. 2014.

Figura 52: A ação “Gentrificado”, do grupo BijaRi. Fonte: Imagem cedida pelo

grupo.

Page 163: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

163

Na obra “Caiaques” (2006), Srur espalhou dezenas de caiaques coloridos, “tripulados” por

bonecos manequins de vitrines sobre as poluídas águas do rio Pinheiros, em São Paulo. A

intenção era lembrar às milhares de pessoas que passam diariamente no local da existência de

um espaço abandonado. A proposta era recriar as atividades de remo promovidas pelos clubes

paulistanos até a década de 1920. Na última semana de exposição, uma imensa ilha de lixo

encalhou os caiaques e alterou a composição da obra, juntamente com urubus

Em “PETS” (2008), nas margens de concreto do rio Tietê, Srur instalou esculturas gigantes na

forma de garrafas plásticas de refrigerante. A exposição ocupou o local por dois meses e calcula-

se que foi vista por mais de 60 milhões de pessoas. Entre elas, 3 mil crianças e professores da

rede pública de ensino em visita combinada. Ao final da exposição, o material plástico das

garrafas foi transformado em centenas de mochilas desenhadas pelo artista Jum Nakao e

doadas às escolas que fizeram o passeio. PETS também esteve em exposição na represa

Guarapiranga e na cidade de Bragança Paulista, interior de São Paulo. “A mensagem da obra vai

além da questão ambiental: ela propõe a reciclagem do olhar”, afirma o artista.

Em Touro Bandido (2010), esculturas de touros foram colocadas sorrateiramente, durante a

madrugada, sobre algumas vacas do evento Cow Parade, nas avenidas Paulista e Faria Lima, em

São Paulo, para questionar o conceito da exposição que se dizia ser o maior evento de arte

urbana no mundo. A ideia era mostrar que o Touro resgatava o imaginário brasileiro, um animal

que nunca foi domado em rodeios e que virou lenda nacional. Por outro lado, a vaca se tornou

uma representação estéril enquanto possível objeto de reflexão. Assim, a proposta era fazer

uma “inseminação artística”. Por tratar-se de uma ação não autorizada, o artista teve de

responder a inquérito policial por ato obsceno, difamação e danos materiais, instaurado pelos

organizadores do evento. “Em minha defesa, reiterei que a arte não pode ser domesticável”,

afirma o artista.

Page 164: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

164

Figura 53: obra “Caiaques” (2006), de Eduardo Srur. Fonte: acervo do artista.

Figura 54: Touro Bandido (2010), a inseminação artística de Eduardo Srur. Fonte:

acervo do artista.

Page 165: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

165

Já a artista Mônica Nador ocupa posição peculiar na história da arte urbana brasileira. Com

início de carreira na década de 1980, ficou conhecida por sua pintura não figurativa, com

composições arabescas e coloridas, que passaram a ocupar espaços da cidade, muitas vezes

feitas com participação coletiva. A repetição de padrões (com máscaras ou feitos manualmente)

é a marca de muitas composições suas, que assemelham-se a papéis de paredes, painéis

orientais, superfícies com azulejos, já pré-configurando uma tendência para uma estética mural.

Em 1991, sua participação na 21ª Bienal de São Paulo com 8 telas comprova esta tendência: são

amplas superfícies com profusões de traços e cores, em ritmos cadentes e formando grandes

conjuntos de arabescos que embaralham e hipnotizam o olhar do espectador; com um detalhe

importante, há telas com as palavras FRUA, ENTRE, OLHE, VOE, colocadas sobre os arabescos,

remetendo novamente à ideia de comunicação com signos comuns aos espaços urbanos, porém

com a mensagem da fruição estética.

Seu trabalho, então, expande-se da tela para a parede a partir do convite de Tadeu Chiarelli

para o Projeto Parede, que ocupa um corredor central no Museu de Arte Moderna (MAM), em

São Paulo. Em 1996, realizou “Parede para Nelson Leirner”, feito para um museu. No mesmo

ano criou o projeto “Parede Pinturas”, com o objetivo de realizar pinturas em paredes e muros

de periferias.

Participando de diversos projetos, Nador sempre procurou colocar o cidadão como co-criador

da obra, dando preferência as suas ideias em relação aos motivos a serem pintados. Em 1998, a

convite do programa Universidade Solidária foi para o interior da Bahia, onde entendeu que

deveria incorporar o cidadão em seu processo criativo. Em Nilo Peçanha, por exemplo, a pintura

mural contou com a participação de um grupo regional de percussão, cujos integrantes

desenharam várias figuras relacionadas a sua atividade cultural.

Neste período, a artista criou o projeto Vila Rhodia Arte Clube para envolver os moradores da

região de São José dos Campos usando pinturas de pano de prato, toalhas e aventais, a partir da

técnica do estêncil e com o objetivo de gerar renda própria na comunidade. A ideia partiu em

função dos próprios costumes de senhoras locais que pintavam panos de prato com motivos

florais. Por ocasião da VII Bienal de Havana, onde realizou pinturas murais inspiradas na Vila

Rhodia, Nador113 comentou:

113

In: RIVITTI, Thais. Mônica Nador. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2010, p. 53. Catalog.

Page 166: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

166

Fiz então uma homenagem àquelas mulheres, usando as flores e as cores dos panos de prato, realizando o que chamei de ‘construtivo caipira’. [...] minha poética estava irremediavelmente contaminada pela cultura caipira, tanto quanto por Sol LeWitt!

Em 2004, Nador criou, juntamente com outros artistas, o Jardim Miriam Arte Clube (Jamac),

ponto de inflexão em sua trajetória. O projeto envolve oficinas de estêncil e ocupação de

espaços desvalorizados do bairro, promovendo seu uso intenso pela comunidade.

Práticas de arte ativista como essas desfazem as fronteiras preestabelecidas entre militância e

arte. “É aí que este legado crítico se reativa à maneira de um reservatório público de recursos e

experiências socialmente disponíveis para converter o protesto em um ato criativo”, afirma

Longoni114, ao explicar que o objetivo de artistas como esses não é tratar a política como tema,

nem estetizar a política, e sim promover uma profunda integração entre as duas esferas.

3.3 O novo grafite paulistano e portenho

A diversidade de linguagens é a tônica do novo grafite portenho e paulistano. De painéis

gigantescos a imagens feitas com estêncil que medem poucos centímetros, as obras refletem

temáticas e técnicas diversas. Algumas peculiaridades diferem o novo grafite argentino do novo

grafite paulistano. A começar pela datação. Em sua grande maioria, a geração portenha é mais

nova do que a paulistana; muitos, inclusive, começaram a pintar no início dos anos 2000, o que

se costuma atrelar à crise econômica de 2001 (RUIZ, 2011)/(FOX-TUCKER, 2010). Também se

estabeleceu que a influência do grafite hip hop nova iorquino ocorreu apenas a partir da década

de 1990, o que em São Paulo ocorreu a partir de final dos anos 1970, como vimos no caso do

artista Alex Vallauri.

Uma peculiaridade do novo grafite portenho é a utilização recorrente da técnica do estêncil

para a criação de formas mais sofisticadas. Artista de destaque é o Stencil Land, que começou

suas atividades com publicidade em 1997. No início dos anos 2000, o artista passou a investigar

mais a fundo as possibilidades da técnica, caminho ao qual se mantém fiel até os dias de hoje.

Ícones nacionais, como o David de Michelangelo tomando chimarrão e gaúchos tocando

114

In: BOSSI, Lorena (et. al.). Prólogo. Pensamientos, prácticas y acciones del GAC. Buenos Aires: Tinta

Limón, 2009, ps. 9-16.

Page 167: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

167

guitarra, podem ser visto por toda a cidade (Figuras 55 e 56). O nível de complexidade pode ser

visto nos detalhes de suas criações, muitas delas medindo até três metros de altura.

Também encontramos um maior número de coletivos atuantes na capital portenha, o que em

São Paulo é mais raro. A maioria desses grupos também trabalha com a técnica do estêncil,

como o Rundontwalk, criado em 2002, com obras que, ao longo do tempo, tornaram-se cada

vez mais ambiciosas em termos de complexidade e escala. Suas obras são marcadas, sobretudo,

por um humor inteligente, como na imagem do cachorro leitor na página da epígrafe deste

trabalho, e as montagens de rostos híbridos (Figura 57). Na mesma linha, o coletivo

bs.as.stencil, também formado em 2002, teve seu trabalho inicial focado em fortes conotações

políticas, com mensagens claras para o público urbano. Com o tempo, suas peças tornaram-se

menos abertamente política e mais subversivas, com ícones populares e figuras culturais, como

o Cristo musculoso (Figura 58). Outra intervenção constante do grupo são as imagens de linhas

de formigas, pintadas principalmente sobre cartazes fixados nos muros da cidade. Geralmente,

parte dos cartazes é rasgada simulando a trilha que as formigas teriam feito devorando o papel.

Outro coletivo de destaque, que também utiliza a técnica do estêncil, é o Vomito Attack, criado

em 2001. Na fachada de um restaurante em Buenos Aires, mostrada anteriormente neste

trabalho, o grupo confirma a vocação de seu nome (como se fosse um grande jorro de imagens

sobrepostas) (Figura 26). Fazer um comentário mordaz sobre a corrupção política e o

consumismo desenfreado, visando tanto as instituições governamentais e as corporações

globais, estão entre os objetivos do grupo que, além de imagens políticas cáusticas com grandes

doses de sátira e humor negro, se envolve com uma prática chamada de “ad-jamming”, que

trata-se de desfigurar anúncios de publicidade, manipulando e distorcendo seus significados.

Tornou-se notória a falsa campanha política sob a bandeira "Power, Corruption and Lies", em

que utilizou-se as mesmas táticas empregadas pelos partidos políticos, cobrindo os muros da

cidade com cartazes para chamar a atenção para os níveis escandalosos de corrupção na política

argentina.

Atuando com pintura, o Triángulo Dorado, formado em 2007, é um dos coletivos de arte mais

recentes a se juntar ao movimento de arte urbana em Buenos Aires. O grupo tem um estilo

notavelmente já bem desenvolvido e reconhecível, com a exploração de técnicas e estilos a

partir de uma ampla gama de movimentos da arte contemporânea e clássica. Composições

geométricas, bem como figuras marcantes em que corpos humanos estampados com padrões

abstratos combinam com rostos surpreendentemente realistas. O grupo é conhecido por seu

Page 168: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

168

uso de tons mais escuros e uma paleta de cores régias, como neste painel em La Boca (Figura

59).

Alguns artistas, atuando individualmente, vêm se destacando por sua marcante plasticidade,

como JAZ, que começou sua carreira criativa nas ruas como grafiteiro, e é reconhecido como um

dos primeiros artistas a trabalhar nas ruas de Buenos Aires, em meados da década de 1990. O

estilo de JAZ se transformou ao longo dos anos. Ele afastou-se do grafite e começou a

experimentar imagens figurativas inspiradas na cultura argentina e em grandes formatos. Tendo

dominado a técnica do aerosol, o artista passou a experimentar outras possibilidades inspiradas

em seu próprio trabalho na cenografia, tonando suas imagens cada vez mais rebuscadas em

escala e complexidade cromática. Misturando materiais não convencionais, como pintura

asfáltica e gasolina, JAZ desenvolveu técnicas artísticas que lhe permitiram pintar enormes

murais que se assemelham a delicadas aquarelas. Seu estilo único o destaca como um artista

sofisticado (Figura 60).

Gualicho cresceu nos subúrbios de Buenos Aires, e começou a fazer grafite em 1998. Em

2006, ele adotou o pseudônimo artístico "Gualicho", nome decorrente do verbo espanhol

"enfeitiçar". Gualicho cria paisagens densas, que apresentam combinações complexas de

elementos naturais e industriais, como mostra esta fachada em que são criados efeitos

interessantes em sua superfície irregular, como as figuras que contornam janela e porta (Figuras

61, 62 e 63). Seus murais combinam estruturas orgânicas com máquinas, criando cenário retro-

futurista. Gualicho usa uma língua estranha de símbolos e figuras ambíguas para explorar as

diferentes facetas da natureza humana, e seus trabalhos são fortemente influenciados pela arte

popular, ícones religiosos, história em quadrinhos e na psicodelia dos anos 1960, etc. As obras

surreais e provocantes de Gualicho transformaram frentes de loja, casas particulares, edifícios

abandonados e muros públicos.

Mart começou a pintar nas ruas de Buenos Aires com a tenra idade de 12, juntando-se a

outros grafiteiros para participar da primeira onda de influências do grafite de Nova York em

Buenos Aires na década de 1990. Ao longo dos anos, sua relação com a arte e com as ruas

amadureceu, o artista deixou a pintura sobre trens para se dedicar a rebuscar um estilo de

predominante lirismo. Seus murais contemporâneos são em sua maioria figurativos, a partir de

temas lúdicos como os homens em bicicletas e piratas que parecem extremamente simples à

primeira vista, no entanto, um olhar mais atento revela suas linhas originais e sua incrível

habilidade com aerossol. Este seu mural mostra sua poética de forma preponderante, com suas

Page 169: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

169

composições detalhistas de linha e cor (Figura 64). Grande parte do seu processo criativo passa

pela improvisação, o que resulta em efeitos aleatórios interessantes.

Em São Paulo, encontramos um maior número de artistas que trabalham sozinhos, e não em

coletivos. Há alguns grupos, como o 6emeia, fundado em 2006, cuja produção é marcada pela

pintura sobre equipamentos urbanos, como bueiros, postes, tampas de esgotos e calçadas.

Recentemente, o grupo passou a fazer “gravura urbana” utilizando uma técnica que consiste em

fazer do asfalto a matriz, cujo desenho é feito com ferramentas para sulcar a superfície, que

recebe uma camada de tinta sobre a qual é colocado o tecido para ser imprensa a imagem final.

Há duas correntes bem delineadas no novo grafite paulistano; uma, de artistas autodidatas

provenientes da influência do grafite de periferia de estilo hip-hop; e outra, de artistas com

formação universitária (artes ou desenho gráfico, principalmente) que fazem da cidade seu

suporte. No primeiro caso, vamos enfocar os artistas que conseguiram de certa forma superar o

caráter normativo da linguagem hip-hop para criar uma poética própria, de forte vigor plástico.

É o caso do artista Stephan Doitschinoff, conhecido como Calma, autodidata que no início da

carreira trabalhou como designer gráfico. A herança do punk rock e da cultura do skate, além do

intensivo contato com práticas religiosas na família, fazem parte das influências em seu

trabalho, marcado por uma iconografia muito peculiar, que mescla o simbolismo cristão à crítica

sócio cultural. Esta imagem (Figura 65) sintetiza a aproximação de sua obra com a estética

surrealista, em que diversos elementos compõem um complexo universo onírico.

Como no caso de Calma, a dupla OsGêmeos também é autoditada e iniciou a trajetória a

partir do grafite de rua. Os irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo sempre trabalharam juntos e,

desde muito jovens, pintavam muros nas ruas do tradicional bairro do Cambuci. Com a chegada

da cultura Hip Hop no Brasil nos anos 80, eles encontraram uma conexão direta com seu

universo mágico e dinâmico e um modo de se comunicar com o público. Exploravam com

dedicação e cuidado as diversas técnicas de pintura, desenho e escultura, e tinham as ruas

como seu lugar de estudo. Nunca deixaram de fazer grafite, mas, com o passar dos anos, o

universo imagético criado pela dupla ultrapassou as ruas, se transformando numa linguagem

própria, com outras referências e influenciado por novas culturas (Figura 66).

Reconhecidos internacionalmente, OsGêmeos realizaram inúmeras mostras individuais e

coletivas em museus e galerias de diversos países. Suas imagens são compostas por grandes

arranjos míticos com vigoroso trabalho cromático e tratamento gráfico. Personagens míticos

incluem peixes gigantes, gatos, seres híbridos, sereias, figuras femininas e seres humanos

Page 170: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

170

amarelos com grandes rostos. Em fundos compostos por paisagens permeadas de referências,

como casas, barcos e trilhos flutuantes, além de padrões geométricos rítmicos e coloridos,

geralmente estes conjuntos provocam grande impacto visual, o que faz o espectador se deter

durante longo tempo em busca de detalhes na composição. Do repertório surrealista, aparecem

as gavetas que se abrem para expulsar algum ser estranho, a base de um relógio que vira um

rosto, etc. Em montagens para exposições, os artistas preparam ambientes que são verdadeiras

instalações, promovendo uma sensação de que o espectador está entrando em um de seus

quadros. São universos caleidoscópicos, onde paredes, chão e teto se integram à obra.

Daniel Melim é um exemplo de artista com formação em artes, mas que optou por atuar nas

ruas também. Nascido e criado em São Bernardo do Campo, desde 2000 vem desenvolvendo

intervenções urbanas utilizando o estêncil. Tem uma produção marcada pela escolha dos locais,

buscando espaços deteriorados que fornecem inúmeros elementos compositivos (cor, textura,

posição). Parte destes trabalhos estão localizados em bairros afastados do ABC Paulista

(subúrbio de São Paulo), - como o Projeto Jardim Limpão - atingindo um público que

normalmente tem pouco acesso à arte. Além dos trabalhos nas ruas, vem apresentando sua

pintura - que se desenvolveu através das experiências do seu trabalho de intervenção urbana -

em galerias e museus, no Brasil e no exterior. Neste seu grande painel, na região central da Luz,

(Figura 67) o artista revela a forte vertente pop de sua arte, em uma linguagem diretamente

associada aos padrões de histórias em quadrinhos, como fez o artista Roy Lichtenstein ao

transportar para as telas clichês das HQs por meio da reprodução dos pontos reticulados das

historinhas, cores brilhantes e planas, delimitadas por traços negros.

Já o artista o Alexandre Orión ficou conhecido por fazer um grafite altamente refinado,

também utilizando a técnica do estêncil. Na série Metabiótica, o artista utilizada a técnica para

criar imagens em preto e branco, em tamanho natural. Pintadas sobre muros da cidade, as

imagens são registradas pelo artista ao flagrar situações em que há uma interação espontânea

entre os transeuntes e as pinturas. A fotografia é a obra final (Figura 68). Desta forma, Orion

atribui à intervenção urbana uma dimensão na vida real, promovendo o encontro entre

realidade e ficção dentro do campo fotográfico. Entre 2006 e 2011, o artista realizou uma série

de intervenções inusitadas, que tratavam-se de imagens realizadas através da limpeza seletiva

da poluição depositada nas paredes de túneis da cidade de São Paulo. Criando caveiras a partir

da retirada das partículas dos poluentes, o artista, em sua primeira intervenção desta natureza,

foi abordado pela polícia, entretanto, não havia crime ali, uma vez que o artista não usava

Page 171: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

171

tintas, estava apenas limpando a sujeira no túnel. Surpreendentemente, a municipalidade, com

mangueiras em profusão, limpou a obra logo em seguida.

