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    DOSES DELIBERDADE:MERCADODETRABALHO, OCUPAESEESCOLARIZAO

    NORIODEJANEIRO(1870-1888)*

    Lucimar Felisberto dos Santos **

    RESUMO:O artigo realiza uma anlise da conjuntura social e econmica do Rio de Janeiro nas dcadas

    nais da escravido enquanto instituio formal. A inteno vericar as possibilidades das

    classes populares, destacadamente os africanos e crioulos detentores da experincia do cativeiro,

    levarem a cabo projetos de vida, coletivos e individuais, que viabilizassem a participao

    ativa no cotidiano carioca e uma relativa mobilidade social ascendente.

    PALAVRAS-CHAVE: Abolio. Cidadania. Escravido. Mobilidade.

    instigante e complexo o labirinto forjado pelos diversos agentesque participaram da superao da escravido moderna. Para a maioria dosestudiosos das trajetrias dos africanos e de seus descendentes bastanteanimador constatar que a historiograa mais recente ultrapassou vises deautores como Caio Prado Jnior que, apesar das relevantes anlises sobre aeconomia brasileira, apresentaram argumentos defendendo terem os escravos

    brasileiros participado debilmente deste processo (PRADOJR., 1984, p.142).Este trabalho tem como objetivo principal vericar as estratgias de

    crioulos e africanos mantidos sob o regime de escravido, e seus pares libertose livres, para ocupar espaos na sociedade carioca e conquistar uma relativamobilidade social. Prope-se que estes grupos tiveram um papel ativo e devanguarda no desmonte do sistema escravista no Brasil e que a expressoEste artigo uma verso revisada de um captulo da dissertao de Mestrado defendida em 2006, noPrograma de Ps Graduao da Universidade Federal Fluminense, com o ttulo Cor, identidade e mobilidadesocial: crioulos e africanos no Rio de Janeiro (1870-1888).Mestre em Histria pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutoranda em Histria pelaUniversidade Federal da Bahia (Ufba). E-mail: [email protected].

    POLITEIA: Histria e Sociedade Vitria da Conquista v. 9 n. 1 p. 239-269 2009

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    relativa mobilidade social seja entendida como um processo que vai desde aconquista da alforria a ganhos materiais e sociais mais expressivos.

    J no incio do sculo XIX, as contradies do regime escravistaanunciavam o m da escravido com a condenao do trco de africanos.O governo ingls, que em sculos anteriores havia sido o mais interessadono comrcio humano, encabeou o movimento que defendia a ilegalidadedesse comrcio. Posto na ilegalidade o trco de escravos e minada alegitimidade da instituio servil, o sculo XIX testemunhou a transioocial do regime compulsrio de trabalho para o livre em todas as regiesescravistas do Novo Mundo.

    Este processo obedeceu aos mais variados encaminhamentos,determinados por conjunturas histricas especcas, e, ao m e ao cabo, pode-sedizer que foi decorrente das experincias trocadas e compartilhadas pelos maisdiversos agentes que participaram da dispora africana e do estabelecimentoda escravido no mundo moderno (GILROY, 2000).

    Na segunda metade do sculo XIX, sobretudo em seu ltimo quartel, emgrandes centros urbanos como o Rio de Janeiro, o m gradual da escravidoconvivia com signicativas mudanas econmicas. O desenvolvimento dos

    setores secundrio e tercirio impunha uma lgica prpria ao processo. Aimprensa testemunhou este movimento: nos jornais da Corte, sobretudo emseus classicados, era possvel perceber os sentidos destas transformaes ea atuao dos diversos segmentos sociais envolvidos. So estas as fontes quenortearo a investigao proposta neste trabalho. Estar sob foco a atuao decrioulos e africanos escravos, libertos e livres para efetivarem conquistassociais e materiais numa economia em pleno desenvolvimento, como avericada em reas urbanas do Rio de Janeiro nas duas ltimas dcadas que

    antecederam ao m do regime ocial de escravido no Brasil.

    QUESTES DE TRABALHO E DIREITOS EM PROCESSOS DEABOLIO

    A abolio do trabalho escravo no Brasil assim como nas demaisnaes que paulatinamente abandonavam a escravido enquanto instituiolegtima poltica e moralmente se deu de acordo com diferentes lgicas queforam denidas a partir das mais variadas circunstncias e contextos. Inuam

    nestas lgicas diversas relaes construdas durante a experincia da escravidoe renadas quotidianamente de acordo com novas agendas.

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    Na Jamaica, por exemplo, de acordo com Thomas C. Holt (1992), atransio se deu no mbito de um projeto ingls que tinha em vista a adoodos preceitos liberais. As mudanas polticas e, sobretudo, econmicas ocorridasna Inglaterra, levavam necessidade de adequao do mercado de trabalhoaos novos interesses senhoriais. A proposta de educao dos trabalhadorese plantadores para uma nova ordem, a liberal, acabou por coadunar com asmudanas sociais decorrentes do m do trabalho escravo. Era necessriaa construo de uma nova sociedade, composta por indivduos livres quecompartilhassem os ideais liberais. Valores do liberalismo, como o gosto pelotrabalho e pelo consumo, deveriam paulatinamente ser incutidos tambm nos

    cidados ingleses nascidos e/ou estabelecidos na Jamaica.O projeto liberal ingls na Jamaica, o grande experimento, no

    entanto, esbarrou em diversas pautas de reivindicaes, destacadamente doslibertos e de seus ex-senhores, sendo que estes ltimos, para assegurar algunsde seus privilgios, se viram obrigados a fazer concesses. As expectativas epercepes dos diversos atores envolvidos em torno da liberdade nem sempredialogavam com a lgica proposta pelas autoridades inglesas. Muitos dos ex-escravos optavam por trabalhar alheios lgica liberal, segundo uma diretriz

    prpria, cunhada na experincia do cativeiro, intentando apenas garantir asubsistncia ou usufruir doses de autonomia. Os ex-proprietrios, por suavez, por temerem a perda da autoridade senhorial em suas fazendas, sobretudoa autoridade moral, atendiam algumas das solicitaes dos libertos.

    Ou seja, com o m da escravido, o governo ingls assumiu a tarefa dareestruturao da sociedade colonial jamaicana e, entre seus principais objetivos,constava a adoo das prticas e dos dogmas liberais. Os ex-escravos e os ex-

    senhores inuam neste processo. Estavam em jogo a conservao de algumasrelaes que julgavam satisfatrias e a adoo de novos procedimentos que,para os libertos, tivessem signicado de liberdade: a escolha de dias de folga,o direito de cultivar uma roa ou a posse de uma residncia.

    Nos Estados Unidos da Amrica, o m da escravido se deu em umcontexto de guerra e conitos. EmA Short History of Reconstruction 1863-1877,Eric Foner (1990) faz uma interessante reexo sobre o m do trabalho escravono pas e sobre a questo da extenso de direitos aos negros americanos. De

    acordo com o autor, o tema gurava como uma das principais pautas da agendapoltica dos estados, sobretudo porque havia a necessidade de ajustamento na

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    economia dos estados do Sul. Este reajustamento passava pelo encaminhamentoa ser dado questo da emancipao dos mantidos em cativeiro.

    Pauta das agendas polticas tanto do Partido Republicano como doPartido Democrata sendo que o esforo para garantir direitos aos africanose seus descendentes reputado ao Partido Republicano a emancipao dosescravos e, posteriormente, a extenso dos direitos civis aos negros americanos,entrelaou-se com a temtica da reestruturao da sociedade no ps-guerra,destacadamente nos estados do Sul.

    Os esforos polticos para a extenso de direitos civis aos egressos daescravido, nos Estados Unidos, resultaram em uma grave crise social, supostamente

    em decorrncia da competitividade entre brancos e negros. Os primeiros noaceitavam a atuao dos negros em espaos polticos, postura que contribuiu parao desencadeamento de um processo de segregao racial no pas. Segundo Forner,alguns historiadores defendem ter sido a segregao pauta tambm da agendapoltica da populao negra, como estratgia de autodefesa.

    Medidas sociais tambm zeram parte da Reconstruo: foram criadasagncias de assistncia aos libertos, que tratavam de questes como reuniode famlias dispersas, formao de professores negros, incentivo aos pastores

    das comunidades e a denio da dinmica e da rotina de trabalho. Durantea Reconstruo, pequenas conquistas em termos de atuao poltica,mobilidade social e autonomia puderam ser observadas, mas essas foram,mais tarde, frustradas pelos protestos e aes dos plantadores brancos.