Há um artista com uma atuação peculiar: Zezão, que desde meados de 1990 realiza obras em

galerias pluviais de São Paulo. Autodidata, iniciou-se no grafite a partir das influências da cultura

hip hop, entretanto, passou a trabalhar de maneira mais artística sua obra, que passou a se

focar em variações de uma mesma matriz, um grafismo abstrato azul claro com contorno

escuro. Zezão também se aperfeiçoou na fotografia e as imagens registradas dos grafismos em

esgotos da cidade, com jogos de luzes estranhos e surpreendentes, também se tornaram obras

finais (Figuras 69 e 70).

Figura 55: Stencil Land,

Buenos Aires, 2012. Fonte:

Alessandra S.

Figura 56: Stencil Land, Buenos

Aires, 2012. Fonte: Alessandra S.

Figura 57: Rundontwalk

Buenos Aires, 2012. Fonte:

Alessandra S.

Figura 58: bs.as.stencil, Buenos Aires, 2012. Fonte:

Alessandra S.

Page 172: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

172

Figura 59: Triángulo

Dorado, Buenos Aires, 2012.

Fonte: Alessandra S.

Figura 60: JAZ, Buenos Aires, 2012. Fonte: Alessandra S.

Page 173: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

173

Figuras 61, 62 e 63: Gualicho, Buenos Aires, 2012. Fonte: Alessandra

Simões.

Page 174: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

174

Figura 64: Mart, Buenos Aires, 2012. Fonte: Alessandra Simões.

Page 175: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

175

Figura 65: Artista Calma, “Agricultura

Celeste”, Acrilica sobre tela - 200 x

150cm/2010. Fonte: Agência Cartaz

Assessoria de Imprensa

Figura 66: Painel dos OsGêmeos. Fonte: MACKENZIE, Stuart; NGUYEN,

Patrick. Beyond the street – the 100 leading figures in urban art. Berlim:

Gestalten, 2010, p. 360.

Page 176: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

176

Figura 67: O artista Daniel Melim,

São Paulo (2012). Fonte: Alessandra

Simões.

Figura 68: "Metabiótica #20" –

(Intervenção pictórica - tendo a

cidade como suporte - seguida de

registro fotográfico), de Alexandre

Orión. Fonte: Galeria Inox

Page 177: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

177

3.4 A NOVA ARTE URBANA PAULISTANA E PORTENHA SOB A ÓTICA DA TEORIA E DA CRÍTICA DA

ARTE

3.4.1 Algumas considerações

Pensar o fenômeno da arte urbana a partir de alguns modelos teóricos é o ponto de partida

para um entendimento da natureza desta expressão estética e sua inserção no panorama geral

da arte contemporânea. Aqui, considera-se arte contemporânea como a arte realizada a partir

do ocaso da arte moderna, não significando focar seu sentido a partir apenas desta delimitação

cronológica, mas referindo-se a todo um escopo teórico sob o qual se define arte

contemporânea. 115

Portanto, procuramos estabelecer paralelos entre a arte contemporânea e elementos

teóricos que tiveram e têm efeito direto ou indireto sobre as práticas artísticas de forma geral, e

que no contexto deste trabalho são pertinentes à ideia de gênero híbrido 116 ao qual a arte

urbana se adapta. Assim, procuramos criar um corpus teórico com dois eixos: um que define as

formas de operação da arte contemporânea, suas diversas implicações práticas e teóricas; e

outro que faz uma análise da arte urbana à luz das teorias da arte contemporânea. Estas

abordagens não são colocadas de forma separada neste capítulo, mas sim mescladas ao longo

do texto. Sobretudo, será enfatizado o ponto de vista opinativo desta pesquisadora, segundo o

qual a arte urbana é uma expressão estética que, ao mesmo tempo em que contém todos os

elementos presentes na arte contemporânea como um todo (a serem descritos adiante),

115

Será entendido como o marco inicial o final da década de 1950, que pontua o fim da hegemonia da arte

abstrata e concreta na cena artística. Estas tendências foram o auge do projeto de uma “arte autônoma” iniciado

ainda no século XVI (quando surge a noção de autoria individual, o distanciamento entre arte e artesanato, a

intensificação do comércio de arte, etc.) e formulado conceitualmente no bojo do contexto iluminista com as

teorias da arte na Alemanha (a história da arte de Winckelmann; a estética de Baumgarten; de Lesing e Kant) e

na França (a crítica de Diderot) no século XVIII. As novas linguagens deram lugar não só à volta da figuração,

como na Pop Art e no Novo Realismo, mas a experiências mais radicais. Entre elas, no Brasil, Hélio Oiticica e

Lygia Clark, cujo poder de interferência crítica na realidade não caberia mais no espaço tradicional do museu.

Como afirmou Cocchiarale (2007, p. 187): “Entre tendências tão diversas apenas um denominador comum: a

busca de reaproximar a arte com a vida, promovida nos últimos dois séculos, seja pela escolha de temas

prosaicos como a lata de sopa Campbell’s ou do sabão em pó Brillo (Warhol), ao transbordamento dos meios e

dos espaços de ocorrência da criação artística.” 116

Lembremos que este trabalho tem significativo embasamento nas ideias de Néstor García Canclini, que

mostra o quanto as manifestações de arte urbana suscitam diversas questões em torno dos conceitos que norteiam

a historiografia e as teorias da arte. Por trás de novas linguagens e técnicas, subjaz um amplo campo de

questionamento a respeito das noções que dividem o culto, o popular e o massivo. Cabe também perguntar como

a história da arte pode se portar diante deste fenômeno, como interpretá-lo, especialmente, no que concerne às

especificidades regionais.

Page 178: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

178

incorpora elementos próprios que a transformam em uma linguagem genuína, cuja importância

para o panorama geral da arte contemporânea se mostra cada dia mais relevante.

Assim, adotamos um ponto de vista multidisciplinar para adequar esta análise às ferramentas

metodológicas disponíveis hoje, e isto implica entender a arte a partir do fim de determinados

pontos de vista. 117 Uma mudança na narrativa sobre a arte, que vire a página da estética

clássica, é a opção adequada que marca a mudança do modernismo para a arte contemporânea.

Vattimo (1996) diz que, mesmo atualmente, ainda impera a visão tradicional, que sustenta

conceitos como originalidade, autenticidade, genialidade, etc., e que esta condição seria uma

ameaça a um entendimento aprofundado das práticas estéticas contemporâneas, como a arte

urbana, e da condição cultural atual como um todo.

3.4.2 Uma arte hibridamente legítima

Um dos pontos fundamentais na discussão contemporânea é a ambiguidade do estatuto

cultural e estético, isto é, o caráter híbrido com que se firmaram essas expressões ao longo da

história a partir de sua oposição em relação ao sistema oficial de valores. Para Vattimo (1996,

p.43), este processo não trata da auto referência da obra de arte (consequência das estéticas

abstratas), mas sim de uma “auto operação” de seu próprio ocaso em uma sociedade na qual

impera a estetização generalizada da vida, cujas regras são ditadas por uma mídia interessada

em homogeneizar o prazer pelo belo. “No mundo do consenso manipulado, a arte autêntica fala

apenas calando, e a experiência estética só pode ocorrer como negação de todas aquelas que

foram suas características sacramentadas na tradição, a começar pelo prazer no belo”

(VATTIMO, 1996, p. 46).

Portanto, é importante pensar sobre as relações entre cultura popular, de massa e erudita,

entendendo a nova arte urbana latino-americana como uma das temáticas mais importantes

envolvidas nesta discussão. O tema é complexo e ganhou corpo no século XX, quando se

alargaram as discussões acerca da dicotomia “reprodutibilidade/raridade” colocando em xeque

“[...] uma concepção que valoriza determinado bem (material ou simbólico) pelo seu caráter

único, raro, escasso, e o desvaloriza quando esse mesmo bem se multiplica” (SANTOS, 1994, p.

117

Vamos falar mais sobre este assunto na conclusão. Isto é, a questão do suposto fim da história da arte e sua

relação com a problemática da arte contemporânea como um todo e da arte urbana.

Page 179: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

179

121). O caminho da arte rumo a sua inter-relação com outros campos nos remete novamente

aos parâmetros do hibridismo cultural defendido por Canclini (1997) que, na América Latina, se

mostra evidente em diversas linguagens artísticas. Vejamos, por exemplo, a importância da

gravura no México, onde no início do século 20 foi utilizada como veículo de comunicação nas

cidades; e, nos anos 1950, a experiência dos Clubes de Gravura no Brasil. Seus objetivos eram:

“[...] deselitização da arte mediante seu acesso, através da obra multiplicada, a um número

maior de apreciadores, a importância da denúncia contida na imagem [...]” (AMARAL, 1984, p.

315). O ponto a que queremos chegar nesta comparação com a gravura é a possibilidade da

reprodutibilidade da arte urbana por meio da técnica do estêncil, como foi mostrado ao longo

deste trabalho (Alex Vallauri, antes de se dedicar ao estêncil, foi prolífero gravador!). E há uma

relação ainda maior desta linguagem com a arte urbana ao verificarmos, por exemplo, o grupo

paulistano 6emeia, que faz gravuras urbanas a partir de uma matriz no asfalto. 118

Devemos lembrar que o tema da autonomia da arte em relação a outros campos não

estéticos se reveste de certo mito; como já mostramos é uma percepção historicamente e

socialmente construída. Basta lembrar do próprio artista Rembrandt, que tinha oficina onde se

faziam cópias suas e de outros artistas. O estudioso Mikhail Bakhtin (1993) utilizou o termo

“circularidade” para identificar relações entre classes dominantes e subalternas já na Europa

pré-industrial. Canclini (1997) afirma que por trás de todas as manifestações artísticas e suas

respectivas análises teóricas permaneceu uma das utopias mais fortes da cultura ocidental: a

questão da autonomia da arte. Se por um lado, teóricos exaltaram a independência que o

processo de secularização trouxe à arte em relação a campos como a religião e a política; por

outro, as forças econômicas, de mercado, e a comunicação massiva estimularam a dependência

da arte fora do âmbito estético. Santos (1994, p. 123) defende que na atualidade os diferentes

campos de produção cultural não só se interpenetram e mantêm entre si relações antagônicas e

complementares, mas todos eles, embora em diferentes modalidades, se encontram

subordinados às exigências da rentabilidade capitalista que pode também exigir hierarquias

(exceção feita talvez para algumas culturas marginais ou populares).

Esse estado de coisas se reflete na arte urbana também. É importante lembrar que: A) Há a

arte urbana que continua sendo feita exclusivamente nas ruas (lembremos aqui o caso do grupo

portenho GAC que, após convite para a Bienal de Veneza, acabou tomando a decisão de 118

Foster (1996, p. 129), ao citar Benjamin, lembra que o filósofo havia identificado que, graças à reprodução

mecânica, o mundo da arte foi emancipado de sua relação com o ritual, mudando do domínio da tradição para o

domínio da política. A gravura teria sido o primeiro golpe na aura da obra de arte.

Page 180: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

180

restringir sua participação em eventos do gênero); B) Há a arte urbana que entra para o museu

e galerias, seja apenas como registro de suas ações na rua, ou como uma nova proposição

estética. Por exemplo: artistas que trabalham nas ruas e no ateliê concomitantemente; artistas

que transformam seus códigos de rua para o espaço legitimador com o intuito de encontrar um

novo ponto estético; artistas que apresentam apenas o registro áudio/visual de sua atuação na

rua; artistas que participam de eventos, que muitas vezes se configuram como uma ação

artística em si. 119

Nesta discussão, entra em questão ainda o ponto de vista da nova distribuição do trabalho

cultural; na qual a figura do criador isolado cede lugar a intermediários, críticos, curadores,

agentes, que têm a mesma importância que o artista. É a especialização das funções que uma

organização complexa capitalista exige e que também se estende à produção da nova arte

urbana. Inclusive, nesta pesquisa, constatamos que São Paulo vem apresentando um mercado

mais consolidado do que Buenos Aires, com uma quantidade muito maior de galerias

especializadas nas chamadas “linguagens urbanas”, que enfocam além das próprias obras no

espaço urbano seus desdobramentos em outros suportes, como telas, fotografias, gravuras,

esculturas e instalações. 120

Essa “transmutação” de espaços e linguagens - da rua para o museu, do museu para a rua – é

elemento definidor da nova arte urbana, que traz contribuição peculiar para o panorama da

arte contemporânea como um todo. Justaposição de discursos, conexões entre as esferas

artística, científica e política, etc. mostraram que o caminho da arte contemporânea é aderir a

119

Como os grandes festivais internacionais de grafite, ou ainda o Arte/Cidade, projeto de intervenções urbanas

realizado a partir de 1994, em São Paulo, e que deixou diversas contribuições teóricas em publicações a respeito

do tema.Espaços artísticos legitimadores, como a Bienal do Mercosul, passaram ainda a valer-se da presença da

arte na cidade como ponto de partida para investigações aprofundadas sobre as relações entre arte e cidade. Por

não possuir um espaço próprio expositivo, de forma a precisar utilizar locais museológicos já existentes e

edificações adaptadas temporariamente para estes fins, ao longo dos anos, esta Bienal realizou trabalhos

temporários e permanentes ao ar livre. Foi justamente por esse tipo de atuação que nasceu uma relação especial

da Bienal do Mercosul com a cidade que a sedia, Porto Alegre. A 1ª Bienal, por exemplo, resultou no primeiro

jardim de esculturas da capital gaúcha.Também há o EIA (Experiência de Imersão Ambiental), criado em 2004,

que se trata de um grupo que organiza projetos coletivos de intervenção ambiental para promover laboratórios de

imersão política e social. 120

São Paulo tem várias galerias especializadas (Choque Cultural, QAZ, LOGO, etc.), todas abertas a partir dos

anos 2000. Em Buenos Aires só conseguimos localizar uma (Hollywood in Cambodia), e com infra-estrutura

bem precária. Alguns artistas paulistanos também são representados por galerias do circuito oficial, como

OsGêmeos e Alexandre Orión. As feiras em São Paulo também registraram aumento nas vendas desses artistas.

“Nas duas primeiras edições da feira PARTE (2011 e 2012), a arte urbana foi muito bem aceita. Foram

comprados de prints e gravuras a pinturas e esculturas (peças únicas), de dimensões pequenas a grandes, dos

mais variados preços, de R$ 1.000 a mais de R$ 20.000. Em muito pouco tempo, da primeira para a segunda

edição, a arte urbana passou a estar presente em um número maior de galerias. Em 2011 apenas três trabalharam

essa linguagem. Já em 2012, cerca de 15 apresentaram obras nessa linha.” Depoimento de Tamara Brandt

Perlman, produtora da feira, em 25/09/2013, a esta pesquisadora.

Page 181: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

181

práticas vinculadas ao mundo real, contagiando a pureza clássica com elementos do cotidiano,

como mostraram críticos distantes do discurso greenberguiano, como Rosalind Krauss, ou ainda

pensadores do século 20, como Maurice Merleau-Ponty que, com sua fenomenologia da

percepção, mostrou que a arte também utiliza meios que não se restringem ao visual,

mesclando eventos de natureza sensorial, entre outros. Assim, categorias como pintura,

desenho, escultura passaram a não dar mais conta das novas vertentes da arte, híbridas e

justapostas. Consideramos aqui a nova arte urbana como expressão máxima desse hibridismo

cultural, já que propõe esses caminhos reversos, cíclicos, e por isso de extrema riqueza para o

debate estético.

Isso nos leva a pensar sobre um paradoxo: grandes nomes do novo grafite paulistano e

portenho, como JAZ e OsGêmeos (respectivamente figuras 60 e 66), revelam que esta vertente

ainda mantém intactas algumas regras da tradição plástica, pois ambos os artistas têm obras de

elevado refinamento técnico e temático, aos moldes do legado muralista. Isso pode ser visto

nos jogos de volumetria, luz e sombra nas imagens dos OsGêmeos, além de suas composições

fortemente vinculadas à corrente surrealista; e nos gigantescos murais do argentino JAZ, que

revelam a pesquisa contínua de técnicas inovadoras no uso do spray aliado ao pincel para

conseguir contornos volumosos e efeitos cromáticos únicos.

Com suas obras presentes em museus e galerias, a dupla OsGêmeos apresenta multiplicidade

de técnicas e suportes que convivem simultânea ou alternadamente: do desenho para o grafitti

e os murais, da pintura para as imagens cinéticas, esculturas e instalações, como pode ser visto

nas exposições realizadas pela Galeria Fortes Vilaça, sua representante em São Paulo. Neesas

mostras, os artistas costumam criar grandes ambientes que convidam o fruidor a uma viagem

ao seu universo fantástico, onde pinturas ganham dimensões inesperadas, explorando novos

contextos para os personagens. A obra desses artistas, de natureza fantástica, que engloba um

caleidoscópio temático e uma paleta multicolorida, revela-se em total diálogo com a história da

arte e a arte contemporânea. Pode-se notar referências a Yayoi Kusama, em função da

recorrência a padronagens, e a Takashi Murakami, devido à ênfase no detalhamento dos

personagens e nas cores frenéticas. A dupla dedica-se ainda a criar esculturas cinéticas que nos

remetem aos experimentos de Tinguely e suas máquinas surreais.

As complexas composições realizadas pelo portenho Gualicho são outro exemplo deste estilo

de grande ênfase plástica (Figuras 61, 62 e 63). A maneira como ele trabalha sobre as superfícies

irregulares das construções, utilizando-as para criar efeitos ópticos, lembra as características

Page 182: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

182

marcantes da pintura barroca, cujas imagens em tetos e paredes de igrejas ou palácios também

apresentavam fortes efeitos ilusórios. Cenas e elementos arquitetônicos (como colunas,

escadas, janelas, portas, balcões) se misturam de forma a simular movimentos, volumetrias e

ampliação de espaço, chegando a dar impressão de que a pintura é a realidade e de que a

parede não existe. Imagens em grande dimensão sobre muros e paredes ao ar livre parecem

aumentar ainda mais este efeito.

O artista paulistano Calma, que chegou a pintar dezenas de locais na pequena cidade de

Lençóis, na Bahia, atualmente vem tornando seu estilo ainda mais rebuscado, com composições

de forte vertente surrealista, permeadas de formas detalhistas e complexas. Chegou a afirmar a

esta pesquisadora por email (informação pessoal, 2011) que não gostaria mais de ser

identificado diretamente com o grafite: “Gostaria apenas de pedir que você não me apresente

como grafite, street art ou arte urbana, apenas como artista contemporâneo, ficaria melhor,

estou tentando me livrar desses rótulos”. Retratando temas como o Sagrado e o Profano, a

Religião, a Morte e o Tempo, Calma utiliza imagens de imensa carga simbólica, mesclando

elementos como mulheres nuas, diabos com asas, corpos híbridos sobre os quais se instalam

portas e janelas, palavras misteriosas, caveiras, elementos alquímicos, compondo assim uma

iconografia muito peculiar e complexa (Figura 65).

O fato de as obras desses artistas urbanos estarem na rua e de revelarem também as

influências do grafite original nos leva a recategorizar esta ideia de vinculação ao clássico,

borrando fronteiras entre o que está dentro ou fora do sistema artístico e compondo um

dialético jogo de sentidos, revelando assim a relatividade inerente ao universo da nova arte

urbana. Os personagens pop do paulistano Daniel Melim exibem refinado grau técnico

decorrente do desenho firme do artista, entretanto nos lembram que as histórias em

quadrinhos podem nos fornecer significados próximos. Operando com esse deslocamento de

seus contextos, transpostos para a obra de arte, esses símbolos pop guardam a memória de seu

locus original, aproximando arte e vida, arte elevada e cultura de massa. Seu grande painel na

região da Luz em São Paulo (Figura 67) faz esta operação se transformar em algo ainda mais

real, uma vez que a obra é gigantesca e está em plena cidade, rodeada pelos signos cotidianos,

imagens, sons e odores que transformam o conjunto em uma “obra-vida”, marcada por seus

códigos estéticos internos e por sua inserção em um sentido urbano do transitório, da massa, da

cultura jovem, espirituosa e chamativa.

Page 183: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

183

É exatamente o que revela Belting (2006) ao falar sobre a temática do high and low, como

mostramos no caso do artista Alex Vallauri, que consegue transitar entre as duas fronteiras. “A

resposta da arte consiste no jogo duplo de questionar a si mesma e de se afirmar nisso”

(BELTING, 2006, p. 114). Portanto, se “(...) a cultura do cotidiano foi, nas primeiras gerações do

pós-guerra, uma contra-imagem da história da arte, da qual a arte queria se libertar. Hoje

surgem diferentes linhas de fronteira nas quais a distinção entre high e low não aparece mais de

maneira tão evidente como antes, quando era polemicamente convertida em programa”

(BELTING, 2006, p.115). Isso se revela na forma precisa com que os artistas urbanos passeiam

entre os universos - a composição plástica sólida (inclusive com a declarada herança pop), a

firmeza do desenho e as grandes fachadas dos edifícios ou muros, que se apresentam na

paisagem urbana como gigantescas telas, acessíveis a todos os transeuntes.

Os nomes do novo grafite citados neste trabalho incorporam esta questão; e esta é a essência

do que chamamos aqui de “novo grafite”. Dele, fazem partes artistas que se diferenciam dos

“grafiteiros”, cujos trabalhos ainda são realizados com as características do grafite de estilo hip

hop, isto é, como uma expressão cultural. Os artistas do novo grafite não. Transformaram suas

poéticas ao longo dos anos, fazendo de sua arte “arte verdadeira”, aos moldes de teorias

consagradas, como a de Pareyson em relação à definição de poética:

A poética é programa de arte, declarado num manifesto, numa retórica ou mesmo implícito no próprio exercício da atividade artística; ela traduz em termos normativos e operativos um determinado gosto, que, por sua vez, é toda a espiritualidade de uma pessoa ou de uma época projetada no campo da arte. (PAREYSON, 2001, p. 11)

Assim, podemos identificar proposições poéticas claras nestes artistas, comprovando que

“À atividade artística é indispensável uma poética, explícita ou implícita [...]” (PAREYSON, 2001,

p. 19). JAZ, por exemplo, apresenta a busca constante de uma temática vinculada à ideia do

duplo, como pode ser visto constantemente em suas obras, que utilizam com frequência

imagens iguais espelhadas, como na batalha entre os dois minotauros apresentada na Figura 60.

Em um vídeo121, o artista declara, no entanto, que quando sente que está se repetindo é porque

chegou o momento de se reavaliar, movendo-se assim em um sistema reflexivo típico do

processo criativo:

121

Disponível em http://soulart.org/street-art/aqui-jaz/. Acesso em: 13 jul. 2014.

Page 184: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

184

“[...] o artista é o primeiro crítico de si mesmo [...] e que, no exercício concreto da arte, trata-se antes de leis poéticas que se tornam leis éticas, carregando-se de um significado moral, como acontece com tudo quanto é tecnicamente exigido por um fim para o qual nos empenhamos com livre decisão.” (PAREYSON, 2001, p. 35).

Essa mesma interpretação pode caracterizar uma obra extremamente peculiar: o trabalho do

paulistano Zezão, que se dedica a realizar imagens muito semelhantes entre si (um grafismo

azul abstrato e com algumas variações), entretanto, em locais inusitados, como em galerias de

esgotos. Zezão também tem uma poética própria. Ela está vinculada não apenas à plasticidade

muralista, mas ao âmbito da ação, do mesmo vaguear proposto pelos situacionistas e que tanto

marcou artistas de outros períodos, como fez Artur Barrio ao perambular pela cidade de São

Paulo por dias a fio. Zezão é um situacionista. Corajosamente (arrisca-se até fisicamente),

percorre os últimos espaços da degradação urbana, o esgoto, para lá imprimir sua obra, em um

ato ritualístico que lembra as imagens imprensas no interior das cavernas nos tempos pré-

históricos. Entretanto, Zezão dispõe de luz elétrica, máscaras de proteção, câmera fotográfica,

formalizando-se assim como um “neandertal pós-moderno”. É curioso notar nas imagens a

seguir (Figuras 69 a 71) o interesse pela imagem do bueiro na obra de Zezão e um artista já

histórico citado anteriormente, que é Sol LeWitt, reafirmando aqui a ideia de uma linhagem

histórica na nova arte urbana defendida por este trabalho. Lembremos ainda que a artista

Mônica Nador também falou da importância de Sol LeWitt para sua poética.

Page 185: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

185

Figura 71: Foto tirada por Sol Lewit.

Fonte: LEGG, Alicia (edit.). Sol Lewit.

New York: The Museum of Modern

Art, 1978, ps. 158, 159.

Figura 69: Foto do próprio Zezão. Fonte:

Agência Cartaz Assessoria de Imprensa (SP-

2011).

Figura 70: Foto do próprio Zezão.

Fonte: Agência Cartaz Assessoria de

Imprensa (SP-2011).

Page 186: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

186

Voltando à relação entre arte urbana e mercado de arte, podemos notar que a polêmica

nasce juntamente com as primeiras obras de arte urbana do pós-guerra, o que inclusive se

refletiu na educação formal estadunidense, em faculdades que ampliaram seus currículos a fim

de incluir cursos não apenas de pintura e escultura, mas também de desenho mural e outras

disciplinas que incorporassem elementos combinados, alternativos e experimentais (ARCHER,

2001, p. 154). Ainda segundo este autor, a dificuldade de “consumo” da performance, da

instalação e da arte urbana (isto é, adquirir a obra e levá-la para casa) acabou acarretando o

direcionamento de fundos subsidiários para este tipo de linguagem. “O sistema comercial de

galerias era, evidentemente, apenas uma parte de uma economia de mercado capitalista mais

ampla. Inevitavelmente, havia o conflito de quando a arte que expressava sua rejeição desse

sistema era forçada a depender dele para ser exibida, apreciada e consumida” (ARCHER, 2001,

p. 144).

Em certa medida, os desdobramentos desta relação mostraram que a arte, como um bem de

consumo, tendeu a ser absorvida pelo mercado, como qualquer bem de consumo, ou talvez o

mais cobiçado deles. Muitos autores afirmam que isso acabou acarretando um estado de “vale

tudo” na arte contemporânea. Galard (2007) afirma que o meio artístico se transformou em

palco de busca por singularidades, onde cada artista tenta fazer o que ainda não foi feito, e não

estritamente o que é profundo. Assim, galerias e museus teriam se transformado em um

showroom de novidades. “O que vale dizer que a arte se tornou caprichosamente estilística –

todo mundo tinha que ser diferente... mas de uma única e mesma maneira” (FOSTER, 1996, p.

40). Esse autor aponta para a necessidade urgente de se definir novos caminhos, concludentes,

frente a esse pluralismo, citando que Herbert Marcuse, nos anos 1960, condenava o pluralismo

como um novo totalitarismo. Foster explica que as formas antiestéticas passaram a se repetir, e

os espaços alternativos se institucionalizaram, o que promoveu a grande dispersão da arte.

Artistas ingenuamente sentem-se livres para fazer o que quiser, inclusive, com referências

vazias ao passado. Recorrem ao pastiche inócuo: “Mas esse é o sonho do pluralista: ele parece

um sonâmbulo no museu” (FOSTER, 1996, p. 38). Ou ainda: “Vanguarda de retaguarda, essa arte

funciona em termos de retornos e referências mais do que com as transgressões utópicas e

anárquicas da vanguarda” (FOSTER, 1996, p. 44).

Na visão de Foster (1996), até mesmo a arte urbana não escapa: “Chegamos quase ao

ponto em que a transgressão é um dado. Obras em sítios específicos não perturbam

automaticamente nossa noção de contexto, e os espaços alternativos se aproximam da norma”

Page 187: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

187

(FOSTER, 1996, p.47). Há sim certa banalidade na nova arte urbana, como pode ser visto em um

fato repetitivo: alguns artistas simplesmente transferem imagens de grafite para uma superfície

entre molduras em estilo rebuscado como se estivessem fazendo uma crítica ao sistema da arte.

A ideia de uma arte que se sujeita a uma temporalidade curta, à moda, também pode ser vista

no fenômeno da arte urbana contemporânea, cuja capilaridade com o cotidiano a aproxima dos

meios de produção simbólica. A marca de cosméticos Natura lançou recentemente perfumes

com imagens de grafites nos rótulos; o avião que transportou a delegação brasileira nesta

última Copa do Mundo (2014) foi pintado pelos OsGêmeos, e assim por diante.

Rolnik (2006, ps. 4-5) explica que as experiências históricas latino-americanas, especialmente

as neovanguardas, deixaram como legado um importante elo entre ética e estética ainda em

vigor na atualidade. Entretanto, a autora diz que sofremos dos mesmos desdobramentos

apontados acima: “Dispomos todos de uma subjetividade flexível e processual tal como foi

instaurada por aqueles movimentos – e nossa força de criação em sua liberdade experimental

não só é bem percebida e acolhida, mas é inclusive insuflada, celebrada e frequentemente

glamourizada”. Acreditamos que o significativo aumento dessa “glamourização” é um ponto

importante que diferencia a geração de hoje da de ontem. Isso porque as mudanças que se

iniciaram naquela época voltadas para a mercantilização da cultura se consolidaram

definitivamente na atualidade, e o cenário contemporâneo não apresenta mais o mesmo

regime identitário e a política de subjetivação daquele período.

Entretanto, é preciso cautela para não nos encerramos em uma visão radical, que não leve

em conta os processos especificamente latino-americanos. Citemos a pesquisadora argentina

Ana Longoni122, que em um debate propôs uma definição alternativa para pensamentos

dialógicos, como “fora ou dentro do museu” ou “isso é arte ou isso não é arte”. Longoni

lembrou o exemplo da ação Tucumán Arde, que poderia ser confundida com um ato político. “O

sentido da obra é que nós a consideramos como uma ação, uma ação de denúncia da crise que

vivia Tucumán neste momento [...]”, afirmou Graciela Carnevale em entrevista a Cristina Freire

e Ana Longoni, em 2007. 123 Para Longoni, o contexto cultural e artístico argentino apresentou

outra via de acesso à questão da relação entre artistas, obras e circuito institucional, que não

pode ser entendido através do esquema vanguarda/ruptura, neovanguardas/reintegração ao

museu, etc. Na visão da autora, o que une vanguardas e instituições artísticas é uma relação 122

Disponível em: http://www.forumpermanente.org/event_pres/encontros/cimam/relatos/painel3/. Acesso em:

06 mai. 2014 123

FREIRE, Cristina; LONGONI, Ana (org.). Conceitualismos do Sul/Sur. São Paulo: AnnaBlume, 2009, p. 62.

Page 188: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

188

mutável e contraditória. O museu, em sua perspectiva, não é um mero receptáculo, mas um

nexo de significado, um espaço de discussão. Assim, essa relação se caracteriza, muitas vezes,

pelo descompasso entre os aspectos mais radicais das vanguardas e os impulsos

modernizadores da instituição. A autora afirma, inclusive, que diversas práticas artísticas em

Buenos Aires têm sido motivo de atenção de importantes iniciativas curatoriais e instituicionais,

que expressam a vontade do museu de deixar de ser somente um receptáculo ou produtor de

exposições para assumir-se como uma forma de articulação de experiências passadas e

presentes, como espaço de confluência para grupos de artistas e ativistas. Entretanto, não

podemos esquecer que exemplos como o GAC mostram que coexistem iniciativas que

reivindicam continuar fora do campo artístico.

É importante enfatizar que não colocamos em questão aqui a postura do artista diante do

debate que costuma ocorrer em torno da ideia da legitimação da arte urbana. Seria uma

discussão vazia apontá-lo como sujeito supostamente “vendido” ao sistema das artes. Uma das

leituras que fundamentaram esta conclusão foi a do estudioso Michael Brenson124, que durante

seminário em São Paulo, comentou sua experiência em um país no leste europeu, onde grande

parte dos artistas se ressentia justamente das dificuldades de sua inserção no mercado de arte.

Arantes (2005, p. 75), ao avaliar a possibilidade de afirmações artísticas pontuais em resistência

às engrenagens de poder, aponta para a complexidade deste impasse e a dificuldade de uma

ruptura sistêmica a partir de iniciativas pontuais: “Sabemos que saídas individuais não são

saídas, e que as institucionais são as que vimos”. Ainda em relação à postura do artista, é

interessante notar a conversa entre a crítica Suzi Gablik e o artista Keith Haring. Ela pergunta ao

artista se o fato de ter sido absorvido pelas galerias influenciou na sua atuação anônima e ilegal

nas estações de metrô. Ao que ele responde:

Arte se trata de algo para ser visto. [...] Não importa se é absorvida pelos olhos das pessoas no metrô ou na galeria. [...] no metrô o trabalho existe por um momento breve, ele provavelmente será logo apagado. [...] Objetos, claro, têm muito menos chance de desaparecer, eles serão protegidos, e isso muda o valor concebidos a eles. Mas a permanência ou impermanência são ambas resultados plausíveis de uma atividade. Seria difícil viver acreditando apenas em coisas efêmeras; você tem que acreditar em coisas concretas também, coisas que não vão embora. Não deveria haver nada errado com coisas que não partem [...] que permanecem a acumulam significado fazendo parte da vida de alguém. (GABLIK, 1995, p. 107, tradução nossa)

124

BRENSON, Michael. Perspectivas da Arte Pública. In: Arte Pública, São Paulo: Sesc, 1998, ps. 16-29

Page 189: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

189

Portanto, nossa reflexão está centrada no fenômeno artístico em si, no caso da arte urbana,

que se trata de uma “expressão legítima” não por ser uma linguagem legitimada pelo sistema

artístico (o que já ocorreu, visto o crescente número de galerias especializadas), e sim por ser

um gênero com especificidades delimitadas pela própria natureza de sua linguagem, dotada de

códigos e características próprias. Cada caso deve ser analisado a partir de suas singularidades;

generalizar é uma atitude arriscada, que compromete a profundidade do tema. Diante do

processo de secularização da arte ocidental, e da complexa rede de pensamentos que envolvem

a cultura contemporânea, as discussões deterministas se tornam inconsistentes.

Sabe-se que o grafite, por exemplo, nasceu como forma de transgressão social. Entretanto,

seus códigos visuais migraram para o campo da arte, território que já assistiu à derrocada de

utopias no século 20 e que, nesta época de incertezas, encontra-se sobre terreno movediço.

Acreditamos que as práticas artísticas e culturais dialogam com essas crises por nelas estarem

inseridas, e que podem, sim, contribuir para uma transformação social. Seria uma atitude

conservadora acusar um artista porque ele vende sua obra. O estado atual da nova arte urbana

em São Paulo e Buenos Aires nos dá uma boa medida da complexidade do tema. Em menor ou

maior grau, podem ser identificados artistas e grupos que têm um compromisso político de

colocar a arte a serviço da crítica contra a lógica neoliberal, entre outras questões. Este

compromisso se manifesta com mais intensidade, principalmente, na atuação dos grupos e

artistas da arte ativista apontados aqui. Mas quem poderá negar o poder político inerente de

uma pintura em um muro que faz emergir beleza da degradação urbana? Não teriam esses

artistas conseguido realizar a utopia de situar o espectador dentro da experiência artística? Não

teriam diminuído, por meio da obra na cidade, as fronteiras entre arte e vida, artista e público,

criação e contemplação, estética e política, espaço real e espaço imaginário? Acreditamos que

sim.

3.4.3 Arte urbana e política

Nas obras apontadas neste trabalho é possível constatar que há poéticas em que podemos

localizar dois planos distintos da relação entre arte e política (CHAIA, 2007, ps. 14 e 15): A) O da

arte que apresenta uma política explícita, definida por um núcleo duro de instituições (por

exemplo, o Estado e os partidos políticos), suas funções e mecanismos na sociedade; B) O da

Page 190: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

190

arte com uma política difusa, que aborda as dimensões sociais da vida que não são tipicamente

políticas. Independentemente de uma maior aproximação entre arte e política, pode haver

predomínio de uma ou de outra. Em comum, estas correntes apresentam sua crítica à sociedade

capitalista. Seja a partir de uma concepção teórica marxista ou de uma posição existencialista,

acreditamos que o papel da arte é ser “[...] um lugar possível de resistência e de mudança na

sociedade e, principalmente, um denso vestígio de humanidade” (CHAIA, 2007, p. 16).

No caso da nova arte urbana portenha e paulistana vamos encontrar estes conceitos

mesclados. Há uma predominância do conceito A na arte ativista, como também ocorreu com

os neovanguardistas latino-americanos, com uma politização explícita frente ao seu próprio

contexto. Entretanto, as ferramentas hoje são outras; e os “inimigos” também. Mas há

paralelismos. Enquanto a neovanguarda portenha e paulistana deparou-se com um inimigo “ao

vivo”, a ditadura, a arte ativista portenha de hoje remexe os destroços reivindicando a punição

dos culpados por meio de um forte exercício de “memória viva” (CERTEAU, 1994). Atualmente,

portenhos e paulistanos também se unem (às vezes, literalmente, como mostramos quando os

artistas trabalham juntos, principalmente, argentinos que trabalham no Brasil) para combater

um inimigo em comum: o sistema capitalista e seus tentáculos (que se espalham sobre as

injustiças sociais, a segregação urbana, a destruição ecológica). São “cidades-suporte” nas quais

se assentam objetos, imagens e ações que revelam memórias do passado e do presente.