    Enm, a emancipao do trabalho escravo na Jamaica se deu emum contexto de tentativa de difuso dos dogmas liberais por parte governoingls, em quanto que, nos Estados Unidos, ela se desnevolveu em meio

    responsabilidade do Partido Republicano em consolidar uma polticaorganizacional, sobretudo para os estados do Sul. J no Brasil, para JoaquimNabuco poltico contemporneo e liderana do movimento abolicionista o que estava em jogo era a gestao de um projeto de nao. Nesse caso, aabolio da escravido seria uma das etapas necessrias para a exeqibilidadedeste projeto (NABUCO, 1999).

    Analisando o panorama poltico da poca, o autor deO Abolicionismoargumenta que, no caso da ex-colnia portuguesa na Amrica, a abolio da

    escravido representaria um movimento poltico por estar nela imbudo o ideal dereconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a unio das raas. Numa perspectiva

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    romntica, Nabuco (1999, p. 68) considerou a raa negra como um elementode considervel importncia nacional, estreitamente ligada por innita relaoorgnica nossa constituio, parte integrante do povo brasileiro.

    No entanto, apesar desta relao orgnica, no Brasil no se observouum projeto governamental de integrao ou de extenso de direitos polticospara os que paulatinamente abandonavam a condio escrava, mesmo no ps-Abolio. O fato de Nabuco considerar a populao negra parte integrantedo povo brasileiro pode reetir o pensamento poltico de um segmentosocial e intelectual brasileiro, mas signicativo o fato de no se encontrar nalegislao brasileira menes especiais que tivessem em vista garantir ou excluir,

    explicitamente, direitos civis aos libertos e aos livres de cor.Se, na Jamaica e nos Estados Unidos, os processos histricos relativos

    superao da utilizao da mo-de-obra escrava a favor da livre deram-seno mbito de projetos polticos ou econmicos mais amplos, sob a conduodo Estado, e tiveram entre seus objetivos denir o sentido da integrao dosemancipados,1no caso brasileiro a luta por ampliao de direitos, por mobilidadesocial e por integrao constitua, antes de tudo, pauta da agenda poltica degrupos sociais especcos.2As polticas do governo imperial vm a reboque

    destas lutas. Da Sidney Chalhoub (1990) armar que a lei de 28 de setembrode 1871 teria sido arrancada pelos prprios cativos.

    O elemento servil estava sim na pauta poltica imperial. Foi matriade intensos debates em diversas cmaras. No entanto, a questo principal noera a insero social dos ex-escravos. O que estava em jogo era a questo dapropriedade escrava. Da a necessidade de um projeto lento, gradual e seguro sem abalo para a economia senhorial e com a garantia de indenizao paraos proprietrios.

    Ecoando decises tomadas em outras regies escravistas, que tentavamregulamentar o processo abolicionista de forma que ele tivesse um cartergradual e no traumtico para os proprietrios (SCOTT, 1991, p. 80),3 os1No se defende que os cativos, em regies como os Estados Unidos e a Jamaica, deixaram de lutar porseus direitos. Chama-se ateno para a existncia de projetos governamentais nestas regies nem sempre

    vitoriosos, mas pensados para a integrao social deste grupo.2Por exemplo, o movimento abolicionista e as irmandades, e, destacadamente, os prprios africanos ecrioulos escravos, libertos e livres.3Em Cuba onde, em 1880, seriam libertos nominalmente todos os escravos foi aprovado, em 1870,

    um decreto preparatrio para a abolio gradual da escravido. Este decreto estabelecia que todas ascrianas nascidas de escravas a partir de setembro de 1868, bem como todos os escravos com mais de 60anos seriam considerados livres. O decreto tambm proibia o uso de chicotes e previa uma proposta deindenizao dos escravos remanescentes.

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    deputados brasileiros aprovaram, em 28 de setembro de 1871, a Lei 2.040, quedeclarava livres todos os lhos de escravas nascidos a partir daquela data, achamada Lei do ventre livre. Aprovada quando estava no poder o gabineteconservador presidido por Jos Maria da Silva Paranhos, o Visconde do RioBranco da o ttulo de Lei Rio Branco , esta lei tinha tambm outrasatribuies, como, por exemplo, a regulamentao da compra da alforria peloescravo, a instituio de um fundo especial que deveria ser criado para indenizaros proprietrios cujos escravos eram libertados e a oferta de instruo para osingnuos em virtude da Lei.

    O m anunciado da escravido no Brasil a lei de 1871 trazia como

    expectativa o m denitivo da escravido em, no mximo, uma gerao eo conhecimento dos processos de emancipao em outros pases aguarama percepo de todos os segmentos sociais a respeito da escravido. Para osescravos, por exemplo, a posse de sua liberdade se apresentava como possibilidadereal, possibilidade esta que poderia ter sua concretizao antecipada por diversasagncias. Os escravos poderiam comprar sua prpria liberdade ou at mesmorequer-la judicialmente, caso fossem aproveitadas as vrias brechas abertas pelalegislao. Os senhores, apesar de, na maioria dos casos, defenderem a escravido

    at o ltimo minuto, sentiam a necessidade de redenir a relao senhor/escravoou, em alguns casos, de fazer eles mesmos a sua transio particular.4

    Termos como aprendizes e patrocinados no podem ser aplicadosaos libertos brasileiros. Uma vez em posse de suas liberdades, era necessriorecorrer aos mais variados mecanismos para garantir sua prpria subsistncia ede seus possveis dependentes. Mecanismos estes que dependiam das relaestecidas na experincia da escravido, somadas s alianas estabelecidas a partir

    da conquista do novo estatuto jurdico. Ou seja, o aprendizado da liberdadetinha incio na experincia da escravido.Sobretudo na Corte, onde a economia, na segunda metade do sculo

    XIX, encontrava-se em ascenso, os libertos poderiam alugar a sua fora detrabalho, aprender uma prosso e at mesmo se instruir. A conjuntura polticae econmica do perodo, de certa forma, colaborou para a arregimentaodestes recursos.

    Enquanto parte da gestao de um projeto de nao, como argumentou

    Nabuco, a conduo do processo de superao do regime de trabalho escravo

    4Como o emblemtico exemplo do Senador Vergueiro.

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    no mais poderia ser delegada a particulares interessados na causa do elementoservil. Esta passaria a ser uma questo nacional e deveria envolver os diversossegmentos polticos e sociais envolvidos no dito projeto. Foi o que se tentoulevar a cabo com a Lei 2.040.

    No Brasil, o impacto das inexorveis transformaes econmicas doperodo tambm colaborou para que o processo de transio do trabalhocompulsrio para o livre assumisse contornos prprios. As novas orientaeseconmicas, que inicialmente indiscriminavam o tipo de trabalhador necessriopara o suprimento de suas demandas, colaboraram para a redenio dasbases sociais brasileiras, destacadamente em reas urbanas, que, na segunda

    metade do sculo XIX, foram palco de uma intensa movimentao comerciale testemunharam um signicativo aumento nos setores mercantil e de servio.Crioulos e africanos, como integrantes da sociedade brasileira, envolveram-see foram envolvidos nestes processos.

    O NOVO EQUILBRIO ECONMICO BRASILEIRO E AREMODELAGEM NAS RELAES SOCIOECONMICAS

    De acordo com historiadores que se dedicaram economia brasileira da

    segunda metade do sculo XIX, o perodo conheceu uma signicativa expansoeconmica, sobretudo nos setores secundrio e tercirio (FURTADO, 1977;LEVY, 1994; LOBO, 1978; PRADOJR, 1984). Fatores como o desenvolvimento dalavoura cafeeira, o restabelecimento de relaes diplomticas com a Inglaterra,a abolio do trco de escravos e a modicao da poltica tarifria brasileirateriam contribudo para um certo reajustamento econmico e nanceiro do pas.Reajustamento este que teria possibilitado uma sensvel ascenso do padro devida da populao: pode se dizer que nesta poca que o Brasil tomara pela

    primeira vez conhecimento do que fosse o progresso moderno e uma certariqueza e bem-estar material, defende Prado Junior (1984, p. 168).O retorno do capital ingls foi um dos fatores que contriburam para o

    desenvolvimento econmico do pas, pois favoreceu a construo de estradasde ferro, a implantao de novas indstrias e o aparelhamento dos portosmartimos. Os emprstimos contrados entre 1858 e 1889 num valor global de60 milhes de libras viabilizaram o pagamento de dvidas antigas, reforandoo equilbrio nanceiro do pas.

    O desaparecimento de um dos itens mais vultosos do nosso comrcioimportador o escravo africano, como conseqncia do m do trco

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    desafogou as nanas do pas e, como argumenta Prado Jnior, cuja anlisefoi reforada por outros historiadores, deslocou um signicante capital, antesempregado neste setor, para a produo nacional que, neste perodo, j contavacom o favorecimento de um outro fator a contribuir para o novo equilbrioeconmico do pas: a poltica tarifria.

    Em decorrncia do tratado rmado em 1810 com a Inglaterra, os direitosbrasileiros de importao brasileiros sobre os produtos ingleses foram xadosem apenas 15%. Quando a Inglaterra tomou a deciso de fechar seus portos paraos produtos brasileiros, o governo imperial teve o incentivo necessrio revisodas pautas alfandegrias. Em 1844, com a Tarifa Alves Branco, foi imposta uma

    sensvel elevao nas tarifas sobre os produtos importados, que passaram a serxadas ao redor de 30%. Dezesseis anos mais tarde, o nvel mdio sobe para50%. Essas medidas contriburam para o estmulo produo fabril nacional(LEVY, 1994, p. 45-46). Este processo de ajustamento e equilbrio do balanoexterno das contas brasileiras teria proporcionado algumas oportunidades indstria indgena que comea a sair do marasmo em que se encontrava(PRADOJR, 1984, p. 171).5

    A expanso das foras produtivas viria a produzir uma remodelagem na

    vida material da populao brasileira. Servindo-nos ainda dos resultados dasanlises econmicas de Caio Prado Jnior para o Brasil no decnio de 1860,tem-se a informao que fundam-se no curso dele 62 empresas industriais,14 bancos, 3 caixas econmicas, 20 companhias de navegao a vapor, 23 deseguros, 4 de colonizao, 8 de minerao, 3 de transportes urbanos, 2 de gse, nalmente, 8 estradas de ferro (PRADOJR, 1984, p. 192).

    Para no deixar de mencionar um importante fato histrico do perodo

    a guerra contra o Paraguai importante ressaltar que se, diretamente, oenvolvimento na mais sria crise internacional da histria brasileira, apesar davitria, no produziu benefcios econmicos para o Imprio, indiretamentealguns resultados positivos podem ser apontados. Segundo Maria BrbaraLevy (1994, p. 93-94):

    A Guerra do Paraguai contribuiu para reanimar as atividades industriais emanufatureiras. Antes de mais nada, para poder importar os produtos da

    5Celso Furtado corrobora o argumento de Prado Jnior em sua assertiva sobre o crescimento econmicobrasileiro na segunda metade do sculo XIX. Tambm para aquele autor, a signicativa elevao da taxa dodesenvolvimento econmico neste perodo resultou do dinamismo do comrcio exterior. Furtado consideraque est neste fenmeno a chave do processo de crescimento nesta etapa (FURTADO, 1977, p. 142).

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    indstria blica estrangeira, o governo precisou aumentar o recolhimentode impostos, gravando as importaes. A poltica scal e monetriaexpansionista somou-se ao aumento das receitas com as exportaes

    para reforar a tendncia expansionista da demanda agregada. Asemisses depreciaram a moeda nacional, encarecendo os produtosimportados e criando condies favorveis produo interna.

    Apesar do desequilbrio da vida nanceira do Pas acarretado peloconito, Prado Jnior argumenta que a base do progresso material do Brasilapenas teve seus cursos atenuados durante a guerra, sendo retomado em ritmoascensional rpido e seguro, sobretudo na dcada que vai de 1870 a 1880.

    A CIDADE NEGRA NO MBITO DE UMA ECONOMIA DEMERCADO EMERGENTE

    Analisando o desenvolvimento econmico do Rio de Janeiro noperodo de 1840-1888, Eullia M. L. Lobo descreve a capital do Impriocomo sendo o centro redistribuidor de escravos, abastecedor das fazendas,importador de produtos manufaturados e ponto de convergncia do comrciode cabotagem. Comenta ainda, a autora, que esta hipertroa comercial sercapaz de fundamentar todas as nuanas da vida urbana no correr do sculoXIX (LOBO, 1978, p. 155).

    Estas gradaes puderam ser vericadas em diversos segmentos sociaise econmicos. Quanto s transformaes socioeconmicas que, direta ouindiretamente, afetaram as condies de vida de crioulos e africanos residentesno permetro urbano do Rio de Janeiro, de particular interesse neste trabalho,pode-se destacar o aquecimento do mercado interno e as novas alternativasde ocupaes.

    Crioulos e africanos escravos, libertos e livres tiveram a sua quota debenefcio neste processo. Como comenta Boris Koval, ao analisar o surgimentodo capitalismo e do mercado de trabalho assalariado no Brasil,

    o m do comrcio de escravos liberou cerca de 15/20 mil contos deris (8,7/11,6 milhes de dlares) gastos anualmente com a comprade escravos at ento. Agora esta soma, ou pelo menos parte dela,poderia ser absorvida pela indstria em desenvolvimento. Somenteentre 1850 e 1858, foram registrados 62 novas empresas, 14 bancos, 3

    caixas econmicas, 20 companhias de navios, 8 minas, 3 companhiasde transportes urbano e 8 ferrovias. O trabalho assalariado na indstriacomeou gradualmente a ocupar as principais posies, apesar de, como

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    informou a comisso tarifria imperial em seu relatrio ao governo(1853) a maioria das fbricas no pas emprega trabalho escravo(KOVAL, 1982, p. 63).

    De acordo com as informaes do censo de 1872, utilizadas porLobo, na Corte se vericava a seguinte distribuio ocupacional dos escravos:498 artces ou ociais, 527 martimos, 174 pescadores, 1.394 costureiras,5.695 lavradores; 22.842 domsticos; 5.785 criados e jornaleiros e 9.899 semprosso (LOBO, 1978, p. 231). Para a autora estes nmeros apresentam umdecrscimo na participao dos escravos em atividades manufatureiras, secomparados aos nmeros de 1856.

    Essa informao, somada anlise estatstica relativa populaoescrava que, no perodo, decresce de 31,8% para 18,2% do total da populaodo Rio de Janeiro (ALENCASTRO, 1988), corrobora um dos argumentos destetrabalho: que africanos e crioulos em regime de escravido aproveitaram asoportunidades produzidas pela conjuntura econmica carioca para conseguirmeios de obter suas alforrias e engrossar as leiras dos libertos.

    Os nmeros da demograa carioca, para meados do sculo XIX,fundamentam o ttulo atribudo por Sidney Chalhoub cidade do Rio de

    Janeiro. De acordo com o censo de 1849, a populao escrava no municpioJaneiro perfazia o nmero de 110.599 indivduos. Este nmero representava41,5% do total de 266.469 residentes. Considerando as gradaes existentesna parcela dita livre da sociedade que era composta tambm por crioulose africanos livres e libertos pode-se armar que a maioria da populao dacapital imperial era composta por africanos e seus descendentes. Neste perodo,a Corte portuguesa era a maior cidade escravista das Amricas. Da o ttulode Cidade Negra.

    A partir da metade do sculo XIX, o nmero de escravos foi reduzidode maneira sensvel em vrias regies brasileiras. No caso do Rio de Janeiro, operodo entre 1849 e 1872 apresenta uma taxa de crescimento demogrco anualbastante tmida em mdia 0,13% ao ano tendo sua populao aumentado de266.467 habitantes para 269.027. No entanto, o nmero de escravos apresentauma reduo signicativa de 41,5% do total da populao para 18,2%. Nocenso de 1872, o nmero total dos mantidos sob o regime de escravido naCorte era da ordem de 48.939 indivduos (ALENCASTRO, 1988, p. 53).

    So vrias as razes apontadas para o decrscimo da populao escravaao longo do sculo XIX. Para Mary Karasch, por exemplo, o fenmeno ocorre

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    pelos seguintes motivos: a alta taxa de mortalidade entre os escravos; o aumentodo preo do cativo; a baixa taxa de natalidade; e o signicativo aumento dasalforrias (KARASCH, 2000). Somente para a dcada de 1860, a autora vericouo total de 13.246 obtenes de liberdade.

    Dos 48.939 escravos arrolados no censo de 1872, relativos cidade do Riode Janeiro, 36.915 tm suas ocupaes identicadas. A anlise dos classicados doJornal do Commercioda referida dcada revela que todas as categorias ocupacionaisconstantes do censo fazem parte da dinmica do mercado de trabalho assalariadoda Corte. No se defende aqui que todos os escravos residentes na Corte estavamenvolvidos num sistema capitalista de produo, moda de um incipiente

    proletariado. A reexo proposta no sentido de se perceber que a estruturaocupacional urbana em vigncia na capital do Imprio, onde os escravos eramsubmetidos a relaes de trabalho como o ganho e o aluguel, de fato ofereciaoportunidades a africanos e crioulos mantidos em regime de escravido de atuarno mercado de trabalho assalariado.