Por outro lado, também acreditamos na existência de forte conteúdo estético nos exemplos

de arte ativista apontados aqui (basta observar as experiências de Marta Minujín), como

entendemos haver um aspecto político no novo grafite. O artista portenho JAZ, por exemplo,

utiliza imagem de animais para fazer críticas à violência praticada pelos hooligans e pela polícia

argentina. Assim, podemos concluir que a nova arte urbana tem uma forte verve crítica, com

obras de grande sensibilidade social e também voltadas para as transformações de linguagem. A

arte urbana deixa transparecer seu próprio caráter filosófico, intelectual e analítico, que

aproxima o artista do estudioso social, traz em si o potencial da transgressão e resistência. São

inúmeras as imagens nas ruas de São Paulo e Buenos Aires, cujos autores não conseguimos

identificar, que retratam grandes questões políticas e sociais.

Essas características implicam em refletirmos sobre história e atualidade. Qual seria a relação

das experiências artísticas dos anos 1960 e 70, extremamente politizadas, com a atualidade?

Afinal, apesar de serem épocas e estilos consolidados, “[...] impõe-se a necessidade de se

reconhecerem sinais que ainda vigoram, assim como suas ressonâncias, e até dissonâncias, em

Page 191: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

191

obras realizadas vinte ou trinta anos depois” (CANONGIA, 2005, p. 9). Se atentarmos para as

características formais e éticas dessas experiências históricas podemos identificar um fluxo de

passagem daquele momento para o da arte urbana atual, como já foi apontado no Capítulo II.

Da mesma forma como as neovanguardas paulistanas e portenhas se estenderam ao urbano,

entendendo-o como fluxo de atividades e informações, espaço político de oposição à

mercantilização e à autonomia da arte, a nova arte urbana destas localidades, principalmente,

por meio dos exemplos da arte ativista apontados aqui, propõe-se a efeitos semelhantes,

ressignificando o cotidiano e não fazendo deste apenas representação, mas operando nele com

ações que interrompem o fluxo da vida programada. É o que podemos ver, por exemplo, na

estreita ligação afetiva entre os integrantes do grupo Contra Filé e as crianças moradoras de rua

em São Paulo.

Isso também pode ser encontrado no projeto Jardim Mirian Arte Club (JAMAC), de Mônica

Nador, um work in progress voltado para a transformação micro social diária por meio do

encanto estético, isto é, pelo fazer constante de imagens. Assim, pensar na nova arte urbana

requer considerar estes pares: ética-estética, artista-obra e arte-vida, como afirma Chaia (2007)

ao analisar a obra de Nador e sua posição na história:

De forma geral, posturas desse tipo pontuam a história da arte; entretanto, a arte contemporânea vem ampliando a importância dessas ideias, tornando-as fundamentos da prática artística na atualidade e trazendo a política para dentro do cotidiano. Assim, a arte é compreendida como forma de resistência nucleada no artista e na obra, gerando valores estéticos e políticos para confrontar poderes centralizadores ou micropoderes. Resistências artísticas identificam-se com resistências políticas. Do dadaísmo e de Marcel Duchamp ao Grupo Fluxus; da vanguarda russa ao teatro de Grotowski e de Hélio Oiticica a Lygia Clark, passando pela Nova Objetividade, até alcançar alguns artistas contemporâneos brasileiros, estão presentes as tendências que unem arte, resistência e vida. Estes artistas e movimentos esgarçaram as fronteiras da arte, conjugando-a com o cotidiano e a história e com isso abriram explicitamente os seus limites permitindo a entrada da política. (CHAIA, 2007, ps. 29 e 30)

Como afirmado anteriormente, há também na nova arte urbana uma intensa participação

democrática de vários atores nos processos artísticos, o que se intensificou nos anos 1990 com

a instauração do coletivismo como um sistema de colaboração sistemático e organizado, como

se pode ver nas semelhanças entre as metodologias estabelecidas pelos grupos elencados neste

trabalho, que também trocam informações entre si. Não encontramos o mesmo processo em

outros momentos da história. Como aponta Mesquita (2008, p.50):

Page 192: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

192

Artistas se associam continuamente por amizade ou pela vontade de trabalhar juntos. No mundo da arte, a prática coletiva mais consagrada remete aos casais como Christo e Jeanne-Claude e Gilbert&George. No entanto, a proliferação de duplas, trios, quartetos, times, grupos de afinidade, células ativistas, coalizões temporárias, comunidades pelo ciberespaço [...] são como uma resposta colaborativa a condições históricas específicas [...]

Uma peculiaridade também foi notada durante nossas pesquisas de campo. Em Buenos Aires,

há um número muito maior de pinturas em muros e fachadas com conteúdo político explícito

do que São Paulo. Algumas imagens revelam a influência da tradição muralista mexicana, além

das linguagens em estilo realista social que marcaram a segunda fase do modernismo latino-

americano.

3.4.4 Por um olhar latino-americano

Toda essa condição política nos remete à importância de frisar as especificidades da arte

latino-americana frente ao contexto mundial. Comparar as características da nova arte urbana

em São Paulo e Buenos Aires com o que vem ocorrendo em capitais dos países desenvolvidos

seria tópico de outro estudo. Entretanto, é possível lembrar brevemente que com esse estudo já

Figura 72: Realismo

social presente até

hoje nas ruas de

Buenos Aires (2012).

Fonte: Sandro Monari.

Page 193: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

193

é possível vislumbrar a singularidade de nossa história no que diz respeito à relação da arte com

a cidade. Exemplos únicos, como o de Marta Minujín, ainda extremamente ativa; ou de artistas

como OsGêmeos, com uma obra que se destaca por seu extremo vigor plástico, e muitos outros,

evocam a complexidade que vem marcando os processos da Teoria, da Crítica e da História da

Arte, nem sempre sincrônicos com a geopolítica.

Quando falamos em noção de “arte latino-americana” não quer dizer que há uma arte latino-

americana, mas sim uma problemática comum aos países da região. “Entre o universal e o

individual existe uma multiplicidade de matizes, de escalas, cabe à sociologia da arte investigar

as condições de produção de cada uma das matrizes” (GLUSBERG, 1978, p.65, tradução nossa).

Esse trabalho apenas pontua essas questões, aprofundá-las é objeto para outro estudo.

Podemos, por exemplo, sugerir hipóteses já levantadas como a de nossa tendência ao uso de

recursos reduzidos devido às nossas condições materiais limitadas, entre outros fatores

existenciais e subjetivos, como apontou Morais (1975, p. 32):

Enquanto europeus e norte-americanos usam “computers” e raios “lazers”, nós brasileiros (Oiticica, Antônio Manoel, Cildo Meireles, Lygia Pape, Lygia Clark, Barrio, Vergara, etc.) trabalhamos com terra, areia, borra de café, papelão de embalagens, jornal, folhas de bananeira, capim, cordões, borracha, água, pedra, restos, enfim, com os detritos da sociedade consumista.

O autor explica que nos aproximamos também da Arte Povera e da Arte Conceitual por meio

de uma “estética do lixo”, herdeira da arte de detritos (merz) de Kurt Schwitters, que empilhou

entulhos fazendo arte a partir de tudo o que achava na rua. Lembremos ainda que é na

arquitetura das favelas, na Mangueira, que Oiticica foi encontrar a maior fonte de sua

inventividade. Hoje, a arte está sendo feita não apenas inspirada na favela, mas na favela, como

mostra o grupo Contra Filé. Também não está sendo inspirada em temas políticos, mas

mudando o curso da história, como faz o GAC ao obter resultados reais de seus escrachos aos

culpados pelas atrocidades da ditadura argentina.

Também notamos na bibliografia (especialmente nos livros importados sobre a arte urbana

mundial) que parece haver em países europeus e nos Estados Unidos um número maior de

artistas urbanos que utilizam técnicas e materiais mais caros do que aqueles utilizados pelos

artistas brasileiros e portenhos. Pode ser uma suposição, também a ser comprovada em outro

estudo. Entretanto, achamos um ponto curioso, mais um exemplo profícuo de nosso

Page 194: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

194

pioneirismo. Trata-se da influência do trabalho das artistas Lygia Clark e Lygia Pape sobre a obra

atual de Lucy Orta, uma das mais importantes artistas urbanas da cena internacional, que utiliza

materiais complexos e cuja obra necessita de produção em grande escala, uma vez que envolve

muitas pessoas. Nascida na Inglaterra e sediada em Paris, Lucy iniciou sua trajetória no clima da

guerra fria, considerando a cidade como espaço vital para a atividade artística. Um de seus

trabalhos mais relevantes é Nexus Architecture (Figura 73), que é uma estrutura vestível

coletiva, composta por uniformes interligados, que podem ser usados por poucas ou centenas

de pessoas. É reinventado em diversas ocasiões e remete às possibilidades de ainda existir

sentimentos de coletividade diante da crescente solidão nas grandes cidades. Como afirma

Pinto (2003, p. 32): “Orta opera em um plano onde ética e estética se encontram, dividindo o

mesmo território. E a rígida divisão separando estas disciplinas não é a única a ser questionada

em sua prática: fashion design, arquitetura, teatro, planejamento urbano e as artes visuais são

evocados simultaneamente”. Apesar dessas diferenças (Lygia não estava evocando apenas

cultura de massa e sim propósitos psicanalíticos), as imagens a seguir mostram as similaridades

entre os objetos relacionais de Lygia Clark (Figura 74), a obra “Divisor” (Figura 75), de Lygia

Pape, e as vestimentas de Lucy.

Figura 73: Nexus Architecture (Sydney, 1998), de Lucy Orta. Fonte:

BOURRIAUD, Nicolas; DAMIANOVIC, Maia; PINTO, Roberto. Lucy Orta. New

York: Phaidon, 2003.

Page 195: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

195

3.4.5 Cidade: lugar da materialização da arte

Na arte contemporânea, a apropriação de objetos do cotidiano, o corpo como suporte e o

campo ético-político substituem o campo estético da contemplação, que esteve por muitos

séculos vinculado à beleza canonizada nos parâmetros clássicos (tanto no Renascimento como

na arte nazista [BOURRIAUD, 2009a, p.87]), a partir de noções como equilíbrio, proporção,

simetria. Assim, um dos princípios elementares é tratar a arte urbana a partir de sua natureza

Figura 74: Lygia Clark, O eu e o tu,

1967/68. Fonte: DUARTE, Paulo

Sergio. Anos 60: transformações na

arte no Brasil. Rio de Janeiro:

Campos Gerais, 1998, p. 8.

Figura 75: Lygia Pape, Divisor, 1968.

Fonte: DUARTE, Paulo Sergio. Anos

60: transformações na arte no Brasil.

Rio de Janeiro: Campos Gerais, 1998,

p. 240.

Page 196: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

196

buscadora de sentidos. A arte contemporânea não tem mais como eixo motor a “tradição do

novo” proposta pelas vanguardas e neovanguardas, mas sim a busca do sentido, operação esta

que se dá a partir da negociação constante entre vida e arte, arte e vida. Isto é, “[...] a prática

artística passa a assumir-se como um projeto de negociação incessante com os acontecimentos

e as percepções da vida [...]” (CANTON, 2007, p.23). Tratam-se de projetos em que os contornos

são fluidos, buscam-se identidades, alteridades, corpos, relações entre ética e estética,

evocação de memórias pessoais, demarcação de lugares de resistência, tudo isso em busca de

um sentido de pertencimento em um mundo onde a virtualidade é uma constante.

Entretanto, há um debate extremamente importante a ser levantado a respeito da arte

urbana, que trata-se da questão da desmaterialização da arte. Tema recorrente no debate

cultural contemporâneo, a “desmaterialização” é entendida aqui a partir do conceito de

“incorporais” proposto pela teórica Cauquelin (2008) 125. Expliquemos. A autora mostra que há

uma confusão generalizada sobre a questão da “desmaterialização” da arte, que geralmente

apresenta-se com um sentido de desmaterialização completa, possibilidade que somente seria

possível na arte digital, esta sim, completamente “incorporal”. Para a autora, desmaterialização

é um processo que se deflagra com os artistas estadunidenses nos anos 1960, que renunciam ao

objeto de arte único, classificado como gênero autônomo e valendo por si mesmo, segundo a

tradição histórica. Ao surgir um interesse pela minimização dessas características -

principalmente em função do relacionamento das artes visuais com outras atividades, como a

dança, o teatro, as performances, a música, além do próprio cotidiano – os artistas contribuem

para fazer desaparecer todas as marcas de “grande arte”, da arte monumental, de identificação

dos autores, dos gêneros e dos objetos enquanto arte em si. “Limpe-se a cena da arte, abre-se o

espaço” (CAUQUELIN, 2008, p. 62).

Ao analisar o Minimalismo, por exemplo, a autora mostra que uma ambiguidade maior pesa

sobre o termo desmaterialização. Assim, não se trata de: “[...] praticar uma atividade artística

que dispensaria os materiais; os materiais estão bem lá: toneladas de terra, de aço, de madeira,

125

Cauquelin fala da questão da aura debatida por Walter Benjamin, dos rumos da arte para o campo da

comunicação, e os aspectos positivos decorrentes da perda da autenticidade de objeto único, ligado a uma arte

apegada ao criador, ao rito, ao valor de culto e ao gênio. Para Benjamin, explica a autora, o ritual cedeu o lugar

ao político. E isso tem reverberações na arte urbana: “Com efeito, o debate sempre ardoroso entre partidários do

sítio specific e do context, ou place site, abandonou parcialmente a cena político-ética e se deslocou para o

urbano em geral. Não são mais os ‘lugares’ como os museus, galerias ou lugares predeterminados na cidade ou

os desertos que estão em causa, mas o deslocamento em si, portador, com as novas tecnologias, de outra

concepção dos lugares e dos vazios, concepção que só pode ser abordada em termos de suportes móveis e de

incorporeidade” (CAUQUELIN, 2008, p. 73).

Page 197: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

197

de suportes os mais diversos. Chega até a haver no minimalismo rebuscado uma espécie de

gigantismo [...]”. E esclarece: “[...] minimizar e desmaterializar são operações políticas, culturais,

decorrentes da exploração das obras e do sistema de vendas, bem como do princípio de

separação dos gêneros, mas não das matérias utilizadas no trabalho artístico” (CAUQUELIN,

2008, p. 63). A autora atenta para as contradições deste movimento que, apesar de rejeitar a

arte das galerias e das exposições tradicionais, não conseguiu impor sua regra, já que a cena da

arte continua baseada em ingredientes habituais, sofrendo ainda uma nítida inflação das

mediações culturais (CAUQUELIN, 2008, p. 69).

Assim, a ideia de desmaterialização da arte proposta pela autora leva à conclusão de que a

arte urbana padece dos mesmos efeitos da desmaterialização na arte em geral. Isto é, ao

mesmo tempo em que toma para si a posição política de ir contra o sistema artístico com uma

arte aparentemente efêmera e não vendável (como as ações e a pintura mural), acaba

incluindo-se neste sistema, seja por meio da documentação exposta em espaços

institucionalizados ou da transferência de obras para os locais expositivos (a mídia tem

noticiado constantemente episódios em que muros com grafite são arrancados de seus locais de

origem para ir a leilão). Há, inclusive, uma continuação da mesma tendência inaugurada com a

modernidade de se incorporar os artistas ao ofício extra-artístico, principalmente, à área do

desenho gráfico. 126 Não estamos emitindo aqui um valor de juízo a respeito desses fatos (como

qualquer outro profissional, os artistas precisam ser remunerados pelo seu trabalho), mas sim

estabelecendo um debate acerca do conceito de desmaterialização em torno do qual já se

estabeleceram muitas confusões teóricas. Portanto, frisamos que a arte urbana apresenta esta

característica de desmaterialização proposta por Cauquelin enquanto proposta que renuncia ao

objeto de arte único (independentemente de alguns de seus artistas terem suas obras nas

galerias), porém, acima de tudo, acreditamos, como essa autora, que a nova arte urbana

apresenta um aspecto de concretude extremamente significativo, graças a sua relação

presencial com o espaço real, o lugar, a cidade:

O sítio onde se encontra uma obra que lhe é manifesta e intencionalmente consagrada é, de acordo com o que nós sabemos dos incorporais, um lugar. Ele contém um objeto, um corpo, a obra. Enquanto tal, ele é para si mesmo sua própria galeria ou museu. Uma obra ‘in-situ’ produz o lugar que ela mesma ocupa e se confunde com ele. Essa vinculação a define enquanto “obra site

126

A autora conta que Warhol desenhava sapatos para uma revista de moda, Rosenquist era publicitário,

Lichtenstein design de moda e Oldenburg ilustrador de jornais (CAUQUELIN, 2008, p. 31).

Page 198: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

198

specific”. Portanto, o que importa para a definição não é o sítio que teria uma especificidade notável, nem tampouco a obra, mas o vínculo entre os dois. O vazio parece ausente desse dispositivo, no qual só aparecem o fixo, o propósito confesso, a finalidade programada, o lugar ocupado por um corpo. (CAUQUELIN, 2008, p. 74)

3.4.6 Arte urbana e comunicação: a realidade como matéria-prima

O estreitamento entre arte e comunicação também é visível na nova arte urbana. Ele surge na

arte do pós-guerra, principalmente, a partir da Art Pop e de sua relação com os signos do

consumo de massa, passando pelas neovanguardas latino-americanas, como no caso dos

outdoors utilizados pelo artista Nelson Leirner, e incorpora-se ao repertório da arte ativista de

hoje como fonte iconográfica e técnica de representação. No caso de grupos como GAC e BijaRi

essas referências estão ainda mais ligadas ao repertório urbano, a partir da linguagem da cidade

expressa em placas, mapas, cartazes e sinalização de trânsito.

É a partir dessas informações que os artistas trabalharão com estratégias de síntese formal,

que anteriormente eram predominantes apenas no sistema comunicativo geral, como afirma

Santaella (2005, p. 42): “Embora estejam interessados em imagens que capturem o olhar e

estimulem a atenção do receptor, os designers das mídias sabem que a mensagem deve ser

simples para não criar problemas de compreensão e não exigir o dispêndio de muito esforço”.

Arte e cultura passaram então a fomentar um sistema de “intertextualidade”, como “[...] uma

malha de textos que se citam uns aos outros” (SANTAELLA, 2005, p. 48). Isso pode ser visto na

operação reversa que Eduardo Srur propõe na série Atentado (2004), vídeo que registra o

artista explodindo bombas de tinta sobre outdoors na cidade de São Paulo. Os ataques, além de

uma crítica à especulação publicitária, são interferências estéticas, já que as cores e as imagens

são previamente combinadas. As ações, sempre feitas de forma clandestina, são uma resposta

ao bombardeio visual da mídia na paisagem urbana.

Como visto anteriormente, um símbolo urbano também foi peça chave na intervenção

“Monumento à Catraca Invisível – Programa para Descatracalização da Própria Vida,

Junho/2004”, do grupo Contra Filé, que trabalhou a ideia de que signos resgatam

questionamentos nas subjetividades das pessoas, por meio de sinais que criam empatia e

compartilhamento, gerando vínculos. Essa disputa se deu no plano simbólico e intersubjetivo,

assim a catraca apareceu como signo máximo da restrição da passagem de pessoas, e enfim, da

Page 199: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

199

vida; lembrando ainda a ideia de sentido único e de monitoramento por meio das diversas

“catracas”, visíveis e invisíveis, que delimitam e restringem a circulação dos cidadãos.

Em relação ao uso das palavras, tão marcante ainda no grafite latino-americano e em

experiências como nos cartazes do grupo BijaRi e GAC, esta é uma característica que pontua

todo o percurso da história da arte em momentos com características peculiares. Sobretudo,

podemos acompanhar essa “característica simbólica da palavra” (MORLEY, 2003), desde o

Renascimento, passando pelos cartazes de Henri de Toulouse-Lautrec, pelas vanguardas

(colagens cubistas, quadros de René Magritte, e de Fernand Léger), no pós-guerra (por exemplo,

o quadro “Trophy 1”, de Robert Rauschenberg, de 1959; ou ainda os trabalhos conceituais de

Lawrence Weiner, de 1970, como “Earth to Earth Ashes to Ashes Dust to Dust”), etc. Ao dizer

que nós lemos imagens da mesma forma como palavras, Morley (2003) afirma ser esta

operação uma ofensiva contra todas as formas de pensamento fundamentalista, já que a

relação entre imagem e palavra promove a ambiguidade e a indeterminação contra os códigos

padrões, provocando um turbilhão semiótico que pressiona a plácida superfície da linguagem.

Sobretudo, devemos destacar aqui a ênfase da arte urbana na escolha de seus modos e

códigos de comunicação que, no caso dos artistas ativistas citados, se revela de forma coerente

com seu contexto urbano. Trata-se de uma arte feita na cidade a partir dos próprios códigos

visuais presentes em seu tecido, o que revela ainda a tendência geral do estabelecimento de

vínculos entre arte e realidade, neste caso, o próprio envolvimento dos signos desenvolvidos

pela área do desenho gráfico e apropriados pela linguagem estética. Objetos são recursos

recorrentes entre os artistas ativistas, como as garrafas e perfumes para aliviar a consciência.

Esta operação nos leva de volta ao tema das relações entre arte e vida, isto é, em que ponto

estas esferas se unem e se distanciam, como no caso da linguagem estética e do design gráfico.

Como afirma Vattimo (1996, p. 48): “Creio ser fácil mostrar que a história da pintura, ou,

melhor, das artes visuais, e a história da poesia destas últimas décadas não têm sentido se não

postas em relação com o mundo das imagens da mídia ou com a linguagem desse mesmo

mundo”. Ao enfatizar a noção de realidade como matéria-prima da arte contemporânea, Millet

(1997) afirma que o real já não fornece modelos de representação, são as representações em si,

as obras do imaginário, que se imprimem no real. Assim, este conceito é basilar para o

entendimento da noção proposta aqui de “cidade-suporte”, sendo o suporte parte intrínseca da

obra, aquele que nos revela a inseparabilidade entre forma e conteúdo. Entretanto, a autora

também alerta para o perigo de idealização desta relação, como apontou na história da arte

Page 200: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

200

contemporânea e seu caminho rumo ao estreitamento duvidoso, utópico e falho entre arte e

realidade. Sobre a função da arte, ela explica que um objeto artístico tem uma especificidade, é

dialético, expõe as ideias dos artistas. Portanto, evitando que os gestos do artista se dispersem

na totalidade do real, o objeto deve se adicionar ao mundo como um elemento a mais e não se

fundir a ele. Como afirma a autora:

Felizmente, todas as ligações que a arte contemporânea estabelece com o real não se querem tão radicais. Novas gerações de artistas compreendem os riscos que comportam certas utopias [...] Se permanecem ligados a determinadas características de vanguarda, já não é com a ambição de transformar o mundo, mas como vimos, com a intenção mais conciliadora de contribuir, por exemplo, para a melhoria do ambiente urbano ou de criar novas condições de comunicação entre as pessoas. (MILLET, 1997, p. 116)

Há ainda outros cuidados a serem tomados nesta operação, como complementa a autora:

“No entanto, eles também correm um risco. Não o de constranger o real, mas o de serem

constrangidos. Muitas obras não são senão o cumprimento do caderno de encargos de uma

encomenda pública ou ainda a resposta à solicitação de um comissário de exposição.”

(MILLET, 1997, p. 116). Para ilustrar esta questão, podemos citar novamente a intervenção

“Monumento à Catraca Invisível”, do grupo Contra Filé, cuja ideia de contestação (que foi

aderida, inclusive, por movimentos sociais que utilizaram a catraca como símbolo e

queimaram uma catraca em um protesto) acabou sendo incorporada pelo sistema. A

intervenção teve grande repercussão na mídia, e seu impacto foi ampliado quando a Fuvest

definiu o “Programa para Descatracalização da Própria Vida” como tema da redação da

prova de português. Logo depois, o banco Itaú também se apropriou da ideia da

descatracalização em suas propagandas.

3.4.7 A natureza “relacional” da arte urbana

O termo “relacional” é emprestado aqui da teoria da “estética relacional” proposta por

Bourriaud (2009a). Apesar de estar destinado a determinado tipo de prática artística, e não

exatamente às experiências selecionadas para este trabalho, o termo apresenta características

extremamente pertinentes ao contexto da arte urbana contemporânea, já que foi destinado a

descrever uma arte que tem funções interativas, conviviais e relacionais. Para o autor, “arte

relacional” se define como: “Uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações

Page 201: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

201

humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e

privado” (BOURRIAUD, 2009a, p. 19). Enfim, a arte sempre foi relacional em algum nível, como o

próprio autor afirmou. E isso pode ser constatado em um nível ainda mais expressivo no caso da

arte urbana contemporânea. A arte com características relacionais é uma inversão radical dos

postulados políticos, estéticos e culturais da arte moderna. Em termos sociológicos, deriva do

nascimento de uma cultura urbana mundial e de um modelo citadino empregado em todos os

fenômenos culturais. E se:

[...] por muito tempo, a obra de arte pôde ostentar um ar de luxo senhorial nesse contexto citadino [...] a mudança da função e do modo de apresentação das obras mostra uma urbanização crescente da experiência artística. O que está desaparecendo sob nossos olhos é apenas essa concepção falsamente aristocrática da disposição das obras de arte, ligada ao sentimento de adquirir um território. (BOURRIAUD, 2009a, p. 20)

O coletivo Contra Filé, por exemplo, com a obra “Parque para brincar e pensar”, mostra como

a arte pode se transformar em uma “utopia da proximidade” (BOURRIAUD, 2009a, p. 13), em

um mundo condicionado à uniformização dos comportamentos, à reificação das relações, à

mecanização do cotidiano. A aproximação entre as esferas sociológica, pedagógica (a partir dos

pressupostos de Paulo Freire) e artística revela que as junções entre arte e vida continuam

presentes no debate estético contemporâneo. O projeto se inicia com uma mínima previsão, e

ganha extensões imprevistas por meio da estratégia da montagem inicial de um “grupo

multiplicador”, constituído pelos integrantes do Contrafilé, por Monica Nador e Mauro

(importante liderança comunitária e colaborador do JAMAC), pelo músico Cássio Martins e por

jovens arquitetos da FAU, recém-formados ou ainda universitários, integrantes do grupo EPA!.

Aos poucos, juntaram-se ao projeto ativistas, arquitetos, paisagistas que se interessaram em

colaborar com o processo voluntariamente, contribuindo com os mutirões e com conceitos, e

com suas competências profissionais específicas.

Em “A Rebelião das Crianças”, o grupo extrapola ainda mais as noções de estética ativista

rumando para o embate direto com os cidadãos e o espaço da cidade. A partir da imagem

divulgada na mídia a respeito de rebeliões na FEBEM que mostravam garotos e garotas como

“marginais”, “internos”, “bandidos”, o grupo passou a questionar o que significava aquele

processo, partindo depois para a criação de situações metafóricas, que significavam (MUSSI,

2012, p. 108): criar pontes entre diferentes mundos e associar o que está sendo dito/vivido a

Page 202: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

202

algo já vivido por todos; estabelecer um parâmetro para o diálogo, um ponto de convergência

entre as pessoas que compõem um grupo; mais que “metáforas” provocar o desenvolvimento

real de uma ação. Assim, diversas ações da “Rebelião das Crianças”, como as realizadas em São

Paulo, transportaram a ideia de “criança de rua” para a de “criança na rua”, por meio de

brincadeiras, colocação de balanços em viadutos e lanches coletivos. Procurou-se, assim,

romper a ideia de confinamento, um dos grandes temas debatidos pelo grupo; um

confinamento em relação ao contato humano; à experiência pública, que atravessa a

subjetividade de cada um até chegar ao social como um todo, tendo a cidade como palco. A

esses espaços de controle, que desvirtuam o vínculo social, a atividade artística responde de

forma a tentar “[...] efetuar ligações modestas, abrir algumas passagens obstruídas, pôr em

contato níveis de realidade apartados” (BOURRIAUD, 2009a, p. 11).

Estes vínculos são estabelecidos não apenas na sociedade em si, por meio de seus cidadãos-

participantes da obra de arte, mas entre os próprios grupos artísticos e intelectuais vinculados a

estes, como mostrou a realização do projeto Zona de Ação (citado anteriormente), cujas vozes,

então confinadas em seus espaços, passaram a dialogar e transformar o diálogo em ação,

configurando por excelência o caráter relacional de sua atuação. Esta atitude relacional se dá

também pelo que Rolnik (2006, p. 3) chama de “corpo vibrátil”, esta segunda capacidade de

nossos órgãos dos sentidos em seu conjunto: “É nosso corpo como um todo que tem este poder

de vibração às forças do mundo. Entre a vibratibilidade do corpo e sua capacidade de percepção

há uma relação paradoxal, já que se trata de modos de apreensão da realidade que obedecem a

lógicas totalmente distintas e irredutíveis”.

Desta maneira, a nova arte urbana oferece uma oportunidade para habitar melhor o mundo;

diferentemente das gerações anteriores, a arte não pretende mais atingir realidades utópicas,

mas sim “[...] constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente,

qualquer que seja a escala escolhida pelo artista” (BOURRIAUD, 2009a, p. 18). Na escala urbana,

estas práticas só se realizam a partir de suas ações relacionais; sem a relação com o outro elas

simplesmente não existem. Qual seria o sentido que as obras artístico-arquitetônicas

construídas por Marta Minujín teriam se não fossem derrubadas e consumidas pelos cidadãos?

Morais (1975, p. 30) lembra que Minujín costumava dizer que o melhor environment* era a

rua, com sua simultaneidade de acontecimentos e ações. O crítico utiliza o termo “arte

vivencial” para definir uma arte como essa, que propõe uma vivência tendo o espaço da cidade

por excelência. Se observarmos a operação que o artista paulistano Alexandre Orión propõe na

Page 203: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

203

série Metabiótica - fotografar momentos de interação entre as pessoas e seus grafites – vemos

a confirmação de uma “arte vivencial” e ainda de outro conceito, o de “arte permutacional”

(MORAIS, 1975), que necessita da intervenção do espectador para se tornar obra.

Em todo o novo grafite paulistano e portenho podemos identificar esta relação; as cidades se

tornaram verdadeiros museus a céu aberto, onde em cada esquina podem ser encontradas

manifestações visuais das mais diversas nuances. Elas estão ali, disponíveis a qualquer um que

queira observá-las livremente, apagá-las ou ainda interagir, como é comum no novo grafite, no

qual ocorre constantemente a sobreposição de obras. Não há aura ou sacralidade que resista,

como neste painel de um dos mais famosos artistas internacionais, o italiano Blu, feito em

Buenos Aires e que sofreu a intervenção de um grafiteiro anônimo (Figura 76).

Morais (1975) faz um alerta para que as instituições se adaptem a este estado de coisas, em

um exercício poético de como seria um museu pós-moderno, um “museu-vida”, um “museu-

liberdade”:

A cidade é a extensão natural do museu de arte. É na rua, onde o “meio formal” é mais ativo, que ocorrem as experiências fundamentais do homem. Ou o museu de arte leva à rua suas atividades “museológicas”, integrando-se ao cotidiano e fazendo da cidade (a rua, o aterro, a praça ou o parque, os veículos de comunicação de massa) sua extensão natural, ou ele será um quisto. Mais que acervo, mais que prédio, o Museu de Arte Pós-Moderna é ação criadora – um propositor de situações artísticas que se multiplicam no espaço-tempo da cidade. Expor unicamente é tarefa estática e acadêmica. Atuando sem limites ‘geográficos’ o objetivo do museu é tornar-se invisível. A problemática da arte de rua (happenings, earth-works, arte póvera, arte conceitual, etc.) não será matéria estranha ao Museu de Arte Pós-Moderna. Se a arte está cada vez mais do lado de fora, se a cidade é o museu, o Museu de Arte Pós-Moderna precisará atuar no espaço urbano (e rural se necessário) não só propondo atividades criadoras, como, e, principalmente modificando sua própria forma de atuação. As visitas guiadas às exposições e acervo, por exemplo, poderão ser transformadas em expedições na cidade, buscando-se com isso uma integração com o próprio fluir incessante da vida diária. (MORAIS, 1975, P. 60)

Page 204: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

204

Figura 76: Obra de Blu (cabeças com as faixas em cores argentinas), que sofreu

interferência de outro grafiteiro (mulher de cabelos vermelhos e sapo). Buenos

Aires, 2012. Fonte: Sandro Monari.

Page 205: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

205

CONCLUSÃO – “MUSEU É O MUNDO”

Ao tratar das questões sobre o suposto fim da arte e da história da arte, Danto (2008, p. 580)

afirma que em vez de perguntarmos “O que é arte?”, deveríamos perguntar “Quais são as obras

de arte?” ou ainda “Quais são os traços essenciais da arte?”. Essas duas últimas perguntas

foram fundamentais para a formulação das seguintes hipóteses nesse trabalho: “Quais são as

obras de arte urbana? Quais são os traços essenciais dessa arte? Ao analisarmos a nova arte

urbana feita em São Paulo e Buenos Aires, acreditamos ter encontrado as respostas para essas

suposições, chegando assim a uma tese: a de que a arte urbana é uma expressão legítima,

pertencente ao campo das artes visuais contemporâneas. Isto é, a partir de um histórico

coerente e articulado com os conceitos mais importantes e suas respectivas nomenclaturas,

verificamos os paralelismos identificáveis entre os rumos da arte em geral e a arte urbana.

Propusemos que a arte urbana é, sobretudo, um processo histórico, cujas particularidades

latino-americanas também são identificáveis e concluímos que a arte urbana contemporânea se

tornou uma expressão estética autêntica, cuja presença cada vez mais significativa nas cidades

latino-americanas revela a força de sua linguagem. Com esta pesquisa, procuramos fazer um

exercício epistemológico a respeito das problemáticas conjunturais da arte contemporânea,

identificando as mesmas relações na arte urbana. De forma geral, admitimos que a nova arte

urbana, com todas as características híbridas que lhes são pertinentes, deve ser entendida a

partir das discussões em torno da ideia do fim da arte e da história da arte, que marca o

pensamento de autores como Danto (1997), Belting (2006) e Vattimo (1996). Entretanto,

Vattimo (1996) alerta para o cuidado que se deve ter com a obstinação generalizada de pensar a

arte a partir do tema da morte da arte, que pode se tornar uma cômoda e simplista escapatória.

Ele utiliza, inclusive, com frequência o termo “ocaso” no lugar de “morte”. E, mais uma vez,

enfatizamos que, mais do que falar em “morte da arte”, é preciso falar em fim de certas

narrativas sobre a arte, discussão que está na raiz do debate sobre a “crise na arte

contemporânea”, como sinaliza Danto (1997, p. 26).

Bourriaud (2009a) aponta que o mal entendido geral sobre o estatuto da arte contemporânea

hoje (e destacamos aqui, o da arte urbana também) se deve a uma falha do discurso teórico; e

que as práticas contemporâneas se mantêm ilegíveis por serem analisadas a partir de

problemas colocados pelas gerações anteriores, especialmente aqueles colocados pelas

Page 206: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

206

neovanguardas. É por esse motivo que tentamos estabelecer algumas dessas diferenças, como

fizemos entre as neovanguardas e a nova arte ativista portenha e paulistana.

Esse esforço em iluminar as particularidades da nova arte urbana vai ao encontro do que

declarou Bourriaud (2009a, p. 19): “Nada mais absurdo do que afirmar que a arte

contemporânea não apresenta nenhum projeto cultural ou político [...]”. Portanto, descobrir os

verdadeiros interesses da arte contemporânea, suas relações com a sociedade, história e

cultura, é tarefa primordial para criarmos um ponto de apoio conceitual neste “momento pós-

histórico da arte” (DANTO, 1997, p.7.), em que a pluralidade e a liberdade envolvem-se em um

movimento entrópico. E foi essa a nossa tentativa em relação à nova arte urbana.

Procuramos diferenciar, diante da quase onipresença da cultura de massa na

contemporaneidade, as fronteiras que separam o grafite de origem hip hop do novo grafite,

revelando como artistas portenhos e paulistanos conseguiram saltar de sua matriz vinculada a

uma cultura popular e massiva (sem menosprezá-la 127) para a realização de poéticas coerentes

e programáticas. Levantamos que, do ponto de vista histórico, o novo grafite surge em meio ao

panorama de valorização da arte gestual e cromática característica da chamada Geração 80.

Mostramos que é possível responder afirmativamente às seguintes perguntas: “Será que ainda

é possível estabelecer, pelo menos em termos conceituais, uma diferença clara entre arte e

cultura de massa? Haveria algum significado propriamente filosófico nesta distinção?” (FREITAS,

2008, p. 16). A autora, que estabelece uma ponte entre o pensamento de Adorno e a arte

contemporânea, lembra que aquele filósofo não acreditava na autonomia da obra e sua

desconexão com o real; o que ele queria era uma imbricação entre estes dois territórios (real e

imaginário); o que acreditamos ainda ser válido no caso da nova arte urbana portenha e

paulistana, como demonstramos ao abordar os aspectos de sua materialidade enquanto

experiência artística. Como afirma Dewey (2010), a arte está ligada a uma experiência concreta,

à forma, à matéria; ela não nos conduz a uma experiência. Ela “Constitui uma experiência”

(2010, p. 184).