    As estratgias utilizadas para amealhar o valor necessrio para a comprada alforria ou para pequenas conquistas materiais no mbito do cativeiro, almdo jornal devido ao proprietrio, poderiam ser as mais variadas possveis. Estas

    podiam abranger a utilizao de dias ou horas de folga para trabalhar sobre siou a negociao do valor percebido com o proprietrio. Esta ltima estratgiaparece estar ilustrada no caso de um cativo anunciado no dia 2 de janeiro de1874, noJornal do Commerciodo Rio de Janeiro:

    Vende-se por seu senhor se retirar para a Europa um bonito crioulo de22 anos, de muito boa conduta, perfeito cozinheiro de forno, fogo emassas de todas as qualidades, esteve alugado em um hotel de primeira

    ordem ganhando 70$ por mez, alem de uma graticao de 15$ que oamo lhe dava. Na rua da quitanda n. 55 sobrado, ou na mesma rua non. 14 loja de calados.6

    O cativo em questo tinha uma pequena, mas signicante renda, coma qual podia usufruir de algumas doses de liberdade.

    De acordo com Eullia Lobo (1978, p. 156), a introduo doassalariamento teria contribudo tambm para uma maior circulao nomercado interno. A despeito da possvel concorrncia com os imigrantes, a

    autora defende que a utilizao da fora de trabalho livre teria colaborado para

    6Jornal do Commercio, 02 de janeiro de 1874.

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    a monetarizao da mo-de-obra escrava. Em contrapartida, teriam sido osvalores do aluguel escravo que serviram de patamar para a xao dos salriosdos trabalhadores livres (LOBO; STOTZ, 1985).

    O aumento da proporo de libertos, bem como a entrada macia deimigrantes no ltimo quartel do sculo XIX, deprimiu o nvel salarial da mo-de-obra livre (LOBO, 1978, p. 228). O aumento de reserva de mo-de-obragarantia aos empregadores melhores condies de negociar os jornais pagosaos trabalhadores. Para alm da concorrncia entre escravos, libertos e livres nacionais e estrangeiros , o que se pretende destacar a heterogeneidade domercado de trabalho carioca e a importncia da monetarizao da mo-de-obra

    escrava. A julgar pelos anncios dos classicados doJornal do Commercio nesteperodo, o mercado parece absorver bem esta oferta de mo-de-obra mista:7

    Precisa-se de uma preta, escrava ou livre, que saiba cozinhar e tratar dosarranjos de casa, na rua So Pedro n. 167.8

    Precisa-se de ociais de sapateiro de toda a obra e aprendizes livres eescravos, para informaes, na rua do Senhor do Passos n. 77, loja demarceneiro.9

    Precisa-se de um moo, de 12 a 14 anos, para aprender a trabalharem machina de pespontar botina de homem, ou de moleque que sejaescravo. Na rua do Sabo n. 193.10

    A utilizao de anncios de jornais como fonte histrica no umanovidade. O pontap inicial foi dado por Gilberto Freyre. O autor de Oescravo nos anncios de jornais brasileiros do sculo XIXconsiderou

    7Foram vrios os anncios analisados. Todos referentes aos meses de janeiro da dcada de 1870. A ttulo de

    exemplo da freqncia dos anncios envolvendo oferta e procura por mo-de-obra de crioulos e africanos,destacam-se os que foram publicados nos dia 18 de janeiro de 1871 e 18 de janeiro de 1876.No dia 18 de janeiro de 1871, 98 indivduos ofereceram-se, por si ou por outrem, para alugar sua fora detrabalho. Destes, 65 foram descritos como pretos, crioulos, escravos ou pardos. Em apenas um dos annciosdeu-se a saber o valor do jornal pretendido (20$000). Oito dos indivduos possuam especializao e doisdeles declararam serem pretos livres. A contrapartida era bem interessante. Na sesso Precisa-se foram107 os anncios procura dos mais variados tipos de trabalhadores. Pode-se classicar assim as tipologiase/ou condies exigidas: 22 pretos e pardos escravos; 5 trabalhadores que fossem escravos ou livres; 5trabalhadores livres; 8 trabalhadores que fosses de cor ou brancos; 6 que fossem brancos e de pelo menos8 exigia-se uma especializao (marceneiro 1; costureira 2; alfaiate 4; padeiro 1). Nos outros anncios nose discriminava a tipologia ou condio. Em 18 de janeiro de 1876 os anncios de aluguel de mo-de-obraforam da ordem de 61. Destes, 29 anunciantes que se ofereciam ou eram oferecidos eram de condioescrava; 3 pretos livres e 1 branco. Nos outros anncios no se discriminava a tipologia ou condio.8Jornal do Commercio, 04 de janeiro de 1870.9Jornal do Commercio, 05 de janeiro de 1871.10Jornal do Commercio, 18 de janeiro de 1871.

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    que os anncios constituem a melhor matria ainda virgem para o estudo e ainterpretao de certos aspectos do nosso sculo XIX (FREYRE, 1979, p. 13).

    Freyre, numa perspectiva antropolgica, utiliza-se dos anncios devrios jornais brasileiros para interpretar a predominncia de tipos fsicos ecaractersticas culturais dos escravos brasileiros, alm de discorrer sobre o lequede possibilidades oferecido por este tipo de documentao e defender que ahistria do Brasil est nos anncios dos jornais (FREYRE, 1979, p. 7).

    Leila M. Algranti, em suas anlises sobre as relaes sociais tecidas pelosescravos no Rio de Janeiro, em particular entre estes e os libertos, conclui queo processo de urbanizao e as condies scio-econmicas prprias das

    cidades tambm foram considerados elementos estimuladores do aumentodo nmero de libertos (ALGRANTI, 1988, p. 121). Para a autora, o cenriopoltico e econmico carioca, aps a segunda metade do sculo, favoreciaoportunidades de emprego aos escravos e criava mecanismos estratgicos paraque estes pudessem acumular recursos para comprar suas prprias alforrias.O cenrio poltico tambm revelava brechas na legislao para que os cativospudessem pleitear direitos junto ao Ministrio Pblico.

    Em reas urbanas, uma vez libertos, africanos e crioulos, via de regra,

    exerciam as mesmas atividades dos escravos, sobretudo as de ganho. Autoresque se dedicaram ao estudo da escravido urbana destacam o intenso contatocomo fenmeno que possibilitava o estreitamento de laos no somente entreescravos e libertos, mas entre todos os atores sociais envolvidos propriedadese proprietrios, capitalistas e trabalhadores, estrangeiros e nacionais etc ,formando uma complexa rede de relaes (ALGRANTI, 1988; KARASCH, 2000;SOARES, 1988).

    A geograa das cidades, bem como a natureza de suas atividades

    econmicas, no permitia o connamento da escravaria. Nas cidades, arelao senhor/escravo tinha que ser redimensionada. Doses de autonomiae liberdade tinham que ser concedidas aos escravos urbanos, uma vez que aeconomia exigia uma mo-de-obra itinerante que ia alm do limite e do controlesenhorial. O aumento nos nmeros de cortios, aps 1850, sintoma destanova estrutura social. Aos escravos que no exerciam tarefas domsticas, emmuitos casos, era permitido o aluguel de residncias nestes locais ou mesmo

    em Zungus que existiam em vrios pontos da cidade (SOARES, 1998).O sistema de trabalho ao ganho, modalidade de atividade caractersticada escravido urbana, apresentava-se como uma forma de inserir o escravo

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    na economia citadina. O trabalho ao ganho envolvia escravos, libertos e livresnegros e no negros e possibilitava maior mobilidade e autonomia a todos osenvolvidos (SOARES, 1988).

    Neste sistema de trabalho eram empregados escravos que exerciam as maisvariadas ocupaes. Trabalhando ao ganho, os escravos precisavam encontrarmeios de garantir o acerto com o seu senhor, que poderia ser dirio, semanalou mensal e, em alguns casos, seu prprio sustento. O excedente poderia sereconomizado para a obteno do peclio para a to almejada liberdade. Conseguira liberdade era uma possibilidade, no uma facilidade ou garantia. No entanto, lcito concluir que esta estratgia contribuiu para o observado aumento do

    nmero de alforrias na segunda metade do sculo XIX.Apesar desta possibilidade de adquirir um peclio, e das doses de

    autonomia e liberdade usufrudas pelos escravos empregados neste sistema detrabalho, a modalidade no representava uma benesse dos proprietrios. ParaBoris Koval (1982), o escravo empregado nesta atividade, que o autor denominaescravo de servio, estava inserido num dos novos modos (burgueses) deexplorao do capital humano pelos plantadores. Destacadamente, aquelesque reorientaram suas atividades econmicas no meio urbano.