Não se trata de fazer uma apologia simplória da arte urbana como solução para todos os

problemas enfrentados pela arte contemporânea. Entretanto, as corajosas experiências

127

Ao traçar um profundo histórico das relações entre cultura cultivada e cultura popular e seus espaços de

disseminação, como, por exemplo, nas sociedades pré-capitalistas (quando a cultura popular é transmitida a

todos, informalmente em lugares públicos, como tabernas, mercados, igrejas, praças); e a cultura cultivada, em

latim, em lugares específicos (a escola, universidade, bibliotecas), Santos nos lembra que a periferia é um

“centro de poder extra-artístico” (SANTOS, 1994, p. 110).

Page 207: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

207

estéticas que tomam as ruas de São Paulo e Buenos Aires nos mostram que essa arte se revela,

acima de tudo, como uma experiência física e real na “cidade-suporte”. Neste sentido, achamos

feliz o encontro do termo “suporte”, que nos remete de forma direta a essa materialidade da

nova arte urbana. Isto é, cidades reais e imaginadas - São Paulo e Buenos Aires - onde

acontecem obras reais, mesmo que efêmeras ou impalpáveis. Aos “não-lugares” mostrados logo

no início deste trabalho, essas cidades se materializam por meio da intensa atividade artística.

Trata-se de um movimento cíclico, como no sistema “imaginário-real-imaginário” apontado por

Silva (2010, p. 18).

Assim, a nova arte urbana enfrenta a questão das novas dimensões da cultura visual como um

todo. Se o crescimento das redes virtuais e da espetacularização do cotidiano nos leva a pensar

sobre a possibilidade de um colapso da experiência física e coletiva da cidade, a arte urbana nos

oferece uma contraproposta. Diante da era digital, com seus espaços multidimensionais,

fragmentários e abstratos, que coloca novos problemas para a percepção e a representação,

essas experiências artísticas respondem com a possibilidade de um “[...] reordenamento do

espaço urbano e da sua observação pelo observador passante [...]” (PEIXOTO, 2007, p. 172).

Hoje, a arte urbana pode apresentar respostas através de um novo domínio sensorial do espaço,

da experiência física e da observação ocular, mesmo diante do fato de que na

contemporaneidade “A experiência fenomenológica do sujeito individual não coincide mais com

o lugar onde ela se dá” (PEIXOTO, 2007, p.172).

A arte pode trazer o sujeito para viver a experiência da cidade real e imaginária. Quando

ocorre no espaço urbano, exatamente no local onde as pessoas vivem e trabalham, vemos esta

experiência fenomenológica realmente ocorrer. E, além desse aspecto existencialista,

acreditamos na arte urbana como um ato político. Como afirma Chaia (2007, p. 39):

Pensar o artista como um resistente, paradoxalmente, permite retomar a ideia de que “toda arte é política” - no sentido de prática artística, individual ou de grupo, afetando o espaço coletivo -, ao supor que a ação e a proposta do artista portam intencionalidades voltadas a processos de transformações, internos ou externos ao sujeito. O modernismo e a contemporaneidade ampliam o potencial dessa ideia quando se opõem à permanência e à conservação das condições subjetivas e sociais e intentam a ação tanto no espaço urbano quanto na área artística.

Mesmo adentrando na discussão aprofundada e complexa sobre as relações entre arte

Page 208: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

208

urbana e espaços legitimadores, como fizemos neste trabalho, ainda acreditamos no

potencial da rua como expressão criativa e transformadora. Afinal, estamos falando de uma

arte feita nas ruas, mesmo considerando que, em muitos casos, ela tenha entrado para os

espaços oficializadores, como o museu e a galeria, o que quando ocorre, na maioria das

vezes, faz esta linguagem perder alguns de seus aspectos intrínsecos. Mesquita (2008)

definiu como “criar diretamente” para descrever uma arte que está além do museu. Afinal,

apresentamos modelos emblemáticos, como o caso do GAC, cujos integrantes, depois de

participarem da 50ª Bienal de Veneza, em 2003, desistiram de voltar a eventos institucionais

deste porte. Se há ainda elos a serem estabelecidos entre esses jovens artistas e nossas

neovanguardas, que aqui o faça Hélio Oiticica, um dos mais importantes artistas brasileiros a

invadir as ruas com uma arte criada diretamente para o coletivo: “Museu é o mundo; é a

experiência cotidiana: os grandes pavilhões para mostras industriais são os que ainda

servem para tais manifestações: para obras que necessitem abrigo, porque as que disso não

necessitarem devem mesmo ficar nos parques, terrenos baldios da cidade” 128.

Pensamento este que pode ser compartilhado por Merleau-Ponty (2013, p. 92), do qual

tiramos a epígrafe desta tese:

O museu, transformando tentativas em “obras”, torna possível uma história da pintura. [...] O museu acrescenta um falso prestígio ao verdadeiro valor das obras ao separá-las dos acasos em cujo meio nasceram, e ao fazer-nos acreditar que desde sempre a mão do artista foi guiada por fatalidades. Enquanto o estilo vivia em cada pintor como a pulsação de seu coração e justamente o tornava capaz de reconhecer qualquer outro esforço além do seu, o museu converte essa historicidade secreta, pudica, não deliberativa, involuntária, viva enfim, em história oficial e pomposa. A iminência de uma regressão dá a nossa amizade por determinado pintor um matiz patético que lhe era alheio. Quanto a ele, trabalhou uma vida inteira de homem – quanto a nós, vemos a sua obra como flores à beira de um precipício. O museu torna os pintores tão misteriosos para nós como os polvos e as lagostas. Obras que nasceram no calor de uma vida são por ele transformadas em prodígios de outro mundo, e o alento que as mantinha não é mais, na atmosfera pensativa do museu e sob os vidros protetores, do que uma fraca palpitação em superfície. O museu mata a veemência da pintura como a biblioteca, dizia Sartre, transforma em “mensagens” escritos que antes foram gestos de um homem. É a historicidade da morte. E há uma historicidade da vida, da qual ele oferece apenas a imagem diminuída: aquela que habita o pintor no trabalho, quando ata num único gesto a tradição que ele retoma e a tradição que ele funda [...]

128

Escritos do artista Hélio Oiticica. IN: COCCHIARALE, Fernando; OITICICA, César Filho. Hélio Oiticica:

museu é o mundo. São Paulo: Itaú Cultural, 2010, p. 21. Catalog.

Page 209: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

209

Foi exatamente esta sensação que experimentamos ao encontrar grafiteiros trabalhando na

rua durante nossas pesquisas de campo. Nessas ocasiões, tivemos a impressão de que ali estava

ocorrendo uma história viva que, retratada sobre muros, permaneceria ali, registrada e sempre

presente na vida das pessoas que habitam as cidades. Como afirma Canton (2009, p. 43): “[...] o

grafite propõe, acima de tudo, uma experiência de estética e fluidez, por ser a arte do

movimento, que se modifica junto com o dia a dia da cidade”.

Freitas (2008), ao falar sobre as ideias de Adorno a respeito de como a realidade oprime o ser

humano, e que a cultura de massa nada mais é do que uma cultura narcísica, mostra como os

indivíduos se espelham nesta cultura de forma ilusória, fazendo-os sentir-se pertencentes à

sociedade. A irracionalidade artística acaba sendo mais verdadeira do que a racionalidade da

vida cotidiana. O prazer da arte está neste descortinar do véu que cobre nossa individualidade

concreta, revelando nosso eu mais verdadeiro e profundo. Com a arte urbana, esse descortinar

pode ser um prazer diário, em nossos caminhos mais prosaicos. Por isso acreditamos que a arte

urbana é real e ao mesmo tempo utópica. Um paradoxo que resume sua razão de ser arte.

FIM

Page 210: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

210

GLOSSÁRIO

Anti-arte – Segundo o Diccionario Del Arte Actual (1982, p. 10), o termo tem origem com o

movimento dadaísta, empenhado em acabar com a contradição entre a práxis da vida e a

estética, o que influenciou mais tarde o happening e os environments, que buscam a

aproximação entre arte e vida.

Arte ambiente ou arte ambiental – Segundo a Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais

(verbete, 351), o termo é bastante amplo e flexível. Passou a ser utilizado pela crítica a partir

da década de 1970. Não se trata de um movimento artístico particular, mas sinaliza uma

tendência da arte contemporânea de se voltar para o espaço - incorporando-o à obra ou

transformando-o -, seja ele o espaço da galeria, o ambiente natural ou as áreas urbanas.

Arte ativista – Processos artísticos, em sua maioria coletivos e também frequentemente

realizados no ambiente urbano, em que há uma ligação direta e proposital com o ativismo

político. Cada vez mais crescente em países no mundo todo, as preocupações destes artistas

são apartidárias e focam-se, sobretudo, na crítica ao sistema capitalista. Com linguagens

experimentais e híbridas, suas práticas ocorrem por meio de ações em diversos meios, como

na internet, no espaço urbano, e até mesmo em espaços oficiais do circuito artístico. O

termo tem relevância específica para este trabalho, pois define a atuação dos coletivos de

arte de Buenos Aires e São Paulo selecionados para serem analisados como estudo de caso.

Os artistas ativistas podem ser considerados agentes ativos e indutores de experiências, que

se utilizam de diversos programas, como abordagens midiáticas e ações efêmeras. Segundo

Mesquita (2008, p. 47), o que diferencia a arte política da arte ativista é o fato de que a

primeira representa oposição enquanto a segunda produz instâncias de oposição. Mesquita

(2008, p. 49) afirma: “Arte ativista, engajada ou intervencionista, é muito mais do que um

gênero que carrega exemplos de ‘anomalias curiosas’, úteis somente para enriquecer o

velho cânone da história da arte. Arte ativista, passada de coletivo a coletivo, de movimento

para movimento, propõe a escrita de uma ‘contra-história’ para uma cultura de oposição”.

Arte pública - Segundo Fidelis (2006, p.20), desde os anos de 1960, obras contemporâneas

têm sido comissionadas para espaços que permitem acesso público e, por essa razão,

chamadas de “arte pública”. Entretanto, é preciso lembrar, segundo este autor, que essa

atribuição foi dada a uma determinada categoria de objetos artísticos sem que houvesse

garantia de que tais obras estivessem situadas em um espaço que é efetivamente público, já

que esse espaço, em última instância, é mediado pelas tensões e disputas dos diversos

poderes públicos e privados que agem sobre ele. O termo entrou para o vocabulário da

crítica de arte na década 1970, paralelamente às principais políticas de financiamento para a

arte em espaços públicos, como o National Endowment for the Arts (NEA) e o General

Services Administration (GSA), nos Estados Unidos, e o Arts Council na Grã-Bretanha. Diante

da discussão acerca dos conceitos de “espaço público” versus “espaço privado” no primeiro

capítulo deste trabalho, defende-se aqui a inadequação do termo arte pública, achando-se

mais conveniente utilizar o termo “arte urbana” para definir, de forma geral e

independentemente da linguagem utilizada, a arte destinada a espaços abertos na cidade,

Page 211: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

211

ainda que se possa lançar mão da mesma terminologia para designar a arte feita em espaços

fechados, porém de acesso público, como aeroportos, terminais rodoviários, etc. Portanto,

fazemos referências ao termo “arte pública” para comentar os monumentos públicos com

caráter oficial e legitimador com origem oitocentista, e lançamos mão de exemplos de

artistas modernos, como Rodin e Brancusi, que criaram monumentos cujas características

desestabilizaram as noções formais clássicas. Curiosamente, localizamos o uso do termo

“arte pública” por Michael Archer, importante crítico da arte contemporânea e muito

utilizado aqui neste trabalho.

Arte marginal – Segundo o Guia Enciclopédico da Arte Moderna – Estilos, Escolas e

Movimentos (2003, p. 180), o termo é utilizado com frequência em relação ao termo “arte

bruta” e tem uma aplicação mais ampla para designar arte feita por aqueles que estão à

margem do sistema artístico. Passou a ser utilizado após a publicação do livro Outsider Art,

do crítico Roger Cardinal, em 1972. “Cardinal procurava um rótulo (outsider) que pudesse

enfatizar mais a independência criativa da pessoa do que seu status social ou mental

marginal”. Exemplos: Palais Idéal, situado em Hauterives (França), iniciado em 1879, pelo

carteiro Le Facteur Cheval (1836-1924), terminado 33 anos depois. Foi local de peregrinação

para muitos surrealistas. E as Torres Watts, situadas em Los Angeles (1921-54) erigidas pelo

pedreiro Simon Rodia (1879-1965), com aço e cimento colorido. Foi fonte de inspiração para

artistas do Assemblage.

Arte de rua – Termo com conotação muito ampla e, muitas vezes, utilizado como referência

a qualquer linguagem artística, como a cênica e musical. Por isso, sua versão em português é

descartada aqui por sua generalização. Também é amplamente usado pela mídia ao se

referir de forma genérica a obras de artes visuais feitas em espaços abertos da cidade. É

interessante notar usos semelhantes em espanhol e inglês (arte callejero e street art,

respectivamente). Porém, na Argentina o termo arte callejero está fortemente associado ao

que se conhece no Brasil como o grafite. Esta informação foi coletada durante tour realizado

por esta pesquisadora com o apoio da equipe da entidade Graffiti Mundo

(http://graffitimundo.com), que também informou que o termo grafite na Argentina é

utilizado para definir o que no Brasil é mais conhecido como pichação.

Arte de sistemas – Termo cunhado pelo pensador argentino Jorge Glusberg para definir a

produção artística da década de 1970 pautada por “[...] interdisciplinaridade, a aproximação

com o cotidiano e a valoração do processo artístico, frente ao objeto acabado [...]” (FREIRE,

2012, p. 27, vol. II).

Arte sociológica – O termo foi cunhado por Hervé Fischer (Paris, 1941), juntamente com

Fred Forest (Argélia, 1933) e Jean-Paul Thénot (França, 1943), que fundaram o Coletivo Arte

Sociológica em 1974, na França. Em quatro manifestos, o grupo explica os pormenores de

sua proposta: uma nova sensibilidade aos processos artísticos, que deveriam estreitar seus

vínculos com a sociedade, levando-se em conta os processos de comunicação de massa. O

coletivo pretendia aproximar a experimentação artística da teoria sociológica, propondo

métodos de aproximação coletiva. Como prática ativa no campo sociológico, esta arte é

politicamente comprometida, esteticamente crítica e socialmente pedagógica. No terceiro

manifesto, afirma Fischer: “A prática da arte sociológica substitui as finalidades afirmativas e

Page 212: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

212

estéticas tradicionais da arte pelos objetivos ligados à transformação das atitudes

ideológicas, no sentido de uma tomada de consciência da alienação social. Não se trata de

propor novos modelos de organização social, mas de exercer o poder dialético de um

questionamento crítico. Esta conscientização deve permitir, nos momentos de ruptura do

sistema social (crises das estruturas econômicas e burocráticas), fazer valer os

questionamentos fundamentais capazes de orientar os passos daqueles que querem

transformar as relações sociais. Esse é o nosso projeto deliberado” (apud FREIRE, 2012, p.

36).

Arte urbana – Termo utilizado neste trabalho para definir toda e qualquer arte destinada ao

espaço da cidade, independentemente da linguagem utilizada, e sempre de livre acesso ao

público em geral, independentemente do seu grau de interação. Usamos “nova arte urbana”

para frisar os processos ocorridos no momento mais atual.

Assemblage – Segundo o Dicionário Oxford de Arte (2001, p. 32), o termo foi cunhado na

década de 1950 pelo artista Jean Dubuffet para definir obras elaboradas a partir de materiais

naturais ou fabricados, como o lixo doméstico. Ganhou uso corrente com a exposição The

Art of Assemblage, realizada no Moma, Nova York, em 1961. É utilizado de forma mais

genérica, como para fotomontagens.

Body Art/Action Art – Segundo o Dictionary of Art and Artists (1991, p. 9), o termo foi

utilizado em manifestações artísticas no final dos anos 1960, fazendo uso do corpo, ou

fazendo referências ao mesmo, também envolvendo ações em performances públicas.

Segundo a Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais (verbete 3177), muitas vezes esta arte

está associada à violência, à dor e ao esforço físico. Pode ser citado, entre inúmeros outros

exemplos, o Rubbing Piece (1970), encenado em Nova York, por Vito Acconci (1940), em que

o artista esfrega o próprio braço até produzir uma ferida.

Empaquetage – Segundo o Diccionario Del Arte Actual (1982, p. 85), trata-se de uma

denominação para o processo artístico de empacotar, introduzido por Man Ray nos anos

1920 e levado a dimensões superlativas por Christo e Jeanne-Claude que, nos anos 1970,

começaram a empacotar automóveis e edifícios.

Environment – Segundo o Diccionario Del Arte Actual (1982, p. 86), termo destinado à obra

de arte que se converte em parte de uma situação ambiental, criada para envolver o

espectador, inserindo-o na configuração artística. Pode evocar as capacidades sensoriais

como o tato, audição, olfato e visão por meio diversos. Pode evocar situações mais

provocativas, como na obra de Kienholz, ou mais gélidas, como os espaços criados por

George Segal.

Grafite – Fenômeno cultural urbano marcado principalmente pelo uso da tinta spray para a impressão de palavras ou imagens, ou ambas concomitantemente, em muros das cidades. Surge a partir da segunda metade do século XX. Estas primeiras inscrições têm sido descritas por vários estudiosos por meio do uso do termo graffiti, cuja origem grega da palavra se refere à utilização do carbono como material utilizado na Antiguidade. Kozak (2004, p.21) explica que a palavra graffiti (de origem italiana e plural de “grafito”) tem sido utilizada em dicionários e enciclopédias no século XIX para definir todo tipo de inscrições não autorizadas em espaços

Page 213: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

213

públicos não concebidos para tal fim. Portanto, trata-se de um termo moderno que (segundo autores como Joan Gari, Jesús de Diego, e Lélia Gándara) reconhecem etimologicamente a raiz do verbo grego “graphein”, utilizado para “escrever”, “desenhar”, “rabiscar”, e que chegou ao italiano como “graffiare”. O termo também é proveniente do italiano “sgraffito” para definir as primeiras inscrições que utilizaram a técnica de incisão com algum elemento cortante sobre uma superfície dura para deixar um vestígio. Já Silva (1988) sustenta a versão da expressão italiana “graffito”, derivada do grego “graphis”, que designa o carbono natural, muito utilizado em escrituras antigas (e, claro, atualmente em materiais modernos como o lápis). Kozak (2006, p. 25) lembra que há várias características que dão uma continuidade de estilos entre os grafites da Antiguidade greco-romana e os contemporâneos, como o caráter paródico. O epigrama (composição breve de tom satírico) é um estilo diretamente derivativo dos antigos grafites. Ela cita como exemplo atual na Argentina frases como: “El dólar no baja, se agacha para tomar impulso” ou “Unos nacen com suerte, otros en Argentina”. Outra característica seria o diálogo ou contestação entre as inscrições. Cita, por exemplo: “Perros no ensuciar”. Resposta: “Boludo. Los perros no leen”. Apesar de o material ter mudado com o tempo (carbono, pintura, incisão, spray etc.), o termo permaneceu, salvo apenas às variações linguísticas de cada país. Assim, neste trabalho será considerado o termo “grafite”, versão em português, para definir manifestações sobre muros, fachadas, postes (entre outros equipamentos urbanos), que podem ou não misturar imagens e palavras. Esta seria a característica primordial destes primeiros grafites que, ao longo da história, irão se desdobrar em outras variações até chegar-se à formação do que chamamos de “novo grafite”, isto é, o grafite contemporâneo feito com intenções contestatórias ou não; com ou sem autorização prévia; a partir de técnicas diversas e pelos mais variados agentes (artistas com formação universitária, jovens de periferia, por exemplo).