    O emprego do escravo ao ganho, alm de garantir aos proprietrios olucro imediato de seu investimento, valorizava a pea numa negociao devenda. Os escravos ganhadores eram os mais valorizados no mercado urbano(ver Quadro 1). Os senhores, ao anunciar suas propriedades nos classicadosdoJornal do Commercio, utilizavam os atributos ou habilidades dos cativos paragarantir maiores lucros na negociao. Ser um trabalhador ao ganho, possuirum ofcio, ter bonita gura e boa conduta eram atributos que valorizavam aoferta da mercadoria, como se pode deduzir dos textos dos anncios:

    Vende-se, por 700$ um preto de 38 annos, boa gura, d de jornal pordia 1$800; na rua da Alfndega n. 319.11

    Vende-se uma negrinha de 13 annos, bonita gura, cose, lava e engomaroupa de senhora e faz o mais servio de casa de famlia, um molequede 8 annos; uma preta mina que d 1$280 por dia e um preto pintor queda 2$500; para informao na rua Senhor dos Passos n. 130.12

    Vende-se uma linda mucama, boa pea, crioula de 21 annos, natural desta

    cidade, bem educada, muito carinhosa e prendada, boa costureira, at11Jornal do Commercio,04 de janeiro de 1871.12Jornal do Commercio,08 de janeiro de 1873.

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    de machina, corta por modelo, faz crivo e crochet, prega e penteia umasenhora, arruma a casa, serve bem um ch, lava e engoma bem, tanto parahomem como para senhora, faz tuyant [sic], muito prpria para casa

    de tratamento por ser de casa de famlia; a primeira vez que vendida,e o motivo seu senhor ir para o interior; na rua So Pedro n. 20.13

    importante chamar ateno para o quo cedo os escravos (umanegrinha de 13 annos; um moleque de 8 annos), mesmo em reas urbanas,eram inseridos no mercado de trabalho.

    Quadro 1: Preo mdio de venda de escravos de acordo com suas tipologias (1870-1880)

    Tipologia 1870/71 1872/73 1874/75 1876/77 1878/79 1880

    Preto ou pardo entre 30 e40 anos para todo o servioe prprio para trabalhar aoganho.

    1:200$ 1:200$ 1:300$ 1:300$ 1:400$ 1:600$

    Crioula ou parda de boagura e com bons princpiospara o ganho.

    1:500$ 1:1000$ 1:200$ 1:200$ 1:500$ 1:600$

    Preta acostumada lida naroa.

    750$ 650$ 650$ 700$ 650$ 500$

    Preta moa para serviosdomsticos.

    1:000$ 950$ 1:000$ 900$ 500$ 600$

    Preto para serviosdomsticos.

    800$ 650$ 700$ 500$ 500$ 600$

    Preto de meia idade. 900$ 650$ 720$ 700$ 650$ -

    Fonte:Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, meses de janeiro entre 1870 e 1880.

    Para executar tarefas domsticas, uma das ocupaes em que mais seempregava a mo-de-obra escrava, era mister ter boa gura ou ser boa pea,ser bem educada, prendada; anal, o escravo domstico residiria nos limitesda residncia do seu senhor e compartilharia o cotidiano da famlia.

    Estes atributos tambm eram diferenciadores no caso dos que buscavam

    o peclio para sua alforria. Se por um lado h a valorizao da mo-de-obra

    13Jornal do Commercio,03 de janeiro de 1873.

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    dos escravos de boa gura ou qualicados, por garantir melhores lucros aosseus proprietrios, por outro lado estes atributos, provavelmente, dicultavam anegociao de sua liberdade. No entanto, partir da lei de 1871, que garantiu aosescravos o direito auto-indenizao, a possibilidade de melhores rendimentospodia facilitar a negociao e tornar possvel o acmulo de peclio e umarelativa visualizao da liberdade.

    MOBILIDADE SOCIAL: MERCADO DE TRABALHO, SALRIOS,RESIDNCIAS E ESCOLARIZAO

    O MERCADO DE TRABALHO

    Precisa-se comprar dous pretos: um mestre soleiro e outro mestre decurtir sol; na rua do Riachuelo n. 61.14

    Precisa-se de ofciais de sapateiro de toda a obra e aprendizes livres eescravos; para informao, na rua do Senhor dos Passos n. 77, loja demarcineiro.15

    Precisa-se de bons trabalhadores na Cova da Ona, nas Laranjeiras epaga-se bons jornais de 1$600 a 1$800; comea o servio as 5 horas damanh 7 da tarde; tratar-se com o administrador na Lapa.16

    Vende-se, por 1:000$, um robusto preto, prprio para uma fbrica devellas ou sabo, por ser mestre de fazer caixo para as mesmas; d-sea contento um dito de 30 annos, prprio para armagem, por ser muitoel, tambm troca-se por uma escrava, parda ou preta, um pardo escuropara chcara ou ganho, por 750$; informa-se na rua da Conceio n.63, sobrado.17

    Os anncios acima chamam ateno para a nova demanda do mercadode trabalho carioca, resultante da j comentada expanso econmica vericadaa partir da segunda metade do sculo XIX: a mo-de-obra especializada.Atendendo s novas necessidades do mercado de trabalho urbano, os escravospassam por um processo de especializao da mo-de-obra, que tanto pode tersido estratgia senhorial para aumentar seus lucros nas transaes de venda oualuguel de suas peas como agncia dos prprios cativos no intuito aferirem

    14Jornal do Commercio,01 de janeiro de 1870.15Jornal do Commercio,05 de janeiro de 1871.16Jornal do Commercio,01 de janeiro de 1872.17Jornal do Commercio,02 de janeiro de 1876.

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    bons jornais. Anal, uma vez pago o acerto feito com o senhor, quantomaior fosse o excedente mais chances teria o escravo de adquirir o peclionecessrio para a compra de sua alforria.

    Um escravo com ofcio poderia ganhar o dobro da quantia paga a umoutro escravo sem especializao. Valendo-se de sua autonomia e liberdade demovimento, podia este escravo aproveitar as oportunidades de se especializarnas ocinas abertas na cidade do Rio de Janeiro a partir da segunda metadedo XIX.

    Entre os escravos sem especializao, os do sexo masculino, aptos paraganhar, eram os que tinham mais valor de venda ou aluguel, de acordo

    com os classicados analisados do Jornal do Commercio.18

    O cativo em idadeprodutiva, com ou sem ofcio, capaz de atender as necessidades de mo-de-obra de uma economia em expanso e que se diversicava, tem o seu valorde venda aumentado no decorrer da dcada de 1870. O mesmo ocorre nocaso das escravas pardas e crioulas, que passam a ser preferidas no s comoganhadeiras, mas, sobretudo, para o servio domstico.

    As pretas, em meados do sculo XIX, tm preferncia e so maisvalorizadas quando preparadas para o servio domstico. No entanto, num

    movimento contrrio ao das crioulas e pardas, ao longo da dcada de 1870,as pretas domsticas tm decrescido os seus valores de venda.19Os pretosque podem ser empregados nesta mesma atividade aparecem em quarto lugarna preferncia. Em quinto e em sexto lugar estariam as pretas e os pretosacostumados lida na roa e os pretos de meia idade, respectivamente (cf.Quadro 1: Preo mdio de venda de escravos de acordo com suas tipologias,1870-1880).

    Defendemos que estas preferncias so sintomas do novo panoramaeconmico no espao urbano, reetindo assim o crescimento dos setoressecundrio e tercirio. Para ganhar nas ruas do Rio de Janeiro, o que implicao convvio com os mais diversos atores sociais, dava-se predileo aos escravosde boa gura, bons princpios, destacadamente os pardos e crioulos deidade entre 25 e 40 anos.

    18Adotou-se o critrio de vericar os meses de janeiro do decnio de 1870. importante informar que aanlise no leva em conta as variaes inacionrias do perodo, o que est sendo comparado o valor de

    venda segundo a sua tipologia e no o impacto deste valor no mercado econmico.19Este fato pode ter sua explicao no m da reposio de brao, resultante do m do trco. As pretas(africanas), provavelmente j estavam em idade avanada, tendo que ser substitudas por suas lhas nascidasno Brasil.

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    Do ponto de vista do escravo de ganho, se, por um lado, recebermelhores jornais podia colaborar para o acmulo do peclio necessrio para asua indenizao, por outro lado, quanto maior seu valor no mercado, maior seriao esforo para conseguir se auto-indenizar. Sem perder de vista que, sobretudoantes da Lei 2.040, esse escravo no s necessitaria investir em trabalho paraconseguir sua auto-indenizao, como tambm no bom relacionamento como seu senhor para convenc-lo a conceder a liberdade sem a necessidade derecorrer aos tribunais da Corte.

    OS NVEIS SALARIAIS

    Como se depreende da anlise dos anncios dos classicados doJornaldo Commercio, o valor do aluguel pago a um escravo tambm dependeria dotipo de atividade que o mesmo viria exercer. Empregando-se em atividadeslucrativas, as quitandeiras, os carregadores e os vendedores em geral, mesmosem especializao, podiam receber um bom jornal. Os escravos com ofcio,tambm nas transaes de aluguel, tinham sua mo-de-obra mais valorizada(cf. Quadro 2: Valores mdios de jornais pagos... 1870-1880).

    Quadro 2: Valores mdios de jornais pagos a trabalhadoresescravos e livres, de acordo com a atividade (1870-1880)

    Tipologia 1870/71 1872/73 1874/75 1876/77 1878/79 1880

    Escravo com ofcio 50$ 50$ 70$ - - -

    Trabalhador livreou escravo paratrabalhar ao ganho

    40$ 40$ 40$ 40$ 40$ 40$

    Preta livre ou

    escrava para serviosdomsticos

    18$ 25$ 22$ 25$ 35:$ 40$

    Preta quitandeiraou doceira paratrabalhar ao ganho

    30$ 35$ 40$ 40$ 35:$ 40$

    Criada livre ouescrava 20$ 30$ 35$ 35$ 35$ 35$

    Escravo de meia

    idade

    20$ - - - - -

    Fonte:Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, 1870-1880.

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    Os que se dedicavam a atividades sem retorno econmico serviodomstico, trabalho na roa, jardineiro etc recebiam jornais mais modestos.Pode-se observar, a partir da, o movimento de valorizao da fora de trabalhoque, paulatinamente, comeava a ser transacionada moda de uma economiacapitalista.

    Estas mudanas nas relaes de trabalho acabam por favorecer osescravos que conquistam a liberdade. Numa proto-economia capitalista, o queo mercado absorve a fora de trabalho; caso atendesse as necessidades doempregador, o trabalhador podia ser escravo ou livre, branco ou de cor, nacionalou estrangeiro. Ou seja, em um primeiro momento, de modernizao econmica

    da Corte, independia a condio, a cor ou a naturalidade da fora de trabalho.Africanos e crioulos cariocas, uma vez libertos, tendo em vista a dinmicapropiciada pela modernizao na estrutura econmica, podiam ocupar vriospostos de trabalho. Ter condies de responder anncios, como os relacionadosabaixo, poderia representar o comeo de uma vida economicamente ativa ecom possibilidades reais de mobilidade social:

    Precisa-se de um preto cozinheiro do trivial, pagando-se adiantado; na

    rua dos Ourives n. 17, sobrado.

    20

    Precisa-se de uma criada livre, para servio de porta a dentro, de duas pessoase que seu aluguel no exceda de 10$ a 12$; no Becco da Carioca n. 18.21

    Precisa-se alugar uma criada livre e de idade, branca ou de cor, que notenha vcios, para servir de companhia a uma senhora, e que se presta acozinhar, lavar e engomar alguma cousa; tratar no Becco do Imprio.22

    Precisa-se alugar um preto de conduta aanada para servio de fbrica;

    tratar-se na rua do Alcntara; n. 68.23

    Nos ltimos anos da dcada de 1870, os escravos com ofcio comeama sumir dos anncios, deixam de ser ofertados para venda. provvel queisso ocorra por terem sido estes os primeiros a engrossar as leiras dos novoslibertos do perodo. O valor pago pelos aluguis no sofre variao signicativadurante a dcada. Outro dado que se observa que a mo-de-obra de escravos

    20Jornal do Commercio,01 de janeiro de 1870.21Jornal do Commercio,01 de janeiro de 1870.22Jornal do Commercio, 04 de janeiro de 1870.23Jornal do Commercio, 05 de janeiro de 1871.

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    neste tpico. Ao pensar na insero social dos africanos e crioulos, intenta-seto somente demonstrar que, apesar das precrias condies econmicas, omeio urbano oferecia sim oportunidade a indivduos deste grupo de possuirsuas prprias residncias. O padro seria o mesmo acessvel aos membros dasclasses pobres e trabalhadoras da cidade do Rio de Janeiro.

    Vericando o consumo e o comportamento da populao carioca nasegunda metade do sculo XIX, Andr Boucinhas chegou concluso de queum trabalhador urbano necessitaria de pelo menos R$ 19$000 (dezenove mil-ris)mensais para os gastos com aluguel e alimentao (BOUCINHAS, 2005, p. 50).

    Para um trabalhador submetido ao regime de escravido, auferir esta

    quantia, alm do jornal pago ao senhor, certamente no representava umafacilidade. No entanto, o desejo de viver em liberdade e de forma autnoma,muito certamente impulsionou vrios cativos a usar de estratgias como:trabalhar alm da jornada diria, trabalhar em dias de folga, estreitar laoscom a classe senhorial ou mesmo com outros de sua condio social cativos,libertos ou livres negros e no negros ou ainda residir em reas insalubres,pagando valores mais reduzidos com o aluguel. Tudo para tornar possvel avivncia sobre si.

    Indcios destas estratgias podem ser vericados em vrias fontespesquisadas. Por exemplo, em uma amostragem das aes de liberdade movidaspor alguns escravos na dcada de 1870, duas das escravas autoras declaram-seresponsveis pelo pagamento do prprio aluguel.26Da leitura do processo crimemovido contra Izidoro, escravo do senhor Jos Antnio Vasques, possvelaferir que o pagamento do aluguel da boa casa em que ele residia era fruto danegociao feita entre ele, sua amsia, Maria Luiza, e a irm dela, Luzia Maria,

    ambas libertas. Os trs tinham ocupaes especializadas sendo ele chapeleiroe as duas costureiras , o que lhes permitia morar em uma, aparentemente,confortvel casa.27

    Nos registros de infrao de postura concernentes freguesia deSacramento, sobre uma denncia de um morador vizinho contra algumas26AGCRJ, Corte de Apelao, processos 14149 (Joaquina) e 8293 (Marcelina). importante ressaltar queno foi preocupao do tipo de registro informar a condio de moradia do autor(a) do processo. Dos 19casos analisados apenas nestes dois casos, nas falas das duas autoras, cou evidenciado que elas pagavamseus prprios aluguis. O fato, no entanto, d brecha para se considerar a possibilidade de outros cativos

    deste grupo viverem de maneira semelhante.27AN, Corte de Apelao, Apelao crime. Escravo Izidoro, caixa 3696, processo n. 4. A descrio que feita da residncia desta famlia a coloca em um padro um pouco acima do que Boucinhas vericou paraas camadas pobres do Rio de Janeiro.

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    africanas, pode-se concluir que unir foras foi a estratgia utilizada pelaspretas minas quitandeiras para tornar vivel o pagamento do aluguel ao senhorJos F. Coelho. Assim dizia a denncia feita pelo senhor Antonio Franciscodos Santos:

    Diz Antonio Francodos StosPorto que estando morando na casa n. 329na rua da Alfavrias pretas minas quitandeiras pasobre alugatria de JosFerraCoelho, estas pretas tem posto o prdio em mizeravel estado deemmundice atacando o posso de muita porcaria e tigres, peixes e carnespodre de cujo enrolamento arruina a sade dos vesinhos. Portanto requeo suppea vas Sina paque mande pello scal AoJoaqm Jos da Rochascalizar e achando a verde. Anoltar as ditas pretas e mandar-lhas limpar

    o do

    posso e quintaz e lanar a praia portanto.28

    Superando as crticas do reclamante, ainda que no explicitemsua condio social, podemos visualizar as lutas destas pretas minas paravivenciarem a experincia da liberdade.

    Para chegar mdia de dezenove mil-ris, necessrios mensalmentepara o gasto com alimentao e moradia, Boucinhas utilizou como base osnmeros de pesquisa de Maria Yeda Linhares, que calculou em R$ 60$000

    a mdia salarial de um trabalhador urbano. De fato, possvel comprovarque os trabalhadores urbanos com especializao auferiam este valor mdiomensalmente, como demonstrado no Quadro 2, enquanto os trabalhadoresurbanos sem especializao, durante a dcada de 1870, recebiam o jornalmdio de R$ 40$000. Conforme exposto, neste perodo o mercado de trabalhoabsorvia mo-de-obra escrava e livre de forma indiscriminada e a concorrnciaentre as ofertas de mo-de-obra favorecia o empregador, rebaixando os valoresdos jornais pagos.