Happening – Segundo o Dicionário Oxford de Arte (2001, p. 247), é uma forma de

apresentação feita geralmente com planejamento cuidadoso, mas sempre incorporando

algum elemento espontâneo. Geralmente, incorpora teatro e artes visuais. O termo foi

cunhado por Allan Kaprow, em 1959, como um desenvolvimento da assemblage* e da arte

ambiental. Diferentemente destas modalidades (mais estáticas), o happening foi idealizado

como um evento não necessariamente realizado em espaços fechados ou institucionais.

Além de Kaprow, os primeiros happenings contaram com os artistas John Cage (músico), Jim

Dine, Claes Oldenburg, Robert Rauschenberg, Roy Lichtenstein e Joseph Beuys. Atualmente,

tem sido utilizado para definir uma série de expressões artísticas, mas que geralmente

mantêm o status conceitual original, que se refere à espontaneidade, participação do

espectador, e realização em locais não institucionais. Como afirmou o artista e pensador

argentino Roberto Jacoby em texto de 1967 (apud LONGONI, 2011, p. 75): “O happening,

portanto, é uma ‘obra aberta’ já que abre literalmente as relações de tempo e espaço e os

diferentes materiais com que trabalha”. Para ARCHER (2001, p. 28), o happening nos Estados

Unidos sinalizou a ampliação dos gestos do Expressionismo Abstrato para o ambiente. A

maior representação disso é a utilização do pigmento azul do artista Yves Klein (International

Klein Blue) em modelos nuas que carimbavam seus corpos sobre superfícies para compor a

série Anthropométries. Ainda segundo Archer (2001, p. 116), a “antiarte” dos artistas do

Fluxus, incluindo aí Beuys, visava reconectar a arte com a vida numa sentindo plenamente

político.

Page 214: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

214

Instalação - A ideia de “instalação”, cujas sementes foram lançadas ainda no modernismo

por Kurt Schwitters, com sua Merzbau, entra em voga nos anos 1960 como uma linguagem

que utiliza diversos recursos, compondo um ambiente que pode ser percorrido pelo

espectador, ou seja, o espectador interage com a obra. Do inglês “installation”, vem do

verbo “to install” (instalar): “Diferentemente dos earthworks, é inicialmente focada nos

espaços artísticos institucionais e espaços públicos que poderiam ser alterados através de

uma ‘instalação’. Instalar é um processo que deve acontecer no momento em que a

exposição é montada”, detalha Suderburg (2000, p. 4, tradução nossa). Como afirma Archer

(1994, p.30, tradução nossa): “Desde então, a difundida adoção da instalação como método

da produção artística levou a uma situação na qual se buscou rapidamente a adoção de

modos não convencionais.” Ainda segundo Archer (1994, p. 34, tradução nossa), nos anos

1960, “[...] a ideia da obra de arte como um ambiente foi elaborada a partir do fato básico

de que o espectador deveria, mais do que olhar a obra, habitá-la como habita o mundo”.

Intervenção urbana – Termo largamente empregado na arte contemporânea, a

“intervenção urbana” define uma arte feita diretamente em locais abertos na cidade.

Land art (ou Earth art) – Segundo o Guia Enciclopédico da Arte Moderna – Estilos, Escolas e

Movimentos (2003, ps. 261-262), estes termos sinônimos surgiram nos Estados Unidos no

final dos anos 1960 como uma das muitas correntes que expandiram as fronteiras da arte

quanto a seus materiais e espaços físicos. A Land Art assumiu o meio ambiente como

material e espaço de criação, evocando o desejo de preservação ecológica. Firmou-se como

movimento graças à exposição Earth Works organizada por Robert Smithson, que incluía a

documentação fotográfica dos projetos, tais como “Caixa em um buraco” (1968), de Sol

Lewitt, que se tratava do enterro de uma caixa de metal na terra, em Bergeyk, Holanda; e

“Desenho com uma milha de comprimento” (1968) de Walter de Maria, duas linhas

perpendiculares desenhadas com giz no deserto de Mojava, na Califórnia. Artistas que se

comprometeram com o espaço urbano, como Christo e Jeanne-Claude, também fizeram

earthworks, como o “Litoral Embrulhado – Um milhão de pés quadrados”, em Little Bay,

Austrália (1969). Segundo o Dicionário Oxford de Arte (2010), uma das mais famosas

iniciativas neste estilo foi a “Plataforma Espiral”, de Robert Smithson (1970), gigantesco

caracol de terra e pedras construído sobre o Great Salt Lake, em Utah, Estados Unidos.

Muralismo - O termo, geralmente, refere-se à pintura mexicana da primeira metade do

século XX, de caráter realista e monumental. Entretanto, alguns autores utilizam as

terminologias “pintura muralista” ou “mural” ou “muralismo” para definir, em contextos

mais generalistas e técnicos, “[...] uma forma de arte realizada com técnicas diversas, mas

sempre sobre paredes, superfícies de madeira ou tela nelas fixadas, pressupondo-se grandes

dimensões e a expressão do pensamento do artista sobre seu tempo e suas crenças. A partir

das antigas civilizações, sua colocação fica estreitamente ligada à arquitetura, pois o mural a

complementa e, de maneira geral, destina-se a ter caráter de mensagem para o público ao

qual se destina. Está, pois, intimamente voltado para a comunicação com o maior número

de pessoas: espécie de ponte entre a arte e o público” (TUPYNAMBÁ, 2013, p.13). Uma das

principais referências bibliográficas no Brasil, o Dicionário Crítico da Pintura no Brasil, de

Page 215: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

215

José Roberto Teixeira Leite (primeira edição de 1988), define como pintura mural uma das

grandes subdivisões da pintura, sendo oposta à pintura de cavalete. Encontramos o termo

“novo muralismo” utilizado de forma genérica para falar de pintura sobre muros ou grafite.

Também encontramos o termo “muralismo urbano” para definir a obra de artistas plásticos

que, nos anos, 1980, pintaram muros de edifícios, como Ivan Freitas, Roberto Magalhães,

Tomie Ohtake, Aluísio Carvão e Glauco Rodrigues (LEITE, 1988). Segundo o Dictionary of Art

and Artists (1991, p. 237), “Pintura Mural” é aquela feita em muros ou paredes, seja

diretamente sobre a superfície, como o afresco, ou em um painel construído para uma

posição permanente; ou ainda um tipo de decoração arquitetônica na qual pode-se ou

explorar as características flat de uma superfície ou criar um efeito em uma nova área

espacial.

Novo grafite – Termo que escolhemos para descrever os desdobramentos do fenômeno do

grafite na arte contemporânea. Os artistas do novo grafite utilizam principalmente os muros

e fachadas de construções na cidade como suporte para pinturas, sejam eles autodidatas,

provenientes da cultura do grafite hip-hop, porém que passaram a desenvolver estéticas

próprias e bem elaboradas; ou artistas com formação oficial. Defendemos aqui que se trata

de uma expressão artística legítima e validada no campo da arte contemporânea. Apesar de

encontrar na internet o uso do termo “pós-grafite” para definir esse novo grafite não

encontramos referências mais aprofundadas a respeito da mesma nomenclatura.

Performance – Segundo o Dicionário Oxford de Arte (2001, p. 404), trata-se de uma forma

de arte que combina elementos do teatro, da música e das artes visuais. Tem relação com o

happening (os dois termos às vezes são usados como sinônimos), mas difere deste por ser

em geral mais cuidadosamente planejada e não envolver necessariamente a participação

dos espectadores.

Pixação - O termo “pixação” surge para definir de forma mais sistemática movimento que

ganha força nos anos 1980, em São Paulo. É nesta década e precisamente na capital

paulistana que a grafia “pixação” (em vez de pichação) passa a ser utilizada para denominar

a “[...] atuação de indivíduos e gangues, grafando seus nomes, fazendo uso de símbolos,

pseudônimos e logotipos [...]” (LASSALA, 2010, p. 53). Grande parte dos pichadores são

jovens que, oriundos principalmente das periferias de São Paulo, ocupam “[...] muros e

prédios da cidade, com escritos de grupos e nomes, normalmente feitos com tinta spray ou

rolo de espuma usado com tinta látex e letras grandes, angulares e bem características [...]”

(LASSALA, 2010, p.54). Apesar de terem códigos de difícil entendimento da população em

geral, o que descaracterizaria sua manifestação como de cunho ideológica, eles promovem

por meio da deterioração do patrimônio arquitetônico um movimento sistemático de

protesto, por meio de uma mensagem constante e não declarada de que a cidade não lhes

pertence. Uma de suas características mais marcantes estes grupos é a ocupação de locais

de difícil acesso, como o topo de edifícios, o que muitas vezes levam estes jovens a correrem

risco de morte.

Site-oriented - Com a abertura cada vez maior da arte, que passa se relacionar de forma

ainda mais sistemática com o mundo real e com o cotidiano nas últimas décadas, Kwon

(2000, p. 44) fala no termo arte “site-oriented” para definir uma arte que está além do

Page 216: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

216

espaço físico e intelectual institucionalizado, que trata de questões ativistas (como a

ecologia, e as questões de gênero), e da cultura de forma expansiva, o que inclui espaços

públicos como espaços de fruição estética e política, além de disciplinas que não pertenciam

anteriormente à esfera artística. Diferentemente dos modelos anteriores de “site-specific”,

não há mais a necessidade de um local definido como pré-condição; mas este pode ser

gerado pelo trabalho, e ainda comprovado por um discurso estético. É quando ocorre, por

exemplo, de se utilizar um espaço onde ocorre determinada operação estética, lançando-se

mão depois de outro espaço para a recepção da obra. São espaços estéticos contíguos,

porém fisicamente separados, como na obra “On Tropical Nature”, do artista Mark Dion, na

qual diversos espaços são utilizados concomitantemente. Depois de acampar durante três

semanas próximo à nascente do Rio Orinoco, na Venezuela, o artista levou amostras de

insetos, vegetação, entre outros, para serem expostos em uma galeria em Caracas. Revela-

se, assim, uma tendência de desenraizamento do local para se dar vez ao fluido e virtual. As

instâncias do site-oriented definidas por Kwon (2000) são as seguintes: fenomenológico,

social/institucional ou discursivo, e elas podem se interpenetrar em uma mesma obra.

Site-specific (ou site work) – Segundo o Guia Enciclopédico da Arte Moderna – Estilos,

Escolas e Movimentos (2003, ps. 263- 266), as obras site-specific: “Exploram o contexto

físico em que estão inseridas, sejam galerias, praças, alto de colinas, etc. A obra não é mais

considerada um monumento, mas um meio de transformar o lugar, com ênfase em projetos

colaborativos, que unem artistas, arquitetos, patrocinadores e público. Surgi a partir da

tendência de se tirar a arte dos museus e galerias, com iniciativas como as do grupo Fluxos, a

Arte Conceitual e a Earth art. Ao longo dos anos 1960, o termo foi utilizado para descrever as

obras dos Minimalistas, dos Earth artistas e dos artistas conceituais.” Portanto, o site-

specific é uma obra criada para existir em um determinado espaço, integrando-se a ele.

Como afirma o artista paulistano Nazareno por ocasião de exposição realizada com o

propósito de discutir projetos de grande escala (durante a feira ArtRio 2013): "O meu

processo criativo de um site-specific envolve minha relação de contato com o local a ser

trabalhado. Esse espaço, muitas vezes, ativa soluções em ideias já pré-concebidas, podendo

ainda ser o deflagrador de novas ideias". (Disponível em:

http://br.blouinartinfo.com/news/story/955798/pensando-grande-artrio-2013-chama-

atencao-para-obras-de-grande. Acesso em: 22 fev. 2014)

Sítio - Peixoto (2004, p. 14) fornece uma noção mais ampla para a ideia de sítio enquanto

local de interação com a arte: “Trata-se de tirar as obras das instituições culturais, dos

circuitos de exibição estabelecidos, dos padrões convencionais de classificação, e levá-las a

um diálogo mais amplo. Não tomar as obras isoladamente, mas como intervenções em um

espaço mais complexo. Redefinir o lugar da obra de arte contemporânea, a partir de sua

integração com outras linguagens e outros suportes. Sítio que não é necessariamente uma

localização topográfica, mas o campo criado por estas articulações”.

Street-art – O termo tem sido utilizado com frequência na literatura especializada em língua

inglesa. Não encontramos uma definição com parâmetros acadêmicos para o termo. Mas ele

á amplamente empregado na mídia e em livros mais generalistas e catálogos de arte. Como

mostra Alonzo (2010, p.8, tradução nossa), a respeito dos artistas Basquiat e Haring: “Ambos

Page 217: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

217

utilizaram o espaço público como uma plataforma para exibir e disseminar sua arte, assim,

eles prepararam o terreno para o que é hoje conhecido como street art [...]”.

Subcultura – Segundo o Diccionario Del Arte Actual (1982, p. 190): Sistema de comunicação

de grupos que se situam à margem da formação cultural oficial. A este termo pertencem as

publicações triviais, os comics, o anúncio gráfico e foi de grande importância para a gênese

da Pop Art na Inglaterra. O termo tem sido utilizado de forma apropriada para definir

culturas jovens que se diferem por códigos e grupos em um campo de práticas culturais mais

amplas, são zonas que se constituem em espaço não complacente e com certo grau de

resistência ao sistema. Como afirma Kozak (2004, p. 41, tradução nossa): “[...] é preciso ter

em conta um recorte a partir de diferenças de gênero, classe, educação e local de residência.

Não existe uma única cultural juvenil em um período determinado. E já que é difícil dar

conta de uma cultura jovem, recorrer à ideia de subcultura parece mais apropriado”.

Page 218: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

218

REFERÊNCIAS129

ABOS, Márcia. Megazine. Pichadores que invadiram a última Bienal de São Paulo agora voltam para

debater a mais marginal das artes de rua. Site O Globo, 2010. Disponível em:

http://oglobo.globo.com/megazine/mat/2010/09/22/pichadores-que-invadiram-ultima-bienal-de-sao-

paulo-agora-voltam-para-debater-mais-marginal-das-artes-de-rua-921048120.asp)

ABREU, Simone Rocha de. Anos 60: Transformações no campo artístico e na arte na Argentina. ATAS VII -

ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE – UNICAMP, 2001. Disponível em

http://www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2011/Simone%20Rocha%20de%20Abreu.pdf

ADES, Dawn. Arte na América Latina. São Paulo: Cosac&Naif, 1997.

ALONSO, Rodrigo (curador). Sistemas, Acciones y Procesos (1965-1975). Buenos Aires: Fundación Proa,

2011. Catalog.

ALONZO, Pedro; SANROMÁN, Lucia. Viva la revolución: A dialogue with urban landscape. San Diego:

Museum of Contemporary Art San Diego/Gingko Press, 2010.

ALVES, José Francisco. Arte Pública: produção, público e teoria. In: ALVES, J.F. (org.). Experiências em

Arte Pública: Memória e Atualidade. Porto Alegre: Artfolio e Editora da Cidade, 2008, ps. 5-11.

AMARAL, Aracy. Arte Pública em São Paulo. In: MIRANDA, Danilo Santos de (org.). Arte Pública, São

Paulo: Sesc, 1998, ps. 46-53.

________. Arte para quê: a preocupação social na arte brasileira, 1939-1970. São Paulo: Nobel, 1984.

________. Textos do Trópico de Capricórnio – artigos e ensaios (1980-2005). Vol. 1. Modernismo, arte

moderna e o compromisso com o lugar. São Paulo: Editora 34, 2006.

________. et al. Waldemar Cordeiro: uma aventura da razão. São Paulo: Museu de Arte

Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1986.

129

De acordo com a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). NBR 6023.

Page 219: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

219

AMIGO, Roberto; DOLINKO, Silvia; ROSSI, Cristina. Palabra de artista – textos sobre arte argentino 1961-

1981. Buenos Aires: Fundación Espigas, 2010.

ARANTES, Otília Beatriz Fiori; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. A cidade do pensamento único. Rio

de Janeiro: Vozes, 2009.

________. Cultura e transformação urbana. In: PALLAMIN, Vera (org.). Cidade e Cultura: esfera

pública e transformação urbana. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

________. O Lugar da Arquitetura depois dos Modernos. São Paulo: Nobel/ Edusp, 1993.

________. Formas urbanas em mutação (entrevista). Revista Eptic Online, v.16, n.1, jan.-abr. 2014,

ps.58-67. Disponível em: http://www.seer.ufs.br/index.php/eptic/article/download/1861/1632.

Acessado em 8 mar. 2014

________. Urbanismo em fim de linha. São Paulo: Edusp, 1998.

________. A “virada cultural” do sistema das artes. In: CATANI, Afrânio et al (edit.). Margem

Esquerda: Ensaios Marxistas, v.6, ps. 62-75. São Paulo: Boitempo, 2005.

ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

________. Installation Art. Londres: Thames and Hudson, 1994.

ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus,

2007.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François

Rabelais. São Paulo-Brasília: Hucitec/Edunb, 1993.

Page 220: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

220

BATCHELOR, David. Minimalismo. São Paulo: Cosac & Naify, 1999.

BAUDRILLARD, Jean. A troca impossível. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

BAVA, Silvio Caccia. O urbanismo privatista e o direito à cidade: a cidade como mercadoria. Disponível

em https://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1464. Acessado em 09 mai. 2014.

BEARDSLEY, John. Art in Public Places: a survey of community-sponsored projects supported by The

National Endowment for the Arts. Washington: Partners for Livable Places, 1981.

BELLUZZO, Ana Maria M. Waldemar Cordeiro: uma aventura da razão. São Paulo: Museu de Arte

Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1986.

BELTING, Hans. O Fim da História da Arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: CosacNaify, 2006.

BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009a.

________. Pós-Produção: Como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes,

2009b.

________; DAMIANOVIC, Maia; PINTO, Roberto. Lucy Orta. New York: Phaidon, 2003.

BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: CosacNaify, 2008.

BIEBER, Alain. Urban Interventions: personal projects in public spaces. Berlim: Gestalten, 2010.

BOSSI, Lorena; et. al. Pensamientos, prácticas y acciones del GAC. Buenos Aires: Tinta Limón, 2009.

BRENSON, Michael. Perspectivas da Arte Pública. In: MIRANDA, Danilo Santos de (org.). Arte Pública, São

Paulo: Sesc, 1998, ps. 16-29.