    Como cativo, o trabalhador urbano direcionava grande parte dos valoresdos jornais recebidos ao acerto com o senhor. Assim sendo, as opes seriamalugar quartos em casas de cmodo, cujo valor variava entre R$ 12$000 e R$20$000 um quarto sem moblia ou R$ 18$000 a R$ 40$000 um quartomobiliado. Morar longe do centro comercial como, por exemplo, na Ilha dasCobras, era ainda mais em conta. Ali se poderia pagar por uma casinha omodesto aluguel de R$ 14$000 (cf. Quadro 3: Valores de aluguis de imveis

    urbanos, 1870).

    28AGCRJ, Infrao de Postura, 9-2-1 f 37.

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    Quadro 3: Valores de aluguis de imveis urbanos (1870)

    Valores cobrados por aluguis, segundo o tipo de imvel e/ou sua localizao no Rio deJaneiro entre 1870/1871.

    Quarto s/ moblia de 12$ a 20$Quarto c/ moblia de 18$ a 40$

    Casa de cmodos em Benca 20$

    Sobrado na Rua das Carmelitas 40$

    Casa na Ilha das Cobras 14$

    Casa em Santa Teresa com mais de seis cmodos 50$

    Casa no Catete com seis cmodos e quintal 30$

    Casa trrea com muitos cmodos na Rua Nova de So Diogo 25$

    Casa na Cidade Nova com esgoto e quintal. 25$Casa na Rua Miguel de Frias aterrada, pintada e forrada de lindos papis. 40$Fonte:Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, meses de janeiro de 1870 a 1880.

    Tendo conquistado a alforria e sem o peso de duas importantes despesas o jornal pago ao senhor e a economia necessria ao peclio o liberto certamentegozava de maiores possibilidades de aquisies materiais que o escravo. No sedefende aqui a alforria como instrumento de ascenso social por excelncia. O

    que se argumenta to somente que, enquanto membros das classes subalternas,africanos e crioulos escravos, libertos e livres , numa economia em expansocomo a vericada no Rio de Janeiro, sobretudo nas duas ltimas dcadas queantecederam a abolio total da escravido, tinham acesso a iguais condiesde trabalho e salrio.29O fato de no estarem atrelados pecuniariamente a umsenhor, podendo dispor de si e do fruto de seu trabalho, possibilitava aos libertosnovas agncias; podiam morar em melhores condies e adquirir alguns bens

    materiais. Por exemplo, em pleno ano de 1876, o preto Macrio, da nao mina,morador da Rua do Rosrio, no s pleiteava a sua prpria licena para trabalharao ganho como para um escravo seu de nome Manoel.30

    Caso estivesse entre os seus propsitos, e as circunstncias favorecessem,uma famlia de libertos um casal com dois ou trs lhos menores com umarenda familiar em torno de 130 mil-ris,31poderia alugar uma casa no Catetecom seis cmodos e quintal ou um sobrado na Rua das Carmelitas. Um liberto

    29Em se tratando das ocupaes que no exigiam altos nveis de especializao.30AGCRJ, Registro de ganhadores livres. Cdice 44.1.27 - Fl. 175/6.31Como vimos, havia oferta de trabalho para menores a partir de 12 anos, em mdia. Assim, o pai poderiareceber um jornal de 60$000, a me 40$00 e pelo menos dois dos lhos em torno de 20$000 cada.

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    solteiro, sem laos familiares ou afetivos, poderia direcionar o valor antes pagoa ttulo de acerto ao seu senhor para o pagamento de um quarto mobiliadoem uma das casas de cmodos nas freguesias centrais.32

    Com planejamento, sobraria at mesmo para investir na escolarizaodos lhos ou, caso fosse necessrio, na prpria alfabetizao. Ou seja, asestratgias levadas a cabo pelos escravos tornavam possveis, no primeiromomento, a conquista da alforria e, uma vez libertos, a integrao na sociedadeimperial, ainda que como membros das classes pobres e trabalhadoras.

    OS NVEIS DE ESCOLARIZAO

    O texto da Assemblia Constituinte de 1823 previa a oferta de instruoprimria gratuita a todos os cidados. Dissolvida a Assemblia por D. PedroI, somente com a lei de 15 de outubro de 1827 cou estabelecido que, empovoados e vilas mais densamente povoadas, deveriam ser construdas escolasde primeiras letras destinadas populao livre. Somado a esta lei, o textodo Ato Adicional promulgado em 1834 dizia que as assemblias provinciaiscariam autorizadas a legislar sobre a instruo pblica primria, reservando-se apenas o ensino no municpio da Corte, em seus vrios graus, e o ensino

    superior, em todo o Imprio, alada do governo central (NEVES; MACHADO,1999, p. 229).

    No entanto, as polticas pblicas direcionadas implementao daeducao popular na Corte somente tiveram como pontap inicial o decretode n. 630, de 17 de fevereiro de 1851. Tal decreto previa a reforma doensino primrio e secundrio no Municpio Neutro. Da em diante, outrosdecretos e leis foram, paulatinamente, sendo promulgados para a organizaoe regulamentao do ensino brasileiro destinado s classes populares.33

    Jos Murilo de Carvalho (2003, p. 79) argumenta que, no Brasil imperial,[...] a educao era marca distintiva da elite poltica. Havia um verdadeiro abismoentre essa elite e o grosso da populao em termos educacionais. O elitismoeducacional encontrava respaldo na legislao, uma vez que era facultado a todosos cidados a abertura de escolas elementares, o que ampliava as possibilidadesda educao privada (CHIZZOTTI, 2000).32 De acordo com Eullia M. L. Lobo e Eduardo N. Stotz, a populao vivia em casas de cmodos, cortios,

    estalagens, penses e hospedarias nas freguesias centrais.33O decreto n. 5532, de 24 de janeiro de 1854, autorizou a fundao de nove escolas pblicas de instruoprimria; o decreto n. 1331, de 17 de fevereiro de 1854, criou o Conselho Diretor de Instruo pblica; aLei de 24 de agosto de 1873 autorizou a construo de novas instituies escolares.

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    De acordo com o censo de 1872, a taxa de analfabetismo entre apopulao livre era de 81,44%, sendo que entre a populao escrava este ndiceatingia 99,9%. Segundo Carvalho (2003, p. 79-80):

    O nmero de alunos matriculados em escolas primrias e secundriasera muito baixo. De acordo com o Censo de 1872, somente 16,85% dapopulao entre seis e 15 anos freqentava escola. E havia menos de12.000 alunos matriculados nas escolas secundrias numa populaolivre de 8.490.910 habitantes. Os dados de ocupao fornecidos peloCenso de 1872 permitem calcular o nmero de pessoas com educaosuperior no pas em torno de 8.000. No que se refere educao noh dvida de que a elite poltica no podia ser menos representativa dapopulao em geral.

    Se, no caso das elites polticas analisadas por Carvalho, a educao

    enquanto desenvolvimento integral e harmonioso de todas as faculdades

    humanas despontava como elemento unicador, quando direcionada s

    classes populares a categoria utilizada era a instruo os conhecimentos

    adquiridos, explicao ou esclarecimentos dados para uso especial. Para Martha

    Abreu e Alessandra Schueler, a temtica da instruo foi contemplada nas

    polticas e leis do Estado Imperial, que buscava, atravs dela, civilizar e iluminara nao, sobretudo, a partir de 1870, com a entrada em cena dos novos atores

    sociais, como os ingnuos da lei de 1871 e os imigrantes (VAINFAS, 2002).

    Mesmo estando no bojo dos ideais de civilizao e progresso que

    dominaram o cenrio poltico na segunda metade do sculo XIX, o esforo

    do Estado em promover a instruo popular adotando medidas como a

    utilizao de mestres particulares subvencionados, subscries privadas para a

    construo de prdios de instruo pblica, subveno pelo Estado de escolasparticulares alcanou resultados bastante tmidos.

    Ainda em 1890, 85,2% dos habitantes do Imprio foram classicados

    como analfabetos. Obviamente no se pode perder de vista que o decrscimo de

    3,76% no pode ser considerado em termos absolutos. Anal, neste ano, todos

    os brasileiros eram considerados livres. Os oriundos da escravido estavam,

    agora, inseridos nas estatsticas educacionais e eram alvo das novas polticas

    pblicas direcionadas instruo das classes populares, mas esta uma outrahistria (cf. Tabela 1: Porcentagem da Populao Alfabetizada, 1872-1890).

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    Tabela 1: Porcentagem da populao alfabetizada, 1872-1890

    1872 1890

    Homens 23,43 Homens 19,14 Mulheres 13,43 Mulheres 10,35

    Total (1) 18,56 Total 14,80

    Total (2) 15,75Fonte: Recenseamentos de 1872 e 1890.O total (1) refere-se porcentagem de alfabetizao na populao livre.O total (2) refere-se percentagem no total da populao, excetuando-se 181.583 pessoas paraas quais o censo no fornece informao.

    Nos anncios doJornal do Commercioda cidade do Rio de Janeiro tambm

    possvel encontrar uma janela para entender o alto nmero de analfabetos entre

    as classes populares. O alto custo das penses, cobradas mensalmente para

    a educao primria e secundria, inviabilizava, at mesmo um trabalhador

    que possusse um ofcio, o acesso a uma educao de primeira linha aos seus

    lhos (cf. Quadro 4: Valores de penses escolares, 1870). No mximo, estes

    trabalhadores, ou seus lhos, poderiam se matricular em um curso externo

    ou aproveitar os cursos de alfabetizao, oferecidos a um custo mais modesto,

    como, por exemplo, o anunciado no dia 16 de janeiro de 1870:

    Curso noturno:Ensina-se a ler, escrever e contar a homens que nada saibo, as segundas,quartas e sabbados, das 7 horas s 9 da noite, por 6$ mensaes, pagosadiantados, na Travessa do Desterro n. 1.

    claro que existiam excees, mas, via de regra, poucos eram osmembros das classes pobres e trabalhadoras a compor o percentual de 18,56da populao brasileira arrolada como alfabetizada no censo de 1872.

    Quadro 5: Valores de penses escolares (1870)Tabela das penses pagas mensalmente nos cursos do Rio de Janeiro

    Pensionista Meio pensionista ExternoCurso primrio 30$ 18$ 8$Curso secundrio 36$ 23$ 10$

    Primeiras letras 6$Fonte:Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, 1870.

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    Conforme exposto, a gerao em idade escolar das dcadas de 1870e 1880 contaria com medidas educacionais mais contundentes por parte doGoverno Imperial, que investia agora em instruo pblica. Mesmos ajudadospor estas medidas a transpor os obstculos econmicos, africanos e crioulosteriam que vencer outras barreiras: as sociais e raciais. Por exemplo, um annciodo edital da Escola Normal do Rio de Janeiro deixa claro que o aspirante aodiploma de normalista, alm dos documentos necessrios, precisaria tambm daaprovao social da parte das autoridades locais, do seu professor e do procode sua religio. Assim dizia o edital de 16 de janeiro de 1870:

    Edital

    Escola Normal da Provncia do Rio de JaneiroFao pblico, para conhecimento de quem convier, que est aberta dehoje em diante a matrcula dos alunnos desta Escola Normal e encerra-se no dia 31 do corrente ms.O aspirante ao curso da mesma escola dever declarar em seurequerimento se brasileiro, desde quando reside na freguesia ondemora, e juntar os seguintes documentos:1 - Certido de idade no menor de 16 anos nem maior de 25.2 - Attestado mdico de ter sido vaccinado com bom xito, ou deter tido bexigas naturaes, bem como de no sofrer molstia nemdefeitos phsicos que o inhabilite e o torne pouco apto para exercer omagistrio.3 - Attestado das autoridades locaes sobre o seu procedinto e doprofessor cuja aula ele estiver freqentando.4 Attestado do parocho sobre sua religio.

    Os alunos approvados no 1 e 2 annos, e os repetentes do 3 devemapresentar-se no prazo marcado para assignarem as suas respectivas

    matrculas, cando designadas as segundas, quartas e sextas feiras paraas senhoras e os outros dias da semana para os estudantes do sexomasculino.O anno letivo comear no dia 3 de Fevereiro.

    Escola Normal da Provncia do Rio de Janeiro, 16 de Janeiro de 1870.Jos Carlos de Alambari Luz, diretor.34

    Discorrer sobre as diculdades da populao crioula e africana paraalcanar nveis educacionais, ou mesmo instrucionais, no refuta a hiptese

    de que a educao, como elemento de distino social, estava sim entre os

    34Jornal do Commercio, 16 de janeiro de 1870.

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    objetivos de luta deste grupo. O que se pretende, com a exposio acima, demonstrar que as classes pobres e trabalhadoras somente gradativamente, apartir da segunda metade do sculo XIX, mais precisamente no seu ltimo

    quartel, tiveram acesso instruo. O fato de raramente identicarmos umescravo (0,01% da escravaria em 1872) ou mesmo um liberto alfabetizado,denuncia o baixo padro de escolarizao dispensado s camadas popularesbrasileiras em ns do sculo XIX.35

    Como se procurou demonstrar, as barreiras impostas a este grupo eramainda mais difceis de serem transpostas por aqueles em regime de escravido oupara os que tiveram a experincia do cativeiro. No entanto, a histria testemunhacasos de ex-escravos e de seus descendentes que tiveram destaque por seus

    conhecimentos literrios.36Mesmo entre a chamada elite poltica imperial,Jos Murilo de Carvalho identicou alunos negros, em meio s denncias dediscriminao racial por parte de seus professores.

    CONSIDERAES FINAISA questo do elemento servil foi enfrentada por todas as naes que

    passaram pela experincia da escravido. A forma que esta se apresentava e oencaminhamento adotado tiveram sua singularidade em cada uma destas regies

    e dependeu do processo histrico especco por elas vivido.No caso brasileiro, mais particularmente do Rio de Janeiro, a questo

    do elemento servil, antes de se tornar uma questo institucional, com medidaspblicas para a sua conduo, foi abraada por alguns segmentos da sociedadecarioca. Africanos e crioulos procuravam, tambm eles, fazerem a sua transioparticular alforriando-se individual ou coletivamente para integrarem-sesocialmente nos mundos dos livres.

    O tabuleiro econmico que era o Rio de Janeiro na segunda metade

    do sculo XIX favorecia a autonomia e a liberdade de movimento no spara os que estavam sob o jugo da escravido, mas, principalmente, paraos negros libertos e livres. Esta autonomia e liberdade, no entanto, tinhamlimitaes. Africanos e crioulos estavam sempre sujeitos ao controle de seussenhores e/ou do Estado; anal, estavam includos na categoria chamadade classe perigosa.

    35 Os nmeros de Lobo e Stotz so sensivelmente mais animadores. De acordo com suas anlises do censode 1872, para a Corte, dos indivduos de condio livre, 99.156 sabiam ler e escrever e 126.877 eram

    analfabetos. Quanto aos escravos, o nmero dos que sabiam ler era inferior aos dias de um ano: 329 em48.939 indivduos (LOBO; STOTZ, 1985, p. 65).36 Pode-se citar exemplos como os de Jos do Patrocnio, Antnio Rebouas, Lus da Gama, Cruz e Souza,entre outros.

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    Doses de liberdade: mercado de trabalho, ocupaes e escolarizao no Rio de Janeiro 267

    A vinda macia de imigrantes, a partir da dcada de 1880, pode tercontribudo para limitar as ofertas de ocupaes para os negros cariocas. Noentanto, o que se procurou destacar com as anlises dos anncios doJornal doCommercioforam, sobretudo, as possibilidades reais de atuao e integrao nasociedade carioca dos que tiveram a experincia do cativeiro.

    Estes movimentos foram, de certa forma, detectados no censo de 1890.Carlos Halsenbalg e Nelson do Valle Silva, ao analisarem as desigualdades raciaisno Brasil no perodo, com base neste censo, puderam concluir que apesar damonopolizao das oportunidades por parte dos imigrantes, a partir da dcadade 1880, os de ascendncia africana constituam uma parte signicante da

    populao carioca economicamente ativa:

    Segundo os dados de 1890, enquanto quase metade dos 89.000estrangeiros que constituam um tero da populao ativa da cidade

    trabalhavam no comrcio e na indstria manufatureira, das 86.621pessoas de cor economicamente ativas, 41.320 tinham emprego noservio domstico, 14.720 na indstria, 14.145 no tinham prossodeclarada e outras 7.864 se concentravam na atividade extrativa,pastoril e agrcola. Apesar dessa grande concentrao em trabalhosno qualicados, os 17% das pessoas de cor empregadas na indstria

    constituem indcio de um processo incipiente de proletarizao do negroe do mulato que se antecipa ao que ocorrer no resto da regio sudestea partir da interrupo do uxo de imigrantes em 1930 (HASENBALG;SILVA, 1988, p. 131).

    PORTIONS OFFREEDOM:LABORMARKET, OCCUPATIONSAND

    SCHOOLINGINRIODEJANEIRO(1870-1888)

    ABSTRACT:The article analyzes the social and economic situation in Rio de Janeiro in the nal

    decades of slavery as a formal institution. The intention is to examine the possibilities

    of popular classes, especially the Africans and Creoles with experience of captivity, to

    carry out projects of life, individual and collective, that ensured the active participation

    in everyday life and a relative rising social mobility.

    KEYWORDS:Abolition. Citizenship. Slavery. Mobility.

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