BRETT, Guy. Um Salto Radical. In: DAWN, Ades. (org.). Arte na América Latina. São Paulo:

Cosac&Naif, 1997, ps. 253-283.

Page 221: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

221

________; OITICICA, Hélio; PEDROSA, Mario. Lygia Pape: gávea de tocaia. São Paulo: Cosac & Naif,

2000.

BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo:

Cosac & Naif, 1999.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de

Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1997.

________. Imaginários culturais da cidade: conhecimento/espetáculo/desconhecimento. In: TEIXEIRA,

Coelho (org.). A cultura pela cidade. São Paulo: Iluminuras, 2008, ps. 15-30.

CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São

Paulo: Studio Nobel, 2004.

CANONGIA, Ligia. O legado dos anos 60 e 70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

CANTON, Katia. Espaço e lugar. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

________. Os sentidos da arte contemporânea. In: PESSOA, Fernando/ CANTON, Katia (org.). Sentidos e

Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Associação Museu Ferroviário Vale do Rio Doce, 2007, ps. 22-29.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. São Paulo: Contexto, 2013.

CASANEGRA, Mercedes (coord.). Entre el silencio y la violência: arte contemporaneo argentino. Buenos

Aires: arteBA Fundación, 2004. Catalog.

CAUQUELIN, Anne. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

CAUQUELIN, Anne. Frequentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea. São

Paulo: Martins Fontes, 2008.

CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995.

________. A invenção do cotidiano – 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

Page 222: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

222

CHAIA, Miguel. Arte e política: situações. In: CHAIA, Miguel (org.). Arte e Política. Rio de Janeiro:

Azougue, 2007, ps. 13-39.

CHILVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

COCCHIARALE, Fernando. O espaço na arte contemporânea. In: PESSOA, Fernando/ CANTON, Katia

(org.). Sentidos e Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Associação Museu Ferroviário Vale do Rio Doce,

2007, ps. 180-190.

________; OITICICA, César Filho. Hélio Oiticica: museu é o mundo. São Paulo: Itaú Cultural, 2010.

Catalog.

CONTINI, Anita. Alternative sites and uncommon collaborators: the story of creative time. In: HARRIS,

Stacy; et al. Insights/On Sites – perspectives on Art in Public Places. Washington: Partners for Livable

Places, 1984, p. 39-47.

COTRIM, Cecilia/FERREIRA, Glória (org.). Escrito de Artistas – anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2006.

DANTO, Arthur C.. After the end of art: contemporary art and the pale of history. Princeton:

Princeton University Press, 1997.

_________. Arte e significado. In: GUINSBURG, Jorge; BARBOSA, Ana Mae (org.). O Pós-modernismo.

São Paulo: Perspectiva, 2008, ps. 579-590.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro:

Contraponto, 2006.

DEMPSEY, Amy. Guia Enciclopédico da Arte Moderna – Estilos, Escolas e Movimentos. São Paulo:

Cosac & Naify, 2003.

DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Page 223: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

223

DÍAZ, Amalia Ruiz. Murales de Asunción 1. Assunção: Fondec - Fondo Nacional de la Cultura y las Artes,

2004.

_________. Murales de Asunción 2. Assunção: Fondec - Fondo Nacional de la Cultura y las Artes, 2004.

DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.

DUARTE, Paulo Sergio. Anos 60: transformações na arte no Brasil. Rio de Janeiro: Campos Gerais, 1998.

________. Histórias da arte e do espaço: o projeto. In: ALVES, José Francisco (org.). Transformações do

Espaço Público. Porto Alegre: Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul, 2006.

FABRIS, Annateresa. Fragmentos urbanos: representações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 2000.

FARIAS, Agnaldo. São Paulo, ó quão dessemelhante! In: Cidades – 25ª Bienal de São Paulo Iconografias

Metropolitanas. Fundação Bienal de São Paulo, 2002, ps. 244-269. Catalog.

FARINA, Fernando. Arte Argentino Contemporaneo. Rosário: Museo de Arte Contemporáneo de

Rosario (Macro). 2004. Catalog.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova

Fronteira, 1980.

FIDELIS, Gaudêncio. A invenção da escala: apontamentos para determinar com maior precisão a

denominação “arte pública”. In: ALVES, José Francisco (org.). Transformações do Espaço Público. Porto

Alegre: Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul, 2006.

FIGUEIREDO, Luciano. Hélio Oiticica: obra e estratégia. Rio de Janeiro: RIOARTE/Museu de Arte

Moderna, 2002. Catalog.

FOSTER, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996.

FONSECA, Cristina. A poesia do acaso: na transversal da cidade. São Paulo: T.A. Queiroz, 1981.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

Page 224: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

224

FOX-TUCKER, Matt; ZAUITH, Guilherme. Textura Dos: Buenos Aires street art. Nova York: Mark Batty,

2010.

FRANÇA, José-Augusto. Oito ensaios sobre arte contemporânea. Porto: Publicações Europa-América,

1967.

FREIRE, Cristina. Além dos mapas: os monumentos no imaginário urbano contemporâneo. São Paulo:

Sesc/Annablume, 1997.

________. Apuntes sobre el arte subterrâneo em Lationoamérica. In: ALONSO, Rodrigo et al. Sistemas,

Acciones y Procesos (1965-1975). Buenos Aires: Fundación Proa, 2011. Catalog., ps-42-48.

________. Os Cidadãos. In: SILVA, Armando (edit.); GONÇALVES, Lisbeth Rebollo (coord.). São Paulo

Imaginado. Bogotá: Aguilar Altea/Taurus/Alfaguara, 2006.

________ (org.). Hérver Fischer no MAC USP: arte sociológica e conexões: arte-sociedade-arte-vida. São

Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2012.

________ (org.). “Não faço filosofia, senão vida”- Isidoro Valcárcel Medina no MAC USP: arte-sociedade-

arte-vida. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2012, v.II.

________; LONGONI, Ana (org.). Conceitualismos do Sul/Sur. São Paulo: AnnaBlume, 2009.

FREITAS, Verlaine. Adorno e a arte contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

GABLIK, Suzi. Has Modernism Failed? New York: Thames and Hudson, 1995.

GALARD, Jean. Ao lado da política: poderes e impoderes da arte. In: PESSOA, Fernando/ CANTON, Katia

(org.). Sentidos e Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Associação Museu Ferroviário Vale do Rio Doce,

2007, ps. 46-55.

GARCÍA, María Amalia. Recorridos urbanos de uma poética transnacional: lecturas sobre el desarrollo

de la abstracción en la Argentina. IN: BONDONE, Tomás et.al. Travesías de la imagem: historias de las

Page 225: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

225

artes visuales em la Argentina. Buenos Aires: Universidade Nacional de Tres de Febrero, 2012, ps. 301-

323.

GITAHY, Celso. O que é o grafite. São Paulo: Editora Brasiliense, 2002.

GIUNTA, Andrea. Destrucción-Creación en la vanguardia argentina del sesenta, Arte y política.

Mercados y violencia, en Razón y Revolución, n. 4, 1998, reedição eletrônica. Disponível em

http://www.razonyrevolucion.org/textos/revryr/arteyliteratura/ryr4Giunta.pdf. Acessado em: 02 mar.

2014.

GLUSBERG, Jorge. Retórica del arte latinoamericana. Buenos Aires: Nueva Visión, 1978.

GORELIK, Adrián. O romance do espaço público. Revista Arte e Ensaios, Programa de Pós-Graduação em

Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV-EBA-UFRJ), 2008.

Disponível em: http://www.ppgav.eba.ufrj.br/producao/arte-ensaios-17/. Acessado em: 24 fev. 2013.

GORELIK, Adrián. Miradas sobre Buenos Aires: historia cultural y crítica urbana. Buenos Aires: Siglo

XXI, 2013.

GREENBERG, Clement. Arte e cultura: ensaios críticos. São Paulo: Ática, 1996.

GUATTARI, Félix. Caosmose. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

HARRISON, Charles. Modernismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2000.

HOLLANDA, Heloísa Buarque. Cidade ou cidades?: uma pergunta à guisa de introdução. Revista do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, n. 23, 1994, ps. 15-20.

INDIJ, Guido. 1000 Stenil Argentina Graffiti. Buenos Aires: La Marca, 2011.

JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de

Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

Page 226: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

226

_________. Corpografias urbanas, Arquitextos, ano 08, fev. 2008. Disponível:

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165.

_________; JEUDY, Henri Pierre (org.). Corpos e cenários urbanos: territórios urbanos e políticas

culturais. Salvador: EDUFBA, 2006.

JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 1997.

KNAUSS, Paulo. Arte pública e direito à cidade: o encontro da arte com as favelas no Rio de Janeiro

contemporâneo. Revista Tempo e Argumento. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade do

Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 17 – 29, jan/jun 2009.

KOWARICK, Lúcio. Escritos urbanos. São Paulo: Editora 34, 2000.

KOZAK, Claudia. Contra La pared: sobre graffitis, pintadas y otras intervenciones urbanas. Buenos Aires:

Libros del Rojas, 2004

KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

KWON, James. The functional site; or, the transformation of site specificity. In: SUDERBURG, Erika et. al.

Space Site Intervention: situating installation art. Minnesota: University of Minnesota, 2000, ps. 23-37.

LACARRIEU, Mónica; PALLINI, Verónica. Buenos Aires imaginada. Buenos Aires: Secretaría de Cultura de

La Presidencia de La Nación, 2007.

LASSALA, Gustavo. Pichação não é pixação: uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas.

São Paulo: Altamira, 2010.

LEGG, Alicia (edit.). Sol Lewit. New York: The Museum of Modern Art, 1978, ps. 158, 159. Catalog.

LE GOFF, Jacques. Por Amor às Cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Unesp, 1998.

LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário Crítico da Pintura no Brasil. Rio de janeiro: Artlivre, 1988.

Page 227: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

227

LEITE, Rogério Proença. Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana

contemporânea. Campinas: Unicamp, 2007.

LEITE, Rui Moreira. Flávio de Carvalho: o artista total. São Paulo: Senac, 2008.

_________ (curadoria). Flávio de Carvalho. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2010.

Catalog.

LONGONI, Ana (edit.). El deseo nace del derrumbe: Roberto Jacoby acciones, conceptos, escritos.

Barcelona: La Central, 2011.

_________. La legitimación del arte politico. Revista Brumaria, 9, 2005. Disponível em

http://www.cpp.panoramafestival.com/la-legitimacion-del-arte-politico/. Acessado em 24 jul. 2014.

_________; MESTMAN, Mariano. Del Di Tella a “Tucumán Arde”: vanguarda artística y política en el 68

argentino. Buenos Aires: Eudeba, 2010.

_________; BRUZZONE, Gustavo (org.). El Siluetazo, Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008.

MACKENZIE, Stuart; NGUYEN, Patrick. Beyond the street – the 100 leading figures in urban art. Berlim:

Gestalten, 2010.

MAYER, Marc (ed.). Basquiat. Nova York: Brooklyn Museum, 2010.

MARTER, Joan M. The Grove Encyclopedia of American Art, Volume 1, 2001.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: CosacNaify, 2013.

MESQUITA, André Luiz Mesquita. Insurgências poéticas: arte ativista e ação coletiva (1990-2000). 2008,

429 f. Dissertação de mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São

Paulo. (FFLCH-USP). Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-03122008-

163436/pt-br.php.

McCORMICK, Carlo. Trespass: história da arte urbana não encomendada. Lisboa: Taschen, 2010.

Page 228: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

228

MILLET, Catherine. A arte contemporânea. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

MONGIN, Olivier. A condição urbana: a cidade na era da globalização. São Paulo: Estação Liberdade,

2009.

MORAIS, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

MORLEY, Simon. Writing on the wall: word and image in modern art. Los Angeles: University of

California Press, 2003.

MUSSI, Joana Zatz. O espaço como obra: ações, coletivos artísticos e cidade. 2012, 327 f. Dissertação

de mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

Disponível em: file:///C:/Users/Bem/Downloads/dissertacao_joanazm_original%20(1).pdf.

NORA, Pierre. Présentation. In: NORA, Pierre (org.). Les Lieux de Mémoire. Editions Gallimard: Vol. I,

Paris, 1984.

O`DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins

Fontes, 2007.

PALLAMIN, Vera. Arte Urbana - São Paulo Região Central (1945 - 1998): obras de caráter temporário

e permanente. São Paulo: Fapesp, 2000.

_________ (org.). Cidade e Cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Estação

Liberdade, 2002.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

PELLA, Jimena Ferreiro; VILLA, Javier. Marta Minujín: obras 1959-1989. Buenos Aires: Fundación

Eduardo F. Costantini, 2010.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Mapear novos territórios. In: PESSOA, Fernando/ CANTON, Katia (org.).

Sentidos e Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Associação Museu Ferroviário Vale do Rio Doce, 2007,

ps. 168-179.

Page 229: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

229

________. Paisagens urbanas. São Paulo: Senac, 2004.

PESSOA, Fernando. O[s] sentido [s] da arte contemporânea. In: PESSOA, Fernando/ CANTON, Katia

(org.). Sentidos e Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Associação Museu Ferroviário Vale do Rio Doce,

2007, ps. 12-21.

PONTUAL, Roberto. Explode geração! Rio de Janeiro: Avenir, 1985.

QUIJANO, Ana Martínez. Siqueiros: muralismo cine y revolucion. Buenos Aires: Larivière, 2010.

RAMA, Angel. A Cidade das Letras. São Paulo: Brasiliense, 1984.

RANGEL, Gabriela et. al. Desfazer o espaço. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2010.

Catalog.

READ, Herbert. Dictionary of Art and Artists. Londres: Thames and Hudson, 1991.

RIBEIRO, Marília Andrés. Arte e Política no Brasil: a atuação das neovanguardas nos anos 60, 1998,

ps.165- 178.

RICHARDSON, Brenda. Scott Burton. Baltimore: The Baltimore Museum of Art, 1987.

RIVITTI, Thais. Mônica Nador. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2010. Catalog.

ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem, 2006. Disponível em:

http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf. Acessado em 09 jan.

2014.

RUIZ, Maximiliano (org.). Nuevo Mundo: latin american street art. Bertlin: Gestalten, 2011.

SADER, EMIR (coord.). Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe. Rio de Janeiro:

Boitempo, 2006.

SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades para um mercado mundial. Chapecó: Argos, 2003.

SANTAELLA, Lucia. Por que as comunicações e as artes estão convergindo. São Paulo: Paulus, 2005.

Page 230: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

230

SANTOS, Fábio Lopes de Souza. As neovanguardas e a cidade. Atas II Encontro de História da Arte

(IFCH/UNICAMP),2006,ps.402-469.Disponível:

http://www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2006/SANTOS,%20Fabio%20Lopes%20de%20Souza%20-

%20IIEHA.pdf. Acessado em 09 abr. 2014.

SANTOS, Maria de Lourdes Lima. Cultura, aura e mercado. In: MELO, Alexandre. Arte e dinheiro.

Lisboa: Assírio & Alvim, 1994, ps. 99-134.

SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Studio Nobel, 2000.

SCHIMMEL, Paul. Only memory can carry it into the future: Kaprow’s Development from the Action-

Collages to the Happenings. In: MEYER-HERMANN, Eva et. al. Allan Kaprow: art as life. Los Angeles:

The Getty Research Institute, 2008, ps. 8-19.

SCOTT, Allen. The cultural economy of cities: essays on the geography of image-producing industries.

SAGE, 2000.

SENIE, Harriet. Arte pública nos Estados Unidos. In: MIRANDA, Danilo Santos de (org.). Arte Pública,

São Paulo: Sesc, 1998, ps. 34-45.

SILVA, Armando (org.). Cidades imaginadas iberoamericanas. São Paulo: USP MAC/Universidade

Externado de Colombia/ Sesc, 2010.

_________. Graffiti: una ciudad imaginada. Bogotá: Tercer Mundo, 1988.

_________. Imaginários urbanos. São Paulo: Perspectiva, 2011.

SILVA-e-SILVA, William. Graffitis em múltiplas facetas: definições e leituras iconográficas. São Paulo:

Annablume, 2011.

SMITHSON, Robert. A provisional theory of non-sites. In: FLAM, Jack (edit.). Robert Smithson: The

Collected Writings. Berkeley: University of California Press, 1996.

Page 231: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

231

SIMÕES, A. M. P. Arte urbana na América Latina e o caso de Assunção. São Paulo: Revista Arte e

Cultura da America Latina, Sociedade Científica de Estudos de Arte (CESA), v. XXVI, 2012, ps. 101-112.

SOANES, Catherine; STEVENSON, Angus (edit.). Oxford: Concise Oxford English Dictionary, 2008

SOUZA, Marcelo Lopes. O desafio metropolitano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

SPINELLI, João. Alex Vallauri. São Paulo: Bei, 2010.

SUDERBURG, Erika et. aL. Space Site Intervention: situating installation art. Minnesota: University of

Minnesota, 2000.

TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naif, 2001.

THOMAS, Karin. Diccionario Del Arte Actual. Bogotá: Editorial Labor, 1982.

TUPYNAMBÁ, Yara. Muralismo. Belo Horizonte: Adi, 2013.

VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São

Paulo: Martins Fontes, 1996.

WALKER, Stephen. Gordon Matta-Clark: art, architecture and the attack on modernism. Londres:

Tauris & Co., 2009.

SITES

www.mac.usp.br/mac/conteudo/exp/10/txt/09.txt

www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-futuro-das-cidades-pelo-filosofo,469755,0.htm

www.publico.pt/temas/jornal/como-se-olha-a-arte-e-a-vida-quando-se-tem-101-anos-23193218

www.mubevirtual.com.br/pt_br?Dados&area=ver&id=260

www.moma.org/interactives/exhibitions/2013/oldenburg/

www.abakanowicz.art.pl/

www.itaucultural.org.br

http://entretenimento.uol.com.br/ultnot/2007/04/09/ult4326u108.jhtm

Page 232: São Paulo e Buenos Aires: cidades-suporte para a nova arte urbana

232

www.grupoescombros.com.ar/

http://grupoetcetera.wordpress.com/

http://parqueparabrincarepensar.blogspot.com.br/p/o-projeto.html

www.forumpermanente.org/revista/numero-2/textos/projeto-parque-para-brincar-e-pensar

http://esqueletocoletivo.wordpress.com

www.BijaRi.com.br

www.eduardosrur.com.br

http://soulart.org/street-art/aqui-jaz/

http://br.blouinartinfo.com/news/story/955798/pensando-grande-artrio-2013-chama-atencao-

para-obras-de-grande.

http://www.forumpermanente.org/event_pres/encontros/cimam/relatos/painel3/

http://graffitimundo.com

http://br.blouinartinfo.com/news/story/955798/pensando-grande-artrio-2013-chama-

atencao-para-obras-de-grande